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A ilha maldita/XXVI

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— Opressa de tristeza e desalento encerrei-me na mais absoluta solidão. Fugia de todos com medo de que meus olhos arrastassem ao túmulo mais algumas vítimas, e desejaria sumir-me no âmago da terra, ou nas profundezas do oceano. Se minha existência devia ser funesta até mesmo àqueles a quem eu amava, eu devia impor-lhe um termo por minhas próprias mãos, ou sequestrar-me inteiramente do seio da humanidade em voluntário e perpétuo exílio. Entretanto, uma cruel inquietação, uma aspiração desconhecida, uma esperança vaga me atribulava o espírito e me tornava insuportável a solidão, que tão grata me era outrora. Depois que uma vez havia amado, meu coração como que tinha sede de expansão, e o isolamento era para mim um flagelo. Era minha única distração soltar meu barco à toa por esses mares a conversar com as ondas do oceano, e a contar às brisas do mar e às estrelas do céu minhas acerbas desventuras.

“Um dia um grande navio, talvez acossado da tempestade, lançou ferro a algumas amarras de nossas praias; parece que vinha consertar algumas avarias, e fazer aguada.

“‘Oh!’, pensei eu, ‘se aquela gente me quisesse tomar a seu bordo e levar-me para bem longe destas plagas, onde por toda parte vejo as sinistras e fúnebres pegadas de minha fatal existência…! Se eu pudesse percorrer o mundo inteiro sem parar em parte alguma, até que coberta de cãs pudesse enfim restituir-me à sociedade…!’

“Assim pensando, dirigi para a costa o meu barco, e saltei em terra. Os marinheiros e passageiros do navio, que tinham desembarcado em um escaler, me rodearam imediatamente. Minha formosura atraía-lhes a atenção. Como não era gente do lugar, da qual eu tinha certo medo e vergonha, não os evitei. Trataram-me com afabilidade, fizeram-me mil perguntas, e dirigiram-me algumas finezas e galanteios sobre minha formosura.

“Havia entre eles um jovem quase tão belo como tu, Ricardo; perdoa-me esta franqueza; já te patenteei a parte mais íntima e delicada de meu coração revelando-te o amor inextinguível que nele ateaste: nada mais devo nem quero ocultar-te, nem disfarçar; corpo e alma me apresento tal qual sou diante de ti; corpo lindo, perfeito e puro, como estás vendo, e que ainda não sofreu o contato do mais leve beijo de amor, eu te juro: alma leal, ardente e afetuosa, mas dilacerada por uma série de infortúnios que desde o berço me acompanha.

“Percebi logo que meus olhos tinham produzido sobre a alma do forasteiro o costumado e fatal efeito; em poucos instantes eu lhe tinha inspirado essa súbita e ardente paixão que tantas vítimas tinha arrastado à perdição e ao túmulo. Os outros foram se retirando e o mancebo deixou-se ficar só comigo. Quis também sair daquele lugar, mas ele, com a maior atenção e cortesia, obrigou-me a escutá-lo por algum tempo. Confesso-te que não fui inteiramente insensível às homenagens que me rendeu; sua figura, suas maneiras, e suas palavras que respiravam um sincero e ardente amor, tocaram-me o coração e, posto que não conseguissem banir-me da memória a imagem do meu belo jovem adormecido, cativaram minha benevolência para com esse estrangeiro, que generosamente ofertava-me com a mão de esposo seu leal e constante amor. Aceitei sem ser desleal ao meu primeiro, ao meu único amor, porque te julgava morto, meu Ricardo; aceitei, porque me via sozinha, triste e desamparada, e o que é pior ainda, malvista por esse povo, que em tão ruim conta me tinha. Essa união ia talvez impor um termo a meus infortúnios e aos de outros, que porventura ainda tivessem de ser vítimas de meus encantos.

“Meu noivo deixou partir o navio em que viera, e ficou para nos recebermos. Prometia-me que depois de casados se embarcaria comigo em outro qualquer navio e iríamos percorrer o mundo. Não podia haver proposta que me fosse mais agradável. Sair desta terra testemunha de tantas desgraças, a que dei causa, e onde minha presença tornara-se a fonte perene de lágrimas e luto, era o meu mais ardente desejo. Demais, sempre gostei do mar; parece-me que nasci sobre as ondas, e desejava viver sempre vogando embalada sobre o dorso desse monstro querido, que ruge eternamente em torno dos cachopos desta minha solidão.

“Julguei pois que esse casamento iria de uma vez pôr termo à cadeia de desgraças que desde o berço me tem amargurado a existência. Quanto me enganava! A maldição materna perseguia-me implacável…! O repouso e a felicidade me eram vedados sobre essa terra, onde jamais minhas plantas deveriam ter pousado!

“Quis que o casamento se fizesse sem ruído e com a menor publicidade possível. Foi debalde. Esse casamento era um acontecimento extraordinário na aldeia, e alvoroçou a curiosidade de todos os seus habitantes.

“Minha beleza tão afamada, os precedentes de minha origem desconhecida, de minha vida singular e misteriosa com o seu séquito sinistro de calamidades, o desejo de ver o mortal feliz que enfim conseguira quebrar o encanto da sereia, como costumavam dizer, atraíram à igreja uma multidão de curiosos.

“Ah! Não vás pensar que me encaminhei para o altar contente, tranquila e descuidosa como todas as noivas, não. Parecia-me que me acompanhava o cortejo fúnebre de todos esses amantes infelizes, que por meu amor tinham tido funesto fim, arrancando dolorosos gemidos, e vibrando sobre nós ambos olhares inflamados de cólera e ciúme. Uma figura principalmente me não saía da imaginação: era um lindo mancebo, que rematava esse melancólico e sinistro préstito; ia só, pálido, sombrio e entregue a um mortal abatimento.

“Por vezes tive desejo de voltar à cabeça a ver se não seria realidade aquela visão que me atormentava. Contudo, ao terminar a cerimônia, relanceando um rápido olhar pela multidão, julguei ver uma cabeça em tudo semelhante à dessa visão… a tua, Ricardo, por que o não direi…? Estarias de fato ali…?”

A esta pergunta, Ricardo estremeceu, cobriu-se de palidez mortal e nada respondeu.

— Perdoa-me, meu amigo — continuou Regina, arrependida de ter vibrado no coração do mancebo a dolorosa corda do remorso; devia condoer-se dele ela, que também sentia sangrar o seu em torturas não menos dolorosas. — Perdoa-me; talvez aqui estivesses, e faço ideia de quanto deverias sofrer. Mas tudo isso passou-se; o céu nos tinha destinado um para o outro, e nada poderia destruir os seus desígnios.

“Bem sabes o resto; a aurora que se seguiu achou vazios e solitários a cabana e o leito, que deviam acolher esse par, que o mundo julgava irem encetar uma vida de perpétua e inalterável felicidade.

“Mas talvez não saibas que catástrofe horrorosa cortou desastrosamente esses laços apenas formados. Foi cruel esse transe, e bem quisera poupar-te a narração de uma cena atroz e sanguinosa que nos vem turbar estes doces momentos de felicidade e amor.

“Já a turba que nos havia acompanhado se tinha dispersado ao longe. O silêncio e a paz reinavam em torno de nossa cabana; a porta estava fechada, e somente conservava-se aberta uma janela que dava para o mar, e por onde entrava a luz da lua alumiando nosso estreito aposento. Meu esposo estava sentado no leito junto de mim, e contemplava-me em um êxtase de amor.

“Quanto a mim, não sei dizer bem o que sentia. Estava em extremo comovida, mas não saberia explicar de que natureza eram as violentas e profundas emoções que me assaltavam. É certo que não me sentia tranquila. Uma vaga ansiedade, uma indefinível inquietação pungia-me os seios da alma. Parecia-me que ia ser feliz em companhia de um marido que me adorava, e meu futuro destino já se me apresentava debaixo de um aspecto plácido e sereno. Mas no fundo do coração, fermentava-me um cuidado, uma aflição indefinível, como no fundo de um manso e cristalino tanque se esconde às vezes tredo e venenoso réptil.

“Enfim meu marido tomou-me nos braços, depôs-me sobre seus joelhos e levava a mão trêmula de amor e de emoção à minha fronte para dela desatar a grinalda nupcial… De repente um vulto de sinistra catadura surgiu diante de nós, e travou-lhe do braço bradando com voz rouca e abafada:

“‘Detêm-te…! Não é a ti que compete essa tarefa…!’

“E em um abrir e fechar de olhos, meu marido, arrastado pela mão vigorosa daquele espectro formidável, tinha desaparecido de minha presença…!

“Desvairada de angústia e pavor, cambaleando às tontas, corri à janela. Três vultos embuçados levavam de rastos meu marido, ou o seu cadáver, para o lado de uns rochedos, que ficavam vizinhos à cabana.

“Soltei um grito de terror e rolei no chão sem sentidos.”