A ilha maldita/XIX

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Agora que um de nossos heróis acaba de levar a efeito o arrojado cometimento de penetrar nessa ilha maravilhosa, objeto dos anelos de poucos, e dos pavores e maldições de quase todos, julgo que não será descabido dar ao leitor uma sucinta descrição das maravilhas que encerrava em seu seio. Já tivemos ocasião de visitá-la uma vez; mas foi alta noite à luz do luar, e em tão sinistra e pavorosa ocasião que não tive ânimo de demorar o leitor por muito tempo entre os horrores de tão horripilante episódio.

Agora vamos vê-la a plena luz do sol fulgurante do trópico em uma tarde esplêndida e serena servindo de pitoresco e delicioso asilo à entrevista de dois jovens e formosos amantes, sem punhal, sem sangue, sem cadáver… a menos que não dê na cabeça à maldita fada o satânico capricho de transformar-nos o capítulo.

Como já sabemos, o centro da ilha era um tanque de forma oval, espaçoso e límpido, espelhando no regaço sempre bonançoso o puro azul do céu, doca imensa aberta pela natureza, mas vedada aos homens e cheia de encantos e mistérios. As ondas, que entravam aos borbotões com alguma violência pelo estreito canal oblíquo e curvo como a boca de um caramujo, quebrando inteiramente o seu furor, iam expandir-se livremente no seio da espaçosa baía desenrolando-se em círculos concêntricos, que, em suaves ondulações, iam beijar as alvas praias alcatifadas de fina e luzente areia.

Em volta dessa arenosa e branca zona, na qual, como brilhante safira em um anel de prata se engastava o lago azul, elevavam-se por todos os lados as mais risonhas e encantadoras perspectivas. Eram vicejantes colinas, ou antes uma só colina circular, cujas encostas de suave declive começando nas margens do sereno golfo iam-se elevando em vasto e gracioso anfiteatro. Estendiam-se essas encostas em caprichosas ondulações cortadas aqui e acolá por grotas cobertas de frondentes balsas, por entre as quais saltitavam murmurando na sombra regatos de frescas e cristalinas águas. Ali um laranjal toucado de frutos e flores odoríferas, acolá coqueiros e bananeiras balanceando ao vento as longas palmas, e vergando-as ao peso de seus cachos dourados, além mangueiras isoladas carregadas de sazonados frutos e derramando da vasta e frondosa cúpula, sussurros, perfumes e ameníssima sombra sobre um chão de tenra e macia relva. Enfim moitas, latadas, grupos de arvoredos cobertos de frutos e flores, grutas, fontes, cascatas interrompiam a cada canto a uniformidade das risonhas colinas que, por fim, iam perder-se no azul do céu, formando na linha extrema os topes da medonha penedia que constituía o cinto externo da ilha banhado pelas ondas convulsionadas em eterna tempestade.

Dentro: a paz, o silêncio e a mais aprazível solidão; fora: o rugir perene do oceano em medonha e desesperada luta contra a rijeza e imobilidade dos cachopos inabaláveis! É assim a alma do justo: no meio da gruta infernal das paixões desenfreadas, e das mais violentas comoções que agitam a humanidade, conserva sempre a mesma paz e serenidade, porque tem na consciência pura o abrigo que a ampara das tormentas exteriores.

Este símile, porém, não tem aqui muito cabimento, porque infelizmente nenhum dos heróis que figuram nesta estupenda história está neste caso; pelo contrário, todos eles têm motivos de sobra para trazerem horrivelmente agitada a consciência.

Pelo que o leitor tem visto, a ilha, se pudesse ser vista a voo de ave, apresentaria precisamente a forma de uma ferradura, sendo formado o vão pelo golfo central, a chapa pelas colinas circunstantes, e a orla pelas penedias pendidas sobre o mar. Não se via nela construção alguma que mostrasse ter sido feita pela mão do homem, senão uma pequena e pitoresca choupana pendurada no viso de uma encosta assaz alcantilada, e essa mesma se achava por tal forma escondida debaixo de um lajedo saliente, que se debruçava sobre ela em forma de teto, e tão enteada entre festões floridos e frondosas ramagens que mais parecia uma gruta, um mimoso capricho das mãos da natureza. Era ali, por certo, a morada, ou antes o recatado e misterioso ninho da sereia.

Rodrigo ficou por momentos suspenso e absorto diante do maravilhoso espetáculo que se desdobrava ante seus olhos. Não duvidou mais da existência de encantamentos, e convenceu-se de que realmente se achava nos jardins de uma fada, pois só um poder sobrenatural, um condão de nigromante seria capaz de produzir maravilhas tais no seio daquele bronco e ignorado recinto perdido no meio do oceano.

— Regina é, pois, uma verdadeira fada! — exclamou assombrado! — E estes sítios são seus palácios encantados…! Que importa…! Simples mulher, fada, sereia, anjo ou o demônio, que seja, adoro-a, quero vê-la, morrer a seus pés, ou com ela aqui ficar para todo o sempre encantado…! Mas ela? Ela onde está…?

Ainda bem seus olhos fascinados não acabavam de admirar as margens encantadoras do lago, em cujo centro seu batel arfava brandamente embalado pela vaga, quando foram seus ouvidos súbita e agradavelmente surpreendidos pelas suaves modulações de uma voz de mulher, que vinha cantando ao longe as seguintes coplas:

Eu sou formosa e jovem,
Dos mares sou princesa,
Em graças e beleza
Jamais achei igual.
   E vivo aqui sozinha,
   Ai céus! Para meu mal.

E vivo aqui sozinha
No seio de esplendores;
Ninguém quer meus amores,
Ninguém me vem buscar.
   E eu sou a mais formosa
   Das filhas deste mar.

E eu sou a mais formosa.
E a mais alva açucena.

Que sobre a onda serena
Balança o airoso hostil.
   Mas nesta solidão
   Que serve, serve ser gentil?

Mas nesta solidão
Ninguém vem consolar-me;
E sempre a lastimar-me
Aqui morrerei só
   Ai, triste de mim! Triste!
   Ninguém de mim tem dó.