A velhice do Padre Eterno/XIII

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I


Elle era n'esse tempo uma creança loira
Vivendo na abundancia agreste da lavoira,
Ao vento, a chuva, ao sol, pastoreando os gados,
Deitando-se ao luar nas pedras dos eirados,
Atravessando á noite os solitarios montes,
Dormindo a boa sésta ao pé das claras fontes,
Trepando aos pinheiraes, ás fragas, aos barrancos,
No rijo e negro pão cravando os dentes brancos,
Radioso como a aurora e bom como a alegria.
Quando no azul do céo cantava a cotovia,
Aos primeiros clarões vibrantes da alvorada
Transportava ao casebre o leite da manada,
Acordando, a assobiar e a rir pelos caminhos,
Os lebreus nos portaes e as aves nos seus ninhos.
E á tarde quando o sol, extraordinario Rubens,
Na fantasmagoria esplendida das nuvens,
Colorista febril, lança, desfaz, derrama
O topasio, o rubi, a prata, o oiro, a chama,
Elle ia então sosinho, alegre intemerato,
Conduzindo a beber ao tremulo regato,
A golpes de verdasca e gritos estridentes,
N'um ruidoso tropel os grandes bois pacientes.
O seu olhar azul de limpidez virtuosa,
Onde brilhava a audacia heroica e valorosa
A candura infantil e a intelligencia rara,
O timbre da sua voz imperiosa e clara,
A linha do seu corpo altivamente recta,
Tudo lhe dava o ar soberbo d'um athleta
Em miniatura.


II


Um dia o pae, um bravo aldeão,
Chamou-o ao pé de si, e disse-lhe:

«João:

Á força de trabalho e a força de canceiras
A moirejar no monte e a levar gado ás feiras,
Consegui ajuntar ao canto do bahù
Alguns pintos. Vocês são dois rapazes; tu,
Além de ser mais novo, és mais intelligente.
Vou botarte ao latim; quero fazer-te agente.
Hasde-me dar ainda um grande prégador.
Hoje padre é melhor talvez que ser doutor.
Aquillo è grande vida; é vida regalada.
Olha, sabes que mais? manda ao diabo a enxada.
Aquillo é que é vidinha! aquillo é que é descanço!
Arrecada-se a congrua, engrola-se o ripanço,
Arranja-se um sermão ahi com quatro tretas,
Vai-se escorropichando o vinho das galhetas,

E a missa seis vintens e doze os baptisados.
Depois independente e sem nenhuns cuidados!
Olha, João, vê tu o nosso padre cura:
É, sem tirar nem pôr, uma cavalgadura.
Vi-o chegar aqui mais roto que os ciganos;
Pois tem feito um casão em meia duzia d'annos.
Isto é desenganar; padres sabem-na toda...
É o sermão, é a missa, é o enterro, é a boda,
É pinga da melhor, é tudo quando ha!
Quando o abade morrer hasde vir tu p'ra cá.
Despacha-te o doutor nas côrtes; quando não
Votamos contra elle, e foi-se-lhe a eleição.
Mas que é isso, rapaz? Nada de choradeira!
É tratar da merenda, e quinta ou sexta-feira
Toca pr'o seminario. Eu quero ir para a cova
Só depois de ti ouvir cantar a missa nova.»


III


N'uma tarde d'outomno a somnolente trote
Um macho conduzia em cima do albardão,
Já columna da egreja, o novo sacerdote,
O muitissimo illustre e digno padre João.
Ao entrarem na aldeia os dois irracionaes,
Dos foguetes ao grande e jubiloso estrepito
Um velho recebeu nos braços paternaes,
Em vez do alegre filho, um monstro já decrepito
Que acabava de vir das jaulas clericaes.
Que transfigurão! que radical mudança!
Em logar da innocente, angelica creança,
Voltava um chimpanzé estupido e bisonho.
Com o ar de quem anda hallucinadamente
Preso nas espiraes diabolicas d'um sonho.
Seu corpo juvenil, robusto e florescente
Vergava para o chão exhausto de cansaço:
Os dogmas são de bronze, e a lã d'uma batina
Já vai pesando mais que as armaduras d'aço.
A ignorancia profunda, a estupidez suina
A luxuria d'egreja, ardente, clandestina,
O remorso, o terror, o fanatismo inquieto,
Tudo isto perpassava em turbilhão confuso
Na atonia cruel d'aquelle hediondo aspecto,
Na morna fixidez d'aquelle olhar obtuso.
Metida nas prisões escuras de Loyola
A sua alma infantil, não tendo luz nem ar.
Foi com os rouxinoes, que dentro da gaiola
Perdem toda alegria, e morrem sem cantar.


IV


Como ninguem ignora, os sordidos palhaços
Compram, roubam às mães as loiras creancinhas,
Torcem-lhes o pescoço, as mãos, os pés, os braços,
Transformam-lhes n'um juco elastico as espinhas,
E exhibem-nas depois nos palcos das barracas
Dando saltos mortaes e devorando facas
Ante o espanto imbecil da ingenua multidão;
E para lhes cobrir a lividez plangente
Costumam-lhes pintar carnavalescamente
Na face de alvaiade um rir de vermelhão.
Tambem o jesuitismo hipocrita-romano,
Palhaço clerical, anda pelos caminhos
A comprar, a furtar, assim como um cigano,
As creanças ás mães, os rouxinoes aos ninhos.
Vão leval-as depois ao negro seminario,
Ás terriveis galés, ao sacro matadoiro,
E escondem-nas da luz, assim como o usurario
Esconde tambem d'ella os seus punhados d'oiro.
Dentro da estupidez e da superstição,
Casamata da fé, guardam-lhes a razão,
A analize, esse forte e venenoso fluido,
Que, andando em liberdade, ao minimo descuido
Poderia estoirar com tragica explosão.
O que o palhaço faz ao corpo da creança
Fazem-lh'o á alma, até que d'ella reste emfim,
Em logar do histrião que nas barracas dança,
O pobre missionario, o inutil manequim,
O histrião que nos prega a bemaventurança
A murros do missal e a roncos de latim.
As almas infantis são brandas como a neve,
São perolas de leite em urnas virginaes.
Tudo quanto se grava e quanto ali se escreve
Cristalisa em seguida e não se apaga mais.
D'esta forma consegue o astucioso clero
Transformar de repente uma creança loira
N'um passaro nocturno estupido e sincero.
É abrir-lhe na cabeça a golpes de tesoira
A marca industrial do fabricante--um zero!