A ilha maldita/XXIX

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Assim pois sobre o execrando altar da vingança, acabava-se de consumar o mais atroz perjúrio!

Atroz, disse eu; atroz por quê…?! Foi um epíteto que me caiu insensivelmente do bico da pena pelo costume em que estamos de sempre injuriar o perjúrio, o assassino, a vingança e outras quejandas coisas.

Ao contrário, foi esse um nobre e piedoso perjúrio digno do aplauso de todos os corações sensíveis. A quebra do feroz e sanguinário juramento que Regina proferira sobre o cadáver do esposo é digna da indulgência e até da aprovação dos mais austeros moralistas.

Prouvera ao céu que esse perjúrio, ou antes esse arrependimento um pouco tardio que suspendia uma série de atrocidades já começadas, tivesse vindo há mais tempo, e tivesse sido completo. Mas nem por isso devemos deixar de nos congratular por ter escapado ao punhal da rancorosa fada esse lindo e interessante jovem, cujo nobre, terno e generoso coração não merecia por certo ser atravessado pela fria lâmina de uma faca vibrada pela mão de um ente idolatrado.

Foi muito vantajoso esse perjúrio, até porque se não fosse ele, eu me veria forçado a terminar aqui esta história do modo o mais deplorável, ou havia de continuá-la só com Regina, o que me colocaria em sérios embaraços e dificuldades.

Eis aqui, pois, sãos e salvos esses dois amantes tão dignos um do outro! Ambos na flor da juventude e dotados pela natureza de prodigiosa formosura e incomparáveis prendas, ambos náufragos e oprimidos pelo destino, e perjuros ambos!

Ei-los aqui felizes nos braços um do outro, colhendo em um longo e delicioso beijo as primícias de um amor sem fim!

E eu também me daria por feliz se pudesse aqui pôr termo a esta estupenda e maravilhosa história com tão risonho e próspero desfecho, coroando seu puro e ardente amor com as palmas do himênio, e, encerrando-os no tranquilo e aprazível recinto de sua misteriosa ilha, deixá-los gozar da beatitude do amor por séculos sem fim.

Mas não pode ser assim, primeiramente porque na bronca e inacessível ilha não podia ir um padre que santificasse a sua união; em segundo lugar, porque o plano desta verdadeira história está invariavelmente traçado pela mão da casmurra e vingativa fada ou sereia que presidia os destinos de Regina. Esta inexorável fada dos marítimos domínios parece não estar disposta a perdoar os pecados de Regina, e deseja punir de modo rigoroso e exemplar o generoso perjúrio, por meio do qual o amor lhe fizera poupar a vida a um belo mancebo que tinha a desventura de ser filho da terra. Eis o grande crime pelo qual devia incorrer na mais severa punição, não obstante ter ela adquirido incontestável direito a mais completa indulgência, tanto pela chusma de amantes, que só com as mortíferas setas de seus lindos olhos tinha enviado para a eternidade, como pela heroica e inexcedível coragem, com que material e literalmente havia varado o coração de dois guapos mancebos com a lâmina fria e sólida de um punhal.

É verdade que não foi Regina, essa altiva e intratável filha das ondas, quem poupou a vida a Ricardo, mas sim o amor que, a despeito dela, estendeu sobre o mancebo o seu manto misericordioso. Mas fosse o que fosse, neste caso o amor e Regina se unificaram em uma só personalidade, e em questões desta natureza nunca o juiz deve fazer distinções sutis.

E eis aqui porque, se a nossos olhos Regina torna-se digna de toda a compaixão e indulgência perante o tribunal da implacável fada, incorre em penas da mais severa condenação.

Possam, entretanto, a piedade e o amor estenderem suas asas protetoras sobre os dois amantes e, livrando-os da perseguição que contra eles move a vingativa e feroz fada dos mares, livrar-nos também de dar a este romance um fim lúgubre e sinistro, que tenha de impressionar desagradavelmente as ternas e compassivas almas de nossos leitores.