A velha messalina
Os últimos telegramas do Norte nos não permitem guardar o silêncio, a que nos levava o desprezo pela repetição desta hipocrisia já sem solenidade, a que o enjôo público tem conferido o título proverbialmente justo de farsa eleitoral. De cinco decênios pelo menos antes do republicano data esse processo de contínua degeneração do governo representativo, em que à república tocou a última fase, mas cuja existência é quase contemporânea das primeiras instituições nacionais, e cuja paternidade toca indubitavelmente aos mais antigos hábitos e aos mais velhos partidos brasileiros.
Vai quase por vinte e sete anos que o ministério do Marquês de Paranaguá, ciente de existir, na Câmara dos Deputados, membros reconhecidos e presentes em número bastante para a abertura do corpo legislativo, firmava e submetia a Sua Majestade uma exposição, atribuída à pena de Araújo Viana, onde se qualificava a origem do mandato parlamentar naqueles tempos remotos com esta crueza: “Ainda não se apagaram da memória dos brasileiros as recordações das tramas e violências, que na eleição da atual Câmara dos Deputados, foram cometidas em quase todos os pontos do império. O triunfo eleitoral, calcadas embora as leis do pudor, foi o objeto, em que puseram todo o seu desvelo as influências, que, a despeito da vontade nacional, então predominavam; e o resultado coroou seus deploráveis esforços, porque contam, na Câmara dos Deputados, decidida maioria. O Brasil inteiro, Senhor, se levantará, para atestar que, em 1840, não houve eleições regulares... Não há quase parte alguma do Império, Senhor, onde alguns desses atentados contra a liberdade do voto não fossem perpetrados em a eleição da atual Câmara dos Deputados. Uma Câmara legislativa eivada em sua origem por tantos vícios e crimes, jamais poderá conciliar a estima, veneração e prestígio, que produzem a força moral, tão necessária a tais corpos políticos e à manutenção do sistema representativo”.
Classificada assim pelo gabinete imperial, evidentemente com o prévio assenso do imperador, viu-se aquela Câmara fulminada, antes de entrar no exercício das suas funções, pela dissolução de 1842, em que expirou ignobilmente a filha das eleições de 1840, cognominadas as eleições do cacete. Mas a desforra geral, que o partido apoiado na coroa obteve imediatamente em todo o império, com o precioso auxílio das leis conservadoras de 1841, pôs de manifesto que, desde então, a verdade das nossas desgraças, na boca dos homens políticos, não serve senão para explorar as esperanças populares, alternando nas vantagens oficiais os desfrutadores dos mesmos abusos, invariavelmente condenados na oposição e utilizados no poder.
Não é de hoje, pois, que a soberania nacional se entretém de partos supostos. Mais de sessenta anos há que a pobre octogenária vive a amamentar, ludibriada, essa espúria sucessão de filhos alheios. Se “uma câmara legislativa desconceituada é a maior calamidade que pode afligir uma nação”, como naquele documento imperial se dizia, o império foi uma série quase ininterrupta de calamidades, cujo fio, no regímen atual, emendou com outra.
Durante o segundo reinado toda a corrupção das urnas não cessou de crescer, produzindo, na frase do seu eminente historiógrafo, o Sr. Joaquim Nabuco, essa “hipertrofia do poder moderador, o mal que o fazia invadir e ocupar, não a região do poder executivo somente, mas a do eleitorado também, e assim dominar a ação, a vida dos partidos, dos ministérios, do parlamento”. Afirma-se que disso não cabia a culpa ao imperador. Como quer que seja, profunda consciência tinha ele dessa ditadura, que exercia em nome da nação, sob o manto das formas parlamentares; e foi da sua pena que, em momento de conversa consigo mesmo, caiu, numa nota à prostituição eleitoral, de que aquele escritor argüía a sua época, esta sentença da sinceridade constitucional sob o cetro do último dinasta: “Não é o vestido, que tornará vestal a messalina, porém sim a educação do povo e, portanto, a do Governo. Parece-me que devo conhecer essa chaga, pois a observo, sem ser mero espectante, há quarenta e tantos anos.”
Eis aí o que escrevia Pedro II em 1886, isto é, por assim dizer, às vésperas da revolução de 15 de novembro. A malfazeja, cujas proezas, encetadas no último do ano passado, transbordaram pelos primeiros dias deste, como nos acabam de mostrar as notícias do Recife, entregues ao terror da mazorca legal, é a decrépita messalina do outro regímen. Dela não poderão dizer os Tácitos futuros que lassata, nondum saciata recessit. A ninfomania da podre barregã, depois de se cevar à farta ainda na última eleição imperial, fez da república a sua nova Suburra.
Não é a célebre imperatriz moscovita, “amante de um exército”, mas cuja celebração de grande estadista resistiu à lascívia de uma vida particular, cujos excessos “teriam matado trinta cortesãs”. É a devassa concubina de todos os partidos e de todos os regímens, arrastando-se perpetuamente no charco das suas torpezas, sem outra política, nem outro destino que o de vender sucessivamente a todos os fregueses do seu vício os prazeres da esquálida profissão.
A esse respeito, não tem havido, no Brasil, diferença entre os dois sistemas, a não ser em que as circunstâncias peculiares deste oferecem à depravação da meretriz que, nesta terra, governa em nome do povo, pasto muito mais pingue, incentivo muito mais eficaz, condições de expansão incomparavelmente mais propícias. Presentemente dos escândalos, que a alimentam, não há quem dê contas. A responsabilidade, fracionando-se, anulou-se. Cada província, fantasiada em estado, recebeu uma raiz da tirania, que, distribuindo-se, lucrou em estabilidade o que perdera em extensão; e vinte príncipes do povo exercem hoje na maior comodidade a ditadura, cujo peso inquietava e esmagava a consciência ao imperador. Que importa abster-se o presidente da República, se os reis dos estados exercitam na mais completa segurança o domínio absoluto das urnas? Um ponto havia outrora, para onde se volviam os olhos, e nem sempre debalde. De presente não há nenhum. Da mentira das urnas apenas se recorre para a mentira da verificação de poderes. Não se apela assim da embriaguez do déspota para a sua sobriedade: agrava-se de uma para outra intemperança. Não há mais remédio, nem respiráculo, no meio do oficialismo triunfante.
Apreciando a eleição de 31 de dezembro nesta capital, disse o nosso colega da Tribuna que o resultado trazido a lume pelos jornais “não exprime senão o que a fraude mais desbragada e indecente, como jamais se praticou, resolveu que fosse a expressão do voto popular”. A estas palavras não temos fundamento, para opor contradita, senão quanto à frase por nós sublinhada. As trapaças de hoje são literalmente as mesmas que as de ontem, as de ontem as mesmas que as de anteontem. O crime de todos nós está principalmente em não determinarmos de confessar uma vez a verdade inteira. Ela não produzirá os seus efeitos salutares, enquanto nos não deliberarmos, afinal, a fazer cada qual a sua penitência do nosso quinhão de co-responsabilidade na peste das instituições, reconhecendo sem rodeios que elas mentem despejadamente ao país, isto é que, sob o nome de república e democracia, o que a nossa pátria está a suportar, com tanta resignação quanto náusea, é o absolutismo de uma oligarquia quase tão opressiva em cada um dos seus feudos quanto a dos mandarins e a dos paxás.
Na capital de Pernambuco está fechado o comércio, e fecharam os bancos, a imprensa fechou, porque a vitória oficial anda a rojar pelas ruas a pompa do seu triunfo, seqüestrando os direitos individuais. Para satisfazer a interesses de um grupo e de um chefe, está virtualmente o Recife em estado de sítio. Reina ali a prisão arbitrária, a incomunicabilidade policial, a ameaça dos piquetes municiados, o pânico ao serviço do Governo. O comércio tranca as portas, alvorota-se, reclama providências da mísera União, espectadora impotente da anarquia desencadeada nos estados. Por que não nos queixaríamos antes ao prelado da diocese? Para estes ligeiros achaques não há recurso no regímen. A intervenção constitucional, o deus ex machina, aguarda no fundo do santuário do Catete as grandes ocasiões. Fora daí, se querem paz, é chegarem às boas com o sátrapa da terra. Estudem a Constituição, e rezem a Deus contra o revisionismo. Um estado autônomo não precisa de mais nada.