A ilha maldita/XIII

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— Meu irmão — disse ele no dia seguinte a Ricardo, o mais moço dos três irmãos —, de hoje em diante vais ficar só nesta cabana…

— Que estás dizendo, Roberto…? — replicou surpreendido o irmão. — Pois tu também vais deixar-me…?

— Sim, meu irmão, pois que não há remédio.

— O que te aconteceu…? O que te obriga…?

— O mesmo que a nosso irmão mais velho; sou vítima de uma paixão funesta; sou mais um desgraçado, a quem essa maldita fada, que há tempos anda malsinando estes lugares, arroja para sempre no abismo da perdição e do infortúnio.

— Oh! Meu Deus! Meu Deus! — exclamou o adolescente, cheio de angústia e consternação. — Ainda essa mulher! Essa mulher fatal…! Até quando permitirá o céu que ela fique nesta terra para flagelo e perdição de tanta gente…?!

— Foge dela, Ricardo, foge dessa beleza fatal, como quem foge de um espectro sinistro, de um dragão que nos quer devorar, como quem foge do espírito das trevas que nos quer arrastar para o seu reino de eternas dores. Não creias que é uma mulher; debaixo daquele aspecto de anjo se esconde uma serpente, que te morderá o peito e te infiltrará no coração sutil veneno e devoradora chama.

Vendo assim falar Roberto com o peito ofegante, o gesto abatido, o olhar sombrio e desvairado, como quem se achava debaixo da impressão de um terror sobrenatural, Ricardo compadeceu-se íntima e profundamente de seu irmão, como este outrora se havia compadecido de Rodrigo em idênticas circunstâncias.

— Bem sei, Roberto — replicou ele depois de curto silêncio —, bem sei quem é essa funesta beldade, posto que nunca a tenha visto; nem era preciso que me avisasses. De há muito tenho medo dessa mulher fatal, e fujo de seu encontro como quem evita os escolhos da ilha maldita. Posto que ainda muito jovem a experiência dos outros, e principalmente a tua e a de nosso irmão mais velho me fazem arrepiar de horror.

Mas para onde vais…? O que pretendes fazer, meu caro irmão…? Por que me deixais aqui tão só…? Eu, tão moço ainda, fraco e sem experiência, que poderei fazer abandonado a mim mesmo nestas broncas praias…?

— Ah! Meu querido Ricardo…! Perdoa-me! Não podes avaliar quanto me custa o deixar-te, que atroz e pungente mágoa me aperta o coração ao dizer-te este adeus… Talvez eterno…! Mas de que te serviria eu ficar junto de ti…? Eu já não vivo, Ricardo; sou um fantasma errante, que ando a arrastar entre os vivos o manto pesado de meus tormentos, e se tenho ainda uma alma é só para sentir os contínuos e desapiedados golpes da dor, que me flagela o coração. Não, não me é possível viver na terra em que existe Regina. O ar que ela respira me envenena, o chão em que pisa abrasa-me os pés, e estes mares, que ela sulca rindo e cantando, estão sempre a murmurar a meus ouvidos um cântico de feroz escárnio…! Oh…! Não, não posso ficar…! Se eu ficasse, Ricardo, terias em breve o desgosto de me ver expirar do modo o mais lastimoso entre as torturas do desespero…! Tu fica e vive, meu irmão; és forte, audaz, inteligente, e por ti só poderás fazer muitas e nobres coisas, que uma desastrada estrela impediu teus desgraçados irmãos de levarem a cabo.

“Lembra-te que agora és o único representante de uma nobre e desditosa família, e o último depositário de uma herança sagrada.

“Porém, cuidado, meu irmão…! Trata de evitar esse terrível escolho, onde eu, teu irmão e tantos outros, tivemos a desgraça de naufragar. Evita a mulher maldita, e tudo te correrá bem. Se Rodrigo e eu sucumbirmos, a ti cumpre viver para perpetuar nossa geração. Adeus, meu querido Ricardo…!”

— Adeus, meu irmão…!

E o segundo irmão desapareceu também daqueles lugares, sem que ninguém soubesse ao certo que destino levara. Todos, porém, acabaram por convencer-se de que tivera o mesmo fim de seu irmão mais velho, e pelo mesmo motivo. E as mães tiveram mais um caso sinistro a registar na memória para contarem a seus filhos e netos, e mais uma ocasião de esconjurar a sereia maldita, causa de tantas desgraças e calamidades.

Ricardo, vendo-se sozinho, e abandonado por seus irmãos naquelas broncas regiões conservou-se longos dias entregue à mais triste e desanimada inação. Cismava de contínuo nessa mulher de fatal e estranha formosura, que assim o privava da companhia de seus caros irmãos, reduzindo-o à mais precária e desoladora situação. Se bem que lhe votasse profunda antipatia e entranhado rancor, pensava consigo que bem extraordinária devia ser a beleza dessa mulher, que tinha o funesto condão de alucinar quantos mancebos tinham a desgraça de enxergá-la. Todavia, como nunca a tinha visto, não podia conceber como uma mulher, por formosa e sedutora que fosse, tivesse o poder de cativar a tal ponto a vontade, e subverter as ideias de um homem. Não desejando encontrar-se com ela, não a evitava, e sentia mesmo pungir-lhe interiormente uma secreta curiosidade de ver de perto tão extraordinária mulher que devia ser um assombro de formosura. Em sua alma ingênua e virgem, o adolescente julgava-se ao abrigo de qualquer emoção amorosa, e pensava que afrontaria com toda a calma e seguridade os perigos de um encontro com a sedutora fada.

Um dia, com a alma acabrunhada de tédio e melancolia — coisa tão imprópria de seus verdes anos —, Ricardo, depois de ter discorrido longas horas pelas praias ermas, ora lembrando-se com viva saudade de seus infortunados irmãos, ora concentrando toda a força do pensamento nessa mulher singular, que evocava no espírito revestida de todos os seus terríveis encantos, reclinou-se junto a um rochedo, que se debruçava sobre a praia formando como um toldo de granito e derramando sobre a fina areia fresca e deliciosa sombra.

O sol do meio-dia reverberando nos areais produzia calma intensa e opressora.

Ricardo adormeceu e sonhou. Divinos acordes de uma voz melodiosíssima ecoaram a seus ouvidos, banhando-lhe o coração em eflúvios de inefáveis delícias. Esse cantar mavioso parecia partir do seio de uma nuvenzinha branca que, à semelhança de um tufo de alvinitente arminho, vinha boiando sobre as vagas a demandar a praia. Essa nuvem, que gradualmente se adelgaçava, se foi desmanchando em róseo e diáfano vapor, no seio do qual se foram pouco a pouco desenhando as formas esbeltas e graciosas de uma virgem de esplêndida e deslumbrante formosura; uma auréola de luz meiga e serena circundava-lhe toda a figura, que se destacava como em um camafeu do mais rico e primoroso lavor. A virgem continuava a cantar, enquanto seus róseos braços, manobrando com gentil donaire um remo de marfim, fazia resvalar serenamente à flor das ondas um leve e elegante barquinho.

Súbito, parou de remar e de cantar, fitou no mancebo os grandes olhos cheios de comoção e sobressalto, e encarou-o por alguns momentos. Um leve sorriso de afetuosa expressão roçou-lhe os lábios, mas esse sorriso fugaz como um relâmpago apagou-se logo em uma sombra de tristeza, que enturvou-lhe toda a fisionomia. Moveu de novo o remo, e virando de bordo, outra vez demandou o largo. À medida que se afastava, o tênue vapor alvirróseo, que a circundava, foi rapidamente se condensando e avolumando, e em breve se converteu em vasto e pavoroso negrume, que se estendeu por toda face do oceano. As ondas até ali tão plácidas e bonançosas começaram a empolar-se em desmesurados vagalhões, no meio dos quais o frágil batel da donzela doudejava às tontas em boleos desencontrados. Transido de pavor, Ricardo queria gritar, mas o peito comprimido mal podia soltar uns sons cavos e abafados; tentava arrojar-se ao pego e atirar-se nadando em seu socorro, mas seus braços estavam inertes e paralisados, seus pés não podiam arrancar-se do solo em que se achavam. Um trovão horrendo abalou as esferas, um raio rasgou as nuvens, e dois enormes vagalhões coloridos de fogo e sangue, ruindo um contra o outro, iam quebrar-se sobre o mísero barco da donzela…

Ricardo acordou, enfim, arquejando entre as ânsias de afrontoso pesadelo. Abriu os olhos: que viu…? Uma formosíssima donzela, de rosto e porte em tudo semelhante a de seu sonho, achava-se em pé diante dele, e o contemplava com um meigo e afetuoso sorriso.