Adeus! (Cruz e Sousa, grafia de 2008)
Zulma, adeus! adeus, Zulma! O derradeiro abraço, o derradeiro beijo, e adeus!
Os primeiros esmorecimentos do dia descem e um crepúsculo de cismas, de brumas misteriosas, turva as claridades bizarras e palpitantes de há pouco.
É o crepúsculo da noite — velha saudade dos tempos, recordação fugidia das eras primitivas, spleen das almas, — acendendo no alto das colinas remotas e enternecedoras do Passado todos os faróis apagados das reminiscências, fazendo cintilar claros todos os pressagos santelmos das Navegações velejantes, outrora, pelos países da Ilusão!
Adeus, Zulma! O derradeiro abraço, o derradeiro beijo, e adeus!
As inclementes amarguras do Mundo vieram já gralhar agoirentamente dentro da necrópole sombria deste coração... E tu foste a maior dessas amarguras, que em forma de ave sinistra gralhaste os teus dolorosos agoiros.
Através dos dilaceramentos da Vida, das tortuosidades do Desejo, das inquietações do Espírito, uma tarde — bela e majestosa tarde foi essa! —cheia de silêncios e sombras, vi pela primeira vez o teu perfil fascinativo, que o ritmo nobre de uma estranha música de perfeições e graça sonorizava serenamente.
Pareceu-me que desconhecida Divindade inspirava e iluminava a tua beleza, envolvendo num sacrário de estrelas a tua castidade branca.
Uma auréola de exclamações cercava-te, vibrantemente, em assombros admirativos, em hinos e aleluias aclamatórias.
Coleantes, sutis, de rastros, iam as minhas impaciências, os meus frêmitos, o meu anseio profundo, formando ígneo terreno vulcânico, um chão de chamas, por onde tu passavas indiferentemente, alta no esplendor translúcido da beleza.
Era, para mim, surpreendente revelação, o tipo extravagante, irreal, da tua não sonhada formosura — tipo de pureza e pompa brava, evocando, trazendo consigo os segredos grandes dos Vedas.
Qualquer coisa de prodigioso fazia flamejar os teus olhos negros, negros, negros até à fadiga, até ao pesadelo, até à saciedade, negros, intensamente negros até ao tenebroso requinte da cor negra, até aos profundos tons exagerados, até a uma nova e inédita interpretação visual da cor negra.
E os meus sentidos sentiam, por atração irresistível, os atritos, os contactos da tua pele embalsamada de ambrosia, quentemente impressionante; corria pelos meus nervos uma volúpia doce e morna, que no entanto me fazia estremecer e tiritar de inexplicável gozo, como por calafrio de imenso medo...
Mas, ah! que tentadora beleza, abençoada ou maldita, eras, então, tu, Zulma, que assim me deixavas extático, dominado, vencido, sem quase ação no pensamento e só ação e chama e febre e transfiguração no gozo? Onde era o teu Céu, onde era o teu Mar, onde era a tua Terra ou o teu Inferno — deusa dos Astros, deusa das Ondas, deusa dos Bosques, deusa infernal?!
Onde era?! Não sei! Só o que sei é que a fascinação produzida pela tua boca acesa em lavas de desejo, pelo negror de caos bíblico dos teus olhos, pela cisterna farta de leite dos seios verdemente virgens e pulcros, pela cristalização de todas as tuas formas, fez florescer em mim a Vinha exuberante e ardente da Paixão, cujos frutos, afinal, me embriagaram de tal modo, tão violentamente me arrebataram, de tais travores tóxicos me angustiaram e acidularam a alma, de tão finos dolorimentos e agoniados transes a laceraram, que eu parto hoje para sempre de ti desiludido, deixo, abandono, para nunca mais! a amplidão larga, tépida e magnética dos teus braços, a cuja sombra mancenilhosa adormeci descuidoso, sonhei e acordei agora fundamente envenenado por letais narcotismos...
Fugi de ti, desiludido, fatigado de percorrer as estepes da tua alma, cansado de girar absorto em torno dos enigmáticos caracteres eigpcíacos dos teus caprichos indomáveis, do sepulcro tremendo onde jaz a múmia fria do teu Afeto.
Não posso mais entregar-me ao cilício martirizante de tua insana volubilidade, aos calvários tantálicos da tua sede egoística e vingativa de gélidos e apunhalantes desdéns, aos teus sorrisos negros, aos teus beijos negros, ao teu coração sombriamente morto como um relógio parado numa casa deserta, aos teus encantos sinistros, a todos os teus feminis e sedutores encantos sinistros...
Parto, sigo, vou-me para sempre embora!
A tua voracidade de Águia famulenta fez-me delirar de incertezas, de dúvidas e blasfemar dessa beleza augusta, do bronze majestoso onde por certo algum demônio inquisitorial e régio modelou satanicamente a encarnação soberana dessas formas.
Adeus, Zulma! Levo no coração a vertigem sanguinolenta daqueles desesperos alucinantes do ciúme; e no lábio ansioso, anelante, a palpitação inquieta deste adeus supremo, torturado, aflitivo; deste adeus soluçado num crepúsculo amargo; deste adeus de vôos solitários, cujas asas, como as de um pássaro torvo de erradias e taciturnas tristezas, voam longe, para além das lembranças, para além das saudades, para além das recordações e reminiscências antigas...
Adeus! Adeus! Adeus!
Fujo arrebatadamente de ti, levando para desertos áridos, sáfaros, longínquos, às regiões do Esquecimento, lá, muito para lá da monstruosa Terra, o único talismã precioso que me deste — a Dor!
E, como para perpetuar a comoção crepuscular deste adeus, destas transfiguradas lágrimas de adeus, todo o infinito nirvânico deste adeus, nesta hora poente em que os Céus começam a revestir-se dos soturnos e solenes ensombramentos da Noite, eu irei erigindo, levantando com essa Dor, com os seus despedaçamentos, dilaceramentos e gritos, as torres de Mistério e Melancolia dos negros castelos maravilhosos da Paixão, em cujos soberbos, longos e silenciosos paços constelados as nossas duas almas erraram letárgicas, sonâmbulas, acorrentadas pelos Estigmas imponderáveis dos Sentimentos humanos e em cujos terraços altos e desolados tanta vez me debrucei aterrado e vencido, nas fundas horas da fadiga, da saciedade e das alucinações do Tédio, sentindo em torno rugir, bramar temporais, trovões, fora, surda e confusamente na Natureza, os desgrenhados invernos lívidos...