A ilha maldita/XVII
— A muito vossas mercês se atrevem — ponderou o Tinoco. — Vejam o que fazem; muito barco se tem partido, e muito pescador se tem perdido naquelas rochas e naquelas águas malditas, sem que nenhum lograsse lá aportar, nem ver a sereia.
— E que me importa isso? — retorquiu o mais velho com indiferença. — Serei eu o primeiro que lá põe o pé ou não serei o primeiro que lá tenha perecido.
— E nem o último, se lá ficares — acudiu o segundo mancebo. — Irei depois de ti.
— E nem tu tão pouco — afirmou o terceiro. — Por último, irei eu também.
Eram três validos e galantes mocetões, de formoso semblante, de gesto sobranceiro e olhar altivo; mas ressumbrava-lhes no torvo do olhar e na expressão sombria e carregada da fisionomia um não sei quê de sinistro, que inspirava repulsão; parecia que traziam gravado sobre as frontes o indelével estigma de um nefando crime.
Eram os três jovens fidalgos espanhóis, que de há muito conhecemos. Longo tempo ninguém soubera deles, se eram vivos ou mortos, nem em que lugar se haviam refugiado. Enfim alguns anos depois do desaparecimento de Regina com o seu desposado, tornaram a aparecer na aldeia, continuando como dantes sua vida de pescadores.
Sua volta era muito explicável aos olhos daquela boa gente. Haviam-se retirado por despeito amoroso; os três sucessivamente tinham sentido pela filha do mar uma profunda e ardente paixão e, não tendo esperança alguma de serem correspondidos, mais sensatos e resignados que os demais amantes, haviam-se retirado procurando na ausência o remédio e esquecimento de seus desventurados amores. Agora que já ali não existia a causa de seus sofrimentos, voltavam a seus trabalhos com ânimo isento e coração desafrontado.
Enganavam-se completamente: era uma sina fatal que para ali os arrastava. Havia um ímã secreto, que os atraía para aquele vórtice, onde começaram, e onde deviam terminar seus infortúnios. Retirados na mais profunda solidão a paixão negra e devastadora que Regina lhes havia inspirado continuava a devorar-lhes o coração. Posto que nenhuma esperança lhes sorrisse, ardia-lhes no íntimo da alma um secreto e inextinguível desejo de verem ainda uma vez, de arrojarem-se ainda aos pés dessa fatal beleza que lhes havia para sempre transtornado a razão, pervertido o coração e entenebrecido o destino. Não há palavra que explique a paixão que lhes inspirara essa mulher; era um misto indefinível de ternura e rancor, de saudade e despeito, de esperança e desalento, de ódio e de amor. Foi como o sopro abrasador de um vento pestífero, que obcecou-lhes o entendimento e varreu-lhes da alma quanto nela havia de generosos instintos e nobres sentimentos. Já não reinava entre eles essa pura afeição e cordial intimidade que outrora os ligava. Não se odiavam, porque todos três eram infelizes; reinava, porém, entre eles certa reserva sombria e desconfiada, porque… enfim eram rivais.
Enfim desde o momento fatal, em que impelidos pelo mais feroz e monstruoso ciúme combinaram-se em tenebrosa união para verterem o sangue inocente de um rival feliz, a mão invisível da justiça divina gravou-lhes para sempre na fronte o selo dos réprobos e seus nomes foram inscritos no livro da maldição eterna.
No fundo do retiro, em que se haviam homiziado, chegou-lhes a notícia dessa sereia ou fada que ainda continuava a habitar a ilha encantada. Uma vaga suspeita surgiu instantânea e simultaneamente no espírito dos três, e sem nada se comunicarem, perguntaram a si mesmos:
— Será ela…?
Refletiram; lembraram-se das audaciosas excursões que Regina costumava fazer por aquelas paragens, onde nenhum outro barco podia aventurar-se impunemente. Essa ilha já lhe era conhecida, e só ela sabia o segredo, ou possuía o condão, por meio do qual se podia nela pôr o pé.
— É ela! — concluíram e, sem nada se dizerem uns aos outros, juraram no íntimo da alma fazer os últimos esforços para devassarem os segredos da ilha maldita, e irem desencantar essa mulher, mágica ou sereia em sua temerosa mansão. Queriam vê-la ainda, embora um só instante, embora tivessem de morrer a seus pés.
— Bravo! Rapazes! — exclamaram alguns pescadores vendo a disposição dos três mancebos. — Isso é que é ânimo…! E é mesmo preciso haver quem desencante aquela maldita sereia que nos traz em contínuo desassossego.
— Deixem-se disso, moços — diziam outros, fazendo coro com mestre Tinoco. — Vão procurar a sua perdição. O que poderão fazer contra uma feiticeira, ou mágica, que tem partes com o diabo. Melhor é ficarem quietos tratando da vida do que irem se arriscar, ou antes correrem a uma morte certa. O mar é grande; não nos falta espaço para velejar e pescar, e deixemos em paz essa malvada bruxa com sua ilha amaldiçoada.
— Ora, deixem-se disso — retorquiu Rodrigo com sorriso desdenhoso. — Qual bruxa, nem fada, nem sereia! O que se sabe é que é uma moça de extraordinária formosura, e que canta admiravelmente; e quem não arriscaria a vida para ver e ouvir uma criatura assim, embora se chame fada, sereia, bruxa ou mesmo diabo? Vou vê-la, e já, enquanto a ilha não se some em algum nevoeiro, ou não desaparece por encantamento.
Dizendo isso, o moço desamarrava o seu barco, saltava dentro, e daí a instantes singrava ao largo com toda a força de remo e vela. O sol já descambava do zênite, a brisa de terra, que lhe soprava ponteira, enfunava-lhe rijamente a vela; a maré vazante ajudava o esforço do vento, e tudo favorecia a temerária empresa do jovem pescador. O barco esguio e leve cortava as ondas como um golfinho, e dirigia-se certeiro à ilha encantada, como seta a seu alvo. Já a branca vela mal aparecia ao longe como a asa curva da gaivota, aproximando-se dos alvejantes escarcéus que circundam a ilha, e no meio dos quais ela quase desaparecia como a marreca azul atufada em seu ninho de alva e finíssima penugem.
Os pescadores ficaram longo tempo na praia observando a derrota que seguia o aventureiro mancebo, mas o sol já se avizinhava do ocaso, e era impossível acompanhar com a vista o barco que se sumia nas extremas do horizonte; por tanto, foram-se dispersando pouco a pouco, aguardando para o dia seguinte saber do resultado do arrojado cometimento do jovem pescador. Só ficaram os dois irmãos, que protestaram dali não arredar pé, enquanto não voltasse o irmão ausente.