A ilha maldita/XXX
Como tudo que é ou o supremo gozo ou a suprema dor, aquele abraço de inefável ventura não durou mais que alguns momentos. Passados eles, Regina soltou-se bruscamente dos braços do mancebo, levou-lhe ambas as mãos ao peito, empurrou-o violentamente e, fugindo velozmente, desapareceu por entre o labirinto de rochedos como duende que se esvai entre as pilastras de um templo em ruínas.
— Regina! Regina…! — bradou o moço depois de curtos instantes dados à surpresa, procurando em vão com os olhos por entre a aberta dos rochedos a amante, que se sumira como uma sombra.
— Vai-te, Ricardo, vai-te, e nunca mais voltes! — foi a última voz que ouviu daqueles lábios adorados troar-lhe aos ouvidos, vibrante e argentina, mas desconsoladora como um eco das campas. Imóvel, desvairado e sem saber onde estava, como quem acorda de um sonho extravagante, o moço ali ficou longo tempo a cismar sem saber para onde dirigir-se. Depois de achar-se por alguns instantes de posse do supremo bem, via-o de chofre, e como por encanto, escoar-se-lhe das mãos e deixá-lo na mais absoluta e desconsolada solidão. Julgando-se vítima de um cruel escárnio, abatido e furioso de cólera e despeito, procurou encaminhar-se para as margens do golfo, e orientando-se a muito custo, pôde chegar à praia no ponto em que havia desembarcado e deixara amarrado o seu barco.
Aí parou a cismar ainda, entregue a mais cruel perplexidade. Mandava a razão e a prudência que se partisse dali, mas o coração estava preso por laços misteriosos àquelas praias, onde há pouco ouvira em delicioso transporte os mais ardentes protestos de amor, e onde namorada fantasia lhe desenhava no futuro um painel cheio de encantadoras esperanças. Mas o sol já tocava ao ocaso, e o que ficaria ele fazendo naquela ilha solitária, exposto a ser vítima dos embustes e ciladas dessa misteriosa e pérfida mulher, em que nenhuma confiança podia ainda ter…? Demais, já conhecia o caminho por onde se podia entrar na ilha, e poderia voltar no outro dia. Saltou no barco e partiu.
Entretanto, Regina, irresoluta e desatinada, se embrenhara como louca na solidão de sua ilha. Ora parecia surgir-lhe diante dos olhos o espectro ensanguentado de seu marido lembrando-lhe o atroz juramento e cobrindo-a de maldições, ora cuidava ouvir a voz queixosa do amante, que tão duramente expedira do seu seio, chamando por ela em lastimosos gritos. Corria ora em uma, ora em outra direção, olhava inquieta para todos os lados, escutava todos os ecos.
— Que fiz eu, desgraçada…?! — exclamava, levando às nítidas madeixas mãos frenéticas e convulsas.
— Que fiz eu…?! Por que lhe gritei que não voltasse…?! Ele ouviu-me de certo, e não voltará, e eu aqui ficarei misérrima e desamparada por todos…! E aqui morrerei, assassina e perjura, amaldiçoada por ele e por todos! Jurei vingar meu marido, e o punhal vibrado por esta mão traspassou o coração de dois de seus assassinos; ficou consumada a obra da vingança e do crime…! O mesmo punhal que eu devia embeber no coração do derradeiro, o amor arrancou-me das mãos desfalecidas…! Está consumada a obra do perjúrio…! E assim fica incompleta a vingança e sem fruto o perjúrio, porque, desgraçada e pusilânime que eu sou, não sei vingar, nem amar…! Mas não, juro ainda uma vez, não há de ser assim. Ainda aqui está o punhal, que me caiu das mãos… Volta, volta, Ricardo, quero cravá-lo em teu peito! Sim, hei de matar-te ou morrer em teus braços.
Assim, gritando desgrenhada e arquejante, corria para o lado da praia, aonde chegou ofegando de aflição e cansaço. Dirias o fantasma de um precito, perseguido pelas fúrias infernais, correndo e ululando através das brenhas. A noite vinha caindo, a praia estava erma; lançando os olhos para a entrada do golfo, Regina avistou ainda o barco de Ricardo, que já ia desaparecendo por entre os altos penedos do canal.
— Volta, Ricardo, volta! — gritou com toda a força que pôde. Nenhuma resposta, nem o mais leve sinal mostrou que fora ouvida. Em poucos instantes o batel de Ricardo, transpondo os rochedos, tinha desaparecido.
Alquebrada pelo embate de tão violentas emoções, Regina prostrou-se meio desfalecida sobre a areia da praia, e ali passou as largas horas dessa noite de horror e angústia. Não é possível descrever as horríveis tribulações que tumultuavam aquele coração lacerado pela angústia. Na incerteza de ter sido ouvida pelo amante, quando da praia lhe bradava que voltasse, seu espírito se estorcia nas ânsias de uma dúvida cruel, e, pousando sobre a mão a fronte abraseada, ali esperou que se escoassem as longas horas daquela noite fatal, e despontasse a aurora que devia trazer-lhe ou o primeiro dia de felicidade ou o derradeiro de sua desditosa vida.
Quando rompeu a primeira alva do dia, levantou-se, banhou em uma fonte próxima as faces e os olhos ardentes de lágrimas e insônia, compôs as vestes e as tranças desalinhadas e dirigiu-se para os topes dos rochedos que dominam o mar, e que olham para o continente, e ali postou-se com os olhos fitos nas costas fronteiras a espreitar todos os barcos que partiam da praia, a ver se algum tomava o rumo da ilha.
— Ah…! Se não me ouviu! — murmurava ela imersa em dolorosa cisma. — Se nunca mais voltar…! Enterrarei no meu seio este punhal que não soube cravar-lhe no coração. Perjura e assassina, ente execrável e hediondo, que ficarei eu fazendo no mundo não tendo por companhia senão minhas angústias e meus eternos remorsos…?! Fraca e desassisada que eu fui! Não tive coragem nem para matá-lo, nem para conservá-lo junto a mim pelos laços do amor…! Mas não é possível que não me ouvisse; ouviu-me e há de voltar. Um momentâneo despeito o fez partir, mas estou certa que o amor o há de trazer de novo a meus pés terno, submisso e devotado amante para nunca mais deixar-me… E que não me ouvisse, mesmo assim há de voltar; meus olhos têm um ímã irresistível. O amor que ateio no coração dos homens é um fogo violento e inextinguível. Há de voltar, sim; e eu… eu hei de cravar-lhe no coração… oh! Não! Não! E para quê…? Já sou assassina, que muito é que seja também perjura…?!
Entre estas angústias e hesitações, Regina vagueava pelos topes das penedias, que lhe circundavam a ilha como a plataforma de um vasto castelo, sempre com os olhos pregados nas praias fronteiras a ver se delas se destacava algum batel com direção à ilha. O mar, como nos dias antecedentes, conservava-se tranquilo e sereno, azul e brandamente ondulado por uma viração constante de leste. Apenas aqui e acolá, pela imensa superfície, um ligeiro choque das vagas fazia borbulhar alvejante um floco de espuma, como sorriso de sereias que andassem a retouçar, brincando à flor das ondas.
Enfim, ao descambar do meio-dia, Regina julgou divisar um barco que, ganhando o largo, parecia fazer-se a vela com direção à ilha. O coração da moça estremeceu sobressaltado de alegria, e seus olhos lampejantes de esperança e contentamento não se despregaram mais da velinha solitária que, apesar de singrar com vento em popa e avançar com rapidez, procurando o rumo da ilha, parecia-lhe vogar com extrema lentidão.
— Ei-lo! — exclamou Regina depois de ter por algum tempo observado com a maior atenção o barco e a direção que tomava. — É ele! Ele mesmo…! Ninguém mais se atreveria a meter tão resolutamente a proa a estas medonhas penedias. Ricardo me pertence…! Mas é preciso não fraquear… desgraçada de mim se ainda desta vez deixar escapar a presa! O punhal vingador aqui dorme junto a meu coração! O fatal juramento há de ser cumprido à risca até o fim; devo hoje consumar esta negra sina de sangue e vingança…! Falta só uma vítima! E ei-la que vem descuidosa e cheia de risonhas esperanças, cuidando que vem reclinar-se em um leito de rosas, entre sorrisos de amor, entregar-se nas mãos do algoz, que tem de justiçá-lo…! Com este punhal tenho, pois, de rasgar um peito sobre o qual deveria reclinar minha cabeça entre carícias e beijos…! Eu o jurei, assim é mister… tem de morrer…! Eu o amo… que importa…?! Meu cadáver cairá sobre o dele… dormiremos eternamente unidos ao lado um do outro… o túmulo é o único leito de núpcias que nos convém.
Entretanto o barco do mancebo se aproximava rapidamente do rochedo fatal, e a exaltação e ansiedade de Regina cresciam de mais em mais.
— Vai-te, infeliz, volta; foge desta ilha maldita! — gritava ela a Ricardo que ainda não podia ouvi-la. — Vens buscar a morte; foge, foge para bem longe!
De repente, porém, mudava de acordo e, receando que apesar da distância o mancebo a tivesse ouvido, olhava assustada para o barco, que já lhe parecia ir de volta, e punha-se de nova a bradar:
— Não, não voltes; vem, meu Ricardo… eu te amo; vem. Sim — continuava cismando consigo —, é bem verdade que te amo… amo-te com loucura…! Entretanto também é verdade que jurei matar-te, e que tenho de enterrar nesse coração que é meu, que só por mim palpita, este punhal nefando…
Aqui Regina arrancou com mão convulsa o punhal que trazia ao seio e, encarando-o com olhos torvos e desvairados:
— Oh! Punhal execrando! — exclamou com frenética exaltação. — Punhal três vezes maldito…! Não, não, tu não te tingirás no sangue daquele a quem adoro…! Vai-te de mim, maldito…! Sepulta-te nos infernos!
E com um movimento arrebatado, arrojou às ondas o punhal que, como um golfinho de luzentes escamas, bateu sobre as águas e sumiu-se no seio do oceano.
O barco de Ricardo já contorneava a ilha procurando-lhe a entrada pelo lado oriental. Regina desceu a passos precipitados as encostas interiores, e encaminhou-se para a margem do pequeno golfo a fim de aqui esperar o bem-amado.