Alguns Homens do Meu Tempo/Antero de Quental
I
OS SONETOS
Não ha, talvez, em toda a litteratura portugueza uma individualidade mais distincta, mais original, mais á parte, que a d'este homem.
Não é simplesmente como escriptor, como litterato, como auctor de livros, que Anthero de Quental tem de ser considerado.
Para bem estudar esta figura singular, para a vêr á luz que lhe é propria, para a comprehender sob todos os seus aspectos varios, é indispensavel alguma coisa mais do que a faculdade critica, applicada á litteratura, é necessaria a comprehensão profunda e clara de todas as causas que determinam esta phase,―de certo transitoria, de certo temporaria―de nihilismo mental, em que se debatem os artistas mais vibrateis e delicados, as almas mais sensiveis e morbidamente agitadas d'este fim de seculo, a um tempo tragico e banal.
Como podia eu, pois, conseguir o que imagino que só conseguiria um critico no genero especial de Bourget, por exemplo, um critico que recebe as influencias germanicas e as transmitte, modificadas pela sua imaginação e pela sua rasão latinas; um critico cosmopolita e capaz de comprehender todos os estados d'alma e todas as faculdades caracteristicas das mais diversas raças?
A critica tem acompanhado o movimento progressivo das sciencias, e tem-se modificado e transfigurado ao influxo d'ellas.
Sem fallarmos nos criticos da Allemanha, muito menos accessiveis para nós e muito menos comprehendidos por nós, sigamos a evolução ascendente que a critica litteraria tem tido em França, e veremos como ella se tornou hoje uma sciencia completa, para a qual forneceram dados, elementos, observações e experiencias todos os ramos do saber humano, cada dia mais amplo.
Que longe nós estamos d'aquella boa critica, modesta e facil, em que a obra de arte era simplesmente julgada segundo as regras formuladas por Aristoteles, em que o livro, o drama, o poema se consideraram perfeitos ou defeituosos, conforme se cingiam aos preceitos da rhetorica e da poetica consagradas, ou se afastavam indevidamente d'elles!
Diderot teve no seculo XVIII, a maravilhosa intuição do que poderia vir a ser a critica; essa intuição, vaga ainda, illumina, todavia, de luz inesperada as suas formosas improvisações, os seus devaneios scintillantes de verve sobre a arte do seu tempo.
Villemain, mais tarde, afastando-se de todos os que pretendiam arrogar-se em face do escriptor os direitos de bons criticos, e que não conseguiam ser mais do que rhetoricos importunos, relaciona pela primeira vez as litteraturas com os outros productos sociaes d'uma dada epoca; faz perceber as reciprocas influencias, que actuam em raças diversas e transformam lentamente uma civilisação determinada; mostra claramente, no seu estylo de erudito ainda subjugado pelos moldes classicos, o extraordinario poder com que as lettras imperam na politica, e a politica nas lettras, e o modo indirecto, mas poderoso, pelo qual a arte se torna um elemento de revolução, e da revolução surge e se levanta uma nova arte; revela, emfim, a força que as idéas teem sobre a acção, e a ineluctavel energia com que a acção limita ou modifica o imperio das idéas...
Sainte Beuve, adoptando muitos dos pontos de vista de Villemain, accrescenta-lhes tudo que póde tornar este methodo mais vivo, mais luminoso, mais humano, tudo o que póde dar movimento e graça ao corpo um tanto inteiriçado e hirto do eloquente professor do Curso de litteratura.
A critica de Sainte Beuve é uma creação! Na obra d'arte vê a época em que ella surge e o homem que a produziu. A anedocta elucidativa, o commentario suggestivo, o estudo minucioso do caracter do escriptor, o meio em que elle se moveu, a influencia directa, ou indirecta, que esse meio exerceu em todas as circumstancias caracteristicas da sua vida e no seu modo particular de encarar as coisas e os homens,―tudo concorre para esclarecer o critico eminente, a tudo dá relevo e côr o seu estylo fino, flexivel, todo em cambiantes, todo em linhas flexuosas, que penetra o assumpto, que o segue nos seus meandros mais caprichosos, nos seus labyrinthos mais emmaranhados, que se cinge a elle nas suas ondulações mais particulares, que o illumina de todos os lados e por todas as formas; malleavel, sagaz, levemente sceptico, inimigo sempre do absoluto de todas as doutrinas, do dogmatismo de todas as formulas.
O grande critico da nossa raça n'este seculo é com toda a certeza Sainte Beuve. Os que vieram depois d'elle, deram a formula mathematica, precisa, da doutrina que elle praticára e descobrira com uma ligeireza, uma elegancia, um gosto nunca mais realisados.
Taine acceitando a herança de Sainte Beuve, foi alem do que elle era, um naturalista que levou para os estudos d'arte o seu forte methodo scientifico, que verifica, prova, experimenta e conclue depois. A isso deve o ser considerado e com justiça o mestre da nossa geração. Taine póde ter discipulos, Sainte Beuve Taine acceitando a herança de Sainte Beuve, foi alem do que elle era, um naturalista que levou para os estudos d'arte o seu forte methodo scientifico, que verifica, prova, experimenta e conclue depois. A isso deve o ser considerado e com justiça o mestre da nossa geração. Taine póde ter discipulos, Sainte Beuve podia ter apenas admiradores. A litteratura aos olhos de Taine é, como tudo o mais, um producto fatal da raça, do meio, do momento, modificado n'este ou n'aquelle sentido, mas modificado apenas, pelo temperamento particular do artista.
A ordem, o equilibrio, a harmonia que existe em toda a natureza, achou-as elle na esphera do pensamento humano, n'esse grande mundo da arte que falsamente nos parecia caprichoso, cahotico, arbitrario, sem leis que o dominassem, sem causas a que estivesse fatalmente subordinado.
Comprehende-se bem como este ponto de vista―que outros tinham achado, mas que elle formulou scientificamente―revolucionasse a noção da critica, e lhe desse, ao mesmo tempo, harmonia, amplitude e grandeza.
D'este modo vê-se bem que em cada livro que lêmos, em cada obra por meio da qual um forte temperamento de artista, ou um grande cerebro de pensador se nos manifesta, está como que indicada a gradação successiva de todas as civilisações que, justapondose umas ás outras e desdobrando-se umas das outras, produziram o momento historico, a phase sentimental ou intellectual de que esse livro é involuntariamente echo, repercussão e reflexo.
A lei que liga estreitamente entre si todos os phenomenos da Vida, que explica o encadeamento fatal de todas as manifesções do pensamento, ninguem a formulou com mais lucidez e mais clareza do que Taine. Cada escriptor é o que não póde deixar de ser, dada a hora em que a sua obra se produziu, dados os elementos sociaes que concorreram para a elaboração d'ella, dadas as qualidades fundamentaes e irreductiveis da raça a que elle pertence, dada a organisação particular, que, em virtude de todas estas leis e de outras leis egualmente ineluctaveis, elle recebeu da natureza.
Shakspeare, por exemplo, esse colosso que nós julgámos por muito tempo a creação espontanea e maravilhosa, que um decreto nominativo do Eterno fizera surgir n'uma idade semi-barbara, apparece, na obra de Taine, naturalmente, no logar que lhe é proprio e que lhe estava necessariamente destinado, de um modo que nada tem de surprehendente ou de imprevisto. Todo o movimento politico, litterario, social da Renascença ingleza vem rematar harmoniosamente em Shakspeare, sem esforço, sem salto inexplicado, sem arbitrariedade do Destino, sem que no espirito do leitor, que estuda o quadro complexo e extraordinariamente poderoso da vida intellectual da Inglaterra, este grande nome, universalmente acclamado, produza o espanto, a sensação do imprevisto, o abalo e o sobresalto de uma apparição sobrehumana!
Vista a evolução do pensamento a esta luz viva e fecundante, como tudo se explica e harmonisa, como tudo se ordena magnificamente, como os effeitos derivam naturalmente das suas causas superiores, como é bella essa admiravel ascensão das trevas para a luz, do cahos para a suprema harmonia!
Entre todos os obreiros maravilhosos que em França a critica moderna tem tido ao seu serviço, nenhum, porém, existiu nunca que melhor podesse explicar, illuminar, tornar accessivel a todos a obra de Anthero do Quental, como esse a que me referi ha pouco: o auctor, aos meus olhos adoravel, dos Ensaios de Psychologia Contemporanea.
Em Bourget sente-se, como em Anthero, visivelmente e fortemente, a influencia da Allemanha. Discipulo de Schopenhauer, foi elle―talvez inconscientemente seduzido―quem tornou Schopenhauer intelligivel á França, e popular ou, pelo menos, conhecidissimo em França. Mas o pessimismo, que no philosopho de Francfort é doutrina, foi Bourget encontral-o como sentimento em muitos dos artistas mais delicados e mais queridos do nosso tempo, n'aquelles de quem uma geração inteira bebe a inspiração e acceita o ideal.
Bourget desceu ao fundo da alma contemporanea e achou lá, ora visivel como um jazigo a descoberto, ora occulta como um filão inexplorado, esta dolorosa aspiração ao não ser em que virão, talvez, cruelmente e anti-naturalmente, a abortar todos os sonhos radiosos e extranhamente grandes que a humanidade concebeu, que a sciencia tem tratado tenazmente de realisar, e que a arte devia ter a gloriosa, sublime e util missão de traduzir!...
Seria pois Bourget quem melhor do que ninguem faria comprehender até aos mais profanos, e aos menos dados ás sublimes abstracções do espirito, o livro eminentemente moderno, e extranhamente doloroso e contradictorio de Anthero do Quental. A lingua em que nós escrevemos e fallamos não a conhecem porém lá fora, e este livro que em toda a parte seria criticado e discutido como um symptoma mental, caractetistico do nosso tempo, fica sem echo, a não ser entre alguns delicados d'entre nós, a quem estas questões interessam a titulo de curiosidade litteraria.II
A mim, se me faltam, como já disse, muitos dos predicados exigidos para analysar e estudar a obra, tão profundamente pessoal, do auctor dos sonetos, não me falta comtudo, para lhe comprehender a alma agitada e sacudida por tantas idéas que se combatem entre si, produzindo uma tragica lucta interior, o que n’este caso supre vantajosamente a sciencia e a critica: refiro-me á minha alma de mulher, contradictoria tambem, tambem fluctuante, e que não foi corrigida nem mutilada pela necessidade fatal da acção, pela despotica lei social que impelle o homem a pronunciar-se n’um sentido definido, a caminhar para um fim determinado, a comprometter, por assim dizer, as suas opiniões e as suas crenças, dando-lhes uma forma precisa e limitada, encerrando-as n'uma esphera positiva e restricta.
N'este ponto Anthero de Quental guardou, a par das qualidades poderosas e creadoras de um espirito viril, a plena independencia mental que é talvez a maior felicidade da mulher, quando a mulher―o que é raro―a sabe aproveitar no enriquecimento, na ampliação e na cultura do seu mundo interior.
Está portanto ahi o ponto delicado e subtil em que nos encontramos.
O livro dos Sonetos, que para mim vale muitissimo como obra de arte e de poesia, vale principalmente como documento psychologico, como notação sincera, espontanea, feita dia a dia, de sensações requintadas, como confissão d'uma alma que,―nas suas dôres imaginarias ou reaes, nas suas ardentes aspirações d'um espiritualismo doloroso, nas suas duvidas desnorteadoras diante de todos os problemas insoluveis da Vida, no seu desejo dilacerante d'um absoluto impossivel, nas suas anciosas interrogações em face do incognoscivel eterno, nos seus gritos melodiosos de apaixonada tristeza e de amargura revoltada―condensa, representa, synthetisa em si o estado sentimental de todo um mundo, o mundo a que nós pertencemos.
O vago mal-estar que fez chorar tão docemente Lamartine, e que sacudiu violenta e dolorosamente os nervos de Musset, definiu-se nos seus symptomas, revelou-se aspera e positivamente nos seus mais accentuados caracteres.
Nós não ignoramos o mal de que soffremos e porque soffremos.
Não foi impunemente, e sem que um medonho e forte abalo se produzisse nos espiritos e nas consciencias, que a sciencia, implacavel e tranquilla, despovoou os ceus, destruiu na nossa alma, ambiciosa e soffredora, o sonho da triumphante immortalidade, fez do mundo, que julgavamos centro e eixo do Universo este humilde grão de areia que hoje gravita subordinado e dependente nas amplidões infinitas do espaço; não foi sem dilacerar as fibras mais intimas do nosso orgulho que a biologia, arrancando aos abysmos do tempo o segredo da primeira scentelha da Vida que animou este planeta, nos demonstrou o que nós eramos no fim de contas, nós que nos julgavamos os filhos dilectos do Creador!
Se a sciencia exulta, se os seus apostolos continuam tranquillos e convencidos a trabalhar para a completa libertação d'esse escravo d'outras eras, que é o triumphador maximo de hoje, se o progresso caminha, se a civilisação se requinta, se a materialidade do goso attingiu quasi os limites do ideal, quantos corações, em compensação de tanta grandeza, não ficariam esmagados e desfeitos em sangue sob as rodas de fogo d'esse carro de triumpho, que leva a humanidade, cega de orgulho, á conquista da sua apotheose final!...
A extraordinaria revolução scientifica e social, que faz do nosso seculo uma quadra sem precedentes na historia, se trouxe a tantos a felicidade, a libertação, a victoria, se deu ás massas o goso de regalias ignoradas, se nivelou as castas, se diminuiu a miseria, se combateu muitos males visiveis, muitas injustiças flagrantes, se teve, emfim, nos seus aspectos geraes e nas suas linhas grandiosas, resultados soberbos, que ninguem contesta e que todos aproveitam, não podia comtudo, deixar de repercutir-se de um modo violento e profundo, dilacerante ás vezes, outras vezes entontecedor, em certas almas impressionaveis, em certos espiritos delicados, em certas organisações doentiamente accessiveis!...
Que importa, dirão, se a felicidade do maior numero exige o sacrificio desses poucos!
Sim, não importa que elles soffram; o que não obsta a que, ainda mesmo aos mais fortes, inspirem a mais irresistivel sympathia esses corações ardentes, essas almas visionarias, que a sêde invencivel da sciencia leva a beberem do seu amargo licôr, e que em vez de acharem n'elle a robustez, a certeza fortificante, a saude mental, cáem prostrados por uma dolorosa ebriedade,―iniciados que dariam tudo para ignorar, curiosos e complicados espiritos que anceiam debalde por se salvarem pela simplicidade e pela innocencia, a cujo seio nunca mais, nunca mais, poderão retroceder...III
É perfeitamente esta dôr terrivel, que só é dada a alguns eleitos da sensibilidade, esta dôr sem consolo que tem de os perseguir implacavelmente até á morte, e que póde achar calmantes e anesthezicos, mas nunca uma cura decisiva, que Anthero de Quental exprime dolorosa e magnificamente n’estes Sonetos que, para o grosso publico, hão de parecer apenas os devaneios de um phantasista, senão as mysteriosas locubrações de um allucinado e de um nevrotico.
Oh! felizes dos simples, porque elles não conhecem esta dôr dilacerante de duvidar, esta ancia amarga de saber, esta inquieta curiosidade de prescrutar todos os mysterios, de sondar todos os recessos sombrios do pensamento! Felizes dos simples, porque elles não voltam d'essas regiões terriveis, d'esses circulos dantescos, empallidecidos, cançados, mortalmente tristes, sem coração para amar, sem força para viver, sem incentivo para a lucta, sem alimento para as ambições banaes e limitadas d'este mundo.
E, no entanto, maldizendo as dôres de que a razão lhe foi origem, Anthero de Quental não pode amaldiçoar essa faculdade superior, comprada á custa de taes agonias, mas que lhe tem dado―goso contradictorio e extranho!―o austero orgulho dos que sabem!...
Razão, velha de olhar agudo e frio
E de halito mortal, mais do que a peste!
Pelo beijo de gello que me deste,
Fada negra, bemdita sejas tu!
Bemdita sejas tu pela agonia
E o lucto funeral d'aquella hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!
Pelo pranto e as torturas bemfazejas
Do desengano... pela paz austera
D'um morto coração que nada espera
Nem deseja tambem... bemdita sejas!...
Muitos perguntam,―e, no seu ponto de vista racional e practico, perguntam com razão―a que se deve a reclusão quasi absoluta, o abandono de todos os interesses positivos, a inacção voluntaria, que tão estranhamente caracterisam esse pensador, esse critico, esse poeta, chamado Anthero de Quental.
Quando pela primeira vez os echos d'este nome repercutiram na sociedade portugueza, foi como um som bellicoso e guerreiro que se ouviu, sobresaltando os possuidores consagrados da realeza litteraria d'esse tempo.
Anthero de Quental era, na somnolenta, monotona e convencional coterie litteraria de ha vinte annos, considerado um iconoclasta, atrevido e sacrilego, que vinha sem dó derrubar os velhos idolos, atirar por terra as reputações consagradas, levantar uma vermelha bandeira revoltosa em meio da serena paz, que os bons e pachorrentos mestres do classicismo academico faziam reinar entre todos os portuguezes... que os não liam!
Na politica Anthero tinha a ousadia, então quasi criminosa, de se proclamar socialista; em philosophia era um pantheista, em cuja bella imaginação, colorida e meridional, as sublimes hypotheses de Hegel exerciam uma acção dominadora; em litteratura, elle trazia todas as novas idéas hoje conhecidas e generalisadas, então quasi inteiramente ignoradas por nós, que la fóra tinham desthronado o romantismo, e produzido a grande evolução naturalista agora triumphante.
Anthero de Quental era pois um revolucionario, um innovador; estava-lhe destinado um d'estes papeis que n'uma litteratura e n'um paiz são o maior titulo de gloria, que ao pensamento e ao trabalho de um homem é dado alcançar: o de iniciador, de percursor, de porta-estandarte de uma Idéa civilisadora e grande!
Porque não realisou elle estas promessas de luctador e de artista infatigavel?
A esta pergunta, que se apresenta naturalmente diante de todos os espiritos, responde este livro. Vamos pois vêr de que modo.IV
[editar]Para mim―e talvez que eu n'este ponto e em mais alguns me tenha afastado do espirito com que Oliveira Martins, o notavel escriptor e o amigo fiel e terno e quasi fanatico de Anthero escreve as palavras que servem de prefacio aos magnificos versos do poeta―para mim o que prostrou Anthero de Quental n'aquelle extase vago e contemplativo, de que os seus ultimos sonetos são a mais completa expressão, foi justamente o excesso do pensamento, o abuso da analyse, a que elle se entregou, prematuramente, no periodo mais activo e mais arrojado da vida do homem, quando geralmente este emprega todos os recursos da sua energia para se fazer no mundo um grande logar, onde tenha espaço que baste á envergadura das suas ambições.
Pensou de mais, quiz conhecer e sondar e penetrar de mais as theorias extravagantes ou grandiosas, desconsoladoras ou sublimes, phantasticas em todo o caso, com que a Humanidade tenta, desde que existe, explicar a si mesma o mysterio da sua existencia.
São raras as almas em que se trava sériamente, tragicamente, este combate com a Verdade! Procural-a e possuil-a foi o sublime fim a que a alma d'este poeta, tão moço ainda, se entregou completamente.
Mas a nós homens não é dado achar a Verdade!
Por isso Anthero foi vencido na sua lucta soberba, por isso foi contraproducente o seu trabalho heroico, e, prostado, abalado até ás mais fundas raizes do seu sêr, por tantas contradições, que o cingiam como as lianas tenazes de uma floresta virgem, por tantas duvidas que estendiam sobre elle a sombra escura dos seus ramos venenosos, por tantas hypotheses que se desmentiam aos seus olhos penetrantes, por tantos sonhos vertiginosos que o entonteciam e embriagavam, pela inextricavel vegetação, gigantesca e confusa, de tantas idéas, sob as quaes o nosso seculo está litteralmente esmagado,―elle, o pensador sincero, a alma enamorada da Verdade e da Justiça eterna, o idealista incorrigivel que o mysterioso au delá captiva e chama, apezar da negação feroz dos racionalistas e da indifferença systematica do positivismo, elle achou que o unico refugio, no meio d'este cahos, que o unico descanso no meio d'este combate em que a vida quasi se lhe esvaía, seria o de uma inacção contemplativa, de um renunciamento mystico, de uma especie de bhudismo mental que nos seus versos se reflecte ás vezes em harmonias ineffaveis, em cantos resignados e immortaes!...
Mas, para chegar a esta estação ultima de uma longa Via Dolorosa, de que tempestades enormes, de que dramas convulsos não foi theatro a alma d'este poeta, que viveu a sua poesia antes de a ter feito!...
Aspirou á felicidade como toda a gente, mas a felicidade a que elle aspirava é que não era a de toda a gente, e por isso a procurou de balde! É provavel que partisse, como todos os que são moços, com as suas grandes botas de sete leguas á conquista d'esse Velo de ouro, que se chama amor ou que se chama gloria; mas que desalentos o fizeram parar absorto e esquecido de tudo, nos recantos melancolicos ou nos desfiladeiros sombrios do seu caminho imaginario!...
E é a historia d'essa viagem terrivel que estes sonetos nos contam; por isso elles hão de interessar tanto os que pensam e sentem, e n'uma esphera, embora menos ampla, soffreram e luctaram tambem!
Foi n'uma das suas horas de tristeza sem consolo que elle escreveu estes versos, cuja vibração sonora e longa se repercute para além das paginas do livro, por esse espaço fóra...
Porque a noite é a imagem da Verdade
Que está além das coisas transitorias,
Das paixões e das formas illusorias,
Onde sómente ha dôr e falsidade...
Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,
De que és symbolo tu? do eterno engano,
Que envolve o mundo e o coração humano,
Em rede de mil malhas mysteriosa!
Symbolo, sim, da universal traição
D'uma promessa sempre renovada
E sempre e eternamente perjurada,
Tu, mãe da Vida, e mãe da Illusão...
..................................................
..................................................
De que são feitos os mais bellos dias?
De combates, de queixas, de terrores!
De que são feitos? De illusões, de dôres,
De miserias, de magoas, e agonias!
O sol, inexoravel semeador.
Sem jamais se cançar, percorre o espaço,
E em borbotões lhe jorram do regaço
As sementes innumeras da Dôr!
Oh! como cresce sob a luz ardente
A seara maldita! Como freme
Sob os ventos da vida, e como geme
N'um sussurro monotono e plangente!
Não pode a revolta d'um coração ferido pelas injustiças sangrentas da vida exprimir-se com mais desesperada e mais apaixonada eloquencia!...
Se a vida é isto―e é isto quasi sempre aos olhos do poeta dos Sonetos,―para que luctar, para que trabalhar, para que arrastar eternamenre ao alto da montanha, aspera de tojos bravos, o enorme rochedo que eternamente rolará pelos seus flancos duros ao abysmo fundo onde de novo o homem tem de ir buscal-o, para novamente procurar com elle o pincaro escalvado d'onde cahiu?! D'aqui ao profundo nihilismo em que Anthero tem de ir dar é, longo o caminho, mas é logico e está claramente indicado...
Sob o ponto de vista pratico e razoavel, este livro, tão profundamente espiritualista, é um livro, no fim de contas, desconsolador; se a obra de Anthero fosse comprehendida por todos, teria um alcance funesto para o espirito humano! O sonho da perfeição que o inspira, leva-o a uma comprehensão da existencia erronea e perigosissima! Incompleta como é, a vida exige de nós todos, como um dever sagrado, que appliquemos a resolver-lhe os problemas, a vencer-lhe as luctas dolorosas, a cumprir-lhe os asperos deveres, toda a energia das nossas faculdades, toda a abnegação dos nossos sacrificios, todo o vigor da nossa vontade, todo o amor do nosso coração, todo o poder de sympathia de que a nossa alma dispõe. Não tem desculpa os que desdenhosos e inactivos, cruzam os braços, indifferentes aos triumphos do Mal desde que perderam a esperança de fazer do Bem o rei absoluto da creação.
Mas, feitas estas restricções que a consciencia me está impondo, a verdade é que não ha no bello livro de Anthero, tão pessoal e tão vivido nem um estado de alma que a minha alma não comprehenda e não justifique.
E que diversidade de sentimentos, e que mundo, complexo e vago, de emoções cambiantes!
É um devoto da Virgem, de um mysticismo doce como o dos monges primitivos? É um triste e incrédulo filho d'este seculo sem Deus? É um metaphysico perdido no seu sonho nebuloso e desconnexo? É um espiritualista que protesta com todas as revoltas da sua consciencia e todas as lagrimas do seu coração contra o materialismo que ameaça fazer retroceder este mundo a um estado de brutal immoralidade e de goso sensual nunca saciado? É um pensador que, conhecendo todas as theorias philosophicas que explicam o ser, a todas domina e a todas dá a forma sentimental e poetica de que ellas carecem para serem comprehendidas pelos profanos da sciencia, e pelos diletantti do pensamento?...
É tudo isto, sem ser nada d'isto; porque é tudo isto em momentos que passam, e que, ao passarem, fixam a fugitiva imagem n'uma lamina argentea, emmoldurada em esmaltes vivos, em cinzeladuras rendilhadas, em delicados e artisticos florões.
Mas―e é este o supremo merecimento d'este livro―é tudo isto sinceramente, espontaneamente, sem pose, sem artificio, sem estudo previo!
Anthero não é um acrobata da rhetorica, não é um prestidigitador de imagens faceis, é um coração que soffre, é uma alma que se impressiona, é um cerebro que vibra, é um sincero que põe toda a potencia das faculdades em cada rapida modalidade do seu complexo sêr!
Querem vêr como elle proclama, n'uma dolorosa amargura a inanidade final de todo o esforço humano?
Em vão luctamos! Como nevoa baça
A incerteza das cousas nos envolve;
Nossa alma, emquanto cria, emquanto volve
Nas suas proprias rêdes se embaraça.
O pensamento que mil planos traça,
É vapor que se esvae, e se dissolve,
E a vontade ambiciosa que resolve
Como onda entre rochedos se espedaça.
Filhos do amor, nossa alma é como um hymno
Á luz, á liberdade, ao bem fecundo,
Prece e clamor d'um pressentir divino...
Mas n'um deserto só, arido e fundo,
Echoam nossas vozes que o Destino
Paira mudo e impassivel sobre o mundo!
Contradictorio? sim; mas verdadeiro!
Para mim os que nunca se contradizem são, em geral, os que mentem sempre.
Os sinceros são alcunhados de incoherentes pelas pessoas sérias e graves que fazem a opinião publica, quer dizer, que criam esse absurdo enorme, feito de convenções falsissimas, sempre aprumado na sua immobilidade estupida e na sua monotonia secular...V
[editar]É-me absolutamente impossivel, e nem com esse intento se compadece a indole d'este rapido esboço critico, fixar aqui completamente a physionomia litteraria, tão expressiva e tão complexa de Anthero de Quental.
De resto, eu escrevo apenas para os que leram e apreciaram o poeta, para aquelles que se sentiram mais impressionados diante das suas contradicções, tão humanas, tão genialmente sinceras!
Pois qual é o homem verdadeiramente digno d'este nome, que nunca sentiu dentro da sua alma o terrivel embate de mil pensamentos dolorosamente hostis?!
O mais sceptico dos filhos d'este seculo sente palpitar ás vezes, no fundo intimo do seu coração, o dôce coração piedoso e crente da mãe querida, da velha avó, que outr'ora foi levar á sombra austera do templo, ao altar onde o Homem-Deus sorri resignado e triste, o holocausto de todas as suas tentações e de todos os seus amores; assim como o mais piedoso de entre nós, nem sempre logra fugir á acção dissolvente do scepticismo universal, que vai crescendo, crescendo, como uma maré de perdição...
Entre estes dois pólos do pensamento humano, quantas gradações, quantos cambiantes, quantos modos complicados ou morbidos de pensar e de sentir!...
Se só é completo e grande o que os comprehender a todos,―que desgraçado não será o que a todos experimente!
Por isso o nosso poeta exclama, n'um impeto de dôr sincera e tragica:
Ouve tu, meu cançado coração,
O que te diz a voz da Natureza
―«Mais te valera, nú e sem defeza,
Ter nascido em asperrima soidão!
Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel deveza,
Do que embalar-te a Fada da Belleza
Como embalou, no berço da Illusão!
Mais valera á tua alma visionaria,
Silenciosa e triste, ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba varia.
(Sem ver uma só flôr das mil que amaste)
Com odio, raiva e dôr... que ter sonhado
Os sonhos ideaes que tu sonhaste!...
Pouco a pouco, porém, por uma especie de lenta gradação, com retrocessos fugitivos, a alma de Anthero do Quental, cançada de sonhar, de aspirar, de desejar em vão, vae-se iniciando n'essa paz suprema a que os sectarios do velho Bhuda indico chamaram o nirvana!
O nirvana é uma especie de renunciamento da alma que nada espera, e que, fóra da esperança, achou a tranquillidade beatifica do não-ser.
Schopenhauer não fez mais do que pôr em moldes novos a palavra mil vezes secular do antigo sabio:
«A virtude, diz Bhuda, consiste em nos desinteressarmos de tudo que é sensivel.»
«Liberto de todo o cuidado da acção, o verdadeiro crente queda-se tranquillamente sentado na cidade das nove portas, sem de nada cuidar, e sem aconselhar aos outros a acção.»
«D'entre os meus servos, aquelle a quem mais quero é o que tiver coração benevolo para toda a natureza, não temendo os homens, nem sendo por elles temido. Apraz-me tambem o que houver renunciado inteiramente á esperança, e o que não se abalance a nenhuma empreza humana,»
Toda a desgraça do homem, continua ainda o philosopho da velha India, é attribuir ás coisas d'este mundo duração, permanencia, e realidade.
«O mundo é uma illusão immensa.»
Não desejemos, para não soffrermos. Não amemos, para nos não prendermos ao que é illusorio e passageiro. Não esperemos, e, n'esse renunciamento absoluto (principio da moral bhudica, e fim da philosophia Schopenhaureana), encontraremos a paz, quer dizer, a extincção de todo o desejo, a morte de toda a sensação, o desprendimento de nós mesmos e da Vida universal.
N'esta doutrina tão velha, que o espirito germanico remoçou e como que adaptou ás complicações extraordinarias e imprevistas da vida moderna, acolhe-se adoravelmente o poeta em muitas das suas horas de desalento e de cançasso.
Envolve-te em ti mesma, oh alma triste!
Talvez sem esperança haja ventura!
E n'outro soneto:
Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento,
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a phantasia.
Atravesso no escuro a nevoa fria
D'um mundo extranho, que povôa o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visões da noite se confia.
Que mysticos desejos me enlouquecem?
Do Nirvana os abysmos apparecem
A meus olhos, na muda immensidade.
N'esta viagem pelo ermo espaço
Só busco o teu encontro e o teu abraço,
Morte! irmã do Amor e da Verdade!
Ó poeta,―eu, uma pobre mulher condemnada, pelas leis fataes da physiologia e pelas leis logicas da sociedade, á inacção completa, não posso deixar de protestar contra essa paz egoista, em que o teu coração pretende affundar-se!
O bhudismo comprehende-se n'essa India, corroida pelo odio das castas, e na qual o homem se sentia esmagado e vencido pela implacavel Natureza, devoradora e cruel, de uma exuberancia que escorria venenos!
Comprehende-se o bhudismo no tempo em que a fatalidade das coisas subjugava o homem, o ultimo que chegara ao banquete da vida, e que chegára desarmado, predestinado á sua lucta de seculos, á sua lucta sublime, á lucta de titan, em que elle começa apenas a ser vencedor!
Mas imagine-se por um momento o bhudismo triumphante, alastrando pelo mundo inteiro a sua doutrina de inerte contemplação, de extase inutil e vago!
O que seria hoje o mundo?!...
Não, o Homem não se deixou vencer; em vão o convidaram á preguiça, á covarde resignação, ao renunciamento esteril as religiões fatalistas e a Natureza hostil e inviolada ainda!
Elle resistiu!
E, desarmado, escorrendo sangue de todos os póros da sua torturada carne, perdido na escuridão profunda d'essa tenebrosa noite, que é o passado, ora seduzido pelas sereias enganosas que tentaram perdel-o, ora asphyxiado sob o pezo de barbaras e anti-naturaes doutrinas que o mutilavam, soffrendo sempre, luctando sempre, sacrificando-se sempre, trabalhando como escravo, guerreando como heroe, pregando como apostolo, immolando-se como martyr, escalando o céu como Prometheu, encarando intrepidamente, e face a face, os mysterios e os dogmas, furando as entranhas da terra cheia de pavores, ascendendo á região dos astros cheia de deslumbramentos, sondando os oceanos sem fim, resignado e tenaz, revoltoso, indomito, terrivel, mas sempre com olhos fitos no ideal, que pouco a pouco se ia desvendando, que a pouco a pouco se ia tornando definitivo e claro, elle chegou emfim a fazer da Natureza, seu algoz, a Natureza, sua escrava, e, das chymeras de hontem, as verdades libertadoras de amanhã!
E caminha ainda, não descançou por ora o heroico viajante, avido de mais dôres, avido de mais sacrificios, avido de mais combates!
Caminha não sabemos para onde, mas decerto para onde haja mais luz, mas decerto para onde a alma tenha mais liberdade o espirito tenha mais amplo espaço e a consciencia, a inviolavel consciencia, a garantia sagrada de mais direitos!
E tudo isto sentiu, n'uma das suas horas boas, Anthero do Quental quando escreve este soneto suggestivo de heroicos impetos e de ambições sublimes:
Conquista pois sósinho o teu futuro,
Já que os celestes guias te hão deixado
Sobre uma terra ignota abandonado,
Homem = proscripto rei = mendigo escuro!
Se não tens que esperar do ceu (tão puro,
Mas tão cruel!), e o coração maguado
Sentes já de illusões desenganado,
Das illusões do antigo amor perjuro:
Ergue-te então na magestade estoica
D'uma vontade solitaria e altiva,
N'um esforço supremo de alma heroica
Faze um templo dos muros da cadeia
Prendendo a immensidade eterna e viva
No circulo de luz da tua Idea!
VI
[editar]Chegando ao termo d'este trabalho percebo que ha n'elle, além dos mil defeitos que outros lhe notarão, uma lacuna enorme que eu propria reconheço.
Tentando explicar o pensador, eu não tenho dado ao poeta o merecido relevo que elle tem; quero dizer, o pensamento d'estes sonetos tem-me ás vezes feito esquecer a belleza singular da sua forma artistica! Parece que o soneto, pelos moldes precisos e rigorosos em que se vaza, seria o menos proprio dos generos de poesia para fixar, em formosa esculptura, as abstracções metaphysicas em que o genio de Anthero do Quental se compraz principalmente.
Porque este poeta não é como H. Heine, apezar de tantas similhanças que os aproximam, apesar de serem a negação e a duxida as muzas principaes da sua inspiração, e de ambos representarem, sob uma fórma de grande arte, este periodo de transição entre as velhas crenças e as novas convicções do espirito, que a analyse paciente e complicada está elaborando ainda. O poeta allemão tem a impressão directa das coisas, e é n'ellas, e não nas idéas, que elle distingue a linha comica, a contradicção irreductivel, a impassibilidade perfeita diante das velhas theorias que decahem e agonisam; Anthero do Quental eleva essas dôres á abstracção suprema do seu espirito, a uma especie de metaphysica imaginosa e vaga, que pareceria impossivel a um temperamento peninsular aquecido pelo nosso sol, vivificado pelo nosso clima, cingido no circulo, impressionador e ardente, dos seus horisontes de ouro e de fogo. A sua poesia é como o reflexo fluctuante, caprichoso e indeciso, das contradicções, das amarguras, das tristezas e dos sonhos do nosso tempo; ella canta a dôr de toda uma geração que a si propria se estuda, sonda e interroga, e sendo profundamente pessoal, como é, repercute-se e vibra todavia em muitas almas egualmente angustiadas e vacillantes.
Não tendo, pois, antecedentes da mesma especie, foi-lhe necessario crear, dentro da velha fórma consagrada, uma forma nova; e d'esta difficuldade sahiu-se admiravelmente Anthero de Quental. Os seus sonetos trazem a marca do auctor; não se confundem com nenhuns outros. Muitas vezes tem de sacrificar a melodia do verso á extensão e ao vigor do pensamento; n'esse caso não hesita, e o pensador vence n'elle o poeta.
De todos os poetas que eu conheço ha um que Anthero me lembra muitas vezes. É Sully Prudhomme. Mas devo accrescentar que a individualidade accentuada de Anthero escapa incolume a toda a comparação e a todo o confronto.
Já ouvi, não me recordo n'este momento a quem, que o livro dos Sonetos lembra tambem em muitos pontos o Diario de Amiel. É que realmente estas duas obras, diversissimas entre si, filiam-se na mesma necessidade inteiramente moderna que o homem sente de auscultar-se, de conhecer-se, e de fazer a si proprio innumeras perguntas.
A antiguidade não tinha este prurido de penetração psychologica; por isso a antiguidade foi feliz, radiosa, activa e sã.
Comtudo, dado o nosso gosto pronunciado para este genero de estudos, ainda bem que Anthero escreve, e que Amiel escreveu. Se o primeiro não tivesse cantado muitos dos seus adoraveis e extranhos sonetos, se o segundo não tivesse notado, momento a momento, os cambiantes de uma alma tão extraordinariamente e tão morbidamente complicada, perder-se-hiam documentos inapreciaveis para o estudo completo da alma contemporanea.
Amiel, que, emquanto viveu, foi obscuro e desconhecido, e que, morto, inspirou a muitos dos mais subtis moralistas modernos, taes como Renan, Caro, Bourget, etc., estudos minuciosos e delicados, soffria, como Anthero, de um excesso de vida interior, origem de desiquilibrios dolorosos. A solidão, em que Anthero vive e em que viveu Amiel, aggrava este estado, fazendo-o degenerar, de riqueza fecunda e rara, que pode ser, na perigosa doença que a élite do nosso tempo soffre com raras excepções: o enfraquecimento progressivo nos orgãos que determinam a acção e predispõem para o combate.
Para este mal, o remedio efficaz e supremo seria o contacto de outros espiritos, o attricto com outras intelligencias hostis ou apenas finamente e subtilmente criticas, porque se a convivencia com os homens nos faz perder a independencia absoluta do espirito, ou a originalidade profunda dos que não vão na corrente da opinião geral, nem tão pouco navegam contra ella―o que é ainda um modo de a considerar―é claro que, em compensação, ella nos torna mais aguerridos para a lucta, mais tenazes nos nossos propositos e mais vivos nas nossas ambições.
Tanto Amiel como Anthero encarnam, pois, com extranha intensidade essa doença que se traduz pelas hesitações do querer, e pelas fluctuações permanentes do pensar. Para ambos a vida perdeu as linhas reaes, fixas e positivas, com que ella apparece ao espirito pratico das raças latinas, tornando-se no que é para os espiritos, ethnologicamente ou moralmente germanicos, para Carlyle ou para Goethe, para Shopenhauer ou para Shakspeare, um não sei que de indeterminado e de fluctuante, um sonho que apparece confuso, nebuloso e phantastico, sempre prestes a decompôr-se em transformações successivas, sempre em via de desmanchar-se e de refazer-se em condições novas.
A Allemanha tem a palavra propria que exprime esta concepção das coisas; nós não a temos, de tal modo ella repugna ao espirito da nossa raça!
Mas Anthero de Quental longe de ter adoptado a linguagem semi-barbara á força de requintada, com que Amiel pretendeu naturalisar latinas abstracções puramente e genuinamente germanicas, é pelo contrario um escriptor de raça, um escriptor de primeira ordem, dando ao seu sonho, vago como é, o molde nitido e magistral d'uma linguagem riquissima, e sabendo em certas horas ser um prosador de largo folego, um critico sagacissimo e cheio de penetração genial.
Bastariam para provar esta asserção, os seus dois magnificos opusculos: Considerações sobre a historia da litteratura portugueza e causas da decadencia dos povos peninsulares.
Pena é que um espirito tão extraordinariamente dotado não enriqueça a litteratura nacional com alguns livros de critica e de historia, que, tão bem como os melhores, elle poderia escrever.
Emquanto Anthero aspira infatigavelmente a alguma coisa de muito superior ao que a vida póde dar, Amiel escreve n'uma das paginas do seu Diario este pensamento caracteristico:
«Il n'y a de repos pour l'esprit que dans l'absolu, pour le sentiment que dans le divin; Rien de fini n'est vrai, n'est interéssant, n'est digne de me fixer!...»
Amiel n'uma hora de lucidez rara, n'uma d'estas horas em que o visionario mais intransigente vê em clarão rapido o nada, das chymeras a que immolou a sua vida, traça estas palavras, que são uma revelação e que são um arrependimento:
Le resumé: Nada! Rien!... Et pour dernière misére, ce n'est pas une vie usée en faveur de quelque être adoré ni sacrifié à une future espérance...
Do mesmo modo Anthero escreve este soneto, que é como a suprema condemnação do seu funesto credo, que é como a lagrima que se desprende da pupilla cançada de contemplar inutilmente as profundezas insondaveis do eterno abysmo...
Empunhasse eu a espada dos valentes;
Impellisse-me a acção, embriagado,
Por esses campos onde a Morte e o Fado
Dão a lei aos reis tremulos e ás gentes!
Respirariam meus pulmões contentes
O ar de fogo do circo ensanguentado,
Ou caíra raivoso, amortalhado
Na fulva luz dos gladios reluzentes!
Já não viria dissipar-se a aurora
De meus inuteis annos, sem uma hora
Viver mais do que sonhos e a anciedade!
Já não veria em minhas mãos piedosas
Desfolhar-se uma a uma as tristes rosas
D'esta pallida e esteril mocidade!
Não foi esteril, não, a vida de quem produziu este livro, que ficará na litteratura portugueza occupando um logar á parte, nosso pela lingua, bella, harmoniosa e rica, em que está escripto, e d'outra raça bem diversa da nossa, pelo perfume exotico de que está impregnado.
N'este momento de cosmopolitismo litterario, em que a arte é uma Babel onde as raças e as linguas se confundem, este livro marca um momento, e como tal é precioso para os que pensam e para os que estudam.
Reflecte-se n'elle, além do que deixo dito, uma alma angelica, uma d'estas almas raras, que não podem deixar de soffrer muito n'um mundo para que não são feitas.
Eu deixei de proposito, inviolado pela minha critica, porventura audaciosa, o que ha de mais profundamente subjectivo, de mais intimo e de mais sagrado no volume adoravel de Anthero de Quental.
Muitas vezes as lagrimas me romperam irresistivelmente dos olhos, ao ver n'elle, deliciosamente reflectida, a aspiração, sempre incomprehendida, a um amor que o consolasse e redimisse! Pensar é perigoso. Melhor é sentir. Anthero pensou de mais.
Eis o motivo porque não encontra a consolação unica a que a sua alma aspira anciosamente e inutilmente.
Sejamos bons e dôces para a Vida! Ella tem horas sinistras, bem sei; ella tem a Duvida; ella tem a Dôr e tem o Silencio eterno a todas as interrogações anciosas da nossa razão e da nossa consciencia; mas de que doçura infinita ella nos não enche o coração! mas com que lagrimas abençoadas ella não apaga as sêdes ideaes da nossa alma cubiçosa! Como no mytho pagão, toquemos a Terra, quer dizer, retemperemos o nosso organismo cançado nas primitivas alegrias da simplicidade, da innocencia, e do amor! Não renunciemos a nenhuma das ineffaveis riquezas de que a Vida é depositaria fiel, e acharemos, n'este retrocesso á Natureza amiga e boa, a paz que os artificiaes nirvanas d'este seculo nos não podem dar!
Concluo este estudo, que eu fiz com o maximo amor que o artista, por humilde que seja, póde pôr no seu trabalho, e no qual apenas a sinceridade suppre tantos predicados que me faltam, pedindo a Oliveira Martins desculpa da minha ousadia.
Melhor do que ninguem, elle fallou do seu amigo; melhor do que ninguem, elle o explicou aos que o não conheciam, tocando com recolhimento e com fervor quasi religioso n'esta alma, que é para tantos um enygma indecifravel, e dando luz a tantos pontos indecisos d'este temperamento artistico, extranho e singular.
Depois de ter inspirado aquelle sentido prefacio, com que o notavel historiador enriqueceu o seu livro, que necessidade tinha o poeta dos sonetos de que uma alma, que o não conhece senão atravez d'elles, viesse fallar ao publico da sua complexa individualidade?
No prologo de O. Martins ha mais do que o seu talento; ha tambem o seu coração de amigo, e é isso o que, aos meus olhos, lhe augmenta enormemente o valor.
Se houve audacia na minha apreciação, que m'a perdoem, pois, o poeta e o seu critico. Eu não quiz mais do que fazer ver o livro extraordinario dos Sonetos de Anthero á luz da minha impressão pessoal. Não tive outro intento, nem desejo outra recompensa além do prazer intimo e profundo que senti escrevendo estas palavras sinceras, depois de ter lido o livro adoravel que tão espontaneamente m'as inspirou.