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Abel e Helena/II

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ATO SEGUNDO

QUADRO TERCEIRO

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O VÍSPORA

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Sala de engomar em casa de Nicolau. Ao fundo, porta, deitando para o, quintal, e no meio de um parapeito com janelas envidraçadas. Portas laterais. Canapé à direita. Na tábua de engomar, ao fundo, está estendida uma peça de roupa branca. Cadeiras. É noite.

Cena I

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Helena, Marcolina e moças

CORO DAS MOÇAS — Por que razão, ó Dona Helena,

tão triste está que causa pena?

Diga-nos já, e ao seu penar

talvez possamos consolar.

MARCOLINA (Deixa o seu trabalho e vem também para junto de Helena.) - Iaiá, não ‘steja assim tão triste.

HELENA — Meu Deus! Meu Deus! o meu coração não, resiste

a tamanha dor

a tanto dissabor!

Eu desejava neste instante

a solidão corroborante;

portanto, se de mim tiverem dó,

dois minutos ou três deixem-me só...

MARCOLINA — Mas quem ‘sta assim amargurada

deve ser acompanhada.

CORO DAS MOÇAS — Fique só, já que não quer, ó Dona Helena

nos confiar sua pena.

Sim, como quer sozinha estar,

vamos embora sem tardar.

(As moças retiram-se pela esquerda. Marcolina põe-se de novo a engomar, cantarolando alguma cantiga da roça.)

Cena II

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Helena e Marcolina

HELENA - Marcolina?

MARCOLINA (Deixando o trabalho.) - Iaiá?

HELENA - Cala-te!

MARCOLINA - Iaiá não vai pra sala?

HELENA - Não.

MARCOLINA - Iaiá. isso não é bonito! As moças vêm visitar vossem’cê e vossem’ecê pede a elas que se retire! Os brancos tudo rumado lá na sala e vossem’cê não vai pra lá! Ué!

HELENA - Quem está lá dentro?

MARCOLINA - Seu Pantaleão, Seu Arfere, Seu Pedrinho, aqueles dois estudante da cidade, aqueles dois lojista da rua do Imperadô, e que andam sempre cumo unha com carne, e mais um punhado deles. Tá tudo na sala, e vosssem’cê metida na sala do engomado, no lugar das pretas...

HELENA - Essa gente toda, se vem aqui, não é por minha causa, mas por amor do víspora.

MARCOLINA - Vossem’cê deve ir conversar com eles, porque sinhô velho tá na fazenda.

HELENA - Cala-te.

MARCOLINA - Iaiá, arrefrita...

HELENA - Essa gente toda me aborrece...

MARCOLINA - Mas o que quer?

HELENA - Se me favorecessem com sua ausência...

MARCOLINA - Sinhô véio, quando vortá, não há de gostá dessa farta de cumo-chama.

HELENA - Não quero sentenças, ouviu?

MARCOLINA - Tá bom, tá bom...

HELENA - Vá para a cozinha!

MARCOLINA (À parte.) - Cabeça dela tá virada por aquele marreco dess’outro dia... (Vai saindo, e olha para o quintal.) Então? Quando uma coisa me parpita...(Alto.) Iaiá?

HELENA - O que é? Ainda aí estás?

MARCOLINA - Faça favô de vim na jinela; veja quem tá ali...

HELENA (Erguendo-se pressurosa.) - Aonde? aonde?

MARCOLINA - No quintal... (À parte.) O moleque sartou pelo muro...

HELENA (Chegando-se à vidraça.) - Quem é? (Vendo.) Ah!...

MARCOLINA - O que iaiá vai fazê?

HELENA (Consigo.) - Meu Deus! meu Deus! dai-me forças!

MARCOLINA - Iaiá vai mandá ele entrá?

HELENA (No mesmo) - Ó céus! Não posso sustentar por mais tempo esta luta entre o amor e o dever... E nada me lembra... nada me ocorre... Não tenho uma pessoa que me ouça, que me aconselhe... (Com uma idéia.) Ah!

MARCOLINA (À parte.) - Hoje é dia dos ah! Iaiá já sortou dois...

HELENA - Vá ao quarto de dindinho e traze o seu retrato, que está pendurado na parede.

MARCOLINA - O retrato?

HELENA - Sim! Avia-te!

MARCOLINA - Mas o que iaiá vai fazê com o retrato de sinhô véio?

HELENA - Não tenho que dar satisfações! Vá e volte já!

MARCOLINA - Tá bom, tá bom; (À parte.) Um... (Sai.)

Cena III

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Helena

HELENA - Talvez que, tendo presente a imagem daquele que eu desejava estivesse presente, possa evitar as seduções daquele que eu estimava fosse o meu futuro. Ah! meu Deus! fiz um trocadilho no estado em que me acho!

Cena IV

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Helena e Marcolina

MARCOLINA (Trazendo um enorme retrato de Nicolau.) - Aqui está!

HELENA - Bom. Deita-o sobre aquela cadeira. (Marcolina obedece.) Fecha aquela porta.

MARCOLINA (Hesitando.) - Pra quê, iaiá?...

HELENA (De mau humor.) - Fecha aquela porta!

MARCOLINA - Tá bom...(Vai fechar a porta da esquerda.)

HELENA - Retira-te.

MARCOLINA - O que é que iaiá vai fazê?

HELENA - Não é da tua conta.

MARCOLINA - Mas sinhô véio...

HELENA - Já viram desavergonhada mais teimosa?

MARCOLINA - Iaiá vai pintá o sete, e depois...

HELENA - Hein?

MARCOLINA - Tá bom; depois não quero cumo-chama comigo. (Sai)

Cena V

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Helena

[HELENA] (Toma nas mãos o retrato do padrinho e, depois de contemplá-lo largo tempo, exclama com entonação dramática.) - Ó meu querido, meu venerado ! (Outro tom.) Este retrato está muito bem apanhado... Para macaco falta-lhe... Não lhe falta nada...(Tragicamente) Ó meu venerável padrinho, por que te ausentaste? Não me deixaste outra guarda mais do que Marcolina e minha consciência... Tanto minha consciência como Marcolina são fracas, e meu coração é tão forte! Oh! eu também fazia coro com aquela gente! Oh! eu também te dizia. — Vá pra fazenda! vá pra fazenda! Quanto me pesa haver contribuído também para tua ausência inoportuna... (Vai colocar o retrato onde estava.)

Coplas

I

Dindinho foi para a fazenda:

deixou-me ficar sobre mim...

Queira Deus que não se arrependa

de ser tão imprudente assim!

Por isso que vítima imbele

de um grande amor, pois sou mulher,

se vejo Abel, fujo com ele,

fujo com ele, haja o que houver,

diga dindinho, o que disser

(Dirigindo-se ao retrato.) Por quê, por quê

dindinho, vossam’cê

sozinha me deixou

aqui me abandonou?...

II

O ser honesta e ter bom senso

é minha preocupação;

mas ao romance é bem propenso

meu machucado coração..

Não devo, sei, fugir de casa

de quem me adora como pai;

mas sinto lacerante brasa

que no meu peito ardente cai...

Amor me chama, amor me atrai

Por quê, por quê,

dindinho, vossam’cê

sozinha me deixou,

aqui me abandonou?

- Agora sinto-me forte. Pode vir, Senhor Abel, pode vir! (Apontando para uma trouxa que deve estar debaixo do canapé.) Ah! se ele soubesse que já tenho a trouxa pronta... (Abre a porta do fundo e acena para fora) Ele aí vem... coragem!

Cena VI

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Helena, Abel, depois Marcolina

ABEL (Apertando com efusão as mãos de Helena.) Como estás, meu anjo?

HELENA - Abel, que imprudência!

ABEL - Não me crimines: estou autorizado por ti... (Pausa.) Então? estás pronta?

HELENA (Estremecendo.) - Pronta? para quê?

ABEL - Para... Faze-te agora de esquerda...

HELENA - Não me lembro...

ABEL - Helena?

HELENA - Abel?

ABEL - Estás zangada comigo?

HELENA - Não.

ABEL - Só fala por monossílabos! (À parte.) É a única coisa que sei de gramática... (Alto.) Não temos tempo a perder... Vamos!

HELENA - Meu Deus!

ABEL Hesitas?

HELENA - Não sei...

ABEL (Depois de pequena pausa.) Helena, a ocasião não pode ser mais favorável. Arranja a trouxa... Ainda não arranjaste a trouxa?

HELENA (Estremecendo e olhando de soslaio para trouxa.) - Mas...

ABEL - Pois arranja depressa a trouxa e partamos. Daqui a meia hora temos um trem.

HELENA - Meu amigo...

ABEL - Tens escrúpulos?

HELENA - Ouve cá: não seria melhor revelarmos o segredo do nosso amor a dindinho? (Aponta para o retrato.)

ABEL (Dando com o quadro.) - Ah! pois não! É o que menos custa! (Tirando o chapéu e com toda a cortesia, ao retrato.) Meu caro Senhor Nicolau, participo-lhe que eu e a senhora sua afilhada nos amamos... e fugimos...

HELENA - Não zombes, Abel! Quem sabe o resultado de uma revelação que lhe fizéssemos? Donde não se espera...

ABEL (Enterrando o chapéu na cabeça e em tom resoluto.) - Dize-me cá: já te achaste algum dia em presença de um homem que trouxesse uma resolução?

HELENA - Metes-me medo!

ABEL - Pois olha: eu trouxe uma resolução, entendes? Não te digo mais nada...

HELENA - Abel, se te mereço piedade...

ABEL - Vamos! Arranja a trouxa!

HELENA - Ah! mas não serás capaz...

ABEL - Tu sabes que sou muito atrevido! Quem se apresentou candidato à cadeira de primeiras letras desta freguesia, sem saber pitada de gramática, é capaz...

HELENA (Assustada.) - De quê?

ABEL - Vais ver! (Avança para ela.)

HELENA (Evitando-o, a gritar.) - Marcolina! Marcolina!...

MARCOLINA (Entrando.) - Iaiá chamou?

HELENA (A tremer.) - Nada é... nada é...

ABEL (Descobrindo-se.) - Vejo que me enganei... Supus que sua palavra não voltava atrás... Adeus! Oh! mas ainda me resta um meio...

HELENA _ Qual é?

ABEL - Veremos... (Cobre-se e sai resolutamente.)

HELENA (Depois de pequena reflexão, como que caindo em si.) - Marcolina! Marcolina! vai ter com ele!

MARCOLINA - Com ele quem?

HELENA - Com esse moço que acaba de sair daqui; chama-o!

MARCOLINA - Iaiá!

HELENA - Dize-lhe que já tenho a trouxa pronta...

MARCOLINA - Ué!

HELENA - Vai depressa!

MARCOLINA - Nada! Não me meto em fundura! Não quero cumo-chama comigo. (Música.) Olhe: aí vem os brancos... Vêm pro víspora.

HELENA - Malditos amoladores! Não podem jogar em outro lugar! Vai abrir a porta.

(Marcolina abre a porta da esquerda, vai colocar-se ao fundo da cena. Helena senta-se no canapé.)

Cena VII

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Helena, Marcolina, Pantaleão, Alferes Andrade, Góis & Companhia, Cascais, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá e visitas

(O Alferes Andrade tem trazido grande quantidade de cartões para o jogo do víspora. Trazem a mesa para centro da cena e preparam o jogo.)

CORO — Joguemos por distração,

mas... pelo sim, pelo não,

companheiros folgazões,

paguemos só dois tostões

por cartão tão tão tão tão!

CASCAIS (Aproximando-se de Helena.) - O que é que tem, Dona Heleninha? Tão retirada hoje...

HELENA - Desculpe, se não apareci. O padre bem sabe...

CASCAIS (Em voz muito alta.) Sei! Uma forte enxaqueca... (Baixinho.) Em que ficaram?

HELENA - Não tenho ânimo; é-me impossível abandonar assim a casa de dindinho...

CASCAIS - Está bem, minha senhora: ad impossibilia nemo tenetur...

HELENA - Dê-me um conselho, padre.

CASCAIS - Já lhe dei um conselho; não lhe digo mais nada, porque conheço Nicolau como as palmas de minhas mãos...

HELENA - Aí, padre! Vossa Reverendíssima nunca amou!

CASCAIS - De mínimis non curat proetor...

PANTALEÃO (Sentando à mesa.) - Já vieram notícias do compadre?

CASCAIS - Cá está ele...(Pega no retrato e vai colocá-lo a um canto da cena.)

HELENA - Nenhuma.

PEDRINHO - É sinal que não há novidade.

ALFERES ANDRADE (Impaciente.) Começa o víspora ou não?

BENJAMIM - Ao que parece, o Senhor Alferes dá o beicinho pelo víspora.

ALFERES ANDRADE - E o que lhe importa a você, seu pelintra?

BENJAMIM - Não seja malcriado!

ALFERES ANDRADE (Tirando a espada.) - Até este fedelho!

BENJAMIM (Fazendo-lhe uma careta.) - Uh!

ALFERES ANDRADE (Guardando tranqüilamente a espada.) - Vamos ao víspora. (Hilaridade.) Cada cartão custa dois tostãos.

PEDRINHO - Tostãos! Ah! Ah! Ah!

ALFERES ANDRADE - Tostões! Arre! Não puxo pela espada porque estou com as mão ocupadas. (Procede à separação dos cartões.) Quantos quer, seu vigário?

CASCAIS - Se quer que lhe fale com franqueza, Senhor Alferes: eu não gosto de jogar com o senhor...

ALFERES ANDRADE - Por quê? Por quê?

CASCAIS - O outro dia, no solo, o senhor foi mão três vezes seguidas! Eu não disse porquê, enfim...

ALFERES ANDRADE - Então, cuida que para ser mão só padre? Quantos cartões quer?

CASCAIS - De cá lá dez. Aqui tem dois mil réis. (Recebe os cartões e paga-os — mão lá, mão cá.)

PANTALEÃO - Dê-me outros dez. (Paga e recebe-os.)

PEDRINHO - Quem me empresta dez tostões? (Fazem-se todos desentendidos.) Quem me empresta dez tostões? (Aproxima-se de Helena, que está pensativa.) Ó Dona Helena, a senhora me empresta dez tostões?

HELENA (Despertando de sua cisma.) - Hein?

PEDRINHO (Impaciente.) - A senhora me empresta dez tostões?

HELENA - Empresto. (Dando-lhe uma nota.) Aqui tem dois mil réis; com os outros dez tostões compre cinco cartões para mim. (À parte.) Talvez me distraia.

PEDRINHO (Ao Alferes.) - Dê cá cinco. (Recebe e paga.) Quantos queres, ó Juca Sá?

JUCA SÁ - Dez. (Compram, etc.)

GÓIS (Ao sócio.) - Quantos queres?

COMPANHIA - Quantos quiseres.

GÓIS - E quantos hei de querer?

COMPANHIA - Dez para cada um.

GÓIS - Então dez e dez... dez e dez são... (Calcula.)

COMPANHIA (Contando nos dedos.) - Dez, onze, doze, treze, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte, vinte e um...

GÓIS - Já basta! Dez e dez são vinte. (Ao Alferes.) Dê cá vinte, Seu Alferes Pancada... quero dizer, Andrade.

ALFERES ANDRADE (Tirando meia espada.) - Eu dou-lhe mais são vinte espadeiradas! (Guarda a espada tranqüilamente e dá os cartões.) Dê cá quatro mil réis. (Góis paga. Acham-se todos munidos dos competentes cartões.) Quem mais quer? quem mais quer?

PEDRINHO - Já todos tem... Vamos com isso!

ALFERES ANDRADE (Estendendo muitos cartões que restam diante de si.) - Tomem lugares! (Remexendo os números em um saquinho.) Vamos principiar!

CASCAIS (Ao Alferes.) - Mas, com licença, o senhor não pagou!

ALFERES ANDRADE - Como não paguei?...

PEDRINHO - Ainda não, senhor!

TODOS - Não, senhor! Pague! Pague e não bufe!

ALFERES ANDRADE - Pois vá lá... pela segunda vez! Contra força não há resistência. (Tirando dinheiro.) Cá está! (Marcolina sai pela direita.)

PEDRINHO - Esta nota ainda não está recolhida?

ALFERES ANDRADE - Eu é que te recolho já esta espada no bucho! Falta um tostão! Quem empresta um níquel?

PANTALEÃO - Ninguém.

ALFERES ANDRADE - Pois bem: quem tirar a mesa tem o direito de me exigir um níquel!

BENJAMIM - Mas haverá crédito?

ALFERES ANDRADE - Menino, eu sou comandante de um destacamento!

BENJAMIM - Folgo muito.

CASCAIS - Se a dificuldade é um níquel, dignus est entrare.

(Marcolina, que tinha saído, volta com um saco de milho, do qual distribui um punhado a cada jogador. Os personagens estão colocados do seguinte modo: Helena, no canapé em que já estava sentada, estende seus cartões. No canapé, onde cabem duas pessoas, vai sentar-se também outra moça. Cascais puxa uma cadeira para a boca de cena e coloca seus cartões sobre a cúpula do ponto. A banca é ocupada pelo Alferes, no centro, e nos dois lados por Pantaleão e Pedrinho. Góis senta-se numa cadeira e estende os cartões no chão. O sócio vai buscar o retrato de Nicolau, coloca-o nas costas de Góis, e, de pé, por trás da cadeira, espalha seus cartões na tela do retrato. Benjamim e Juca Sá sentam-se no chão defronte um do outro. Na tábua de engomar devem jogar três ou quatro moças. Os mais distribuem-se por todos os lados. Marcolina vai guardar o saco de milho e, quando volta, coloca-se por trás do canapé.)

ALFERES ANDRADE (Depois de contar o dinheiro que está sobre a banca.) - Vamos! A banca é de vinte e quatro mil e setecentos... Com o tostão que estou a dever, vinte e quatro mil e oitocentos. Pronto.

TODOS - Pronto!

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Sete.

ALGUNS - Sete! (Uns marcam, outros não, — assim por diante.)

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Sessenta e nove... Não! não! Ou é!...

PEDRINHO - Veja no que fica!

ALFERES ANDRADE - Eu não sei se é sessenta e nove ou noventa e seis...

PANTALEÃO - Deixe ver: é sessenta e nove.

CASCAIS - Ligere et non inteligerre, burrigere est.

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Muito obrigado! Oitenta e oito.

ALGUNS - Oitenta e oito.

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) -Vinte!

ALGUNS - Vinte.

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Trinta e seis!

ALGUNS - Trinta e seis.

CASCAIS - Duque.

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Noventa e nove!

PEDRINHO - Olha que é sessenta e seis...

ALFERES ANDRADE - É verdade: sessenta e seis!

BENJAMIM - Terno.

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Dois!

ALGUNS - Dois

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Noventa!

PANTALEÃO - Terno

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Doze!

ALGUNS - Doze.

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Vinte e quatro!

CASCAIS - Terno.

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Quatorze! (Desta vez ninguém responde.) - Quatorze!

CASCAIS - Ciente.

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Sessenta e quatro!

CASCAIS - Venha a boa!

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Trinta (Com força.) Víspora!

TODOS - Hein?

ALFERES ANDRADE (Muito tranqüilamente.) - Quero dizer: duque... (Gritando.) Um!

GÓIS (Levantando timidamente a cabeça e em tom de lástima.) - Terno

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Vinte e três!

PANTALEÃO - Venha a boa!

ALFERES ANDRADE - (Remexendo no saco e tirando um número.) - Oitenta e seis!

PANTALEÃO (Erguendo-se enfurecido.) - Por um ponto! (Batendo o pé com toda a força.) - Caramba!

(Góis & Companhia assustam-se e cai um por cima do outro. Caindo, Góis enterra a cabeça na tela do retrato, que lhe fica em volta do pescoço. Confusão geral, Helena deita as mãos na cabeça. Marcolina tira o retrato, leva-o para dentro e volta.O Alferes aproveita-se da confusão para procurar no saco o número que lhe convém. Só Pantaleão vê esta trapaça.

ALFERES ANDRADE (Achando o número.) - Dez! Víspora! Víspora! Dez! Aqui está! Dez!...

(Chegam-se todos para o Alferes, menos Helena e Marcolina, que voltam a seus lugares.)

Canto

ALFERES ANDRADE — É como se vê: são dez!

TODOS — Dez!

ALFERES ANDRADE (Atirando-se ao dinheiro.)

— São meus os vinte e quatro mil e setecentos

(Guarda o dinheiro)

PANTALEÃO — É muito atrevimento!

Patota fez você!

ALFERES ANDRADE (Puxando a espada.)

— Quem foi? quem foi que fez?

PANTALEÃO — Guarde o chanfalho, ó toleirão!

GÓIS — Não seja tão parlapatão!

CASCAIS — Então? então? Dê-me o que é meu!

ALFERES ANDRADE — Vocês quem pensam que sou eu?

HELENA — Seu Alferes, tal não fará!

PEDRINHO — Entregue esse dinheiro e nada se dirá!

ALFERES ANDRADE — Do meu bolso não sairá!

TODOS — Dê-nos o cobre! Dê-nos já!

ALFERES CORO DE HOMENS

Raspem-se já Se não nos dá

senão, senão, nosso quinhão,

vai haver cá gritamos já:

revolução!... pega ladrão!...

TODOS — Pega ladrão! Pega ladrão!...

GÓIS & COMPANHIA (Colocam-se um de cada lado do Alferes, que tenta fugir.)

— O valentão que tanto arrota,

e que no jogo fez patota,

não leva já tunda de pau,

em atenção ao Nicolau...

ALFERES CORO DE HOMENS

Raspem-se já, etc. Se não nos dá, etc.

TODOS — Pega ladrão! Pega ladrão!

ALFERES ANDRADE — Não sou ladrão, não sou ladrão! (Foge.)

TODOS (Acossando-o.) — Pega ladrão! Pega ladrão!

(Saída ruidosa pela esquerda. Helena e Marcolina ficam sós.)

Cena VIII

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Helena e Marcolina

(Marcolina deita a mesa em seu lugar, arranja os móveis e coloca os cartões sobre a mesa.)

HELENA - Que sempre há de haver disto! Por isso não gosto que se lembrem de jogar aqui o maldito víspora!

MARCOLINA (Arranjando os trastes.) - Também aquele Seu Arfere é um tipo.

HELENA - É um tipão.

MARCOLINA - Fazer trapaça não é nada, mas deixar-se apanhar...

HELENA - Vai para dentro; preciso estar só.

MARCOLINA - Outra vez, iaiá!

HELENA - Deixa-me!

MARCOLINA - Vossem’cê não vai cear com as visitas?

HELENA - Não; quero descansar.

MARCOLINA - Então, vá pro seu quarto.

HELENA - Não quero. (Aparece Cascais.)

MARCOLINA - Aqui está...

HELENA (Sobressaltada.) - Quem?...

MARCOLINA - Sinhô padre-mestre.

HELENA - Ah!

MARCOLINA (À parte.) - Outra ah! Já sortou três!

Cena IX

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As mesmas e Cascais

CASCAIS - Aquele Alferes Andrade é um tipo!

HELENA - Um tipão!

MARCOLINA - Ele arrestituiu o dinheiro, sinhô padre-mestre?

CASCAIS - Só a metade... Que trapaceiro! Vade retro!

HELENA - Deixa-nos a sós, Marcolina. Vai dizer a esses senhores desculpem minha ausência... mas a enxaqueca...

CASCAIS (Em voz mito alta.) - Sim, uma forte enxaqueca...

MARCOLINA - Mas...

HELENA - Vai!

MARCOLINA - Tá bom! (Sai.)

Cena X

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Helena e Cascais

HELENA - Ó padre!

CASCAIS - O que temos?

HELENA - Ainda há pouco não pudemos falar à vontade. Vossa Reverendíssima não calcula o quanto padeço...

CASCAIS - Horribili dictu!

HELENA - Ele esteve ainda agora aqui....

CASCAIS - Quando?

HELENA - Antes do víspora.

CASCAIS - E não... fez víspora?

HELENA - Oh! fiz-me esquecida... Hesitei... Ele saiu... Deixei-o sair, mas sabe Deus com que vontade... Oh!

CASCAIS (À parte.) - Hoje é dia dos ohs! A rapariga já soltou dois...

HELENA - O que diz, padre?

CASCAIS - O que digo é isto... (Prepara-se para dizer uma sentença latina.)

HELENA - Oh! não! não! Fale português.

CASCAIS - Então sabia que eu ia falar latim?

HELENA - Já conheço pela sua cara.

CASCAIS - Então, o que digo é isto: nada de hesitações. deixe-se levar, e o resto fica por minha conta...

HELENA (Com piedade.) - E o dindinho?

CASCAIS - Ora! dindinho que vá plantar mandioca. A senhora ou bem há de querer o dindinho, ou bem o Abel. Ambos juntos é impossível! São incompatíveis. Dois proveitos não cabem num saco...

HELENA - Oh!

CASCAIS (À parte.) - Mais um oh! (Alto.) E daí, quem sabe? Podem muito bem fazer as pazes e meter ambos os proveitos em um saco só. Ande daí; venha cear.

HELENA - Não. Tenho uma tal tristeza n’alma...

CASCAIS - Triste est anima mea.

HELENA (Sentando-se no canapé.) - Verei se posso sossegar.

CASCAIS - Aqui? Não é melhor ir para o seu quarto?

HELENA - Irei depois.

CASCAIS (Querendo retirar-se.)- Nesse caso, Dona Heleninha..

HELENA - Não se vá embora por quem é! Sua presença faz-me bem.

CASCAIS - Favores que não mereço...

HELENA (Recostando-se no espaldar do canapé.) - Estou com um sono... (Fechando os olhos.) Ó padre, se eu dormir, peça aos céus que me enviem um sonho benfazejo; sim?

CASCAIS - Sim (À parte.) Ora! para o que lhe havia de dar!

HELENA (No mesmo.) - Por que não é dindinho amigo de Abel? Se eu pudesse vê-lo em sonhos...

CASCAIS - A quem? Ao dindinho?

HELENA (Enfadada.) - Não.

CASCAIS - O outro...

HELENA - O outro... Se pudesse vê-lo em sonhos... Que mal havia nisso? Padre, peça, peça aos céus que me enviem um belo sonho... Estão-se-me a agarrar as pálpebras... Peça... (Outro tom.) Peça... se não fico mal com Vossa Reverendíssima... (Adormece.)

CASCAIS - Tem graça! pedir um sonho assim como quem pede um charuto! — Oh! Fulano, dá cá um charuto. — Ó céu, manda lá um sonho à Senhora Dona Helena. (Contemplando-a.) Como é bonita! (Dá dois passos para ela, e arrependendo-se, benzendo-se.) Est ne nos induca in tentationem.(Nisto, Abel, que tem aberto lentamente a porta do fundo, entrado e avançado, toca no ombro de Cascais, que se assusta.) Ai!

ABEL - Não se assuste! Sou eu. Cale-se; não a desperte...

CASCAIS - O senhor pregou-me um susto...

ABEL - Não vá agora pregar-me um sermão... Ah! desculpe...

CASCAIS - Essa é boa! Inter amicus non habet geringonça.

ABEL - Silêncio... (Entra Marcolina; Abel oculta-se atrás de Cascais.)

Cena XI

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Helena, Cascais, Abel e Marcolina

MARCOLINA - Então iaiá não quer ir pro seu quarto!

CASCAIS - Psiu... Está dormindo... Não a desperte, senão volta aí a enxaqueca.

MARCOLINA - Mas isto não tem jeito! Dormir aqui!

CASCAIS - Não faz mal.

MARCOLINA - Então, vamos embora.

CASCAIS - Vai fechar a porta. (Marcolina fecha a porta da esquerda. Cascais segue-lhe os movimentos e Abel os de Cascais, de modo que se conserve sempre a salvo dos olhares de Marcolina.) Agora, vamos, passa adiante...

MARCOLINA - Sim, sinhô.... (Sai.)

CASCAIS (À porta do fundo.) Oc opus hic labor est... (Sai.)

Cena XII

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Abel e Helena

ABEL (Contemplando-a.) - Como é bonita, ó minha casta Helena! Vamos! Ânimo, Abel! o Nicolau está na fazenda e o deus do amor te protege!... (Ouve-se fora, à esquerda, o coro seguinte.)

CORO — Olá! que vinho tem na adega

Seu Nicolau!

Pode apanhar-se uma broega,

pois não é mau!

Quem saúde ambiciona

tome, com moderação,

de vez em quando uma mona,

de vez em quando um pifão!

Lá lá lá lá lá lá ...

ABEL (Durante o coro.) - O que é isto? (Vai olhar pelo buraco da fechadura.) Estão ceando. Que grande patuscada! (Deixa a fechadura e ajoelha-se perto de Helena.)

HELENA (Despertando.) - Abel! Tu aqui?!...

ABEL - Sim, sim, o teu Abel!

HELENA - Mas... estarei sonhando?

ABEL (À parte.) - O que diz ela?

HELENA - Sim... é o sonho que ainda agora pedi ao padre...

ABEL - Um sonho! Muito bem! Confunde-me com um sonho... (Helena ergue-se maquinalmente. Abel condu-la à boca de cena.)

Dueto

HELENA — O céu já me enviou

o sonho celestial que o padre suplicou!

Que prazer vou sentir!

Que sonho venturoso Helena vai fruir

JUNTOS — Céus! ai! que sonho, que sonho de amor!

A noite dá-lhe seu mistério...

A noite dá-lhe seu favor...

Sinto um contentamento etéreo!

Ai! que gentil sonho amor!

Céus! ai! que sonho, etc.

HELENA — Repete, ó Abel, e me farás feliz...

Diz — Eu te amo; — diz e rediz!

Pois te quero seguir...

ABEL — Seguir-me, minha Helena?

HELENA — A casa em que nasci, por ti deixo sem pena.

Mas... tu não me abandonarás?

ABEL — Ó minha bela, tal suspeita

do coração não vem direita!

Revoga-a já e já, com beijos ao rapaz!

HELENA — Quantos então!

ABEL — Só três...

HELENA — Na mão?

ABEL — Não, não, não, não; porém no rosto,

de perfeições almo composto,

que vida e morte a um tempo dá!

Oh! dá-me, dá-me beijos!

Satisfaz meus desejos!

HELENA — Se não é mais que um sonho... vá lá...

(Deixa-se beijar.)

JUNTOS — Céus! ai! que sonho de amor, etc.

HELENA — Agora, ó meu Abel...

ABEL — Ó minha Helena, agora...

é fugir

HELENA — Fugir!

ABEL — Sem demora!

não há tempo a gastar...

o trem já vai chegar...

HELENA — Serás meu bom amigo?

ABEL — Sim!

HELENA — Não mangarás comigo?

ABEL — Não!

Um protetor em mim

terás, ó coração!

Amanhã de manhã,

manhã pura e serena,

esplêndida louçã,

Um padre que eu cá sei casar-nos-á, Helena...

Esposos, meu amor, seremos amanhã!

HELENA — Amanhã?

ABEL — Amanhã...

Deixa portanto, Helena, a sala do engomado,

e vem, longe daqui, seguir teu namorado!

HELENA (Apoderando-se da trouxa que está embaixo do canapé.)

— Se não é mais que um sonho... vá lá...

JUNTOS — Céus! ai! que sonho, que sonho de amor!

A noite dá-lhe seu mistério...

A noite dá-lhe seu favor...

Sinto um contentamento etéreo!

Ai, que gentil sonho de amor!

Céus! ai! que sonho, etc.

(Terminado o dueto, Helena deita sobre os ombros uma manta e dispõe-se a sair com Abel, pelo fundo, quando a porta se abre de repente e surge Nicolau que solta um grito.)

Cena XIII

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Os mesmos e Nicolau

HELENA (Caindo, confundida, nos braços de Nicolau.) - Dindinho! Oh! então não era um sonho! (Atira para longe a trouxa.)

NICOLAU (Deixando cair por terra todos os preparos de viagem com que saíra no final do primeiro ato.) - Um sonho! Eu é que estou a sonhar!

HELENA - Vossemecê fez boa viagem, dindinho?

NICOLAU (Procurando ver Abel, que Helena trata de esconder.) - Fiz... fiz... Mas aquele sujeito...

HELENA - Os negros já estão acomodados?

NICOLAU - Já... já... É o senhor...

HELENA - E qual foi o motivo do levantamento?

NICOLAU (Tirando Helena da frente de Abel.) - Ah! é o senhor?! Veio cá decifrar uma charada?

HELENA - Esteve sempre de saúde? Caçou muito por lá?

NICOLAU - Eu cá sei o que cá sei...

HELENA - O que caçou?

NICOLAU - Eu cá sou muito tolo: a dar resposta. (Gritando.) Aqui d’el rei! Aqui d’el rei!...

ABEL - Cale-se! O senhor é um imprudente!

NICOLAU - Eu cá sei o que cá sou! (Gritando.) Aqui d’el rei! Aqui d’el rei!... O senhor Abel... Qual Abel nem meio Abel! De hoje em diante só o hei de chamar de Caim! O senhor Caim não pode dotar a ofendida; pode? Não pode! Logo — aqui d’el rei! Ó de casa!

HELENA - Olhe que estão visitas! (Tira a manta.)

NICOLAU - Ah! estão... Melhor! (Vai abrir a porta.)

ABEL - Vem tudo aí! Sai cá um barulho...

NICOLAU - Eu cá sei o que cá sai! Mas que é da Marcolina?...

Final

NICOLAU (Gritando.) - Vem cá, ó Marcolina! Aqui!

HELENA - Ó que imprudente

ABEL - Vai sair cinza incontinente!

HELENA - Meu Deus! Meu Deus! estou metida em bons lençóis! (Desmaiando. Abel corre para junto dela.)

NICOLAU - Aqui d’el rei! aqui d’el rei! aqui d’el rei! Que dois heróis!

Cena XIV

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Helena, Abel, Nicolau, Pantaleão, Cascais, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá, Alferes Andrade, Góis & Companhia, Marcolina e visitas

(Os homens, menos Cascais, vêm ligeiramente alcoolizados.)

PEDRINHO — Olá! que vinho tem na adega

Seu Nicolau!

Pode apanhar-se uma broega,

pois não é mau!

Quem saúde ambiciona

tome, com moderação

de vez em quando uma mona,

de quando em vez um pifão!

Lá lá lá lá lá lá lá...

PANTALEÃO (Dando com Nicolau.) — O Nicolau!

TODOS — Olá!

NICOLAU (Tragicamente.) — O Nicolau cá está!

(Agarrando Marcolina pelo pulso e trazendo-a à boca de cena.)

— Helena ia fugir co’aquele sedutor!

Responde já, ó Marcolina,

tu, que eras a guarda da menina:

que foi feito de seu pudor?

TODOS — Que foi feito de seu pudor?

(Nicolau deixa, furioso, o braço de Marcolina que foge para o fundo.)

NICOLAU — Sim, seu pudor?

ALGUNS — Ora! o pudor!

TODOS — Ai! o pudor!

Você não deve estar zangado,

pois, de algum modo, é o mais culpado!

NICOLAU — Pois sou culpado?

HELENA (Tornando a si, e aproximando-se do padrinho.)

— Qualquer parente

que, estando ausente

em casa entregue a si deixou

linda afilhada

enamorada

entrar não deve como entrou.

Bem procedido

tinha um marido

assim chegando de supetão:

mas meu dindinho

devagarinho

não entra em casa um solteirão!

TODOS — Mas, ó dindinho

devagarinho

não entra em casa um solteirão!

II HELENA — Que o namorado

desconfiado

observe a bela sem descansar;

pai ciumento

em mau momento

filha querida possa encontrar

noivo zeloso

e cauteloso

queira por gosto ser espião:

mas, meu dindinho

devagarinho

não entra em casa um solteirão!

TODOS — Mas, ó dindinho

devagarinho

não entra em casa um solteirão!

NICOLAU — Bem: mas se meus amigos são,

mandem-no embora a pescoção!

PANTALEÃO — É já! É já... Seu professor,

seu proceder me causa horror!

ABEL — Ir-me daqui sem minha bela!

Então, senhores meus, então,

voltarei noutra ocasião,

e irei com ela! e irei com ela!

TODOS — Vai-te, ó sedutor!

Vai-te, parlapatão!

HELENA (Baixo a Abel.) — Oh! vai-te! meu amor te seguirá...

O meu amor seguir-te-á...

Danados estão!

Vê que olhar tão furibundo!

Capazes que são

de mandar-te pr’outro mundo!

ABEL CORO

Sim! sou fanfarrão! Ó que fanfarrão!

Pois aqui, só num segundo Ó que professor imundo!

sou capaz, verão! O parlapatão

de matar a todo mundo quer matar a todo mundo!

ABEL (Fazendo os gestos indicados nos seguintes versos.)

— Eu sou capoeira!

Não me assustam, não!

Passo um rasteira:

tudo vai ao chão!

Puxo um canivete

pra desafiar!

Ai, que pinto o sete!

Mato dezessete

e vou descansar!...

CORO — Feroz punição

vamos dar ao badameco!

Merece ladrão

ser corrido a peteleco!

(Procuram todos evitar Abel, que se mostra satisfeito de seu triunfo.)

PANTALEÃO (A Abel.) — Ai, não se perfile,

file, file, file!

Não temo a você!

Não se rejubile,

bile, bile, bile,

pois não tem de quê!

CORO (Perseguindo a Abel.) —Ai, não se perfile,

file, file, file, etc.

ABEL — Sou eu que direi: Ai não se perfile

file, file, file!

(Grande disputa em que só não tomam parte Helena e Cascais, que tentam, em vão, apaziguar os ânimos.)

CORO — Feroz punição

vamos dar ao badameco!

Merece o ladrão

ser corrido a peteleco!

Abel retira-se pelo fundo, ameaçando sempre, e Helena desmaia nos braços de Marcolina.)

[(Cai o pano)]