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Abel e Helena/III

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ATO TERCEIRO

QUADRO QUARTO

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O TREM DE FERRO

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Estação da estrada de ferro (espécie de alpendre). À esquerda um balcão em que se vendem vinhos e pastéis. Ao fundo a estrada. Paisagem em perspectiva. Quadro animado; uns bebem e outros comem.

Cena I

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Pedrinho, Benjamim, Juca Sá, Góis & Companhia, Alferes Andrade e povo

CORO — Comer! beber!

Viva o prazer!

Aproveitamos nossa idade!

Brincar! folgar!

Quem não gostar

de ser assim, que vá ser frade.

Beber! comer!

Viva o prazer!

Recitativo

PEDRINHO — O tal Nicolau é da pá virada!

É um trapalhão!

TODOS — Ninguém diz que não!

PEDRINHO — Contrariando o professor,

deu grandessíssima patada,

por isso que irritou um deus chamado — Amor!

Voltas

I

Abel ama a Dona Helena...

Não lhe vejo nenhum mal

TODOS — Abel ama a Dona Helena...

Não lhe vemos nenhum mal!

PEDRINHO — Quer casar-se coa pequena:

isso é muito natural!

Mas o grande Nicolau

não quer dar-lha nem a pau.

Ah! Ah!

Passa fora, Nicolau!

Passa fora, meu patau!

TODOS — Passa fora, Nicolau!

II

PEDRINHO — Por orgulho, que apoquenta,

não quer dar-lha por mulher!

TODOS — Por orgulho, que apoquenta,

não quer dar-lha por mulher!

PEDRINHO — Presunção e água benta

cada qual toma a que quer e...

Quer ele queira, quer não,

marido e mulher serão!

Ah! Ah!

Passa fora, Nicolau!

Passa fora, meu patau!

TODOS — Passa fora, Nicolau!

PEDRINHO - Mas, enfim, o que resolveu o Nicolau?

BENJAMIM - Há casamento?

GÓIS - Fuga?

COMPANHIA - Surra?

ALFERES ANDRADE - Qual fuga nem surra! Não há nada disso!

GÓIS - Corre por toda a freguesia... Mas ao que corre pela freguesia não podemos dar ouvidos...

PEDRINHO - Se aqui estivesse o vigário, diria: Vox populi...

ALFERES ANDRADE - Mas o que corre pela freguesia, seu Góis & Companhia?

GÓIS - Góis & Companhia somos nós dois, eu e este. Eu só sou o Góis.

COMPANHIA - E eu a companhia.

BENJAMIM (Ao Alferes.) - Assim como do senhor pode-se também dizer: Alferes & Companhia..

ALFERES ANDRADE (Tirando a espada.) - Qual é a companhia?

BENJAMIM - Qual há de ser? A durindana...

ALFERES ANDRADE - Ah! (A Góis.) mas vamos: o que é que corre?

GÓIS - Corre por toda a freguesia que, no trem das oito e três quartos, Dona Helena vai para a corte, em companhia de um frade que a tem de vir buscar.

PEDRINHO - Não sei se é isso um maranhão, mas, com certeza, é o motivo pelo qual nos achamos aqui todos reunidos: confessem!

GÓIS - Deixe-se disso! Sempre foi costume encher-se a estação de gente.

PEDRINHO - Eu nunca vi aqui nem você nem seu sócio...

ALFERES ANDRADE - Está visto que, se não viu um, não podia ver o outro...

BENJAMIM - Ora até que afinal o Alferes disse uma coisa quase com graça!

ALFERES ANDRADE (Brandindo a espada.) - Quase!

PEDRINHO - Seu Alferes, quero dar-lhe um conselho.

ALFERES ANDRADE - Dar ou receber?

PEDRINHO - Ouça primeiro e depois esbraveje à vontade...

TODOS - Ouça, seu Alferes, ora ouça!

ALFERES ANDRADE - Vocês tomaram-me à sua conta! Deixem estar que eu os ensinarei!

PEDRINHO - O conselho é este: deite fora a bainha de sua espada.

ALFERES ANDRADE - Por quê? Então não está nova?

PEDRINHO - Não é por isso: é porque de nada lhe serve a bainha! A lâmina não pára dois minutos lá dentro.

ALFERES ANDRADE - Menino! (Brande furioso, a espada, que tem conservada em punho.)

PEDRINHO - Então! O que dizia eu? Lá está de espada em punho!

TODOS - Ah! Ah! Ah!

ALFERES ANDRADE - Protesto! Já estava fora da bainha!... Já estava fora da bainha!...

TODOS - Ah! Ah! Ah!

PEDRINHO - O que vale é que, se o chanfalho não leva muito tempo na bainha, também na mão... É só mandá-lo guardar!

TODOS - Guarde, guarde o chanfalho!

ALFERES ANDRADE (Guardando tranqüilamente a espada.) - Vocês pedem com tão bons modos...

GÓIS - Seu Alferes não é mau rapaz...

COMPANHIA - Tem suas coisas... Ora! quem não as tem?

JUCA SÁ - No fundo é um bom moço...

ALFERES ANDRADE - Pois não se fiem muito! Um dia faço aqui uma estalada! Vocês não me conhecem!

Cena II

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Os mesmos e Cascais

CASCAIS - Dominus vobiscum!

PEDRINHO - Ora aqui está o senhor vigário, que é quem nos pode explicar a coisa.

CASCAIS - Que coisa?

PEDRINHO - O que há e o que não há sobre Dona Helena?

CASCAIS - E o que têm vocês com isso?

BENJAMIM - Interessa-nos a sorte dessa desventurada senhora.

CASCAIS - Já que querem com tanta instância saber da vida alheia, o caso é este...

PEDRINHO - Atenção!

CASCAIS - Dona Helena deixa o lar paterno.

ALFERES ANDRADE - Paterno, não: padrinherno!

BENJAMIM - Bico, Seu Alferes!

ALFERES ANDRADE - Ora bolas! o lar é do padrinho!

PEDRINHO - Mas Dona Helena casa-se ou não se casa com o mestre-escola?

CASCAIS - Nada.

ALFERES ANDRADE - Então o mestre-escola que se casa com ela?

GÓIS - Seu Alferes, não interrompa!

ALFERES ANDRADE (Com força.) - Não me interrompa você!

CASCAIS - Dona Helena vai entrar para um convento.

TODOS - Ah!

PEDRINHO - Mas como pode isto ser? Quem a pode obrigar a meter freira?

COMPANHIA - Ela é maior...

BENJAMIM - É até maior do que eu!

ALFERES ANDRADE - Vocês é que estão interrompendo; não sou eu!

CASCAIS - Quem a pode obrigar? O padrinho! Regis est imperare.

PEDRINHO - Ouvimos dizer que vinha um frade buscá-la; é para levá-la ao convento?

CASCAIS - Adivinhou.

ALFERES ANDRADE (À meia voz.) - Ela, então, vai entrar para um convento de frades?...

CASCAIS - Nada: o frade leva-a para um convento de freiras.

BENJAMIM - Mas por que não a leva o Nicolau em pessoa ao convento?

JUCA SÁ- Em vez de entregá-la a um estranho?

CASCAIS - Vocês bombardeiam-me com perguntas!

ALFERES ANDRADE - Pois bombardeie-nos com respostas!

CASCAIS - Não é um estranho tal: o Nicolau me disse que não tinha ânimo de levar a afilhada para a cidade e lá deixá-la metida entre quatro paredes; confrangia-se-lhe o coração... Pediu-me que me encarregasse disso.

COMPANHIA - Pobre Nicolau!

ALFERES ANDRADE - E então?

CASCAIS - Recusei por dois motivos: primo, não podia abandonar a freguesia. (Tenho medo de uma ex-informata que me pelo) secundo, quem me visse em companhia de uma senhora, poderia fazer um juízo desairoso, tanto para mim como para ela.

ALFERES ANDRADE - E o terceiro?

PEDRINHO - Como o terceiro? Eram só dois!

CASCAIS - Há; ainda há um terceiro.

BENJAMIM - Vejamos.

CASCAIS - Tercio, Dona Helena, me quereria mal, se fosse eu que a levasse para o convento...

ALFERES ANDRADE - Bem pensado. E o quarto?

CASCAIS - Não há mais.

ALFERES ANDRADE - E o quinto?

CASCAIS (Encarando-o) - O quinto é que você é um tolo!

ALFERES ANDRADE - Ora é boa! Podia não haver um quarto, mas haver um quinto...

CASCAIS - Então, pediu-me o Nicolau que lhe lembrasse um alvitre qualquer, que fosse eficaz. Disse-lhe que havia na corte um frade, amigo meu de velha data e pessoa de maior confiança, que viria buscar Dona Helena, se lho eu pedisse por meio de uma cartinha.

PEDRINHO - E o Nicolau aceitou a alvitre?

CASCAIS - Aceitou. O frade entrega-a à superiora do convento, que já está prevenida para recebê-la e competentemente autorizada. Deo Gratia.

PEDRINHO - Isso é inverossímil! Isto só se vê em comédias!

ALFERES ANDRADE - Ou em paródias!

CASCAIS - Pois é a pura verdade. Eu sou como o outro. A Deo veritatis diligens era, ut ne loco quidem mentiretur... Ora adeus! Vocês não sabem disso; estou perdendo meu latim...

ALFERES ANDRADE - Mas é uma maldade roubar uma deidade à sociedade e entregá-la a um frade para levá-la para a cidade! É uma atrocidade!...

CASCAIS - Oh! Senhor Alferes! quanta rima perdida! Quando quiser dizer versos, previna a música: cante-os.

PEDRINHO - Rapaziada, vamos dar uma volta; o trem ainda se demora um quarto de hora.

BENJAMIM - Contanto que não deixemos de ver o frade!

ALFERES ANDRADE - Voltaremos. Vamos, vamos dar uma volta; eu também não sei estar parado.

PEDRINHO - Irá, com a condição de não puxar a espada em caminho...

ALFERES ANDRADE- Vocês tomaram-me à sua conta; vocês não me conhecem!

TODOS - Até logo, senhor vigário.

BENJAMIM (Batendo com liberdade no ombro de Cascais.) - Até logo!

CASCAIS (Tomando-o pelo braço.) - Menino, adolescentis est majore nutu vereri...

BENJAMIM - Fiquei na mesma.

CASCAIS (Recomeçando.)- Adolescentis,,,

TODOS - Vamos! Vamos! (Saem.)

(Alguns têm já se retirado pouco a pouco da cena. A orquestra toca em surdina o estribilho das voltas cantadas por Pedrinho na cena primeira. Cascais fica só.)

Cena III

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Cascais [Só]

[CASCAIS] (Dirigindo-se ao público com toda naturalidade.) - Os senhores hão de estar lembrados daquela cartinha que recebi de meu irmão no primeiro ato. Pois bem: ouçam a resposta. (Tirando uma carta e lendo.)

“Meu mano e prezado amigo,

estimo que passes bem,

pois é o que se dá comigo

e coa comadre também .

Os pequerruchos vão indo,

mas muito mal, caro irmão:

com coqueluche o Clarindo

e o Nho-nhô com dentição”

(Declama.)

— Isto não, intimidades. Inter amicus...(Continuando.)

“Recebi a tua carta

com data de vinte e três

e vou, antes que o trem parta,

respondê-la, como vês.

Não quero que seja diverso

o meu sistema do teu:

como escreveste-me em verso,

em verso respondo eu.

O Abel, teu recomendado,

há dias pra lá voltou;

foi demitido (coitado!)

do cargo que abiscoitou.

Não pode cantar vitória,

nada pode conseguir;

que ele te contasse a história

é muito de presumir...

Se tirá-la por justiça

decerto a pequena vai,

de volta de alguma missa,

que só é quando ela sai.

Que ao tutor ninguém dissuade,

tenho de mim para mim,

pois quod natura dat...

não sei se sabes latim.

Não posso ser mais extenso:

vou minha missa dizer;

ex-informata suspenso,

caro irmão não quero ser.

Lembranças cá da comadre,

não só a ti, como aos mais,

teu irmão e amigo, o Padre

Bernardo Teles Cascais”

(Declama.) — Há um post-scriptum, mas não vem ao caso. Enfim... (Lendo.)

“Post sciptum: É um dos maiores

o calor que faz aqui

por isso em trajos menores

desculpa escrever-te a ti”.

(Guardando a carta.) - Esta resposta, tinha-a eu escrito ontem. Ia deitá-la no correio, quando encontrei o Nicolau que me pediu um meio para mandar a afilhada para o convento. Lembrei-me, então, de que o Abel poderia muito bem passar por frade barbadinho, e arranjei uma farsa... Em vez de mandar esta carta a meu irmão, escrevi uma outra a Abel, dizendo que se apresentasse hoje, no trem que vai chegar, com o competente disfarce, e... O resto adivinha-se... Não me posso sair bem desta brincadeira: o Nicolau há de cair-me em cima como uma bomba, bumba! Mas, com meios brandos e suasórios, tudo conseguirei...

Cena IV

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O mesmo e Pantaleão

PANTALEÃO - Andava à sua procura, padre. Como passou?

CASCAIS - Doente.

PANTALEÃO - Doente?

CASCAIS - Ou velho: senectus est morbus. O que deseja?

PANTALEÃO - Falar-lhe sobre este maldito acidente...

CASCAIS - Da pequena?

PANTALEÃO - Sim.

CASCAIS - O que quer que lhe faça? Mortus est pinto in casca.

PANTALEÃO - É preciso que o compadre se esqueça de mandar Dona Helena para o convento.

CASCAIS - A boas horas lembra-se você disso...

PANTALEÃO - Como assim?

CASCAIS - Você pintou...

PANTALEÃO (Formalizado.) - Eu não pinto, padre!

CASCAIS - Não se precipite! Não quero dizer que o senhor pinta o padre! — Você pintou... ao Nicolau todo este negócio com as mais negras cores e, como delegado da instrução pública, arranjou a demissão do pobre rapaz; Dona Helena há de agradecer-lhe...

PANTALEÃO - E quem se encarregou de chamar o frade? Dona Helena há de agradecer-lhe!

CASCAIS - Não estejamos a trocar palavras, Senhor de los Rios; resolvamos alguma coisa!

PANTALEÃO - O que há de ser?

CASCAIS - Em vindo o Nicolau, chamemo-lo de parte...

PANTALEÃO - E...

CASCAIS - Toca catequizá-lo! Tais considerações faremos...

PANTALEÃO - Tais argumentos apresentaremos...

CASCAIS - Aí vem ele e a pequena. (Afastam-se.)

Cena V

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Os mesmos, Nicolau e Helena

NICOLAU (Sem dar com a presença de Cascais e Pantaleão.) - “Oh! então não era um sonho!” É esta frase, Helena, é esta frase que espero que você me explique!

HELENA - Dindinho!

NICOLAU - Você é uma sonsa! pode vir com esses modos de santinha de pau carunchoso: não tomo nada!

HELENA - Dindinho!

NICOLAU - Não tomo nada, ouviu?! Não tomo nada!...

HELENA - Pois bem, já que não toma nada, tome lá este pião à unha...

NICOLAU - Hein?

HELENA - De hoje em diante quero viver sobre min!

NICOLAU - Olé!

HELENA - Ah! supõe que não sei que estou emancipada por lei?...

NICOLAU - Olá!

HELENA - Até hoje tenho passado por tola!

NICOLAU - Olé!

HELENA - Mas de hoje em diante hei de mostrar quem sou!

CASCAIS (A Pantaleão.) - Scintilla excitavit incendio!

NICOLAU - A Senhora Dona Helena como deita as manguinhas de fora!

HELENA - Onde me levam? Para que me obrigam a arrumar bagagem? O que venho fazer à estação do caminho de ferro?...

NICOLAU - Não é da sua conta!

HELENA - Tome sentido, dindinho!

NICOLAU - Olé!

HELENA - Vossemecê não me conhece!

NICOLAU - Olá!

PANTALEÃO (Intervindo.) - Então! Então!... O que é isto, compadre?...

CASCAIS (Idem, à Helena.) - O que está fazendo, Dona Helena? (Baixinho.) Não grimpe! Obedeça passivamente... Ele quer mandá-la para um convento! Vá, vá sem respingar.

HELENA - Mas...

CASCAIS - Fie-se em mim: amicus certus in re incerta cernitur.

NICOLAU - Desavergonhada! Faltar-me ao respeito!

CASCAIS (Deixando Helena e dirigindo-se a Nicolau.) Dona Helena acaba de significar-me seu arrependimento...

HELENA (Humildemente.) - É verdade, dindinho: esqueci-me por um momento do quanto lhe devo. Perdoe.

PANTALEÃO - Perdoe.

CASCAIS - Perdoe.

HELENA - Perdoe.

NICOLAU (Sombrio.) Perdôo.

Coplas

I

HELENA — Não sou culpada, ó meu dindinho:

nunca fui mais pura que sou:

não me perdeu do bom caminho

este amor que cá dentro entrou.

Ai! tomo o céu por testemunha,

queira ou não queira acreditar:

quando eu ia fugir, supunha

dormisse a bom dormir, sonhasse a bom sonhar!

Se, por um sonho só, retira-me a amizade.

o que fará então pela realidade?...

II

Nos sonhos dão-se circunstâncias,

que se não podem revelar...

Eu já sonhei — que extravagâncias! —

eu já corei, mesmo a sonhar...

Fosse punido quem as sonha:

Helena, onde estarias tu?

Ou em Fernando de Noronha,

ou presa em Catumbi, ou morta no Caju.

Se, por um sonho só, retira-me a amizade,

o que fará pela realidade...

NICOLAU (Depois de pequena pausa.) - Fiquei na mesma.

CASCAIS (A Pantaleão.) - Este seu compadre é muito tapado!

PANTALEÃO (Com acatamento, a Cascais.) - Não costumo desmentir os ministros de Deus...

CASCAIS - Ó seu Nicolau, diga à menina que vá sentar-se àquela sala. Nós temos que falar-lhe em particular...

NICOLAU - A quem? a ela?

CASCAIS - Nada; a você. (A Pantaleão, enquanto Nicolau acompanha Helena, que se retira para a direita.) - É preciso resolver o homem a abdicar da idéia do convento.

PANTALEÃO - Faremos o possível.

CASCAIS (Á parte.) - Se terminar tudo na santa paz do Senhor, minha responsabilidade ficará salva.

Cena VI

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Cascais, Pantaleão e Nicolau

NICOLAU (Voltando.) - Sim, senhores: a rapariga tem me feito suar o tapete... quero dizer, o topete!

PANTALEÃO - A culpa é sua!

CASCAIS - Pode dizer: Mea máxima culpa.

NICOLAU - Então, por quê?

CASCAIS - Decerto! Quem é que se lembra de mandar uma rapariga para o convento em pleno 1877!

NICOLAU - Lembro-me eu! Oh! deixem-na estar, deixem-na estar, que o convento há de ensiná-la! uma rapariga que sabe o código! Depois, eu cá tenho minhas tenções...

PANTALEÃO - Ah!

NICOLAU - Passados cinco anos, tiro-a do convento. Há de vir de lá um modelo de virtudes...

CASCAIS - Há de vir de lá fazendo muito boa goiabada...

NICOLAU - Venha como vier: virtuosa ou quituteira, ou quituteira e virtuosa ao mesmo tempo... (Observando a impressão deixada por suas palavras nas fisionomias de Pantaleão e Cascais.)... caso-me com ela!

PANTALEÃO - Hein?

CASCAIS - Casar o padrinho com a afilhada!

PANTALEÃO - Ah! Ah! Ah!

CASCAIS (Benzendo-se.) - Abrenuntio!

PANTALEÃO - Ah! Ah! Ah! que lembrança!

CASCAIS - Pois você não vê que tem mais do dobro da idade de sua afilhada?

NICOLAU - Mas daqui até lá, ela já tem vivido mais cinco anos.

CASCAIS - E você fica parado durante todo esse tempo?

NICOLAU - É verdade...

PANTALEÃO - Vamos, vamos! Pense bem, compadre!

CASCAIS - Não contrarie o amor de Dona Helena!

PANTALEÃO - A liberdade, compadre, a liberdade!

Terceto

PANTALEÃO — Hoje, que o tempo é só de liberdade,

da lei do elemento servil.

tu vais meter num claustro da cidade

Helena, a moça mais gentil!

CASCAIS — Poupe à menina essa desgraça!

PANTALEÃO — Tem dó de Dona Helena.

CASCAIS — Um convento é prisão

onde não morre o coração

NICOLAU — O que vocês querem que eu faça?

PANTALEÃO e CASCAIS — Hoje, que o tempo é só de liberdade,

da lei do elemento servil.

tu vais meter num claustro da cidade

Helena, a moça mais gentil!

NICOLAU — Eu vou meter num claustro da cidade

Helena, a moça mais gentil!

CASCAIS — Se p’rum convento a pobre entrar

há de bem cedo se finar...

PANTALEÃO — E se acaso morrer a Dona Helena,

o responsável será tu,

pois és tu só quem a condena!

CASCAIS — Sim, é você! pobre pequena!

Seu Nicolau, há de sentir

fatal remorso, atroz pungir!

PANTALEÃO — Ouve lá, de um amigo velho,

salutaríssimo conselho:

I

— Já os conventos não têm crédito,

não dão exemplo de moral;

Diz a Gazeta de Notícias

que de um dos tais (não sei de qual)

saltaram três freiras intrépidas

— caramba! — os muros do quintal!

II

Chame o Abel; não seja ríspido,

e deixa correr o marfim...

Com o casamento e sem escândalo,

há de ter tudo airoso fim.

Se tal fizer, cheios de júbilo,

hemos de dançar todos assim! (Dança.)

Nicolau,

para que hás de ser assim tão mau?!

Juntos

PANTALEÃO e CASCAIS NICOLAU

Nicolau Não sou mau!

para que hás de ser assim tão mau?! Nunca fui, não sou, nem serei mau!...

CASCAIS — É bom refletir bem!

PANTALEÃO — Convém pensar melhor!

CASCAIS — A reflexão é o que convém...

PANTALEÃO e CASCAIS — O casamento é dos males o menor...

reflita bem, reflita bem!

PANTALEÃO — Ele hesita...

CASCAIS — Ele hesita...

PANTALEÃO e CASCAIS — Ó que padrinho austero!

(Examinam Nicolau, que reflete profundamente.)

NICOLAU (Decidindo-se.) — Não quero...

PANTALEÃO e CASCAIS — Se você manda a moça pro convento,

arrepender-se-á! É natural

que ela perca moral cento por cento

saltando o muro do quintal...

NICOLAU — Se eu mando a rapariga pro convento,

não hei de arrepender-me! É natural

que ela ganhe em moral cento por cento;

não salte o muro do quintal...

(Dirigindo-se, ora a Cascais, ora a Pantaleão.)

— Dessas razões, padre, compadre,

a mim bem pouco se me dá!

Freira há de ser, compadre, padre!

Disse e direi, ora aqui está!

Há de ser freira! há de ser freira!

PANTALEÃO — Isto é que é: queira ou não queira!

PANTALEÃO e CASCAIS— Teimar assim

desta maneira

eu vejo, enfim,

a vez primeira!

Juntos.

PANTALEÃO e CASCAIS NICOLAU

— Se você manda, etc. — Se eu mando, etc.

NICOLAU (A Pantaleão.) - Compadre, ponha o negócio em si: se sua filha estivesse no lugar de Helena, você não a mandava para o convento?

PANTALEÃO - Minha filha! Deus me livre! Minha mulher, vá...

NICOLAU - Mas você mesmo foi que me aconselhou...

PANTALEÃO- Refleti.

CASCAIS - Mas, enfim, em que ficamos?

PANTALEÃO - Sim.

NICOLAU - Como?

CASCAIS - A menina vai?

PANTALEÃO - Vai, compadre?

NICOLAU- Com padre não; vai com frade.

CASCAIS - É sua última palavra?

NICOLAU - É minha última palavra!

CASCAIS (Avança solenemente para Nicolau e desconserta-se.) - Diabo! Não me lembra um trecho latino a propósito...

Cena VII

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Os mesmos, Alferes Andrade, Góis & Companhia, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá e povo

PEDRINHO - Está aí o trem!

BENJAMIM - Lá vem! Lá vem!

CASCAIS - Já o trem?

TODOS - Já! O trem! Ele aí vem!, etc.

CORO GERAL — Co’alvoroço o

trem de ferro

corre já

para cá!

(Ouve-se ao longe o silvo da locomotiva.)

Eu já ouço-o!

Ai! que berro!

Sem tardar

vai chegar.

Da cidade

vem um frade

receber

uma mulher!

Ei-lo já;

já parou;

aqui está;

já chegou!

(Durante os últimos versos, um trem de ferro vem, da esquerda, parar em frente à estação. Entre alguns passageiros que saem e desaparecem, desce à cena Abel, disfarçado em frade. Barbas longas e grisalhas, óculos e capuz. Cercam todos o frade. Durante a cena seguinte, movimento de passageiros, etc.)

Cena VIII

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Os mesmos e Abel

CORO — Ó reverendo, este povinho

só para vê-lo é que aqui está,

pois dantes nunca um barbudinho

por cá passou, passou por cá.

Tirolesa e coro

I

ABEL — Eu, antes de mais nada, participo,

caríssimos irmãos, que sou um tipo!

Ai! tenho muito horror ao cantochão...

Pesar de frade ser, sou muito folião!

— Sou}

ABEL e CORO } muito folião, pesar de frade ser!

—É }

ABEL — A cantar e a dançar tudo aqui quero ver!

CORO — A cantar e a dançar ele aqui quer nos ver!

ABEL — Lá lá itu, lá lá lá lá!

CORO — Lá lá itu, lá lá lá lá!

(Dança geral e desenfreada.)

II

ABEL — O meu sistema a todo mundo espanta;

mas quem não gosta de pintar a manta?

Quem assim fala hipócrita não é!

A mesmíssima coisa eu fiz em Taubaté!...

— Sou}

ABEL e CORO } muito folião, pesar de frade ser!

—É }

ABEL — A cantar e a dançar tudo aqui quero ver!

CORO — A cantar e a dançar ele aqui quer nos ver!

ABEL — Lá lá itu, lá lá lá lá!

CORO — Lá lá itu, lá lá lá lá!

(Repetição da dança.)

CASCAIS (Baixinho a Abel, apertando-lhe a mão.) - Olha que esse modos não são próprios de um frade!

ABEL (No mesmo.) - Foram copiados do natural...(Alto.) Il signore Nicolau? Onde está Il tutore de la fanciulla?

NICOLAU (Que tem ido comprar bilhetes de passagem.) - Estou aqui, Reverendíssimo, estou aqui! Tome Vossa Reverendíssima os cartões de passagem e esta carteira com que muito mal desejo gratificar seus bons serviços.

ABEL - Grazia. Aceito i biblietti, ma il denaro no. Noi altri, ministri de l’altare, siamo tropo... tropo... Io parlo mal is portoghese... siamo tropo ... desinteressati.

NICOLAU - Oui, monsieur, merci

CASCAIS (À parte.) - Aquilo será tudo, menos italiano.

ALFERES ANDRADE (A Pedrinho.) - Aquilo é que é língua! O italiano, oh! o italiano! La dona é mobile qual piuma al vento!

ABEL - Má onde está metida la sorella que devo conducire al claustro? (Apontando para uma mulher do povo.) É questa dona?

NICOLAU - Nada.

ABEL - É questa?

NICOLAU - Nada, nem questa também. Minha afilhada está ali; vou buscá-la. (Saída falsa.)

(Ouve-se ao longe a locomotiva.)

CASCAIS - E não há tempo a perder, porque já se ouve o silvo do trem que os deve levar.

ABEL (Baixo a Cascais.) - Então? que tal estou?

CASCAIS (A Abel.) - Muito bom, homem; você está muito bom! Mas o italiano está melhor.

ABEL (A Cascais.) - Que italiano? (Procurando em volta de si.) Ah! Sim! o italiano que eu falo! (Outro tom.) Ainda nos havemos de ver.

CASCAIS - Assim o espero.

NICOLAU (Voltando.) - Vem, minha filha, vem.

ABEL (Contemplando Helena, que ainda não aparece ao público.) - Ah! ecco la sorella! Oh! cielo, si giovani, cosi linda, giá desterrata em um claustro! Povera fanciulla! Má, enfim, andiamo! andiamo presto. (Aparece Helena.)

CASCAIS (Á parte.) - Finis coronnat opus!

Cena IX

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Os mesmos e Helena

Final

CORO — Ela aí vem! É ela!

Ela vem para cá.

Meu Deus, como é bela!

Mas tão triste está!

(Durante este coro, chega outro trem, em sentido contrário ao primeiro. Movimento de passageiros, etc.)

HELENA — Ouvi, suponho, voz amiga,

que nunca mais me sai de cá. (Do coração.)

NICOLAU — Para o convento é seguir já,

com este frade, ó rapariga!

Bem caro vai pagar-me o mal que me causou.

ALGUNS — O mal que lhe causou!

HELENA — Ir pro convento! Não! Jamais! Eu lá não vou!...

(Gesto de impaciência de Cascais.)

ABEL — Io lá parlaré!

PEDRINHO — Que lhe dirá o frade?

ALGUNS — Sim, sim! que lhe dirá?

ABEL — Il cielo inspirerá!

(Baixinho a Helena.)

Pois não viste que este frade

era o repelido Abel?...

HELENA (À parte, comovida.) - Abel?...

ABEL — Vem comigo pra cidade;

segue o noivo fiel.

HELENA (Com escrúpulo.) — Abandonar o meu dindinho!

NICOLAU — Há de partir, que o quero eu!

PANTALEÃO e CASCAIS — São só três horas de caminho...

HELENA (Á parte.) — Vou por meu gosto e pelo seu!

TODOS — Vá já, Dona Helena;

nos dá muita pena;

mas vá!

Vá já!

NICOLAU — Então? Vá pro convento!

Assim quero eu!

ALGUNS — Ó que grande judeu!

PEDRINHO — Deus a leve a salvamento!

CASCAIS (À parte.) — Muito me hei eu rir...

ALGUNS — O frade é já seguir!

PANTALEÃO — Vão, embarquem num momento:

Vai partir o trem!

ABEL E HELENA — É já partir pro convento!

Obedecer convém!

CORO — Vá para convento,

já neste momento!

Vá para o convento!

Vá com vento em popa! Já!

Vá! vá! vá! vá! vá!

(Durante o coro, Abel sobre para o trem com Helena, e aparece com ela a uma portinhola.)

Recitativo

ABEL — Ó Nicolau, triste papel

fizeste em cena:

cá levo Helena...

Eu sou Abel!

(Tira o capuz, as barbas e os óculos. Assombro geral.)

UNS — Segue Helena, o professor;

segue, segue o teu amor.

OUTROS (A Nicolau.) — Que maldito professor!

Vingá-lo-emos, senhor!

(Uns riem e outros estão indignados. O Alferes puxa pela espada e corre atrás do trem. Nicolau cai fulminado por um ataque de apoplexia. Confusão.)

[(Cai o pano)]

FIM