A ilha maldita/XXIV

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Ricardo, que só uma vez e por instantes tendo visto Regina, conservara ainda certa sobranceria e isenção de ânimo, não pôde mantê-las por muito tempo em face dos irresistíveis atrativos dessa mulher. Ela o amava deveras, e por isso seus encantos para com ele tornavam-se ainda mais poderosos porque, para seduzi-lo, não lhe era mister empregar artifícios nem simulações; bastava deixar falar a voz da natureza. Dentro em pouco tinha abdicado inteiramente nas mãos dela alma e vida, razão e liberdade, e entregava-se submisso ao doce jugo de tão formosa e adorável soberana.

Regina fez o mancebo assentar-se a seu lado sobre um banco natural de relva que se formava junto à base de um rochedo, e começou a contar-lhe o que se segue:

— Não sei onde, nem quando nasci, nem tampouco quais foram meus pais. Sabes por certo que ainda em tenra idade fui achada quase morta em uma praia e recolhida e salva por uma pobre caridosa mulher, que me criou. Creio, entretanto, ter conservado uma vaga recordação dos tempos anteriores a essa data, um como sonho confuso que me representa na ideia coisas singulares e extraordinárias que eu vi nessa primeira quadra interrompida de minha existência. Afigura-se que minha infância se passou em lugares inteiramente diferentes daqueles, a que depois fui transportado. Foi como se eu tivesse morrido e depois ressuscitasse em um novo mundo que me era totalmente estranho, entre criaturas de uma natureza que me era desconhecida. Esses sonhos ou essas vagas reminiscências se me apresentavam à imaginação como as vagas e indefinidas formas de risonha paisagem, que se debuxa em longínquos horizontes entre as brumas de tarde vaporosa, e me traziam o espírito enlevado em contínua preocupação.

“Recordava-me que tivera outra mãe muito diversa em tudo da boa velha que me criou.

“Era uma mulher alva como jaspe, alta e garbosa, e de incomparável formosura; tinha a fronte, o colo e os braços ornados de finas pérolas e luzentes pedrarias. Habitava uns palácios esplêndidos no meio do mar, decorados de colunas de cristal, pórticos soberbos e imensas galerias alpendradas de jaspe e ornadas de inúmeros vasos de prata e ouro carregados de frutos e flores de brilhantes e peregrinas formas. Trajava longas e roçagantes roupas tão ligeiras e diáfanas que mais pareciam nuvem de prata que lhe ondulava em derredor do corpo.

“No meio dessas magnificências, ela amamentava-me aos alvos seios nus jaspeados de veias azuis, e enquanto embalava-me em seu regaço, gentis sereias, quase tão formosas como ela, acalentavam-me ao som de cânticos de inefável melodia.

“Mas, coisa singular! De tudo o que lá me aconteceu, o que menos obscuramente conservo em lembrança é a reminiscência de certas coisas que me disse um dia em uma língua que meus lábios mal começavam a balbuciar, e que depois esqueci completamente. Estávamos nós, ao que me lembra, no alto de um soberbo terraço de maravilhosa estrutura; o mar se desenrolava imenso diante de nossos olhos.

“‘Não estás vendo, menina?’, disse-me ela apontando ao longe para as extremas do oceano. ‘Não estás vendo aquela linha escura que lá se estende imensa pelos confins do horizonte?’

“‘Sim, estou vendo’, balbuciei.

“‘Pois bem, fica sabendo que é lá que acaba o mar e principia a terra. Ouve bem o que agora te digo e sempre hei de repetir-te: maldita sejas tu se algum dia quiseres ver a terra, e mais maldita ainda se…’

“Aqui murmurou ela mais algumas palavras que eu ou não compreendi, ou de todo me esqueceram.

“Eis o de que confusamente me recordo dessa breve e obscura quadra de minha vida. No mesmo dia em que minha mãe me disse aquelas palavras, se bem me recordo, anoiteceu-me nos palácios encantados de minha mãe, e acordei ou antes nasci de novo na tosca e humilde cabana de Felisbina. Pode ser que estas coisas que eu tenho como reminiscências do passado não sejam mais que puras ilusões de minha fantasia, mas fantásticas ou reais, o certo é que elas têm influído extraordinariamente sobre minha vida, e deram ao meu destino uma fatal e deplorável direção.

“Posto que estranhasse sumamente o novo mundo a que me via transplantada, criança como eu era, não me devia ser difícil conformar-me com o novo gênero de vida a que me via sujeita. Todavia, as minhas recordações nunca me abandonaram e tomaram talvez ainda maior vulto, vistas pelo prisma da imaginação na penumbra do passado, e atormentavam-me as saudades desse mundo em que me despontara a vida, tão cheia de delícias, esplendores e harmonias, tão superior a essa terra ingrata e bronca que nenhum encanto podia oferecer a meus olhos.

“Fui crescendo em idade, vigor e formosura, e as minhas ilusões longe de se esvaecerem com o andar de tempo e desenvolvimento da razão, se me arraigavam cada vez mais vivas e tenazes na imaginação. Eu me julgava de uma espécie superior às demais criaturas que me rodeavam e, ouvindo falar dos anjos do céu, eu me acreditava um deles, que por qualquer acidente tinha caído sobre a terra, e o dizia com toda a franqueza infantil à velha Felisbina, que se sorria de minha ingenuidade. Contemplava-me ao espelho e no cristal das fontes e, comparando a formosura de meu rosto, a alvura e delicadeza de minha tez, o garbo de meu corpo esbelto com as feições tisnadas e grosseiras e ademanes pouco airosos das filhas dos pescadores, confirmava-me cada vez mais na persuasão de que eu era uma criatura acima do comum. A terra me desprazia soberanamente, e eu olhava para o mar com olhos complacentes, cheios de amor e de saudade, como se fosse a minha pátria e nele tivesse o meu berço. Por isso me viam passar essa vida singular, solitária e misteriosa que tanto dava que cismar ao povo. As maravilhosas histórias que se contavam a respeito desta ilha, e de uma fada ou sereia que diziam nela habitar, vieram ainda mais escaldar-me a fantasia nos sonhos de minha infância.

“Então não me julguei mais anjo caído do céu; essa ilha revelava-me claramente o segredo de minha origem; eu devia ser filha de alguma sereia ou de alguma fada, que por um desastre qualquer me teria desgarrado sendo rejeitada sobre as praias da terra, onde estava condenada a passar a vida em eterno e mísero exílio.

“Esse pensamento me repassava de mágoa e melancolia. Nesta ilha existiam por certo os palácios e jardins encantados em que eu havia nascido; a fada de que falavam era por certo minha mãe, e eu passava horas esquecidas a contemplar de longe em êxtase de saudade e adoração estes cachopos, que ao longe campeavam entre um círculo de espuma como que me chamando ao seu seio. Apoderou-se de mim o mais vivo desejo de aqui vir um dia, desejo que em breve converteu-se em resolução fatal e inabalável. Morreria de desgosto se não conseguisse pôr pé nesta ilha, que de longe e sem conhecê-la amava como o regaço de uma mãe querida. Eu, porém, a ninguém comunicava meus pensamentos e projetos e excogitava em segredo e sem cessar os meios de realizá-los.

“Vendo-me enfim já bastante crescida e vigorosa, lembrei-me de pedir um barco à tia Felisbina, que a muito custo me concedeu; era este o único meio de satisfazer a minha fantasia. Bem conhecia a distância e os perigos que rodeiam estes penedos; era aventura por demais arriscada ainda para os mais valentes barqueiros. Minha vontade, porém, era indomável e não recuou diante de dificuldade nem perigo algum. Fiz repetidas tentativas bordejando a ilha, e cada vez me aproximando mais dos terríveis cachopos, e me familiarizando com seu aspecto ameaçador, até que um dia, sem eu saber como, levado brandamente e sem esforço pelas ondas, meu barco entranhou-se por este canal e achei-me no meio deste tranquilo golfozinho.

“Não achei aqui, é verdade, todas as delícias e magnificências que eu havia fantasiado, não encontrei minha mãe, nem seus palácios encantados, mas deparei nesta ilha uma deliciosa vivenda, um retiro sossegado defendido pelo mar, e inacessível aos homens, abrigo seguro que me separa dos perigos dessa terra que me foi vedada por minha mãe, e em que jamais deveria ter aportado. Aqui eu poderia viver tranquila e feliz, se não fosse o dom fatal da beleza que o céu me concedeu, e que devia amargurar-me a existência enchendo-a de angústias e dissabores.”