A ilha maldita/XXVIII

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— Tem-me ódio ou amor? — tal foi a pergunta que Ricardo dirigira resolutamente à Regina, e que até agora deixamos sem resposta em razão das explicações que, para perfeita inteligência desta história, nos foi preciso dar no capítulo antecedente.

Houve largo silêncio antes que a moça desse uma resposta. Regina cismou longamente abismada em um pego de amargas reflexões. Seus olhos, que até ali dardejavam fulgores de luz torva e sombria, foram pouco a pouco se baixando e amortecendo; o colo altivo e firme foi-se dobrando gradualmente; como a cecém verga a haste flexível, quando o orvalho da noite lhe peja o cálice odoroso, e uma lágrima furtiva umedeceu-lhe as pálpebras abrasadas. Terrível conflito se travara na alma atribulada da donzela; o ódio e a piedade, a vingança e o amor faziam-na oscilar na mais violenta agitação. O amor enfim parecia triunfar.

— Perdoa-me, Ricardo — disse, por fim, com voz afetuosa —, esta recordação me punge cruelmente… mas é o último lampejo da tempestade que me agitava o coração; a cruel catástrofe que me roubou o esposo encheu-me a alma de amargura e rancor, mas tua presença vai dissipar para sempre o negrume de minha alma, e hoje só quero viver de amor e para o amor, viver só para ti, meu querido Ricardo. Eu estava condenada a viver neste retiro desolada e esquecida na mais desconsolada solidão, mas tu me apareceste e esta ilha, que devia ser meu exílio medonho, vai se converter em tranquilo e risonho abrigo do mais puro e feliz amor. Minha mãe não queria que eu pisasse a terra, e a mais amarga experiência me tem mostrado quanta razão tinha. Lá não encontrei senão dissabores, trabalhos e amarguras. Mas agora, Ricardo, estamos no mar, inteiramente sequestrados dessa terra odiosa em que derramei e fiz derramar tantas lágrimas.

“Sim, estamos no mar, nos domínios de minha mãe; estamos livres do mundo, e podemos nos entregar sem receio a toda a efusão de nosso amor.”

Enquanto assim falava, Regina tinha entre as suas as mãos de Ricardo, e o envolvia em um olhar tão repassado de ternura e paixão que o mancebo sentia-se arrebatado em um êxtase das mais voluptuosas e inefáveis emoções.

— Sim, Regina — respondeu-lhe com viva exaltação —, sim, quero, às tuas plantas viver uma vida de amor sem termo, e que retiro mais propício para um amor feliz do que esta ilha solitária e inacessível…? Aqui se resumirá o nosso universo, aqui nós dois formaremos um mundo à parte, que nosso amor povoará de mil encantos e delícias sem fim.

— Sim, meu querido, de hoje em diante nada nos importa o resto do mundo. Vamos, quero mostrar-te o ditoso asilo que há de abrigar nosso amor. Acompanha-me.

Regina travou do braço ao mancebo e o foi guiando para o grupo de rochedos que já conhecemos. Ao atravessar, porém, os silenciosos e sombrios espaços, que coleavam entre aquelas massas torvas e esguias, sua imaginação se apavorou e seus pensamentos começaram a tomar nova e sinistra direção. Que monstruoso perjúrio ia cometer…?! O fantasma ensanguentado do esposo parecia surgir-lhe ao encontro com pavoroso e ameaçador aspecto, acompanhando com olhar sombrio e penetrante todos os movimentos de seu corpo, todos os impulsos de seu coração, e, com voz lúgubre, murmurar-lhe ao ouvido: “afronta e maldição eterna sobre ti, mulher perjura…!”, e ela apertava com mão convulsa o punhal que tinha sobre o seio, e repetia dentro da alma: “eu o jurei, e juro ainda…! Hei de vingar-te…!”.

Por outro lado, afagava-lhe os ouvidos a voz terna e comovida do amante que lhe dizia: “graças a ti, Regina, que me fazes hoje o mais feliz dos homens! Dize-me ainda uma vez que me amas; quero ouvir de tua boca adorada continuadamente essa doce palavra para convencer-me que não sou ludíbrio de um sonho. É tamanha a ventura que me enche o coração, que a custo posso nela acreditar”.

Regina sem responder-lhe apertava-lhe meigamente a mão aos seios ofegantes, e murmurava consigo: “Infeliz…! Morrerás, morreremos ambos…!”

De repente parou; aproximavam do rochedo sinistro, do altar de sangue. A donzela conservou-se muda e imóvel por alguns instantes como absorvida em profunda reflexão. O coração lhe fraqueava, e ela não ousava avançar nem mais um passo para o sítio fatal.

— Ricardo, meu amigo — disse bruscamente —, é preciso que te vás embora; amanhã voltarás.

— E para quê, Regina? — respondeu o moço com surpresa. — Que tenho eu mais que fazer nesse mundo que odeio…? Meus irmãos já não existem, hoje só tu me restas no universo, e para mim tu vales mais que o universo inteiro.

— Vai, meu amigo, vai primeiro dizer adeus a…

— A quem? — interrompeu Ricardo com impaciência.

— A essa terra onde viveste…

— Daqui mesmo lhe direi adeus eterno…

— Ricardo, mando-te que voltes.

— Mandas…! Obedeço, mas não voltarei mais.

— Oh! Ricardo! Ricardo — exclamou a moça com voz suplicante —, vai-te, vai-te, por piedade…!

— Há pouco me mandavas, agora me suplicas…?! Que quer isto dizer, Regina…? corro algum perigo?

— Não sei… talvez…— balbuciou a moça. — Mas em nome de nosso amor, eu te peço, vai-te, por hoje.

— Ah! Regina! Regina…! Se acaso algum embuste… dize-me, não estás sozinha nesta ilha…?

A estas imprudentes palavras do mancebo, Regina sentiu fermentar-lhe de novo no coração o fel da indignação e do ódio. Aguilhoada por tão pungente sarcasmo, inspirado por um vago sentimento de desconfiança e ciúme, a meiga pomba converteu-se de novo em leoa, e soltou o rugido surdo da vingança.

— Perguntas-me? — respondeu com desdenhosa altivez. — Sim, Ricardo, estou sozinha, eu… e o meu punhal.

Estas últimas palavras murmuradas com voz surda não puderam ser ouvidas pelo mancebo.

— Sim — continuou ela um momento depois, mudando inteiramente de tom —, estou sozinha, eu e o meu amor. Já que assim o queres, fica, e vamos além.

Recalcando no fundo da alma todo o sentimento de amor ou piedade, sem proferir mais uma só palavra, Regina foi conduzindo o mancebo para o rochedo da vingança. Chegada ali, o ânimo ia-lhe de novo desfalecendo mas deu-se pressa em aproveitar-se do último lampejo de resolução que ainda lhe restava.

— Ricardo — disse com voz meiga —, perdoa-me; eu te molestei, contrariei-te ainda há pouco; é isto muito triste um uma primeira entrevista. Mas agora quero compensar-te o dissabor que te causei. Vem, meu querido, abraça-me.

Ricardo arrojou-se ao seio de Regina, que lhe abria os braços e ia cravar-lhe o punhal… mas a mão desfaleceu-lhe, e os dedos inertes deixaram cair por terra a lâmina fatal, e, em lugar de um grito de dor, aquelas sombrias abóbadas ouviram um suspiro e o frêmito de um beijo.