Saltar para o conteúdo

A mão e a luva/XIV

Wikisource, a biblioteca livre

Já o leitor ficou entendendo que a viagem a Cantagalo era obra quase exclusiva de Guiomar. A baronesa relutara a princípio, como das outras vezes fizera, e o comendador pouca esperança tinha já de a ver na fazenda. Mas o voto de Guiomar foi decisivo. Ela fortaleceu, com as suas, as razões do comendador, alegando não só a obrigação em que a madrinha estava de desempenhar a palavra dada, mas ainda a vantagem que lhe podiam trazer aqueles três meses de vida roceira, longe das agitações da Corte; enfim, invocou o seu próprio desejo de ver uma fazenda e conhecer os hábitos do interior.

Não havia tal desejo, nem coisa que se parecesse com isso; mas Guiomar sabia que na balança das resoluções da madrinha era de grande peso a satisfação de um gosto seu. O sacrifício duraria três ou quatro meses; ela afrontaria, porém, dez ou doze, se tantos fossem necessários, para fugir algum tempo às pretensões de Jorge, sem embargo de lhe repugnar todo o viver que não fosse a vida fastosa e agitada da Corte. Eu, que sou o Plutarco desta dama ilustre, não deixarei de notar, que, neste lance, havia nela um pouco de Alcibíades, — aquele gamenho e delicioso homem de Estado, a quem o despeito também deu forças um dia para suportar a frugalidade espartana.

Infelizmente, Jorge reduziu todos esses cálculos a nada. Ela contava com o seu demasiado apego aos regalos da Corte, não contava com as sugestões de Mrs. Oswald, que percebera o plano, e torcera a primeira resolução de Jorge, que era ficar e esperar. O sacrifício da parte dele era compensado pela probabilidade da vitória, a qual não consistia só em haver por esposa uma moça bela e querida, mas ainda em tornar muito mais sumárias as partilhas do que a baronesa deixaria por sua morte a ambos. Esta consideração, que não era a principal, tinha ainda assim seu peso no espírito de Jorge, e, sejamos justos, devia tê-lo: possuir era o seu único ofício. Assim era que não só a moça deixava de obter um bem, mas caía de um mal em outro maior; tê-lo ao pé de si, onde as distrações seriam menos prontas e variadas, equivalia a adoecer de fastio e morrer de inanição.

Imagine-se por isso em que estado lhe ficou o espírito depois da declaração de Jorge. Não havia meio de fugir ao pretendente, era preciso tragá-lo. Esta perspectiva abateu-lhe totalmente o ânimo. Uma confidente, em tais situações, é um presente do Céu; mas Guiomar não a tinha, e se alguma pessoa lhe merecesse tal confiança, é certo ou quase certo que lhe não diria nada. Suas dores eram altivas, as tristezas de seu coração tinham pudor. Espíritos desta casta ignoram a consolação que há, nas horas de crise, em se repartirem com outro; triste, mas feliz ignorância que lhes poupa muita vez o contato de uma consciência aleivosa e ruim.

No meio do longo refletir, soaram-lhe na memória as palavras de Luís Alves; ela ouviu-as de novo, tais quais ele as proferira, desde a frase descortês até à expressão respeitosa. Uma era o comentário da outra, e ambas podiam explicar-lhe o caráter de Luís Alves, se tivesse alguns elementos mais para conhecê-lo; em todo o caso, era a ponta do véu levantada. Embora se lhe não pudesse ler no fundo do espírito, via-se desde já qual era o seu método de ação.

Qualquer outro homem, depois do efeito produzido pela primeira declaração, não se atreveria ou não lhe importaria tentar mais nada para desfazer o projeto da viagem. Mas o espírito de Luís Alves tinha a obstinação do dogue. Era-lhe necessário que a família da baronesa não saísse da Corte; este objetivo havia de alcançá-lo a todo o transe. Ele espreitava as ocasiões, aproveitava as circunstâncias, tinha a habilidade de intercalar o pedido em qualquer retalho de conversação, onde menos apropriado parecia a qualquer outro. Jorge aplaudia-o com as forças todas de que podia dispor o seu interesse. A baronesa opunha às sugestões do advogado a resistência mole e atada de quem deseja aquilo mesmo que recusa.

— O doutor é terrível, dizia ela. Em se lhe metendo uma coisa na cabeça, ninguém mais o tira daí.

— Justamente, é uma idéia fixa. Sem idéia fixa não se faz nada bom neste mundo.

Guiomar sustentava a resolução da madrinha, posto não o fizesse a miúdo, nem no mesmo tom seco e imperioso da primeira noite. Seu impulso era ser coerente; ao mesmo tempo não queria parecer aos olhos de Luís Alves que lhe aceitava o concurso para obter o que aliás desejava de todo o coração; seria lavá-lo da primeira culpa.

O argumento que mais influía no ânimo de todos, o que devera ter afastado a idéia de semelhante viagem, era o perigo de afrontar o cólera-morbo que por aquele tempo percorria alguns pontos do interior. Um dia de manhã soube-se que em Cantagalo havia aparecido o terrível inimigo. Desta vez Luís Alves triunfou sem dizer palavra; a baronesa recuou diante daquele fato brutal.

A viagem desfez-se pois, a contento de todos, salvo talvez de Mrs. Oswald, que receava muito da mocidade casadeira da Corte, e dos belos olhos castanhos de Guiomar. Mrs. Oswald temia ver surgir a cada passo um novo inimigo emboscado em algum teatro ou baile, ou quando menos na Rua do Ouvidor, e não via que o inimigo novo podia ser que estivesse literalmente ao pé da porta. A sagacidade da inglesa desta vez foi um tanto míope. A razão é que Luís Alves, em todos aqueles seus preliminares, houve-se com habilidade; longe de procurar a moça, parecia nada haver alterado nos seus sentimentos, nem desejar mudar a espécie de relações que até ali mantinha. Guiomar, entretanto, não podia deixar de comparar aquela espécie de atenciosa indiferença que havia dele para ela, com as palavras que anteriormente lhe ouvira, e o resultado da comparação não lhe parecia muito claro.

Na noite do mesmo dia em que ficou assentado deferir a viagem para melhores tempos, achavam-se em casa da baronesa algumas pessoas de fora; Guiomar, sentada ao piano, acabava de tocar, a pedido da madrinha, um trecho de ópera da moda.

— Muito obrigada, disse ela a Luís Alves que se aproximara para dirigir-lhe um cumprimento. Está alegre! Parece que é a satisfação de me haver malogrado o maior desejo que eu tinha nesta ocasião.

— Não fui eu, disse ele, foi a epidemia.

— Sua aliada, parece.

— Tudo é aliado do homem que sabe querer, respondeu o advogado dando a esta frase um tanto enfática o maior tom de simplicidade que lhe podia sair dos lábios.

Guiomar curvou a cabeça e esteve alguns instantes a perpassar os dedos pelas teclas, enquanto Luís Alves, tirando de cima do piano outra música, dizia-lhe:

— Podia dar-nos este pedaço de Bellini, se quisesse.

Guiomar pegou maquinalmente na música e abriu-a na estante.

— Era então vontade sua? perguntou ela continuando o assunto interrompido do diálogo.

— Vontade certamente, porque era necessidade.

— Necessidade, — tornou ela começando a tocar, menos por tocar que por encobrir a voz; mas necessidade por quê?

— Por uma razão muito simples, porque a amo.

A música estacou. Guiomar erguera-se de um salto. Mas nem o gesto da moça, nem a surpresa das outras pessoas perturbou o advogado; Luís Alves inclinou-se para o mocho, como a consertá-lo, e voltando-se para Guiomar, disse-lhe graciosamente:

— Pode sentar-se agora; está seguro.

Guiomar sentou-se outra vez muda, despeitada, a bater-lhe o coração como nunca lhe batera em nenhuma outra ocasião da vida, nem de susto, nem de cólera, nem... de amor, ia eu a dizer, sem que ela o houvesse sentido jamais. Não se demorou muito tempo ali; com a mão trêmula folheou a música que estava aberta na estante, deixou-a logo e levantou-se.

Nestes derradeiros movimentos ninguém reparou; e se alguém pudesse reparar em alguma coisa, a moça tomara a peito desvanecer todas as suspeitas. A primeira impressão fora profunda, mas Guiomar tinha força bastante para dominar-se e fechar todo o sentimento no coração.

O que se passou depois, quando, livre de olhos, estranhos, pôde entregar-se a si mesma, isso ninguém soube, a não serem as paredes mudas do quarto, ou o raio da lua coado pelo tecido raro das cortinas das janelas, como a espreitar aquela alma faminta de luz. Soube-o, talvez, o seu espelho, quando no dia seguinte lhe refletiu o rosto desfeito e os olhos quebrados. Se foi a meditação noturna que os amoleceu e apagou, não o perguntou ele, naturalmente porque o sabia; mas talvez advertiu consigo que se eram assim mais belos, pediam outro rosto em que caíssem melhor. O de Guiomar queria-os como eles eram, severos, firmes e brilhantes.

A baronesa também não deixou de ver que a afilhada não acordara com o mesmo ar do costume; achou-a taciturna e distraída.

— Eu, madrinha? perguntou Guiomar simulando um sorriso de admiração.

— Será engano de meus olhos.

— Não é outra coisa; estou como sempre, como ontem, como amanhã. Passei a noite um pouco mal, é verdade; mas o que tive desapareceu inteiramente. A prova...

Guiomar parou neste ponto, chegou-se à madrinha e deu-lhe um beijo.

— A prova, continuou ela, é que ainda hoje me acha bonita, não é?

— Criança! respondeu a baronesa, dando-lhe uma pancadinha na face.

A tranqüilidade da moça era simulada; apenas a madrinha voltou as costas, cobriu-se-lhe o rosto com o mesmo véu. Ela aprendera desde criança a disfarçar as suas preocupações.

Quanto a Luís Alves, posto houvesse contado com o seu método cru e abrupto, saiu dali sem plena certeza do resultado. Esta incerteza abalou-o mais do que ele supunha; e foi, sem dúvida, a primeira ocasião em que sentiu que a amava deveras, ainda que o seu amor fosse como ele mesmo: plácido e senhor de si. No dia seguinte, Estevão interrogou-o a respeito de Guiomar.

— Creio, disse ele depois de refletir alguns instantes, — creio que por ora não deves perder as esperanças todas.