A ilha maldita/XIV
Era regina.
Sulcando as ondas ao som de uma de suas canções favoritas, por acaso dirigira para ali a proa de sua piroga e, saltando à praia, avistou o jovem que dormia, ou antes que se agitava e gemia nas ânsias de um sonho atribulado. Contemplou-o por instantes: era a primeira vez que pousava olhos complacentes sobre a figura de um homem.
Era Ricardo, um jovem de formosura e galhardia sem par, na flor da adolescência, ligeiro buço mal lhe ensombrava o lábio superior, e ao ver-lhe o busto tomá-lo-eis pela mais formosa filha dos pescadores daquelas paragens, se não fora um que de másculo e resoluto que lhe ressumbrava de toda a fisionomia, e nele revelava o homem e homem de vigorosa têmpera. Os cabelos castanhos, compridos e anelados lhe contorneavam o rosto e o torso soberbo e perfeitamente modelado. A cabeça repousava sobre o braço recurvado, enquanto o corpo esbelto e admiravelmente talhado se estendia pela areia que lhe servia de leito. Os lábios rubros, que fariam inveja à mais mimosa donzela, lhe tremiam agitados no ofego do sonho penível. Na Grécia antiga o teriam tomado por Endimião, ou Adônis, Hypólito ou Antínoo.
Regina contemplou por um momento o donoso semblante e as formas esbeltas mas vigorosas do mancebo, e um vago sentimento de interesse e ternura, assomando-lhe do coração, banhou-lhe os lábios em um meigo sorriso. Percebendo que o moço se debatia nas ânsias de um sonho opressivo, ia despertá-lo, mas antes que o pudesse fazer, Ricardo havia aberto os olhos a tempo de ainda surpreender nos lábios da moça aquele meigo sorriso de ternura, que para logo se esvaeceu. Foi Regina quem primeiro quebrou o silêncio.
— Que tendes, moço? — perguntou friamente. — Parece-me que tínheis um mau sonho.
— Oh…! Sim…! — respondeu Ricardo atônito e perturbado. — Um lindo sonho… um sonho horrível… mas agora… será ainda um sonho?
— Não foi nada; era o sol que vos castigava a cabeça e vos aquentava os miolos; por isso tivestes um pesadelo.
De feito, os raios do sol, que ia declinando, começavam a penetrar na meia gruta em que o moço se abrigara, e batiam-lhe em cheio sobre a fronte descoberta.
A resposta indiferente, prosaica e glacial da moça, que nem de leve manifestou curiosidade de saber qual fora o sonho de Ricardo, o calcou de chofre no abismo do mais cruel abatimento.
Ditas aquelas palavras, acenou-lhe com a fronte um leve adeus e em poucos instantes desapareceu por entre uns rochedos vizinhos.
Fosse prevenção ou realidade, Ricardo notou que, ao voltar-lhe as costas, a moça empalidecera, e que ao ligeiro sorriso que lhe ornava os lábios sucedera uma sombra de tristeza, que lhe envolveu como um crepe toda a fisionomia. Gélido e mortal desalento, filtrou-se-lhe no âmago do coração. Esse sonho, seguido da visão real que tão fielmente o interpreta, ou antes reproduz aquele canto suave, aquela aparição risonha e fagueira que depois se abisma entre os horrores de pavorosa borrasca, enfim, ao despertar aquela fada, aquele anjo radiante de beleza, que um momento o afaga com um sorriso para depois voltar-lhe as costas com indiferença e enfado, tudo isso lançava-lhe no espírito indizível perturbação. A alma do mancebo estorcia-se sob o peso da poderosa fascinação; o formidável olhar da fada dos mares lhe havia traspassado o coração como um farpão ervado, e nele coara o veneno dessa paixão profunda, infrene, inextinguível, que soía inspirar a todos que a contemplavam. Desde então, o destino inscreveu também o nome de Ricardo no livro negro das numerosas vítimas da fatídica beldade.
Ricardo afastou-se, ou antes arrastou-se a passos lentos daquele sítio fatal. Já não era o mesmo adolescente de semblante calmo e plácido, de senhoril e nobre porte; poucos momentos bastaram para transtornar-lhe inteiramente o gesto e o aspecto. A cabeça curvada para o chão ardia-lhe em mil delírios; o coração ora lhe pulsava alvoroçado em vagas e insensatas aspirações e sonhos de inefáveis delícias, ora como que de todo lhe parava abafado entre as garras do mais profundo desalento. E assim foi andando trôpego e arquejante como o cervo novo, que escapou lacerado e sangrento das garras da pantera, até chegar à cabana agora solitária, onde outrora passara dias tão alegres e felizes em companhia de seus irmãos. Parou diante da porta e, cruzando melancolicamente os braços:
— Não! Não…! — exclamou com voz lúgubre e abafada. — Aqui não devo entrar mais senão em companhia de meus irmãos…! Um naufrágio nos arrojou nestas praias selváticas; outro naufrágio pior ainda nos dispersa e nos expele delas. Não, não podemos, não devemos nos separar. Tínhamos vivido sempre juntos até aqui; a mesma estrela funesta ou propícia, sempre sem discrepar, tem dirigido nosso destino pelos mesmos trilhos. Naufragamos sempre no mesmo escolho; temos de morrer juntos e vítimas da mesma desgraça; é esse o nosso fado…! Tem de cumprir-se!
E Ricardo, o mais moço dos três irmãos, também desapareceu daquele lugar, e ninguém mais soube novas dele.
— Não há duvidar — disseram todos —, foi Regina que o matou. É mais uma vítima da maldita sereia, e queira Deus que seja a última!