A ilha maldita/XVI

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Alguns anos, não muitos, já são passados depois dos sinistros e extraordinários acontecimentos que acabamos de narrar. Os habitantes daquela costa ter-se-iam já esquecido de Regina, das desgraças que causara, de seu desaparecimento misterioso, sua existência iria já passando para a ordem das lendas populares se não fora a ilha maldita pavorosa realidade, que lá surgia diante de seus olhos nos confins do oceano. Com efeito essa ilhota maravilhosa, esse anel de rochedos, em torno dos quais as ondas revoluteavam em perenal borrasca, esse cachopo inacessível, a que nenhum barco ainda, à exceção do de Regina, conseguira aportar, ainda lá campeava na orla do horizonte cada vez mais inexplicável com seus mil encantamentos, dando que cismar ao povo e alimentando mil crenças extraordinárias e sobrenaturais. Ele lá se erguia ainda, torvo e sinistro espectro, ameaça viva enchendo de receios e pavor as pobres e solícitas mães temerosas pela sorte futura de seus filhos.

Às vezes a viam envolta em um nevoeiro diáfano, circundada de penedias dependuradas sobre o mar, coroadas de viçosos vergéis, magnífico terraço, jardim pênsil construído sobre as vagas. Atraídos pela esplêndida perspectiva, um ou outro pescador mais audacioso afoutava-se a dirigir para lá o seu barco a toda força de remo e vela. O nevoeiro se dissipava; as ondas apareciam ermas, e a ilha encantada surdia além sobre outro ponto do horizonte como um cachopo estéril, bronco, açoitado pelas ondas enfurecidas.

Outras vezes era uma colina azulada que emergia das vagas com suas risonhas encostas mosqueadas de moitas de verdura, de coqueiros, mangueiras e outras árvores frondentes, e a vista penetrante de alguns pescadores julgava por lá divisar alguma cabana, animais, e um ou outro vulto humano vagueando pelas praias. Mas se alguém para lá endireitava a proa, via todos aqueles encantos irem-se esvaecendo gradualmente, e a ilha ou fugia perenemente diante dele, ou se apresentava como parcel medonho repelindo as vagas rotas em furiosos escarcéus.

Alguns, porém, mais felizes gabavam-se de ter visto mais de perto a ilha, e contavam dela coisas maravilhosas. Estes confirmavam a antiga tradição assegurando ter visto nela a vagar pelas praias ou galgando os rochedos uma moça de estranha formosura, e que a ouviram cantando suavíssimas cantigas com a mais linda voz que é possível imaginar.

Asseveravam mais, que a ilha não era um rochedo estéril e nu, que por entre uma aberta da penedia tinham divisado pomares, laranjais carregados de frutos, frescos e deliciosos vergéis e jardim topados de mil brilhantes e viçosas flores.

Assim era essa ilha frequentemente o assunto das conversas e discussões dos pescadores, quando na praia se encontravam para os misteres cotidianos de sua lida.

— Não estão vendo? Olhem, lá está ela! — exclamou um velho barqueiro apontando para o horizonte.

— Onde, mestre Tinoco…?

— Acolá, Miguel, para onde aponta meu dedo; não vês ainda?

— Perfeitamente…! Oh! Como é bonita a tal ilha…! E a gente não pode lá ir…!

— Nem pensas nisso. Aquilo é o castelo do diabo, que anda a boiar por cima do mar. O que devemos fazer é pedir ao padre cura para esconjurá-lo com exorcismos, a ver se foge para sempre destes mares.

— Mas dizem que lá mora uma moça que é um assombro de formosura e que sabe cantar como uma sereia…

— Como uma sereia! — interrompeu o velho a rir-se. — Forte asno que tu és, Miguel…! Pois se ela é mesmo sereia.

“E sabes tu o que é uma sereia…? É o demônio dos mares, a pior tentação que pode haver neste mundo, mas ninguém há que a tenha visto senão de longe. Qual é o que se pode gabar de a ter encarado de perto, que lhe não tenha caído nas garras, ou pelo menos não tenha ficado doido varrido…?”

— Eu que aqui estou, mestre Tinoco — acudiu um lépido mancebo de fisionomia cheia de vivacidade e inteligência. — Eu, que aqui estou, já a vi com estes olhos e ouvi cantar com estes ouvidos.

— Tu, Maneca? — respondeu o Tinoco, abanando a cabeça com incredulidade. — Ora, sai-te daí; se tivesses posto os olhos nela um só instante não estavas aqui assim tão fresco.

— Pois vi, sim, senhor; posso jurar se for preciso. Por sinal que é uma mulher alta, benfeita, cinturinha delicada, ombros e braços alvos e roliços, com uns cabelos muito compridos, que andam a esvoaçar com o vento, e traz na cabeça uma grinalda de flores amarelas…

— Mas dize-me cá uma coisa, da cintura para baixo não tinha figura de peixe?

— Lá isso não; eu a vi andar como as outras mulheres com um vestido branco bem comprido, que às vezes arregaçava um pouco para subir aos rochedos, e vi-lhe o pé e a perna tão benfeita como as mais benfeitas.

— Então não era sereia; decerto estavas sonhando, meu rapaz. E como poderias tu lá chegar se o mar ali esbraveja e ferve como as caldeiras do inferno, e sacode pelos ares os mais possantes navios…?

— Eu lhe conto como foi. Outro dia eu vinha abeirando essas praias no meu barquinho. O vento cochilava, e mal fazia bater a vela esbambeada ao comprido do mastro; o sol ardia, e fazia um calor de abafar. Eu, fiado na calmaria, larguei o leme, deixei o barco ir à toa e também cochilei, e não sei como ferrei no sono alto dia. Enquanto eu dormia, uma rajada de sudoeste, um furioso pampeiro, agarra-me da vela e atira comigo e o meu barco por esses mares de Deus afora. Íamos voando por cima dos vagalhões como uma pena arrebatada pelo tufão. Vi-me em talas; quando dei acordo de mim e lancei os olhos em derredor, já quase não avistava as praias, e o barco corcoveava desesperadamente dando saltos e bufando como um poldro espantado. Em tais apuros, não sabendo o que fazer, não quis arrear o pano e deixei o barco correr às tontas pela superfície das vagas à mercê de Deus e do tufão. Em poucos instantes avistei diante de mim uma penedia enorme, de encontro à qual iria esbarrar instantaneamente se me não desse pressa em colher a vela e manobrar com toda a força o leme para evitá-la. Mesmo assim o vento ponteiro que soprava não deixava de avizinhar-me do maldito parcel. Ouvi então uma voz a cantar; olhei para a ilha e vi uma linda mulher que lá estava em pé a cantar em cima de um rochedo, como uma Santa Cecília em cima de seu andor…

— Alto lá, senhor Maneca; não ande a misturar as coisas da religião com as bruxarias de uma sereia…

— Perdão, mestre Tinoco, mas se ela estava tão linda…! O vento levava-lhe os cabelos de ouro que batiam o ar como as labaredas de uma fogueira; as roupas palpitavam-lhe no corpo como a vela preza ao mastro. Era linda como os amores! E que voz…! E que bonita cantiga ela entoava! Larguei o leme, esqueci-me de tudo, do perigo, do mar, do tufão, do rochedo, e só tinha olhos para contemplá-la e ouvidos para escutá-la. O rochedo estaria a apenas três ou quatro amarras do meu barco; mas as bordas eram lisas e a prumo, e impossível era lá chegar. Estive quase a arremessar-me às ondas para que elas me levassem vivo ou morto aos pés daquela formosura sem-par. Não sei quanto tempo ali fiquei embasbacado na contemplação daquela moça e na harmonia daquele canto. Pouco a pouco as ondas rechaçadas violentamente pela penedia me foram afastando daquele lugar de encantos, a proceda amainou e eu pude voltar para a terra, onde passei o dia e a noite meio assombrado com aquela visão que não queria me sair da imaginação.

— Eis aqui está — acudiu o Tinoco —, viste apenas de longe a sereia, ouviste-lhe o canto, e foi isso bastante para sentires todo esse abalo e perturbação. Mal de ti se a encarasses de perto…!

Entretanto vários outros pescadores se vinham agrupando em torno destes primeiros interlocutores, e cada qual se metia na conversação sustentando com entusiasmo seus sentimentos e convicções a respeito da ilha.

Um sustentava que ela não era mais que um parcel ou banco de pedra que por ali havia, e que, com a maré vazante, surgia acima das águas, e às vezes, coberto de vapores em razão da distância, figurava uma bonita ilha, e nas barbas do Maneca sustentava que o que ele contava era ou puro sonho ou pura mentira.

Outro era de opinião que o tal penedo não era mais que uma simples ilha flutuante, como têm existido muitas, e que isso de sereias e encantamentos não eram mais do que abusões e crendices de povo que nenhum crédito mereciam.

Eram, porém, muito poucos os que opinavam por esse teor; a maior parte, com mestre Tinoco, estava na firme persuasão de que aquele rochedo era o castelo da sereia, ou diaba dos mares que andava a boiar sobre as ondas.

— Seja lá o que for — exclamou o Tinoco —, eu cá nem de perto nem de longe desejo vê-la, e nunca há de ser para aquelas bandas que meu barco há de vogar.

— Nem o meu! Nem o meu! — repetirão muitas vozes.

— Pois há de ser o meu — disse em tom resoluto um mancebo de gentil presença e porte esbelto e vigoroso, que acabava de reunir-se ao grupo em companhia de dois outros mais jovens que pareciam ser seus irmãos.

— E também o meu — repetiram simultaneamente os dois outros.

Todos os olhares volveram-se imediatamente para os três mancebos.