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A velhice do Padre Eterno/I

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Ó almas que viveis puras, immaculadas
Na torre do luar da graça e da illusão,
Vós que ainda conservaes, intactas, perfumadas,
As rosas para nós ha tanto desfolhadas
Na aridez sepulchral do nosso coração;
Almas, filhas da luz das manhãs harmoniosas,
Da luz que acorda o berço e que entreabre as rosas,
Da luz, olhar de Deus, da luz, bênção d'amor,
Que faz rir um nectario ao pé de cada abelha,
E faz cantar um ninho ao pé de cada flor;
Almas, onde resplende, almas, onde se espelha
A candura innocente e a bondade christã,
Como n'um céo d'Abril o arco da alliança,
Como n'um lago azul a estrella da manhã;
Almas, urnas de fé, de caridade, e esp'rença,
Vasos d'oiro contendo aberto um lírio santo,
Um lírio immorredoiro, um lírio alabastrino,
Que os anjos do Senhor vem orvalhar com pranto,
E a piedade florir com seu clarão divino;
Almas que atravessaes o lodo da existência,
Este lodo perverso, iníquo, envenenado,
Levando sobre a fronte o esplendor da innocência,
Calcando sob os pés o dragão do peccado;
Bemdictas sejaes, vós, almas que est'alma adora,
Almas cheias de paz, humildade e alegria,
Para quem a consciência é o sol de toda a hora,
Para quem a virtude é o pão de cada dia!
Sois como a luz que doira as trevas d'um monturo,
Ficando sempre branca a sorrir e a cantar;
E tudo quanto em mim ha de bello ou de puro.
- Desde a esmola que eu dou á prece que eu murmuro -
É vosso: fostes vós o meu primeiro altar.
Lá da minha distante e encantadora infância,
D'esse ninho d'amor e saudade sem fim,
Chega-me ainda a vossa angélica fragrância
Como uma harpa eólia a cantar a distância,
Como um véo branco ao longe inda a acenar por mim!
...
...
...
Minha mãe, minha mãe! ai que saudade immensa,
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Cahia mansa a noite; as andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos das montanhas as canções das ceifeiras,
Como a alma d'um justo, ia em triumpho ao céo!...
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
Vendo a lua subir, muda, alumiando o espaço,
Eu balbuciava a minha infantil oração,
Pedindo a Deus que está no azul do firmamento
Que mandasse um allívio a cada soffrimento,
Que mandasse uma estrella a cada escuridão.
Por todos eu orava e por todos pedia.
Pelos mortos no horror da terra negra e fria,
Por todas as paixões e por todas as mágoas...
Pelos míseros que entre os uivos das procellas
Vão em noite sem lua e n'um barco sem vellas
Errantes atravez do turbilhão das águas.
O meu coração puro, immaculado e santo
Ia ao throno de Deus pedir, como inda vae,
Para toda a nudez um panno do seu manto,
Para toda a miséria o orvalho do seu pranto
E para todo o crime o seu perdão de Pae!...
...
...
A minha mãe faltou-me era eu pequenino,
Mas da sua piedade o fulgor diamantino
Ficou sempre abençoando a minha vida inteira,
Como junto d'um leão um sorriso divino,
Como sobre uma forca um ramo d'oliveira!

     * * * *

Ó crentes, como vós, no íntimo do peito
Abrigo a mesma crença e guardo o mesmo ideal.
O horizonte é infinito e o olhar humano é estreito:
Creio que Deus é eterno e a alma é immortal.

Toda a alma é clarão e todo o corpo é lama.
Quando a lama apodrece ina o clarão scintilla:
Tirae o corpo - e fica uma língoa de chamma...
Tirae a alma - e resta um fragmento d'argila.

E para onde vae este clarão? Mysterio...
Não sei... mas sei que sempre ha-de arder e brilhar,
Quer tivesse incendiado o cranco de Tibério,
Quer tivesse aureolado a fronte de Joanna Darc.
Sim, creio que depois do derradeiro somno
Ha-de haver uma treva e ha-de haver uma luz
Para o vicio que morre ovante sobre um throno,
Para o santo que expira inerme n'uma cruz.

Tenho uma crença firme, uma crença robusta
N'um Deus que ha-de guardar por sua propria mão
N'uma jaula de ferro a alma de Lucusta,
N'um relicario d'oiro a alma de Platão.

Mas tambem acredito, embora isso vos peze,
E me julgueis talvez o maior dos atheus,
Que no universo inteiro ha uma só diocese
E uma só cathedral com um só bispo--Deus.

E muito embora a vossa egreja se contriste
E a excommunhão papal nos abraze e destrua,
A analyse é feroz como uma lança em riste
E a verdade cruel como uma espada nua.

Cultos, religiões, biblias, dogmas, assombros,
São como a cinza vã que sepultou Pompeia.
Exhumemos a fé d'esse montão de escombros,
Desentulhemos Deus d'essa aluvião de areia.

E um dia a humanidade inteira, oceano em calma,
Ha-de fazer, na mesma aspiração reunida,
Da razão e da fé os dois olhos da alma,
Da verdade e da crença os dois polos da vida.

A crença é como o luar que nas trevas fluctua;
A razão é do céo o explendido pharol:
Para a noite da morte é que Deus nos deu lua...
Para o dia da vida é que Deus fez o sol.

      * * * *

Mas, ai eu comprehendo os martyrios secretos
Do pobre camponez, já quasi secular,
Que vê tombar por terra o seu ninho de affectos,
A casa onde nasceu seu pae, e onde os seus netos
Lhe fechariam, morto, o escurecido olhar.
Comprehendo o pavor e a lividez tremente
De quem em noite má, caliginosa e fria
Atravessa a montanha á luz d'um facho ardente
E uma rajada vem alucinadamente
Apagar-lh'o c'o'a aza athletica e sombria,
Deixando-o fulminado e quazi sem sentidos
A ouvir o ulular das feras e os bramidos
Do ciclone que explue rouco do sorvedoiro
E se enrosca furioso aos platanos partidos
A estrangulal-os, como uma giboia um toiro.

Comprehendo a agonia, o desespero insano
Do naufrago na rocha, entre o abysmo do oceano,
Vendo rolar, rugir os glaucos vagalhões
Como uma cordilheira herculea de montanhas,
Com jaulas collossaes de bronze nas entranhas,
E um domador lá dentro a chicotear trovões.
...
...
O vosso facho, o vosso abrigo, o vosso porto,
É um Deus que para nós ha muito que está morto,
E que inda imaginaes no entretanto immortal.
Vivei e adormecei n'essa crença illusoria,
Já não podeis transpôr os mil annos da historia
Que vão do vosso credo absurdo ao nosso ideal.
Vivei e adormecei n'essa illusão sagrada,
Fitando até morrer os olhos de Jesus,
Como o ephemero vão que dura um quasi nada,
Que nasce de manhã n'um raio d'alvorada,
E expira ao pôr do sol n'outro raio de luz.
Eu bem sei que essa crença ignorante e sincera,
Não é a que illumina as bandas do Porvir.
Mas vós sois o Passado, e a crença é como a hera
Que sustenta e dá inda um tom de primavera
Aos velhos torreões gothicos a cahir.
Sim, essa crença é um erro, uma illusão, é certo;
Mas triste de quem vae pelo areal deserto
Vagabundo, esfaímado e nú como Caim,
Sem nunca ver ao longe os palacios radiantes
D'uma cidade d'oiro e marmore e diamantes
No chimerico azul d'essa amplidão sem fim!
Quem ha-de arrancar pois do seu piedoso engaste
O vosso ingenuo ideal, ó tremulos velhinhos,
Se a chimera é uma rosa e a existencia uma haste,
Rosa cheia d'aroma e haste cheia de espinhos!
Quem vos ha-de cortar a flor da vossa esp'rança,
Quem vos ha-de apagar a angelica visão,
Se essa luz para vós é como uma creança
Que guia n'uma estrada um cégo pela mão!
Quem vos ha-de acordar d'esse sonho encantado?!
Quem vos ha-de mostrar a evidencia cruel?!
Ah! deixemos a ave ao ramo já quebrado,
E deixemos fazer ao enxame doirado
No tronco que está morto o seu favo de mel!
Ó velhos aldeões, exhaustos de fadiga,
Que andaes de sol a sol na terra a mourejar,
Roubar-vos da vos'alma a vossa crença antiga
Seria como quem roubasse a uma mendiga
As tres achas que leva á noite para o lar!
Oh, não! guardae-a bem essa crença d'outrora;
É ella quem vos dá a paz benigna e santa,
Como a paz d'um vergel inundado d'aurora,
Onde o trabalho ri e onde a miseria canta.
Guardae-a sim, guardae! E quando a morte em breve
Vos entre na choupana esqualida e feroz,
A agonia será bem rapida e bem leve,
Porque um anjo de Deus mais alvo do que a neve
Ha-de estender sorrindo as azas sobre vós.
E vós conhecereis em seu olhar materno
Que é o anjo que emballou vosso somno infantil,
E que hoje vem do céo mandado pelo Eterno,
Para sorrir na morte ao vosso branco inverno,
Como sorriu no berço ao vosso claro Abril.

E ao pender-vos gelada a vossa fronte alabastrina
Irá levar a Deus o vosso coração,
Tão manso e virginal, tão novo e tão perfeito,
Que Deus ha-de beijal-o e aquecel-o no peito,
Como se acaso fosse uma pomba divina,
Que viesse cahir-lhe exanime na mão!