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A velhice do Padre Eterno/VI

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Fanaticos, ouvi as coisas que eu vos digo:

Dentro d'essa prisão cruel do dogma antigo
A consciencia não póde estar paralisada,
Como n'um velho catre uma velha entrevada.
Tudo se modifica e tudo se renova:
Da escura podridão nojenta de uma cova
Sae uma flôr vermelha a rir alegremente.
A ideia tambem muda a pel' como a serpente.
O que era hontem grão é hoje a seara immensa.
A Verdade sahiu d'esse casulo--a Crença,
Assim como sahiu do velho o mundo novo.
Recolher outra vez a aguia no seu ovo
É impossivel; quebrou o involucro ao nascer.
Como é que pòdes tu ó Egreja, pretender,
Cerrando na tua mão um box enorme--o inferno,
Levar aos encontrões o espirito moderno,
Leval-o para traz, para o passado escuro,
Como um bandido leva um homem contra um muro?!
A trajectoria immensa e fulva da verdade
Não se póde suster com a facilidade
Com que Jusué susteve o sol no firmamento.
Atirar a justiça, a ideia, o pensamento
Ás fogueiras da fé, ó bonzos, é impossivel:
Reduzirdes a cinza o que? O incombustivel!
Loucos! ide dizer ao velho Torquemada
Que queime se é capaz n'um forno uma alvorada!
.................................... Sacristas,
Ajuntae, reuni os balandraus papistas,
As fardas sepulcraes do exercito da fé,
A capa de Tartufo, a loba de Claret,
A cogula do monge, enfim, tudo que seja
Côr da nolte; arrancae o velho crepe á egreja,
Dos caixões descosei os panos funerarios,
Tisnae co'a vossa lingua as alvas e os sudarios,
E se inda precisaes mais sombras, mais farrapos,
Pedi ao corvo a aza, o ventre immundo aos sapos,
Fabricae d'isto tudo uma cortina immensa,
E tapando com ella o sol da nossa crença,
Nem mesmo assim fareis o eclipse da aurora!
A consciencia não é a besta d'uma nora.
Lembrai-vos que o Progresso é um carro sem travão,
E que apagar em nós o facho da razão
É o mesmo que apagar o sol quando flameja
Com um apagador de lata d'uma egreja.
Bonzos, podeis dizer á humanidade--Pára!--
Co'a foice excomunhão podeis ceifar a ceara
Da heresia; podeis, segundo as ordenanças,
Metter pedras de sal na boca das creanças,
Fazer do Deus do amor o Deus barbaridade,
Chamar á estupidez irmã da caridade
E jesuita a Jesus e Christo a Carlos sete;
Vós podeis discutir junto da campa o frete,
Recoveiros de Deus, o frete que é preciso
Para irdes levar lá cima ao paraiso
A alma d'um defunto; ó bonzos, vós podeis
Ir pedir emprestado um exercito aos reis
E defender com elle o papa, o vaticano,
Do cerco que lhe faz o pensamento humano,
Pondo adiante d'um dogma a boca d'um canhão;
Podeis encarcerar dentro da inquisição
Galileu; vós podeis, anões, contra os ciclopes
Roncar latim, zurrar sermões, brandir hyssopes,
Que não conseguireis que a Liberdade vista
A batina pingada e rota d'um sacrista,
Que o direito se ordene, e que a Justiça queira
Ir a Roma tomar, contricta, o véo de freira!