A ilha maldita/XXIII

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Ricardo ficou possuído de assombro e mesmo de um certo pavor vendo inopinadamente desenrolar-se ante seus olhos o maravilhoso espetáculo do interior da ilha, que tão vivamente contrastava com o horrendo e branco aspecto exterior.

Mas não era azada a ocasião para ficar a cismar estático diante dos formosos painéis que o rodeavam. Pensamentos tumultuosos lhe alvoroçavam o espírito e o que mais ansiava ver era a rainha misteriosa daqueles sítios encantados. Procurava-a com as vistas por todos os lados com inquieta curiosidade, mas ao mesmo tempo enfiava e estremecia de pavor e sobressalto a cada momento, que pensava tê-la diante dos olhos. Por singular disposição do seu espírito e de seu destino, Regina era para ele ao mesmo tempo um objeto de ódio e culto, de pavor e de atração.

Não durou muito tempo esse estado de ansiosa inquietação. Uma voz angélica e suavíssima chegou-lhe aos ouvidos e absorvendo-lhe toda a atenção veio arrebatar-lhe a alma às regiões dos sonhos encantados retraçando-lhe vivamente na fantasia a formosa visão que nunca se lhe apagara da lembrança. Era uma voz de mulher, voz fresca, argentina, arrebatadora, que ondulava pelo espaço em maviosos e apaixonados acentos, como ouvidos humanos jamais haviam escutado.

Olhando para o lado, donde parecia partir a canção, Ricardo avistou em pé na praia a mesma formosa donzela vestida de branco, que divisara há pouco sobre o tope dos rochedos. Como naquele tranquilo e recatado recinto mal bafejava frouxa viração, Ricardo, lançando mão do remo, dirigiu-se para a praia, para onde a formosa fada com expressivos gestos o chamava. Em caminho, afagava-lhe os ouvidos a maviosa canção, que dizia assim:

Nestas praias solitárias
Que procuras, pescador…?
Vens buscar pérolas finas,
E corais de alto valor…?

   Se tais tesouros desejas,
   Voga além, ó pescador.

Que estrela por estes mares
Te conduz, ó pescador…?
Queres ser nauta valente,
E do oceano senhor…?
   Se tal ambição te ocupa,
   Passa além, ó pescador.

Os mistérios saber queres
Desta ilha, ó pescador…?
E de meu reino os arcanos
Aos olhos do mundo expor?
   Se é esse o desejo teu,
   Vai-te embora, ó pescador.

Mas se perigos insanos
Afrontando sem pavor,
Nesta ilha solitária
Tu vens procurar amor,
   A meus braços sem detença,
   Corre, voa, ó pescador.

Quando as notas extremas do suavíssimo canto expiravam vibrantes de paixão pelas solitárias plagas, a proa do barco de Ricardo embebia-se rugindo na arenosa margem, e com rápido movimento o mancebo saltava em terra e corria para junto da donzela. Regina o esperava imóvel; um sentimento ignoto a perturbava; o coração lhe pulsava de um modo insólito, e seu espírito se perdia em um chão de ideias singulares e emoções estranhas. Ela, que nas brancas faces conservava sempre inalterável um leve matiz de rosa, sentiu incender-se-lhe o rosto em extraordinário rubor; os olhos, que sempre tão animados despediam com altivez os mais vivos e penetrantes fulgores, sentiram turvados e abateram-se involuntariamente sem ousarem fitar o mancebo com a costumada sobranceria. A lembrança do formoso jovem, que outrora tinha encontrado na praia adormecido à sombra de um rochedo, avivou-se-lhe subitamente no espírito, e as mesmas emoções que então sentira lhe assaltaram o seio alvoroçado. A imagem desse mancebo malgrado seu lhe ficara para sempre gravada na mente como estrela de meiga e fagueira luz no céu escuro de seu tenebroso destino. Em vão procurava expeli-la, ela sempre a acompanhava derramando-lhe na alma um triste e misterioso clarão que a enchia de angústia e inquietação. Desde que vira Ricardo, quebrara-se o seu condão de fada, e desfizera-se todo esse encanto que até ali lhe amparara o seio com o broquel de inexpugnável isenção. O mal-aventurado afeto, que havia consagrado ao esposo de um dia, não pudera apagar-lhe da mente aquela visão de um instante que a tinha fascinado.

Por seu lado também Ricardo jamais pudera se esquecer da virgem donosa e radiante de beleza que, aparecendo-lhe em sonho um momento depois, se convertia em fulgurante visão, cheia de vida e realidade. E era essa visão que agora lhe surgia de novo ante os olhos pelas praias silenciosas daquele retiro encantador.

Era ela, era Regina, que agora lhe aparecia ainda mais formosa do que outrora, porém, mais meiga e carinhosa. Já não vibrava aqueles olhares cintilantes, cheios de altivez e império, que fulminavam todas as esperanças no coração de seus adoradores. As pupilas úmidas nadavam-lhe em suave langor, um tímido sorriso cheio de carícias e promessas adejava-lhe pelos lábios incendidos em voluptuoso rubor. Lia-se-lhe no vivo encarnado das faces, na timidez dos ademanes, no trêmulo e ansioso arfar dos seios empolados, um casto e sedutor enleio, que lhe duplicava os encantos e a revestia de uma formosura irresistível.

Ricardo, todavia, tentou a princípio resistir à tão poderosa sedução; evocou no espírito a memória de seus irmãos, que já não duvidava terem sido sacrificados à sanha daquela ominosa e fatal beleza, e esforçou-se debalde por conservar toda a sua sobranceria e isenção de ânimo em face de tão formidável e tentadora visão. Parou diante dela e depois de contemplá-la por instantes com acento, cuja emoção em vão procurava disfarçar.

— Senhora — disse-lhe —, venho aqui somente para indagar o que é feito de meus dois irmãos, que a senhora bem conhece, e que vieram um após outro nestes dois últimos dias em direção a esta ilha, e que até agora não voltaram.

— Seus irmãos…! Que me diz, moço? — retorquiu a donzela com simulado acento de surpresa e consternação. — Seus irmãos…?! Pois eram eles…? Infelizes!

— Infelizes…?! — exclamou o mancebo impaciente. — Infelizes por quê, senhora…? Acaso os vistes…?

— Vi-os, sim, vi-os expostos ao maior perigo, mas ai de mim…! Sem poder valer-lhes. Desgraçados…! Por que foram tão afoitos e temerários!

— Mas por piedade, senhora, dizei-me o que é feito deles…?

— Perguntai a essas ondas que rugem aqui fora; perguntai aos abismos e aos monstros do oceano…

— Oh! Meu Deus! Meu Deus! Será possível…?!

— Não sei — respondeu Regina hesitando, arrependida e procurando pôr em dúvida a triste nova que acabava de dar ao mancebo. De momento a momento ia crescendo a afeição e interesse que tomava por ele, e a consternação e dor que manifestava pela perda dos irmãos, sumamente a inquietava e afligia. Tratou, pois, de afastar essa ideia tão cruel e pungente para ambos. — Não sei, mas é difícil escaparem aqueles que têm a audácia de se avizinharem dos terríveis cachopos que cercam esta ilha. Eu os vi do alto da penedia lutando temerariamente com as ondas, não sei com que louco intento, mas não sei que soçobrassem e perecessem. Gritei-lhes e acenei-lhes, como há pouco vos fiz, ensinando-lhes o caminho que deviam seguir para se recolherem a esta ilha, mas parece que não me compreenderam. Perdi-os de vista e não sei que rumo tomaram. É natural que se fizessem ao largo e procurassem a costa, onde de certo se terão salvado.

— Mas — interrogou Ricardo com certo tom de desconfiança — a senhora não odiava meus irmãos?

— Eu odiá-los?! E por que, meu Deus…?! Somente não os amava por que não devia, nem queria amar a ninguém, nem ser amada. Eu tinha um horror instintivo, uma repugnância invencível a isso que se chama amor. Era essa repugnância que eu sempre senti antes de…

Um suspiro mal disfarçado e um rubor extraordinário, que incendeu-lhe as faces, serviu de remate a esta frase interrompida.

— Já sei — acudiu Ricardo julgando adivinhar o que o pudor tinha suprimido para uma reticência. — Já sei, sentiste sempre essa repugnância antes de conhecer o ente afortunado a quem deste a mão…

— Oh! Por piedade! — interrompeu a moça fitando em Ricardo um olhar repassado de paixão, pejo e angústia. — Não fademos desse desgraçado esposo de algumas horas. Amava-o tanto como amava a teus irmãos.

— Que estais dizendo, senhora…? Por que então o desposaste?

— Ah! Para que afligir-me com perguntas que me fazem sangrar o coração de dor e de remorso?

— Perdão, senhora — replicou o mancebo com algum enfado. — Estava longe de pensar que a estava afligindo. Visto que nada pode revelar-me, não quero mais importuná-la com minhas perguntas; deixo-a em par em seu retiro, e volto pelo mesmo caminho por onde vim.

— Não, não irás ainda — retorquiu Regina reassumindo a calma e a presença de espírito, que pouco e pouco foi deslizando para um tom de meiga e cordial familiaridade. És neste mundo a única pessoa a quem apraz-me abrir meu coração; hás de ouvir-me. Para que eu responda à tua pergunta, é preciso que te conte a história de minha vida desde seu começo. Não te enfadarás de ouvir-me…?

— Eu enfadar-me?! Nunca, Regina. Fala, tuas palavras têm a doçura de um bálsamo…