A ilha maldita/XXVII
— Não sei quanto tempo durou o meu delíquio. Quando voltei a mim, vencendo o extraordinário pavor que ainda me dominava, fui-me arrastando a custo para os rochedos; não levei muito tempo a encontrar o cadáver de meu marido nadando em sangue e cosido a punhaladas. Poderás acaso fazer ideia do estado em que ficou minha alma diante desse horrível espetáculo…?! Não, não é possível! Livre-te Deus de passar por tão angustioso transe…!
Aqui Regina calou-se; levantou-se pálida, hirta, convulsa. Sua formosura até ali tão meiga e insinuante tomara de súbito um aspecto sinistro e formidável; voltara-lhe aos olhos aquele lampejo altivo e fulminante, que esmagava seus adoradores, aniquilando de um golpe todas as suas esperanças, agora, porém, torvo e feroz como nunca. A língua rubra e trêmula como a da serpente lambia-lhe a miúdo os lábios secos e descorados; a peçonha do ódio vibrava-lhe todos os músculos, e a fada encantadora se transfigurava em um momento em anjo réprobo precipitado pela cólera celeste das alturas do empíreo na mansão da dor e do eterno desespero.
Ricardo a contemplava transido de terror e de desconfiança. Acaso saberia ela que ele e seus irmãos tinham sido os matadores de seu marido…? As palavras da moça pareciam-lhe um feroz sarcasmo e encerravam-lhe no coração as lâminas aceradas do remorso, e as mais graves e cruéis suspeitas começavam a assaltar-lhe o espírito. Quem sabe se essas meigas palavras, esses protestos de amor, com que até ali o embalara, não eram mais que embaidores laços, cantos de sereia, com que pretendia atraí-lo vítima incauta a um hediondo sacrifício…?! O pavor, o ciúme, o despeito, o remorso traziam-lhe o espírito em tempestuosa agitação. Enfim, já não podendo guardar um silêncio que o torturava:
— Que tens, Regina? — exclamou, fitando nela um olhar penetrante. — Que tens que já não me pareces a mesma…! Ainda há pouco eras toda meiguice e ternura, e agora, como serpente irritada, vibras em redor de ti olhares de fogo, com se te agitasse o demônio da vingança…! Por que mudaste tão de súbito…? Não sei ainda o que pense de ti… Dize-me, por Deus…! Tem-me ódio ou amor…?
A esta brusca e enérgica interpelação, Regina, caindo em si, saiu do estado de extraordinária exaltação que a tinham arrastado terríveis recordações. A infeliz também sentia dentro da alma um caos agitado e tormentoso, como as ondas convulsionadas, que se despedaçavam em derredor de sua ilha. Até aquele ponto de sua narração pouco ou nada lhe fora mister ocultar, nem mesmo disfarçar. Havia falado lisamente a verdade com a franqueza e efusão de uma alma apaixonada, que pela primeira vez em sua vida derrama no seio de outra os seus mais íntimos sentimentos. No arrastamento da paixão, no abandono de suas confidências esquecera seu tremendo juramento, e nem de leve se lembrava que em breve devia derramar sobre o túmulo de seu desventurado esposo o sangue desse lindo e idolatrado mancebo, que agora ouvia de seus lábios as mais íntimas e ternas revelações. Essa ideia sinistra, que por algum tempo andara arredada de seu espírito, surgindo-lhe de súbito à lembrança pela ordem natural dos fatos que narrava, foi essa ideia que fez Regina erguer-se hórrida e fremente de cólera, bem como o baixel que, singrando as velas soltas por mares bonançosos, esbarra de súbito em oculto recife, vacila, range e recua estremecendo.
A imaginação da fada, levada até ali por sentimentos ternos, se bem que quase sempre dolorosos, esbarrou de chofre no sepulcro ensanguentado, onde jazia seu marido, e sobre o qual no decurso dos dois últimos dias havia derramado o sangue dos dois irmãos de Ricardo.
Olvidara-se por momentos de que ela ali estava como a sacerdotisa da vingança e que esse mancebo que a escutava, embalado entre as mais fagueiras esperanças de amor e ventura, era o cordeiro do sacrifício que ali estava beijando a mão, que em breve tinha de derramar-lhe o sangue.
Eis a horrível extremidade a que o mais singular dos destinos tinha levado a desditosa filha das ondas. Por natural repugnância ou pela reminiscência confusa desses sonhos da primeira infância e das maldições com que a ameaçava sua mãe, vivia na terra como exilada, estranha ao resto da humanidade, esquivando-se ao amor de todos, e a todos inspiram da ardente e inextinguível paixão. Mas essa inexorável isenção teve de sucumbir um dia, e a intratável fada sentiu-se subjugada por um amor tão violento e profundo como o que costumava atear no peito de seus adoradores. Toda a seiva de seu coração, todas as forças de sua alma, longo tempo repousadas no seio da indiferença, despertaram-se com incrível energia para alimentar e fortalecer esse primeiro afeto, que devia ser o único e derradeiro de sua vida. Essas almas, que do alto de sua impassibilidade parecem zombar do poder do amor, quando chegam a amar, amam uma só vez e com todas as forças, e nelas o gelo da indiferença é substituído por um fogo devorador. As tempestades açoitam com mais violência os cabeços altaneiros e inacessíveis. Também as neves perenes dos píncaros vulcânicos desaparecem submergidas debaixo de torrentes de lavas inflamadas.
Ricardo fora o primeiro amor de Regina, e devia ser o único. O amor, ou antes a estima que consagrara a seu esposo de um dia, fora como uma diversão que o destino concedia a seus infortúnios, um refúgio contra a mágoa e mortal angústia que lhe oprimia o coração desde que acreditara para sempre perdido o único ente que podia amar no mundo. Todavia esse afeto era sincero e puro, e sobre ele Regina construía as esperanças de um futuro mais feliz e tranquilo que fizesse esquecer as mágoas de seu tormentoso passado. Portanto, quando em um momento fatal viu despedaçadas pelo punhal do assassino essas tão caras e consoladoras esperanças, foi terrível o seu furor e desesperação. Na alma de Regina, misto incompreensível de substância angélica e elementos infernais, o ódio como o amor não conheciam limites, e deviam produzir tremendas explosões. Depois da sinistra catástrofe, o ódio, qual furioso vendaval tinha-lhe passado por sobre o coração e dele varrera todos os sentimentos benévolos e ternos, deixando-o ávido e frio como um mármore sepulcral sobre o qual pousava um punhal vingativo entre as cinzas das afeições extintas.
Tinha Regina bem profundamente gravada na memória a imagem dos três irmãos, para que, apesar do pavor que a dominava, deixasse de reconhece-los à luz da lua naquele momento terrível. Demais, tinha-se verificado o desastroso e deplorável fim de todos os amantes de Regina; só os três irmãos tinham desaparecido sem se saber ao certo o destino que tiveram. Quem, portanto, senão eles poderiam ser os assassinos…?
E pois nem mesmo Ricardo, esse único ente, que soubera vibrar-lhe na alma a corda do amor, escapava à sanha da odienta e vingativa fada. Aquele lindo jovem, a quem outrora encontrara adormecido e a quem sagrara do fundo da alma o mais extremoso afeto, esse já não existia; esse Ricardo que agora ressurgia já não era o mesmo, era um covarde e bárbaro assassino, sobre o qual devia recair todo o peso de sua vingança. Assim pelo menos pensava ela, ignorando talvez que esse amor, que ela julgava convertido em ódio, já tinha lançado em sua alma profundas raízes, e era como uma planta vivaz, a que um sopro ardente apenas tinha emurchecido as ramas, e que só esperava um raio benigno do sol e um bafejo da primavera para de novo reverdecer com mais viço e vigor ainda.
Regina, levada de furor e sede de vingança, se havia recolhido à solitária e inacessível ilha, em que sepultara o marido, e em que havia proferido e cumprido pontualmente até a véspera os tremendos juramentos que sabemos.
A primeira fase de sua vida foi de altiva independência e glacial isenção. A segunda, muito breve, foi de ternura e paixão. A terceira devia ser de furor e vingança.
Ninguém pudera saber o fim sinistro que tinha levado ela e seu esposo na fatal noite das núpcias. A maré tinha lavado o sangue da praia, e Regina, levando consigo o cadáver do esposo, tinha apagado os únicos vestígios do execrável atentado. Exilada naquela solidão inacessível, rodeada de ondas tormentosas, ali se conservou longo tempo, como aranha astuta urdindo a teia traiçoeira, espreitando o ensejo de realizar seus nefandos projetos de vingança.
Os pescadores, que ousavam avizinhar-se do rochedo maldito, viam lá as formas céreas dessa virgem vestida de branco, ouviam-lhe o canto suavíssimo, e fugiam a bom remar e benzendo-se, e ninguém duvidava que era Regina ou o seu fantasma que habitava a ilha maldita. Sua origem ignorada e sua vida estranha e misteriosa a fizeram passar por sereia, fada, por um ente, enfim, fora da humanidade. Seu desaparecimento ainda mais misterioso veio confirmar ainda mais o povo nesta sua crença. A fada maléfica, depois de ter causado naquela costa inúmeras desgraças, retirara-se enfim para seus palácios malditos levando consigo uma pobre vítima, que com seus artifícios diabólicos lograra seduzir.
Tinha-se passado um ano depois que fora assassinado o marido de Regina. Os três irmãos que, para ocultar seu despeito e desesperação, tinham-se sumido não se sabe onde, e que só tinham aparecido um momento como raio em noite tormentosa para fulminarem um infeliz, desapareceram de novo nas trevas de seu retiro ignorado. Lá mesmo, porém, chegava-lhes a notícia do que acontecia na aldeia e, sabendo do modo por que o povo explicava o desaparecimento dos dois noivos, sem que se manifestasse a menor suspeita a respeito deles, voltaram ao povoado e continuaram seu antigo gênero de vida, ou antes incautas mariposas vinham espanejar-se de novo em torno da chama que devia devorá-los.
Certos de que a fada da ilha maldita não podia ser senão a própria Regina, sentiram renascer a chama de seu fatal e inextinguível amor, e um após outros arrojaram-se à louca empresa da qual já sabemos o sinistro resultado a respeito dos dois primeiros.