A ilha maldita/XXII

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— Eles não voltam…! Ah! Meus pobres irmãos! Que será feito deles…?! — murmurava tristemente Ricardo, embebendo olhar sombrio e esmorecido pela amplidão dos mares no dia seguinte ao que Roberto se fora em direção à ilha maldita em procura do irmão, o que equivale a dizer “em procura de sua perdição”.

— Maldita ilha! Maldita mulher…! Quem vos quebrara o encanto terrível que tantas lágrimas, tantos desastres e tanta desesperação tem produzido…! Sina fatal a dessa mulher! Sina de horror e maldição para si e para todos…! E eles não voltam! Irei procurá-los. Devo salvá-los, se for possível, ou morrer como eles morreram. É esse o nosso fado; cumpra-se…!

Como no dia anterior, os pescadores desde pela manhã se aglomeravam na praia ansiosos por saberem o resultado da tentativa do segundo irmão. Neste dia, porém, ainda maior era a afluência de povo. Quase toda a aldeia, homens e mulheres, velhos e crianças, vagueavam dispersos pelas praias não consultando os ventos e a maré, ou tratando de lançar ou colher suas redes, não calafetando os barcos ou consertando as velas rotas pelo tufão, mas em uma extrema e curiosa preocupação de espírito, com os olhos pregados no horizonte e na desastrada ilha, que lá se desenhava ao longe com seu torvo cinto de rochedos circundados de alvejante espuma.

Era já quase meio-dia, o céu estava limpo e diáfano; o mar sereno e inundado até as extremas do horizonte da mais intensa e radiante luz, e nem uma vela nem um barco no oceano que fizesse suspeitar a volta de qualquer dos dois irmãos.

— É tempo de soltar meu barco! — exclamou Ricardo dirigindo-se ao barco, que arfava ali perto amarrado à praia. — Vou procurar meus irmãos. Adeus, meus amigos…! Até amanhã, ou até nunca mais!

Era Ricardo tão gentil e bem disposto como qualquer de seus irmãos, mas a natureza tinha lhe espargido nas feições e na expressão do semblante uns toques mais suaves e delicados, um não sei quê de feminil e gracioso nas formas do corpo e nos sentimentos do coração. Muito jovem ainda, o fogo das paixões ainda não lhe havia turvado a serenidade da fronte lisa e expansiva, nem acentuado duramente os traços fisionômicos como a seus irmãos. Os cachos de cabelos negros, que lhe sombreavam o colo, luziam-lhe por baixo do sombreiro como lâminas de aço polido, e os olhos também negros se acendiam em uma luz meiga e suave, que penetrava sem ofuscar. Mesmo assim, porém, não deixava de ter a mesma vigorosa organização muscular que seus irmãos, e essa expressão calma e serena da fisionomia era modificada por um sulco perpendicular entre os sobrolhos, indício revelador de ânimo resoluto e inquebrantável energia.

A suave expressão de seu rosto, seu olhar plácido, suas ingênuas graças juntas ao garbo senhoril do bem talhado e vigoroso porte davam-lhe ares de um arcanjo modelado pelo cinzel do mais bem inspirado e sublime artista.

Sabemos que Ricardo já sentira os primeiros abalos de uma paixão fatal, quando pela primeira vez se encontrara com Regina, mas era apenas um primeiro gérmen guardado na alma, e que ainda não tivera ocasião de desabrochar em toda a sua força; uma visão que o deslumbrara e lhe deixara no espírito o enlevo de um amor ideal e puro, não despertando nele senão anelos indefiníveis, vagas e deliciosas emoções. Esse primeiro afeto, porém, de uma alma inexperiente e cândida só esperava um segundo encontro para irromper nessa paixão infrene e cega que se apoderava tiranicamente do coração de todos os amantes de Regina. A imagem dessa mulher, que primeiramente lhe aparecera em sonho para logo se encarnar na mais esplêndida e maravilhosa realidade, lhe havia ficado gravada na mente em vivos e indeléveis traços. Essa recordação, porém, que de contínuo lhe pairava no espírito, não fazia mais que aquecer-lhe suavemente o coração sem inflamar-lhe o sangue na febre do sensualismo, e derramava em toda a sua fisionomia leve sombra de melancolia que lhe tornava ainda mais simpático o encantador aspecto.

Bem se pôde, portanto, avaliar quanto Ricardo devia ser benquisto de toda aquela boa gente, não faltando mesmo corações de formosas meninas, que por ele em segredo suspirassem, e que se julgariam as mais venturosas mulheres do mundo, se conseguissem atear-lhe na alma uma centelha de amor. Mas a mística adoração que consagrava à virgem do mar fechava sua alma a todo e qualquer outro afeto, e as jovens pescadoras baldavam suspiros e olhares enternecidos que Ricardo nem compreendia.

E pois naquele dia fatal grande era a consternação, imensa a ansiedade e aflição, que preocupava os ânimos. Em vão a poder de conselhos, súplicas e mesmo lágrimas porfiavam por dissuadir o mancebo de sua tresloucada empresa.

— Que poderás fazer mais que teus irmãos? — diziam-lhe. — És mais valente ou mais robusto que eles? Ou terás algum amuleto, algum talismã que te livre dos encantos da maldita sereia…? Deixa-te disso, moço; procurar assim uma morte certa é tentar a Deus.

A todos esses rogos e admoestações Ricardo respondia inabalável em sua resolução:

— Devo salvar meus irmãos ou morrer como eles morreram.

O sol começava a declinar do meio-dia. Ricardo não quis mais ouvir nem pronunciar uma só palavra; encaminhou-se silenciosamente ao seu batel, desatou a amarra, empunhou o remo e o impeliu para o largo. O vento e a maré o favoreciam como a seus irmãos, e o levavam direito ao malsinado escolho, ao vórtice tremendo a que uma fatal e irresistível força os atraía. A brisa fresca enfunava-lhe rijamente a vela e arrastava-lhe o batel por sobre as vagas encrespadas como a folha seca arrebatada pelo tufão através dos areais do deserto. Em breve já não podia mais ouvir as vozes teimosas dos pescadores, que não cessavam de bradar-lhe: — Volta, moço, volta…! Que vais lá fazer…? Corres a uma morte certa!

Em menos de duas horas o barco do mancebo já lutava contra as ondas revoltas e empoladas, que rugem derredor da ilha maldita. A penedia lisa, uniforme, pendurada sobre as vagas já se desenhava distintamente ante os olhos de Ricardo, o único dos três irmãos que ainda não a tinha encarado de perto. Era, em verdade, horrendo e temeroso, e desta vez ainda estava mais aterrador o aspecto que apresentava. As ondas, que contra ela se arrojavam furiosas e quase lhe galgavam o cimo, despedaçavam-se em escarcéus de espuma com bramidos que semelhavam uma trovoada eterna. Não se via em redor nem uma saliência de rocha, nem uma língua de areia, nem uma pequenina enseada em que luzisse ao náufrago a mais leve esperança. Era por toda a extensão visível a onda revolta em sua eterna mobilidade em luta encarniçada contra o granito inabalável em sua eterna imobilidade.

Todavia, Ricardo não esmorecia e fazia esforços desesperados para chegar à base da inacessível penedia. Embora seu barco se fizesse em pedaços de encontro aos cachopos, embora se visse arrojado nas ondas daquele pego convulsionado, que refervia espumoso como caldeira em ebulição, queria atracar-se ao rochedo, galgar-lhe o cimo e devassar os segredos daquele fatal e malsinado recinto. Em breve, porém, reconheceu com o mais entranhado despeito que eram baldados seus esforços e louco o seu intento. No espaço de cerca de uma hora, que lutava favorecido pelo vento, que lhe inchava a vela, e pelo impulso do remo, que manejava com o maior vigor, não conseguira aproximar-se nem duas braças da formidável penedia que continuava a ficar-lhe como a duzentos ou trezentos passos de distância.

O braço de Ricardo desfalecia, o remo lhe escapou das mãos esmorecidas. No auge do desalento fez um supremo e desesperado esforço, de um salto pôs-se em pé sobre o barco decidido a atirar-se às ondas a fim de ou alcançar a medonha penedia, ou nelas ficar para sempre sepultado. Ao relancear, porém, os olhos pelos topes do rochedo para medir a distância que dele o separava, deu com os olhos em um vulto de mulher vestida de branco que se destacava no azul do céu sobre a crista de uma rocha, como estátua de alabastro sobre os muros denegridos de vetusto e ruinoso castelo. O mancebo fitou por algum tempo aquela estranha aparição a fim de certificar-se de que não era uma ilusão e, ao que podia julgar pela distância, pareceu-lhe uma gentil donzela no viço dos anos e de incomparável formosura.

— É ela! — refletiu o mancebo. — É a fada da ilha encantada…! Será de fato Regina, a misteriosa sereia que aqui mora…? Será essa mulher fatal que precipitou a mim e a meus irmãos na carreira do crime e no abismo do mais tenebroso infortúnio…? Eh! Se for…! Mas… seja embora…! Que me importa…?! Seja quem for: Regina, fada, sereia ou o próprio satanás…! Quero vê-la, quero falar-lhe de perto, perguntar-lhe por meus irmãos, pedir-lhe conta deles, de nosso futuro para sempre anuviado por suas malditas e execráveis mãos, ou vingá-los se os sacrificou ao seu furor…

Nisto tirou o sombreiro e agitou-o vivamente nos ares gritando com força:

— Regina…! Regina…!

A donzela, que atentamente o observava, correspondeu a seus gestos, e com expressiva mímica deu a entender ao moço que estava ansiosa por dar-lhe entrada em sua ilha, e com acenos apropriados indicou-lhe, como já fizera a seus irmãos, a derrota que devia seguir para achar a entrada da mesma. Ricardo compreendeu; amainou a vela, e deixou que as ondas o afastassem das proximidades da penedia. Depois que se achou suficientemente retirado, manobrando convenientemente, rodeou-a pelo sul procurando sua face oriental. Ali as ondas, não sendo mais rechaçadas pelos cachopos, levaram-lhe suavemente o barco até a entrada do estreito canal, que ele transpôs sem dificuldade, e em breve achou-se nas águas serenas do golfo central.