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A mão e a luva/IX

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A baronesa, quando se lhe aproximaram os dois interlocutores da cerca, mais receosa ficou e mais perplexa. Guiomar vinha risonha e até gracejadora; mas o abatimento de Estevão era tão mal disfarçado, que de duas uma, — ou ela acabava de lhe dar o último desengano, — ou aquilo era apenas um arrufo sério, que o moço não podia ou não queria esconder de olhos estranhos. Isto é o que a baronesa pensou. O que ela concluiu foi que, em todo caso, urgia tentar alguma coisa em favor do maior, — do único sonho da sua velhice.

Jorge não percebeu a verdadeira razão por que a tia lhe dissera ser necessário conversar com ela; imaginou que se trataria de Guiomar e Estevão, — mas estava longe de supor todo o alcance da entrevista.

A entrevista não pôde ser logo nesse dia; as visitas ficaram ali até tarde, e a noite foi a mais agradável e distraída de todas as noites; Guiomar, sobretudo, esteve como nunca, jovial e interessante. A serenidade parecia morar-lhe na alma e refletir-se-lhe no rosto, — tantas vezes pensativo, mas agora tão frio e tão nu.

Não será preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade... Oh! sobretudo de boa vontade, porque é mister havê-la, e muita, para vir até aqui, e seguir até o fim, numa história, como esta, em que o autor mais se ocupa de desenhar um ou dois caracteres, e de expor alguns sentimentos humanos, que de outra qualquer coisa, porque outra coisa não se animaria a fazer; — não será preciso declarar ao leitor, dizia eu, que toda aquela jovialidade de Guiomar eram punhais que se lhe cravavam no peito ao nosso Estevão. Ele não podia supô-la abatida; mas penalizada, ao menos, um pouco respeitosa para com a dor que havia nele, isto, sim, imaginava que seria. Mas nada disso foi, e o pobre rapaz saiu dali mais cedo do que pensara e quisera sair.

Na alcova, se ele pudesse vê-la mais tarde na alcova, solitária e toda consigo, sentada na poltrona rasa ao lado da cama, com os cabelos desfeitos, os pezinhos metidos nas chinelas de cetim preto, as mãos no regaço e os olhos vagando de objeto em objeto, como se reproduzissem fora as atitudes interiores do pensamento, ali não só ele a adoraria de joelhos, mas até poderia supor que alguma preocupação lhe tirava o sono e que essa era nem mais nem menos ele próprio.

Talvez fosse; em parte ao menos seria ele. Guiomar não tinha um coração tão mau, que lhe não doesse as mágoas de um homem que acertara ou desacertara de a amar. Mas fosse uma, ou fossem muitas as causas daquela preocupação, a verdade é que ela durou muito tempo. Guiomar passou da poltrona à janela, que abriu toda, para contemplar a noite, — o luar que batia nas águas, o céu sereno e eterno. Eterno, sim, eterno, leitora minha, que é a mais desconsoladora lição que nos poderia dar Deus, no meio das nossas agitações, lutas, ânsias, paixões insaciáveis, dores de um dia, gozos de um instante, que se acabam e passam conosco, debaixo daquela azul eternidade, impassível e muda como a morte.

Pensaria nisto Guiomar? Não, não pensou nisto um minuto sequer; ela era toda da vida e do mundo, desabrochava agora o coração, vivia em plena aurora. Que lhe importava, — ou quem lhe chegara a fazer compreender esta filosofia seca e árida? Ela vivia do presente e do futuro e, — tamanho era o seu futuro, quero dizer as ambições que lho enchiam, — tamanho, que bastava a ocupar-lhe o pensamento, ainda que o presente nada mais lhe dera. Do passado nada queria saber; provavelmente havia-o esquecido.

A madrugada achou-a dormindo; mas os primeiros raios do sol vieram acordá-la, na forma do costume, para o matinal passeio com a madrinha. Guiomar sacrificava tudo à dedicação filial de que já dera tantas provas. A baronesa, entretanto, estava preocupada; o passeio foi diferente do dos outros dias.

Ao meio-dia meteu-se Guiomar no carro, com Mrs. Oswald, e saíram a uma visita. A baronesa ficou só; Jorge não a deixou ficar só por muito tempo, porque chegou daí a pouco.

A baronesa não perdeu tempo em circunlóquios. Apenas viu o sobrinho interpelou-o diretamente:

— Disseram-me, foi Mrs. Oswald quem me disse que tu gostas de Guiomar.

Jorge não contava muito com semelhante interrogação; todavia, não era tão ingênuo que corasse, nem tão apaixonado que lhe tremesse a voz. Puxou gravemente os punhos da camisa, concertou a gravata, e respondeu singelamente:

— Não me atrevia a falar-lhe destas coisas...

— Por que não? — interrompeu a baronesa; são assuntos que se podem tratar entre mim e ti, sem pesar para nenhum de nós. É então verdade o que me disse Mrs. Oswald?

— É.

— Amas deveras, ou...

— Deveras. Recuaria, se visse que uma aliança entre nós ficava mal ao lustre de nossa família; mas, posto que ela seja...

— Guiomar é minha filha, apressou-se a dizer a baronesa.

— Justamente; não pode haver melhor título.

— Tem ainda outro, continuou a baronesa; é uma alma angélica e pura. Henriqueta não teve melhor coração nem mais amor aos seus. Além disso, a natureza deu-lhe um espírito superior, de maneira que a fortuna não fez mais do que emendar o equívoco do nascimento. Finalmente é de uma beleza pouco comum...

— Rara, titia, pode dizer que é de uma beleza rara, acudiu Jorge, e pela primeira vez lhe luziu nos olhos alguma coisa, que não era a gravidade de costume.

— Já vês, prosseguiu a baronesa, que ela possui todos os direitos ao amor e à mão de um homem, como tu.

A baronesa tinha um coração ingênuo e liso, sem desvios nem astúcias; contudo, há ocasiões em que o mais reto espírito emprega, como por instinto, finuras diplomáticas. A boa senhora tinha tanto a peito aquela união do sobrinho com a afilhada, que não confiava só do amor; procurava interessar-lhe também o amor-próprio.

Jorge curvou-se com afetada modéstia.

— Um homem, como eu, — disse ele — vale pouco por si mesmo; o valor que tenho, e esse é muito, vem do nome de meus pais e do seu, titia, e das santas qualidades que a adornam...

— Só uma, Jorge, só uma qualidade santíssima: é a de amá-los, a ti e a ela. Por isso foi imenso o gosto que senti quando Mrs. Oswald me disse que gostavas de Guiomar. Acredita que se tivesse a fortuna de ver a vocês unidos e felizes, morreria contente.

— Oh! isso! disse Jorge com ar de dúvida.

— Julgas impossível o casamento?

— Impossível, não; impossível, nada há. Mas... mas suponho que a vontade dela é indispensável, tão indispensável como duvidosa.

— Duvidosa! Estás certo disso?

Jorge tinha-se levantado e dera alguns passos, não agitado de todo, mas um pouco fora da impassibilidade usual. A idéia do casamento aparecia-lhe agora um pouco mais possível e exeqüível, desde que a tia francamente lhe propusesse aliança.

— Estás certo disso? repetiu a baronesa.

— Certo não; mas há toda a razão para a dúvida. Guiomar sabe que eu gosto dela; e contudo não me dá o menor sinal de corresponder aos meus sentimentos.

 Jorge expôs longamente todas as razões que tinha para crer que a vontade de Guiomar não correspondia à dele; referiu-lhe, com a maior exação e fidelidade, uns três ou quatro episódios que lhe pareciam boa prova daquilo que dizia. A baronesa não ouvia tudo com igual atenção. Quando ele acabou:

 — Guiomar será muito vexada, — disse ela — e às vezes, e por isso mesmo, tem essas aparências frias. Nada impede, porém, a que venha a amar-te, se é que já te não ama. Há nela certa altivez natural, que pode explicar também essa frieza; parece-me que lhe seria penoso receber o amor de alguém que julgasse levantá-la até si.

— Isso, talvez...

— Mas esse sentimento, que pode ser e é honroso, não é decerto invencível.

Todas estas palavras da baronesa lisonjeavam o sobrinho, em cujos lábios pairava agora um sorriso de íntima satisfação. De quando em quando não ouvia ele nada do que lhe dizia a tia; seus ouvidos voltavam-se para dentro; ele escutava-se a si próprio. O amor de Guiomar começava a parecer-lhe possível; tudo quanto a baronesa lhe dizia era razoável, com a vantagem de lhe esclarecer as faces obscuras da situação. Demais, até que ponto a baronesa conjeturava ou revelava? Bem podia ser que ela tivesse lido mais fundo no coração da moça.

 Estas reflexões fê-las Jorge, enquanto a baronesa continuava a falar e a desenvolver a idéia que ultimamente indicara. Até aquele dia havia ele limitado toda a sua ação a alguns olhares, e raras palavras de cumprimento; a entrevista com a tia dera-lhe animação; pareceu-lhe chegado o ensejo de sair daquela paz armada.

Guiomar chegou daí a pouco e achou-os na “saleta de trabalho”, eufemismo elegante, que queria dizer literalmente — saleta de conversação entremeada de crochet. Mrs. Oswald vinha com ela; ambas riam alegremente de não sei que episódio visto no caminho. Jorge erguera-se, pausado mas risonho, apertou a mão de Guiomar, — apertou-a deveras, mais do que era usual e cortês. Guiomar não pareceu afligir-se; perguntou-lhe pela saúde, transmitiu à madrinha as lembranças que lhe mandavam e dispôs-se a sair.

Durante esse tempo, Jorge olhava para ela, enlevado deveras na contemplação de toda aquela nobre figura, agora mais bela que dantes, desde que se lhe tornara possível a aliança há muito sonhada. Havia nos olhos de Jorge uns tais ou quais vestígios lúbricos, donde se podia colher que, se ele fosse poeta, e poeta arcádico, editaria pela milionésima vez a comparação da Vênus e dos seus infalíveis amorinhos; comparação detestável, sobretudo, porque a casta beleza de moça, se alguma coisa pagã lhe podia ser chamada, seria antes Diana convertida ao Evangelho.

Jorge saiu dali singularmente agitado; a conversa da baronesa dera-lhe nervo e resolução, e o quadro do casamento começou a desenhar-se-lhe no espírito, como o relógio que o menino tem de usar pela primeira vez. Até ali deixara-se ele ir à feição das águas; agora via a necessidade e a possibilidade de abicar à riba feliz do matrimônio.

As dúvidas de Jorge não lhe saltearam o espírito; apenas chegou a casa travou da pena, e lançou na folha branca e lustrosa de seu papel uma confissão elegante e polida, que todavia refundiu duas ou três vezes, primeiro que a desse por pronta. Acabada a redação final, transcreveu aquela prosa do coração na mais nítida folha que havia em casa, — dobrou e meteu-a na algibeira.

De noite foi à casa da tia. Achou as senhoras à volta de uma mesa; Guiomar lia, para a madrinha ouvir, um romance francês, recentemente publicado em Paris e trazido pelo último paquete. Mrs. Oswald lia também, mas para si, um grosso volume de Sir Walter Scott, edição Constable, de Edimburgo.

Jorge veio interrompê-las um pouco, mas só interromper, porque a leitura continuou logo depois, ajudando ele próprio a Guiomar naquela filial tarefa. Veio o chá, veio depois a hora de recolher, e a baronesa deu por findo o serão, ainda que o livro estava quase findo.

— Um capítulo mais, aventurou Jorge com o livro aberto nas mãos.

A baronesa sorriu e voltou os olhos para Guiomar, a cuja conta lançou aquela dedicação do sobrinho; recusou contudo, por estar a cair de sono.

— Eu é que não me deito sem saber o resto, declarou Guiomar; levo o livro comigo.

— Ah! disse Jorge com um gesto de satisfação.

E enquanto Guiomar se dispunha a acompanhar a madrinha até à porta do quarto, e Mrs. Oswald marcava a página e fechava o seu livro, Jorge igualmente fechava o outro, mas com tal demora e cuidado, que deu muito que entender à inglesa. Se ela chegou a entender, vê-lo-emos depois; o certo é que o livro foi enfim entregue a Guiomar, tendo a página marcada, não com a fita que lá estava pendente, mas com um pedacinho de papel.

O pedacinho de papel era a carta; apenas uns poucos centímetros de altura; mas por mais exíguas que tivesse as dimensões, bem podia ser que levasse ali dentro nada menos que uma tempestade próxima.