A ilha maldita/XII

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Roberto, pois, tão gentil, esbelto e vigoroso como seu irmão, porém de índole talvez ainda mais fogosa, audaz e resoluta, concebeu o singular projeto de quebrar o encanto da orgulhosa e intratável Regina, e vingar seu irmão e todas as demais vítimas que o tinham precedido, inspirando a essa fatal beldade um amor, que nunca seria correspondido. Insensato e extravagante projeto, que só poderia germinar-se na proterva e louca fantasia de um fidalgote de vinte anos, possuindo em alto grau todos os predicados que podem encantar a mulher, mocidade, beleza, elegância e audácia. Não tinha riqueza, é verdade, mas também de que valeria a riqueza aos olhos de uma fada, de um ente misterioso inteiramente fora das condições da vida ordinária?

Roberto, porém, não partilhava a crença vulgar a respeito de Regina, nem acreditava em influências sobrenaturais de fadas, nem sereias. Tinha ele a fada do mar em conta de uma mulher ordinária. O que em seu entender dava extraordinário realce aos encantos de Regina era o fato de existir ela, mimosa, gentil e interessante criatura, no meio de toscas e desairosas pescadoras, grosseiramente trajadas e inteiramente destituídas de todo e qualquer atrativo. Todo esse prestígio, pois, que a fazia passar por uma criatura sobrenatural, em sua opinião, resultava somente da força do contraste.

Julgando-a por essa forma, e vendo os infortúnios e as catástrofes de que era causa, Roberto, sempre extremado em seus juízos, não podia deixar de considerá-la como um monstro de orgulho e perversidade, que folgava com as lágrimas e desgraças de seus adoradores. Doía-lhe no fundo da alma a sorte miseranda de tantos mancebos, que haviam tido o mais funesto fim por se terem rendido ao encanto dessa inflexível e fatal beleza. Por isso sem conhecê-la ainda concebera por ela o mais vivo despeito, e votava-lhe íntima e profunda aversão, como a uma serpente maldita.

Quando, porém, o irmão que tanto amava tornou-se a seu turno vítima da insensibilidade e orgulho dessa mulher, seu despeito subiu de pronto, e jurou desfazer o encanto da execrável fada, que só sabia derramarem em torno de si luto e desastres, desespero e morte. Quebrando-lhe de uma vez a isenção e o orgulho, esperava assim reduzi-la a suas verdadeiras proporções de frágil criatura humana, e evitaria para o futuro novas e deploráveis catástrofes.

Não tinha Roberto ainda visto senão de relance e em distância a gentil causadora de tantas desventuras, e tampouco haviam trocado uma palavra, um olhar sequer; do contrário, talvez não se tivesse abalançado a tão louca e temerária empresa. Contando com as vantagens de sua figura, com os recursos de seu espírito, e julgando-se com um coração superior às paixões, o inexperiente mancebo, certo da vitória, arrojou-se denodado ao desempenho de seu extravagante desígnio. Como ela a todos evitava, força lhe foi procurá-la, e foi bastante vê-la uma só vez por momentos para que imediatamente tivesse a amarga convicção de quão insensata e desastrosa era a tentativa em que se empenhara…!

Corria uma serena e formosa manhã de julho com seu bafejo de tépidas e perfumadas aragens; o mar espreguiçava-se soluçando ao longo das praias solitárias, e um diáfano vapor de ouro e rosa mitigava os ardores do sol suspenso sobre o oceano nas orlas do horizonte. Regina estava sozinha à beira-mar, sentada sobre uma lasca de rochedo, com a face encostada a uma das mãos, e olhando ao longe pelos vastos mares. Os cabelos soltos choviam-lhe caracolando pelas alvas espáduas, que os raios do sol iluminavam com reflexos de âmbar e rosa. A boca entreaberta conservava uma expressão entre risonha e melancólica, e os lábios vermelhos como bagas de romã agitavam-se levemente como que murmurando palavras misteriosas.

Os pés e as pernas encruzadas lhe apareciam até o meio da tíbia sob a túnica ligeiramente arregaçada, semelhando nítidas colunas de primoroso lavor cambiando à luz do sol as cores do nácar e do lírio. Amarrado à praia, o barquinho, único e inseparável companheiro seu, dormia arfando indolentemente à mercê da ressaca, como o cão fiel ressonando aos pés de seu dono.

Evidentemente ela cismava; em quê, ninguém saberia dizê-lo. Amores…? Nunca os tivera. Saudades…! De quê, se ela não tinha pai nem mãe, pátria nem família…?

Embebia-se porventura em sonhos ideais, em místicas e celestes aspirações…? ou elaborava no crânio maldito maquinações infernais para perder as almas incautas e juvenis…? Podia ser uma ou outra coisa, pois que essa mulher inconcebível tinha uma dupla natureza, e parecia reunir em si tudo quanto há de belo, puro e adorável nos seres angélicos, e o que há de mais monstruoso e execrando nos espíritos infernais, sem estar sujeita a nenhuma das fraquezas da humanidade.

Enlevada naquele êxtase etéreo, parecia uma criatura incorpórea, diáfana, impalpável, um fantasma de luz, absorvendo em si tudo quanto há de belo, de puro, de harmônico e beatífico na terra e no céu. Na pureza ideal do perfil e das formas, na singeleza do nobre e gracioso porte, na serenidade e candura, que lhe respirava em toda a fisionomia, era um querubim. Pelo suave langor dos olhos, pela sedutora expressão dos lábios úmidos e nacarados, pelo mimo, frescura e transparência do colorido, pelos mórbidos e voluptuosos contornos do colo, braços e ombros nus, a julgaríeis uma huri, uma náiade, uma Vênus Afrodite.

Roberto, que a divisara em distância, avizinhou- se cautelosamente; parece-lhe ter diante dos olhos uma visão celeste a respirar luz e perfumes, amor e beatitude. A medida, porém, que se ia aproximando e que pôde observar mais distintamente aquele tipo de inefável formosura, um sentimento indefinível de assombro e de terror foi-se apoderando de seu espírito. Por mais que se esforçasse para recuperar seu sangue frio e sobranceria habitual, cada vez mais se perturbava. Tentou em vão desviar dela os olhos deslumbrados; seus olhos se conservavam cravados sobre aquela imagem radiante de beleza, como em um foco de irresistível atração. Parou enfim a alguns passos de distância, confuso, enleado, estático; quis falar-lhe, porém, que lhe diria ele? Onde sua língua, entorpecida pelo pasmo, poderia achar sons que exprimissem o que sentia…? Amedrontado como por uma visão sobrenatural, tentou fugir, mas os pés recusavam-se ao seu desejo, e, como que tinham criado raízes, que se entranhavam no solo. Assim por largo tempo permaneceu como petrificado até que Regina, voltando-se casualmente, deu com os olhos nele.

— Que é isto, meu Deus…! — exclamou ela sobressaltada. — Quem sois…? Que fazeis aqui…? Pensei que estava sozinha…!

— Gentil pescadora — respondeu Roberto confuso e balbuciando —, eu… nada mais fazia… do que… admirá-la.

— Ah! Era só isso! — replicou a fada com um tom o mais indiferente do mundo. — Bem pouco tem que fazer então. Não é bom costume esse de vir surpreender a gente, quando se está só.

Dizendo isso, Regina ergueu-se altiva e desdenhosa e, sem ao menos olhar para o mancebo, dirigiu-se para o seu barco, saltou dentro e fez-se ao largo.

Roberto ali conservou-se por largo tempo na mesma posição, mudo, imóvel, aniquilado, com os olhos fitos na barquinha que, lesta e veloz, lá ia conduzindo a inflexível beldade através das ondas ligeiramente encrespadas pelas auras matinais. Assim, pois, desde o primeiro encontro com a inimiga, que em seu louco orgulho esperava ver abatida a seus pés, viu-se vencido sem combate, humilhado e perdido para sempre. Não levou muito tempo a chegar-lhe aos ouvidos o formidável estribilho da canção de Regina:

Eu sou pérola das vagas,
Que não sei, nem quero amar
O meu peito é como a rocha,
Onde em vão esbarra o mar.
   Mancebo, vai noutra parte
   Teus amores suspirar.

Esse pungente sarcasmo, envolto em ondas da mais suave e angélica melodia, vibrado por uma voz do mais argentino e delicioso timbre, ecoou no coração de Roberto como lúgubre sentença do mais acerbo desengano.

A despeito, porém, de tão rude revés, em sua primeira tentativa o fogoso mancebo não recuou e, arrastado por uma atração irresistível, prosseguiu com implacável pertinácia no louco propósito de render o coração da inflexível donzela.

Já não o impelia mais o desejo de libertar os habitantes daquele lugar da funesta influência de Regina, tampouco o insensato plano de vingança; era agora uma paixão ardente e voraz como um incêndio, impetuosa e desvairada como as tormentas do oceano. Desde que pusera os olhos em Regina, todo o despeito e rancor que lhe votava se havia convertido de chofre no mais violento e cego amor, na mais fervorosa e fanática adoração. Longe de quebrar a sereia o seu encanto fatal, foi ele quem ficou para sempre encantado e preso na rede inextricável dos atrativos da filha do mar.

Todavia, a despeito desse afeto ardente, cego, imenso, que lhe protestava, a despeito de sua gentil figura e garboso porte, e tantas outras prendas que lhe adornavam o corpo e o espírito, o moço jamais pôde conseguir da inexorável fada uma palavra ao menos de dúbia esperança, um olhar menos indiferente, um gesto de complacência. A suas palavras de fogo respondia ela, como já respondera a seu irmão glacial e severa, mas sem enfado nem desdém:

— Perde seu tempo, moço; eu não sei e nunca hei de saber o que é amor.

Vítima da mais tirânica e indomável paixão, Roberto achou-se colocado na mais horrível e angustiosa situação que se pode imaginar. Mais desgraçado ainda que seu irmão, via-se arrastado por um poder fatal e irresistível pelo rápido declive da ignomínia e perdição; ia ser duas vezes perjuro: desleal e perjuro para com seu irmão, perjuro e sacrílego para com os manes de seu pai. Se Regina jamais quisesse retribuir-lhe o inextinguível amor que o devorava, a dor o levaria aos extremos da desesperação e da loucura, e morreria como um prescrito sem salvação possível neste nem no outro mundo. Se, porém, um dia a fada se rendesse, oh!, como poderia ele resistir-lhe…? Não teria forças para tanto, e então seria pior que um prescrito, seria um monstro digno de todas as maldições do céu e da terra.

Em momentos de alguma calma e lucidez de espírito, fazia fervorosas súplicas ao céu, para que lhe arrancasse do seio sua funesta paixão, ou pelo menos jamais permitisse que Regina correspondesse ao seu afeto. Só assim poderia ainda salvar-se da medonha voragem que ameaçava tragar-lhe a vida e a alma. Mas esses votos eram para logo abafados pelos indomáveis impulsos da paixão, que assoberbava-lhe a vontade e obumbrava o entendimento, e o mísero mancebo corria como louco em procura da intratável beldade, e rojava-se aos pés dela entre súplicas e lágrimas a lhe pedir amor.

Um dia, como já fizera seu irmão, vendo a moça soltar sua vela aos ventos e fazer-se ao largo, manobrou também seu batel em seguimento dela. Mas a rápida piroga da sereia voava sobre as ondas, e zombava dos esforços que fazia Roberto para alcançá-la. Todavia, a foi acompanhando sempre até que o barco da moça, empegando-se nas águas da ilha maldita, sumiu-se entre os alterosos escarcéus que acingem de uma toalha de espumas revoltas e rugidoras.

Roberto ficou transido de terror ao ver o frágil batel sacudido pelas ondas furiosas ora abrolhar tremendo como seca folha no píncaro espumoso de um vagalhão, ora precipitar-se a pino pelas medonhas voragens do oceano.

Convencido de que seria inevitável a perdição de Regina, empregava esforços supremos para correr em seu auxílio. “Salvá-la ou morrer com ela!”, assim pensou ele, assim também havia pensado seu irmão em circunstâncias em tudo idênticas. Mas não o consentiram as ondas, que ali ferviam em perenal tormenta quebrando-se em revoltos e desencontrados movimentos, e que noite e dia galopavam bramindo em volta da ilha maldita como um bando de dragões furiosos, vedando o seu acesso a todo o barco que não fosse o de Regina.

Exausto, em fim de forças, arquejante de fadiga, angústia e desespero, Roberto, para cúmulo de tormento, sentiu cheio de pasmo chegarem a seus ouvidos os acentos de uma voz suave e maviosa, porém de tão valente e sonorosa vibração, que se fazia ouvir distintamente entre o rugir das vagas rebentando nos cachopos. Era a voz da filha das ondas que, dentre os escarcéus em que seu barco se debatia, soltava às virações do mar o inexorável estribilho de sua canção:

Mancebo, vai noutra parte
Teus amores suspirar.

Roberto caiu desfalecido no fundo de seu barco. Quando voltou a si, este se achava encalhado na areia da praia, para onde a maré o havia trazido, não longe da cabana em que morava.