A melhor cartada
Estava uma coisa insípida aquele dia. Uma hora da tarde. Muito mormaço. Nem uma gargalhada. Triste realmente.
Os hóspedes que jejuavam alegravam-se agora no seu jantar, servindo-se grandes pratos de peixe, hortaliças, camarões, frutos, vinhos, requeijão e bolos; com tanto que os outros, almoçados por cerca das doze, tinham era tédio por aquela petisqueira. Na rua não havia o que fazer, e pior em casa. A leitura nem para todos era divertimento, e acabava por cansar miseravelmente a um sujeito farto.
O Pedro Antônio ardia por um joguinho, mas esperava que outro lembrasse. Sousa Pinheiro, com a cabeça elevada sobre o coxim de lã, estirava-se ao longo do sofá, a ler Folies Amoureuses. E todos estavam com a cara contrafeita de quem recebe uma visita enfadonha. Correia e José Teles ofereciam o raro espetáculo de entreter-se apuradamente ao lado de suas consortes: um casal namorando-se em cadeiras de balanço, fronteiras; e o outro, aplicadíssimo em uma partida de dominó.
A pequena palmeira colocada em um jarro na sacada, nem dava sinal de vento.
A sala de bilhar, contígua, era um quartel sem tropa. Os bilhares encobertos por grandes panos de riscado, e os tacos descansando nos cabides.
A do botequim, muito boa para rir e fumar, tinha de vivo os quadros suspensos na parede, — bonancheiras pinturas, frades lambões de figura roliça no aconchego das pipas, empunhando copos ditirâmbicos, num riso e recato edênicos. Em moldura tosca, num claro, surdia o meio corpo de um marinheiro, em camisa de bordo, com o chapéu cambaleado para a nuca e feições crispadas por um choro pândego.
O Pedro Antônio distraía passeando por aí, de mãos para trás, com maneiras de quem visita um museu.
Uns ruídos sucessivos e ascendentes chamaram-lhe a atenção para a escada, em cujo patamar assomava o vulto amarelo e inchado do capitão Dionísio.
— Vamos jogar — disse este, quebrando para o salão.
Pedro Antônio queria era isso. É o que o divertia. Ter o prazerzinho de chorar uma carta e ver o cobre cirandar de mão em mão. Sentir a forte impressão do prejuízo ou do lucro. O dinheiro no jogo é que ostentava toda a fartura, e vagava como um alimento.
— Chama lá uns parceiros.
E pedia ao moço d'hotel uns baralhos. A mesa estava a um canto. Era oitavada, com uma gavetinha em cada face forrada com pano verde.
Mau grado a insipidez do dia, ninguém aceitou jogar. Como? — dizia um — eu não jogo em sexta-feira maior! Temos o ano inteiro para pecar. E daí, se fizeram esquerdos. Este por praxe, aquele por delicadeza, aquele por fé.
Mas, ninguém morre à falta de outro. Apareceram logo dois, um protestante que por acinte à religião estipendiada faria até milagres, e um tipo insulso, desses que não têm mel nem fel. Jogariam até não sei que horas, se não fora a morte de um dos jogadores.
Foi o caso assim:
Pelas sete da noite sentiu-se na rua um alvoroço, um sussurro, e as janelas iluminavam-se. Os hóspedes do hotel vieram para as sacadas.
Era a procissão do Senhor Morto. Havia um morno luar incinerando o ambiente. Ao longe avistou-se como uma brasa vermelha muito em baixo, e mais outra, e mais outra. Ouviram-se as pancadas secas da matraca. As brasas multiplicavam-se em número e intensidade, e enfileiravam-se umas por trás das outras formando um corpo comprido, para cada cordão de casaria. Eram duas serpentes de elos de fogo esses grandes bagos de luz amarela e coada. Os focos tinham movimento oscilatório, manquejando e avançando imperceptivelmente, com a mansidão de um enterro. Mais para longe, como pulsações de um coração gigante, palpitava o compasso do bombo, no funeral, como subindo de um subterrâneo.
As vozes do cantochão vinham um pouco para cá, e soavam monotonamente parvas. Um clarão amortecido e alto acompanhava o extenso préstito, esbatendo na frente das casas. Apareciam coloramentos de encarnado e de roxo, das opas, por baixo, entre o povo que se movia como sombras. A rua estava cheia, de lado a lado. E no meio alongava-se um vácuo entre confrarias. Adiante, via-se constantemente a massa de espectadores ir abaixando-se para ajoelhar. A matraca estralejava seca e constantemente, e, de espaço, a voz aguda e terna de uma criança partia não sei de onde, como seta, modulando: O vos omnes qui transitis per viam, attendite et vide te se est dolor sicut dolor meus.
Passava no alto, suspenso, um vulto de mulher, em transes de agonia, conduzida em andor. Via-se-lhe as dobras do vestido roxo, e lantejoulas douradas.
Depois, debaixo de um pálio de sedas macias, estirava-se em cadáver o retrato de Jesus, nu, velado por um crepe de luto. Era levado por homens embuçados.
Depois, vinha o clero, reconhecível pela alvura da sobrepeliz. E o bispo, com a cabeça coberta. E, enfim, a massa bruta do povo, como a tona de um líquido onde pululam cabeças a perder de vista.
O funeral dominava agora tudo.
Um som de flauta aguçava um grito infinito e doloroso, pairando por cima como a voz de um serafim, daqueles que aparecem nas nuvens sagradas. Uns sons de metal soaram refreados, barbaria humana. E gemiam grossamente os baixos.
O cortejo mergulhava cada vez mais no silêncio. Os cordões de luzes que oscilavam como fogos fátuos iam outra vez parecendo-se com brasas vermelhas. Pelo meio pompeavam os lampiões das cruzes...
Porém, os quatro jogadores, tão entretidos que estavam, não se deram à curiosidade de ir lá. E a mulher do capitão Dionísio, que desde quarta-feira de treva não o vira, entrou açuladamente pelo hotel adentro atirando-lhe excomunhões:
— Desgraçado! Qu'é da tua mulher e dos teus filhos?!...
O capitão só atentava para o que estava fazendo. Ia puxar a melhor cartada de sua vida.
— Que jogo esplêndido! — berrou ele, com alegria diabólica...
E bateu na mesa com a mão cerrada. A carta saltou lá. Era o coringa. E ele embiocou de bruços como se o tivessem quebrado pelo meio. Os parceiros recuaram horrorizados, vendo aquele homem cair de repente para diante.
E o Teles, que voltava da varanda, namorando sua esposa, correu para o grupo. Apalpou com a esquerda o coração do Dionísio e com a destra consultou o pulso, e concluiu com a frieza de perito:
— Não há dúvida. Bateu o trinta e um!