A tacha maldita/V
- I
Marciana
Nem pense que a menina não possa vir mudar!
São moléstias de moça que cuida em namorar.
E mesmo...
Mariana
Qual! Comadre!
Marciana
Não creia que o João
Lhe vote amor sincero de todo o coração.
São meros passatempos da vida de rapaz,
Isso, naturalmente, qualquer um homem faz.
Mariana
Mas consentir não posso que um pardo, um leguelhé,
A namorar se arroje a quem desigual lhe é.
Me sustento de esmola, moro em velha cabana,
Sou pobre, miserável; mas hei de honrar aos meus;
É este o meu desejo, comadre Marciana;
P'ra mim não quero nada, me basta o amor de Deus.
Marciana
Não lhe digo o contrário. Confie em sua neta,
Izabel é tão branda!
Mariana
Daquela carrapeta
Quem for atrás se arranja. — Mas venha cá comadre,
Chame Izabel de parte, faça papel de padre;
Vá dar-lhe alguns conselhos; que o tal amor a deixe;
Que não seja tolinha...
Marciana
Que o amor é como peixe,
Lhe estou dizendo agora...
Mariana
Pois vá cortar a linha
Que ao torto anzol agarra; não é sua madrinha?
E desatou a velha num berreiro
Que até os cães uivaram no terreiro.
Marciana jamais consentiria
Que aquele amor vingasse; mas dizia
— Baseada em seu tempo de donzela —
Que era simples namoro, bagatela.
- II
Enquanto se mordia a estulta velha
Nuns cômicos transportes de pesar;
Izabel, a divina, a santa abelha,
Servia o amargo mel do verbo amar.
Despira o corpo todo, contemplava-se
E nada possuía neste mundo.
Oh não! Engano é isto meu profundo...
Quanto mais se despia, mais amava-se...
Tudo, tudo possui a virgem pura
O céu, o mar e Deus, e Deus também
Escraviza-se a santa criatura
— Exemplo: a manjedoura de Bethlem.
Tinha raiva dos fios do tecido
Que lhe cobria as carnes moreninhas;
Como outrora o profeta, o seu vestido
Rasga e pisa, estraçalha em mil tirinhas.
Esbofeteia as faces delicadas,
Escarra no espelho o vulto seu;
Macera as santas carnes com pancadas.
Puxa os crespos cabelos cor de breu.
Tem vontade de abrir a fechadura
E atirar-se correndo pela rua,
Esquecendo o pudor e a candura;
Mesmo assim como está chorosa e nua.
E suas companheiras? Miseráveis,
Escarnecem da pobre moça branca
Que se prende de um pardo aos tons afáveis
Suspendida do amor pela alavanca.
Os mimosos sapatos tira e puxa
As delicadas meias cor de rosa.
Mais livre de roupagens, mais debuxa
Sua estátua gentil, mas lacrimosa...
Mas pisando no chão estremeceu
Ao contacto da lívida umidade,
E foi caindo em si... Depois ergueu
O que longe rojara a iracidade...
Ao mesmo tempo ouviu a voz rouquenha
Do esquálido Chiquinho, corroído,
Que queimara-se ao fogo como a lenha,
Era carvão bem sujo e denegrido.
- III
Depois abrindo a porta,
Foi descobrindo o moço
— Um conjunto de osso,
Mas que de amor se importa. —
Há muita coisa torta.
Há pigmeu colosso,
Há templos calabouço,
E crime até que exorta!...
Na festa, o bacorim
Nem traz à mente a idéia
Da lama suja e ruim...
Assim, enxerga a dêia
No moço um querubim!...
— Pobre gentil tetéia!
Iza
Eu preciso de ti, meu bom, leal Chiquinho!
Quer do bem, quer do mal conheces o caminho...
A minha santa avó, parece estar maluca,
Não quer em sua gente a casta mameluca...
Quando me ensinaram geografia
Me disseram que lá n'amplidão fria
Todos os astros não são sóis;
Que lindas estrelas para nós,
De perto menos brilham do que a Lua:
A luz que elas têm não é sua;
Além disto mui diversos astros
Se reclinam do céu nos negros lastros;
E quantas árvores diversas
São do mesmo chão juntas imersas!
Carne e osso, brancura e rigidez,
O vermelhão e a palidez,
Só dividem-se ao golpe da morte.
A neve e a montanha, o fraco e o forte,
Eternamente dormem juntas...
Chico
Só as frágeis cabeças bestuntas
Se atrevem a cortar fios bem feitos,
Lícito amor, laços estreitos
Co'a foice enferrujada — os preconceitos...
Iza
Oh protege-me, pois, mancebo inteligente...
Foi naquela manhã que foste a Mecejana,
Que esta filha sem pais, que adora Marciana,
Sentiu da tempestade o raio onipotente.
Era noite em minha alma. O sol já do nascente
Tinha acendido a luz. Também a pobre humana
Sentiu nos olhos seus a chama desumana,
Mais quente do que o sol... porque não tem poente!
Chico
E esse marceneiro, o tal Senhor João
Saberá compensar-te o amor que lhe dedicas?
Teu sol também queimou seu rijo coração?
Iza
Nem eu consinto dúvida!
Chico
E eu... sou um Maricas,
Um protetor de amores?!
Iza
Não gracejes, não!
Chico.
Jamais! Tu dás-me um beijo, arranjo as tuas tricas.
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À proporção que Iza lhe falara
O olhar e o coração se incendiara...
Oh! Mas bela atracou o tal Chiquinho...
Tão rijo bofetão deu no focinho,
Por ter audácia de pedir boquinha...
Dá co'a múmia no chão, quase espezinha,
Se não o acode rápido a Maria.
E o sem vergonha ria!