A mãe dos adiantados

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Não nos podemos enganar sobre a proveniência do melhoramento cuja introdução na família brasileira ventila a câmara dos senadores. O ilustrado autor do projeto removeu, quanto a isso, as dúvidas, pondo a sua iniciativa sob as asas da Convenção Francesa, “mãe espiritual de todo o homem adiantado”. Ora, ainda que nos doa magoar-lhe a piedade filial, não acabamos conosco deixar de lhe dizer francamente que não podia colar à sua mercadoria mais infausta marca.

O mundo contemporâneo não aceita essa filiação, que a história e a evidência desmentem. Todos os ideais científicos do nosso tempo, a natureza das nossas liberdades, o espírito das nossas instituições, a tendência dos nossos costumes reagem contra a ilusão dessa linhagem, com que a preocupação francesa transvia alguns dos nossos literatos. Na própria França a ninhada intelectual dos que ainda catam o cibalho na forragem dos legados da terrível assembléia, está quase reduzida aos desequilibrados do radicalismo, da comuna e da anarquia. A imprensa em edições sucessivas exumou contra a superstição revolucionária o tremendo arquivo da verdade. Quiséramos que os homens da nossa geração republicana, quando não tivessem a paciência de chegar até ao opulento manancial das Memórias do tempo, a Malouet, a Gouverneur Morris, a Mallet Du Pan, a Rivarol, ao chanceler Pasquier, a Dauban, a Chateaubriand, a Hyde de Neuville, compulsassem, ao menos, Taine, Sorel, Bire, o próprio Quinet; e verificariam que o culto, através do qual nos surde agora a apologia do divórcio, é que o famoso escritor das Origens da França Contemporânea debuxava na pinturesca reminiscência de Clemente de Alexandria: o crocodilo egípcio, ou a serpente das aluviões ludosas do Nilo, espojando-se num tapete de púrpura, sob véus tecidos de oiro, à sombra do santuário, entre os rolos de incenso de uma adoração insensata.

Não teríamos agora onde esboçar a figura dessa entidade monstruosa, sobre a qual imperaram, sucessiva ou promiscuamente, todos esses gigantes do crime, a que o Terror deu proporções espetrais: imperou Marat, o louco, imperou Danton, o bárbaro, imperou Robespierre, o cuistre, imperou Barrère, o ignóbil, imperou a comédia, imperou o medo, imperou a embriaguez, imperou a histeria, imperou a alucinação, imperou o ridículo e o disforme, o bestial e o atroz; reunião inverossímil de ideólogos e exterminadores, histriões e mártires, assassinos e estadistas; e estupendo misto de audácia e cobardia, imoralidade e patriotismo, demência, cinismo e ambição. Mas, uma vez que, mais de cem anos após o cataclismo providen­cial que a submergiu, a evocam ainda como a paraninfa de uma lei regeneradora, força é procurar onde estão os seus títulos a apadrinhar novidades controversas, a abonar melhoramentos suspeitos.

São de 24 a 29 de agosto de 1793 as medidas, com que a Convenção Francesa ultimou a organização do divórcio, decretado pela assembléia nacional em setembro de 1792. Pois bem: qual era então o estado psicológico da famigerada assembléia?

O princípio do mês assinalara-se com o decreto que extinguia todas as academias francesas, denunciadas pelo pintor David como o derradeiro refúgio “de todas as aristocracias”. Robespierre, designado pela primeira vez a tais honras, ocupara, no dia 22, a poltrona presidencial.

Os reveses dos exércitos republicanos desvairavam a política jacobina. Foi sob esses auspícios que o truculento advogado se sentou no trono da ditadura legislativa. Aos acentos da sua eloqüência homicida tudo se resolvia em conspirações e traições: traidores os generais, traidores até os indigentes e mendigos, traidora sobretudo a imprensa. Os jornalistas eram “evidentemente cúmpli­ces de Londres e Berlim, homens estipendiados pelo inimigo, destinados à tarefa quotidiana de caluniar o povo e os patriotas”. Urgia “cair sobre esses indivíduos odiosos, de cuja pena cada um dos traços era mais um crime adicionado aos anteriores, e cuja existência de dia em dia se tornava mais perniciosa à sociedade”. A guilhotina andava devagar. O tribunal revolucionário remanchava. “Um tribunal criado para acelerar a revolução, não a devia desandar com essa lentidão criminosa.” Cumpria abolir todas as formas do processo, não admitir senão uma pena: a morte, e aplicá-la ipso facto. Eis as palavras textuais do presidente da Convenção no dia 22 de agosto. Eis as inspirações, o programa da grande assembléia. E foi sob essa obsessão, nessa atmosfera, entre os carniceiros desse matadoiro, que dois dias depois ela dava à luz a sua reforma do divórcio. Tal o parto, de que havemos de ser irmãos, o ventre, de que nos devemos considerar prole. Com esta educação histórica nos estadistas brasileiros, que nacionalidade lhes sairá do amassadoiro? E são os homens imbuídos nestas desgraçadas superstições, os que inculcam anunciar o futuro, e acusam de preconceitos os seus antagonistas.

Deixemos, porém, de parte os atentados da Convenção contra a humanidade, a sua espúria moral, a sua liberdade tirânica, e concentremo-nos em um só ponto, naquele dos seus atos onde se deveria achar condensada a filosofia social e a ciência política dos seus corifeus: a constituição, com que ela dotou a pátria. Mais de dois anos consumira a Assembléia Nacional em fazer a Constituição de 1791. Na de 1793, da concepção ao nascimento medearam quinze dias. Aos 7 de junho Hérault Sechelles, em nome da Comissão dos Cinco, acordava nas estantes da Biblioteca Nacional as gargalhadas de Molière, requisitando “com urgência” um exemplar das leis de Minos. Quarenta e oito horas depois estava elaborado o projeto, que a Convenção aprovou em onze sessões, quase sem debate a respeito dos principais artigos.

O novo código da França consagrava, no artigo 43, a inviola­bilidade dos membros do corpo legislativo. Pois no mesmo dia, no dia 15 de junho, em que o adotou, a Convenção entregava o deputado Duchastel ao tribunal da guilhotina. No dia 17, sob propos­ta de Ramel, um dos cinco membros da comissão que fizera o novo ato constitucional, mandava prender o deputado Brissot e o deputado­ Barbaroux. Destarte, uns após outros, sob o domínio da garantia tutelar, passaram dos bancos legislativos às masmorras, das masmor­ras ao cadafalso girondino, dantonistas, libertistas, robespierristas. Eis como nossa mãe espiritual praticava seus princípios.

Mas ao menos valiam esses princípios alguma coisa? ou tinham eles, no que para alguma coisa prestasse, novidade, cujo merecimento coubesse à progenitora dos homens adiantados? Tudo quanto se sabe hoje de direito político, de crítica histórica, de ciên­cia constitucional responde negativamente.

Emanação do Contrato Social e da filosofia, hoje fóssil, de Rousseau, o improviso de junho de 1793 era apenas uma redução à miniatura das abstrações e dos excessos, das fantasmagorias e dos sonhos sociais, que condensaram naquela época todos os crimes da anarquia e do absolutismo.

Não se podia estampar num espelho de aço mais puro a inanidade e a impraticabilidade da ideologia jacobina, “ora exagerando os direitos dos governados, ao ponto de suprimir os dos governantes, ora exagerando os direitos dos governantes, ao ponto de acabar com os dos governados”, considerando aqui o povo “como o único soberano, e tratando-o ali como escravo”, falando no governo “como de um lacaio, e dando-lhe as prerrogativas de um sultão”. No corpo legislativo se resume toda a autoridade. É uma câmara só, e nomeia a administração nacional sob a forma de um conselho executivo, composto de vinte e quatro membros sem relações mútuas, nem autoridade pessoal. Esse despropósito, emblema ou resto vão do poder executivo, composto de agentes da legislatura, renova-se por designação desta cada seis meses. De modo que na legislatura, sem o temperamento ao menos da dualidade nas câmaras, reside em última análise a soberania plena. Mas esta soberania muda anualmente de mãos; e por eleições anuais se substituem as municipalidades, as administrações dos distritos, as departamentais, os juízes de paz, os juízes do cível, os juízes do crime, os juízes do Tribunal de Cassação. Era o moto-contínuo transformado em sistema constitucional. Desse mecanismo em perpétua dobadoira a principal mola estava no sufrágio universal. Da assembléia, que provia, ao mesmo tempo, os comandos militares, exercia poderes judiciários, e acusava os réus de crimes contra o Estado, baixavam as leis propostas ao povo. Este, porém, não exercia o seu simulacro de última alçada legislativa senão por um artifício tão complicado quão praticamente inútil, de onde uma constituição positivista no Brasil republicano foi buscar o seu molde.

Tal “a obra malsã da teoria e do medo”, que Hérault de Sechelles relatava na tribuna, ensaiando as lições de declamação de Mlle. Clairon, enquanto a galeria apontava numa das tribunas a bela Suzanne, que o namorado relator conduzira em pessoa à sessão. Era a essa mundana, ex-femme Quillet, admitida à aristocracia revolucio­nária sob a graduação de Madame de Merency, que o obsceno companheiro de Danton e Desmoulins na ascensão à guilhotina endereça­va, mais tarde, ao seguir para a missão do Monte Branco, este amável bilhete: “Ide algumas vezes à Assembléia em memória minha. Adeus. Os animais escarvam o chão de impacientes, supõem-me os companheiros nacionalmente ocupado, quando eu não o estou senão amorosamente com a minha mui cara Suzanne”. O divórcio não pode ser indiferente a estes idílios da nossa velha mãe espiritual.

Mas fechemos o parêntese. Não tardou a festa glorificadora. No dia 10 de agosto, aniversário da extinção da realeza, transborda a praça da Bastilha com a parada colossal, onde os oradores, profetizando, asseguram à nova constituição eternidade. Ora bem: logo no dia imediato, após um falso movimento de restituição do seu mandato ao povo, a Convenção Nacional promove, aceita, declara a sua ditadura. Danton agradece aos delegados do povo “a iniciativa do Terror” e de então em diante ficou sendo o Terror exclusivamente a constituição da França. A de 1793, adiada ao nascedoiro, não se pôs em execução nunca mais.

Nem o monstro tinha adaptação possível à realidade. Os próprios direitos, que ela declarava, eram aberrações, demasias, quimeras, ou imposturas. O art. 26 encerrava no bojo a onipotência dos clubes. O art. 32 punha acima da lei o direito de petição. O art. 28 proclamava sem limites a reformabilidade constitucional. O art. 21 continha em embrião o princípio das oficinas nacionais e do direito ao trabalho, que funestou a república de 1848. Outro art. 28 decretava a morte instantânea dos usurpadores. O art. 35 estipulava o direito da insurreição. Verdade seja que no art. 122 se encontrava indefinidamente prometida a igualdade, a segurança, a propriedade, o exercício livre dos cultos, a liberdade de imprensa, o direito de reunião e associação, “o gozo”, em suma, “de todos os direitos do homem”. Mas essa fórmula verbal e declamatória não tinha no organismo das instruções ali traçadas a mínima garantia: antes o que da estrutura delas resultava, era o arbítrio, o despotismo, o governo da multidão, a onipotência das facções, a alternativa entre a desordem e a ditadura.

Todos esses direitos, ali reduzidos a uma tabuleta de charlatão, existiam entretanto, animados por uma vigorosa realidade muito antes que a França os conhecesse em meros catálogos legislativos na constituição de 1793 e na célebre Declaração de 1789, mais tarde adicionada à constituição de 1791. A Inglaterra os reunira um século mais cedo no seu bill de 1689, aliás mera consolidação de foros preexistentes. E, por herança da Inglaterra, as colônias americanas, reproduzindo cartas e constituições anteriores, os tinham consignado solenemente na Declaração de Direitos lavrada em Filadélfia aos 14 de outubro de 1774. Desse traslado é que ulteriormente, daí a quinze dias, saía a cópia francesa, malfeita, nunca praticada e meramente abstrata, da grande revolução.

Os povoadores da América do Norte transpuseram o oceano, conduzindo como viático sagrado o common law inglês onde palpitava inteira a liberdade moderna. O foral dos mais antigos, os colonos de Plymouth, já enumerava esse júri, que os homens adian­tados hoje nos pretendem roubar, e todas essas garantias judiciá­rias, de que se ensoberbecem as melhores constituições dos nossos dias. O Connecticut adotou um ato semelhante em 1639; Nova York, outro análogo em 1691, reiterado em 1708. Massachusetts promulgou em 1641 o seu admirável Corpo de Liberdade. Semelhantemente, a Virgínia teve a sua declaração de direitos em 1624 e 1676; a Pensilvânia, em 1682; Maryland, em 1639 e 1650; Rhode-Island, em 1663; a Carolina, em 1667; New Jersey, em 1664 e 1683. A liberdade religiosa estabeleceu-se no Maryland em 1649, no Rhode-Island em 1663, em New Jersey desde 1665, na Carolina desde 1691, na Geórgia desde 1732. Desde 1694 que expirara na Grã-Bretanha a censura sobre a imprensa. O direito de petição chegara ali ao seu estado atual desde 1779. A milícia, cujas origens remontam, naquele país, ao século XII, firmara definitivamente a sua existência popular em 1757. A inviolabilidade pessoal, a domiciliar, a da proprie­dade individual são quase coevas do berço da nação inglesa. Data da Magna Carta, isto é, de 1215, o direito à indenização nas desapropriações de interesse geral. No Bill de Direitos que coroou a revolução de 1688 já os ingleses consagravam a fiança criminal. Em suma, de 1215 a 1774 tinha a família anglo-saxônia amadurecido numa prática secular todos esses princípios adiantados, que a Convenção Francesa não entendeu, nem soube formular.

Agora, se passarmos ao Brasil, todas as nossas grandes leis, todas as nossas grandes instituições políticas são inglesas, ou americanas: o Ato Adicional, o Código do Processo, o júri, a fiança, o habeas-corpus, a federação, o art. 179 na Constituição de 1823, o art. 72 na Constituição de 1891. Nessas fontes é que os nossos liberais de todas as gerações, sob os dois regimens, foram beber sempre a tradição de liberdade realizável, cristã, orga­nizadora, que a corrupção, a impiedade e a vesânia da Convenção Francesa desconheceram.

Não troquemos a nossa verdadeira ascendência moral por essa triste bastardia.