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A tragédia de Guanabara/II

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Aquelles que, no mar, sahiram incólumes de innumeros perigos; aquelles que os vagalhões raivosos não ousaram sorver e sepultar no abysmo; aquelles contra quem nada poude o furor inexoravel de tantas procellas; aquelles que os barbaros se abstiveram de atacar; aquelles que as proprias feras respeitaram: apparecem-nos como exemplos da mais acrisolada paciencia, mostrando-nos, ao vivo, a desumanidade e a crueza inexcedíveis dos falsos crentes e dos apostatas da verdadeira Religião, a barbaria dos quaes assombra pelo seu extremo requinte e excede, em muito, á dos peares selvagens que teem vivido sobre a face da terra.

Já vimos o modo por que, no Brasil, foram tratados os fieis Calvinistas e, mediante este preparo, estamos agora habilitados a fazer deducções acertadas, quanto á execução dos tres martyres que, quaes sellos preciosos, authenticaram com a perda de suas vidas a prégação do Evangelho nesse paiz distante e estrangeiro. A narrativa, feita, aliás, por, pessoa Fidedigna, é confirmada por outras de toda a honorabilidade, que testemunharam os factos e ‘na maioria dos quaes tornaram parte. O ponto longínquo em que se desenrolaram não poude occultar acontecimentos tão barbaros quantos memoraveis.

Estejamos certos de que o sangue derramado pelos fieis martyres a seu tempo produzirá os fructos que sempre resultam dos que são immo1ados pela causa sacrosanta de Jesus Christo; e grande estimulo recebem, por sem duvida, os christãos em geral, cuja fé se lhes robustece, quando veem os seus irmãos possuídos de tanta coragem e intrepidez, em terra e no mar, por sobre as aguas e entre os penhascos, suportando a fome, a sede, a nudez e toda a sorte de privações.

Os cinco huguenotes, ao deixarem o navio, podiam estar a 18 ou 20 leguas da costa, mais ou menos. As despedidas foram sentidissimas de parte a parte e a separação tanto mais dura quanto os perigos eram quasi iguaes de ambos os lados. Ora, os retrocedentes eram bisonhos em materia de navegação, que desconheciam quasi por completo, pois não haviam emprehendido outra viagem sinão a da França para o Brasil. Apenas sabiam dar a conveniente direcção ao barco para entrar em Coligny ou em qualquer outro porto. Demais, o barco não tinha mastros, nem velas, nem outras coisas in-dispensaveis; porquanto, ao descerem do navio, todos estavam ali tão occupados em estancar a agua que lhes não deram o necessario, nem os huguenotes por sua vez se lembraram de reclamal-o, tal a sua consternação nesse momento.

Para solucionarem o problema, á guisa de mastro ergueram um remo, de dois arcos formaram a gavea, das suas camisas improvisaram uma vela e, juntando os cintos de todos, fizeram com elles a escôta, as bolinas, todos os cordames, emfim, da embarcação.

Durante quatro dias remaram em mar bonançoso. A’ tarde do quinto, porém, quando pensavam avisinhar-se de terra, grossas nuvens, de subito, adensaram a atmosphera, sopraram ventos rijos, as vagas tornaram-se furiosas e temíveis, cahia chuva abundante e trovejava. medonhamente. Perderam, então, o rumo e bem assim se viram impotentes para governar o barco, que vogava ao capricho das ondas bravias, e, nesta conjunctura, es navegantes nem se atreviam a içar a vela. A’ noite a borrasca augmentou ainda mais e passariam por estreitos e entre rochedos perigosissimos, logares onde o mais habil piloto ter se-ia visto - seriamente embaraçado. Por fim, o mar em furia jogou-os a uma praia dominada por alta montanha. No dia seguinte procuraram em terra agua potave1 e alguns fructos; nada, porém, ali encontraram. Dirigiram-se, pois, a outro lagar, a quatro leguas de distancia, onde acharam agua e se demoraram quatro dias para refazer as suas forças. Vieram ao seu encontro diversos indígenas, que muito se alegraram com a presença dos cinco desafortunados, a quem, mediante roupas, porque muito gostavam das dos Francezes, venderam assás caro raízes e farinha, pois viam que se achavam desprovidos de mantimentos. Oueriam mesmo que se estabelecessem no logar, ao que os navegantes deixaram de acquiescer, assim pela importunice dos selvagens, como pela tristeza que lhes ia na alma pela falta do convívio dos seus companheiros. Decidiram-se, pois, a sahir d’ali e a buscar, em Coligny, a companhia dos Francezes, porque sentiam-se melhor entre christãos e pessoas da mesma língua. Dos retrocedentes alguns estavam enfermos, e eram estes que mais interessados se revelavam na partida, porque não podiam recobrar a fraude entre os selvagens isentos de sentimentos christáos. Os sãos não concordavam muito com esta opinião, por preverem que o almirante decerto os maltrataria, pela sua má vontade contra a Religião Reformada. Isto collocou-os em dificuldades durante alguns dias. Os doentes, entretanto, persuadiram aos seus companheiros de um modo tão affectuoso que, sem mais detença, todos deixaram este logar e navegaram rumo de Coligny, distante d’ali – rio dos Vasos – aproximadamente 30 leguas. Os selvagens tentaram oppor-se á sua partida, a qual os desgostou immenso.

Em virtude dos fortes ventos e grandes marés peculiares a essas paragens, gastaram os huguenotes tres dias para vencer as trinta leguas. Entrados no porto de Coligny, não sem grandes difficuldades e enormes perigos, e mesmo sem terem certeza absoluta si esse era ou não o porto, pois densa era a cerração, entregaram-se a ventilar esta mesma duvida. Desfez-se o nevoeiro e, então, avistaram o forte de Coligny e, no continente, a aldeia dos Francezes existente a pouca distancia da fortaleza. Desembarcaram logo e encontraram na aldeia a Villegaignon, que fôra lá a negocios particulares.

Apresentaram-se a elle e referiram-lhe as causas determinantes da sua volta e qual o perigo em que haviam deixado a nau que os levára. Exoraram-lhe, pois, que os recebesse de novo no numero dos seus servidores, tanto mais que, em voltando para os seus serviços, faziam-n’o porque as suas consciencias não os accusavam de o terem jámais offendido. Accrescentaram, ainda, que prefeririam viver com os Francezes do que entre os Portuguezes ou de voltar para os naturaes do paiz que, no rio dos Vasos, lhes haviam dispensado bom e honesto tratamento; e mais: que, si, por causa da religião, os quizesse rejeitar ou maltratar, devera recordar-se que os mais sabias não tinham ainda decidido os pontos originarias das discussões havidas e que elle proprio não fôra nunca de um só parecer sobre taes artigos nos annos precedentes. Permittíram se, além disto, ponderar-lhe que não eram Hespanhóes, nem Flamengos, nem Portuguezes; tampouco eram Turcos, atheistas ou epicuristas; sim, porém; christãos baptisados em nome de Jesus Christo; naturais da França, como bem o sabia. Não eram desertores da sua patria, nem esta às expulsára por qualquer infamia ou acto deshonroso. Mas alguns delles haviam deixado mulheres e filhos para o servir nessa terra longinqua, onde tinham cumprido o seu dever, tanto quanto lh’o permittiram as suas forças. Finalmente, procuraram o favor do almirante, lembrando lhe que os infelizes atirados a qualquer porto estrangeiro pelas tempestades, os despojados dos seus haveres pela violencia das guerras e calamidades outras, são sempre recebidos com os carinhos dispensados a companheiros ; e taes eram. elles, pois nesse numero deveriam ser arrolados, porque, além da perda de todos os seus haveres, o mar puzera-os emmiserrimo estado. Sem embargo – concluíram – offereciam a elle, Villegaignon, os seus serviços e supplicavam-lhe que lhes permittisse viver como seus servos, até que o Senhor Jesus lhes deparasse o meio de regressarem para a França.

Depois de os haver escutado, Villegaignon respondeu-lhes com doçura e honestidade, dizendo que rendia graças a Deus porque os salvára dentre os outros e porque os conduzira em alto mar até o excellente porto de Coligny, a elles que não sabiam governar a embarcação. E, após ter-se informado de tudo o que occorrera e sobre a sorte do navio, consolou-os e permittio-lhes que vivessem com as mesmas prerogativas e liberdades dos demais Francezes.

Temendo que se passassem para os Portuguezes ou Brasileiros, usou de persuasiva linguagem, asseverando-lhes que com prazer ouvira as causas da sua volta, de que se maravilhava tanto mais por serem verdadeiras, e que mesmo no caso que fossem inimigos, tel-os-ia recebido em attenção ao que lhes sobreviera e assegurar-lhes-ia a hospitalidade. Observou-lhes, outrosim, que, comquanto elles e os seus companheiros se houvessem retirado descontentes e quasi como inimigos, e, portanto, lhe assistisse o direito de hostilizal-os por cahirem em suas mãos, estava prompto a esquecer as injurias passadas e a pagar o mal com o bem, entregando a Deus a Vingança, contra os seus desaffectos. Outorgava-lhes, pois, todas as regalias partilhadas pelos demais Francezes, com a condição, porém, de não revelarem nunca propositos religiosos, sob pena de morte, e de se conduzirem tão prudentemente que lhe não déssem ensejo de maltratai-os. Villegaignon apoderou-se do barco que, de direito, pertencia aos cinco. E, embora os visse embaraçados para adquirirem mantimentos, jámais lhes restituio siquer um prego.

Esperançados, todavia, permaneceram em terra, onde começaram a recuperar as energias perdidas, dispersando lhes os compatriotas, servos de Villegaignon, boa acolhida e fornecendo-lhes roupas, viveres e outras coisas, segundo as suas posses. Mas esta quietitude durou apenas doze dias, porque no cerebro do almirante, a partir do momento em que os interrogára, turbilhonavam as mais tetricas conjecturas sobre os informes ministrados pelos retrocedentes, quanto ao navio em que haviam partido os huguenotes.

Radicou-se-lhe a convicção de que tudo o que os cinco narraram era falso e adrede preparado. Via fraude nas palavras dos cinco e acreditou que ella era obra de du Pont e Richier, visto haverem-se retirado do Brasil contra a propria vontade, pois esperavam estabelecer-se definitivamente nessa terra, para gozarem do seu bom clima e como logar de seu futuro descanso. E taes fantasias persuadiram-n’o a crer que os cinco não eram sinão espiões, os quaes iam entender-se com os Francezes que não acompanhavam a sua devoção, para em certa e determinada noite, numa acção conjuncta: os de terra, os' do navio de du Pont e Richier, que elle suppunha escondido á distancia de tres ou quatro leguas, com o reforço dos que elle enviára ao rio da Prata – tomarem de assalto a fortaleza, destruindo-a mesmo e aos que fossem do seu partido.

De tal modo esta opinião dominava o espírito de Villegaignon que a suppoz verdadeira e nella occupava todo o seu pensamento. Desconfiava de seus servidores mais antigos e fieis, irando-se ora contra um, ora contra outro. Pela mínima coisa injuriava-os e ameaçava-os com pauladas, grilhões e outros castigos barbaros. Tão desarrazoado era o seu proceder que todos prefeririam que a terra se abrisse e os tragasse, do que supportar um tyranno tal como Villegaignon. Occupando se, de dia, em maltratar a sua gente, as noites eram-lhe tambem horríveis. Oual sanguinário e os destituidos do Espírito Divino, ás vezes sonhava que o decapitavam e que Richier e du Pont, com grande numero de pessoas, o sitiavam sem lhe propor qualquer acommodação. Em seu falso presupposto de que os cinco Calvinistas eram traidores e espiões, entendeu que era imprescindível assassinàl-os para manter a sua grandeza. Estudou muitos meios para fugir á queixa e recriminações dos homens, a quem desejava convencer que aquelles incorreram em traição.

Entretanto, considerando que isto não se podia provar por simples conjecturas ou verosimilhanças, e que, por conseguinte, si lançasse mão de tal recurso, não haveria como evitar a nota de infamia, mesmo pelos indifferentes em religião, lembrou-se elle que os cinco eram da opinião de Luthero e Calvino e que, como logar-tenente do rei em Coligny, poderia, em face das ordens emanadas de Francisco e Henrique II, exigír-lhes a razão da sua fé, confessada em publico, em que sabia estarem maravilhosamente firmes e que nunca a renegariam embora lhes custasse a vida.

Achára, portanto, o meio de eliminal-os, e até com grande honra para elle, segundo pensava; porque sabia que a maioria da Côrte teria grande prazer no sacrificio dos Reformados. Isto, porém, é um testemunho inilludivel de que Villegaignon, ao contrario do que declarára tantas vezes perante o mundo, jámais teve em seu coração o mínimo temor de Deus e muito menos o desejo de ampliar o reino de Jesus Christo.

Com intuito de pôr em execução o seu maligno projecto, formulou um questionario sobre materia de fé e enviou o aos cinco Calvinistas, assignando-lhes o prazo de doze horas para que o respondessem por escripto. Os artigos respectivos conhecer-se-ão pela Confissão de Fé mais adiante exarada. Os Francezes do continente procuraram dissuadil-os de darem as razões da sua fé ao tyranno, que outra coisa não buscava sinão tirar-lhes a vida, e aconselhavam-n’os a se retirarem para os indígenas, d’ali afastados trinta ou quarenta leguas, ou então a se entregarem á mercê dos Portuguezes, por quem seriam incomparavelmente mais bem tratados do que pelo despota e cruel Villegaignon.

Não acceitaram, porém, estes conselhos. Jesus Christo encheu-os de forte animo e simplesmente admiravel era a confiança que revelavam. Podendo escapar ás garras de Villegaignon, que não podia tolher-lhes a fuga, preferiram, entretanto, manter-se firmes no seu dever, por comprehenderem que era chegada a hora em que importava offerecerem uma prova do precioso conhecimento que o Senhor lhes dera das coisas espirituaes.

Depois de impetrado o auxilio do Espírito de Jesus Christo para serem abundantemente inspirados, começaram, da melhor boa vontade, a elaborar a resposta ás questões de Villegaignon. Estes envolviam os pontos mais difficeis das Santas Escripturas e mesmo um grande theologo, com todas as obras necessarias á mão, ver-se-ia embaraçado para, de modo amplo, os responder em um mez. Entretanto, os cinco fieis apenas dispunham de um exemplar das Sagradas Letras para se recordarem das passagens mais apropriadas, e não eram theologos mas apenas leigos, alguns dos quaes se achavam doentes e outros conturbados pela previsão do que lhes ia acontecer.

Martyrio de Jean du Bourdel

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Para redigir a resposta, elegeram Jean du Bourdel, não só porque era o mais velho de entre elles, como em razão de ser o mais letrado e de possuir conhecimentos da língua latina. Aliás, era o que mais se distinguia pelos seus dons e attractivos peculiares. Frequentemente, quando via os seus companheiros um tanto esmorecidos, procurava despertal-os, infundindo-lhes coragem e emprazando-os a se manterem sempre fieis ao Divino Mestre, em quem depositavam toda a confiança. Jean du Bourdel, concluida a redacção da resposta aos artigos do almirante, procedeu repetidas vezes á sua leitura perante os seus companheiros, interrogando-os a proposito de cada ponto.

Todos acharam catholica a Confissão e fundada na Palavra da Verdade, declarando-se, mesmo, dispostos a morrer, caso fosse esta a vontade de Deus. Cada um a assignou de seu proprio punho, para significar que a recebiam como propria. E, leitor amigo, quizemos communicar-vol-a nesta narração, mediante a sua transcripção, ipsis verbis, do respectivo original[1]. Si não é tão extensa quanto fôra para desejar, pedimo-vos considereis o logar onde se achavam os seus pobres autores, a sua perplexidade, as suas afflicções, assim do espírito como do corpo, o seu desamparo, a sua falta de auxilio de pessoas e de livros, de tudo, emfim que lhes pudesse facilitar uma comprehensão mais vasta dos ensinos escripturisticos. De resto, os dons de Deus não são distribuídos igualmente a todos, pelo que ha pessoas mais favorecidas que outras, segundo convem.

Notas

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  1. Esta Confissão foi communicada a Crespin, editor, por Jean de Lery, como o declara na obra – Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil (ed. Gaffarel, 1880, tomo II, p. 180: "Reconhecendo que, mais do que a qualquer outro, cabia a mim a injuncção de velar pela Confissão destes fieis, para que fosse comprehendida no catalogo dos que experimentaram a morte pelo testemunho do Evangelho, entreguei-a, neste mesmo anno de 1558, a Jean Crespin, impressor, afim de que com o relato das difficuldades do regresso, a Colig0y, dos cinco companheiros, a inserisse tambem no livro dos Mártyres, ao qual encaminho o leitor". Vê-se, pois, que é indubitavel que Lery forneceu a Crespin, quando não o proprio texto, pelo menos todos os informes necessários á coordenação da narrativa.