Alguns Homens do Meu Tempo/Octave Feuillet

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O casamento e a educação[editar]

Visto que é da França que nos vem o santo e a senha, olhemos para a França, onde litterariamente se discutem sempre questões geraes, que a todos interessam.

N'este momento, e como que em protesto á obra naturalista e á escola que a produz―escola de que Zola está dando a formula no seu ultimo livro: L'oeuvre―Octave Feuillet, o velho romantico, acaba de publicar, na Revista dos Dois Mundos, um estudo intitulado: a Morta.

A Morta é uma especie de pamphleto, escripto na adoravel maneira, um pouco falsa, do elegante romancista contra a invasão crescente e victoriosa das ideias modernas.

Ora o que os velhos de todos os tempos, de todas as raças, de todas as civilisações chamam ideias modernas, combate-se sim, mas não se vence.

A evolução permanente, a lenta transformação fatal das ideias humanas, está fóra da acção exercida pela vontade individual.

Cada geração traz o seu contingente á formação d'esse inventario enorme, que é feito de todas as riquezas do pensamento e de todas as acquisições progressivas da Sciencia, e ninguem tem no seu poder regeitar ou acceitar um facto que é de si inevitavel.

As ideias modernas triumpham sempre, e é por isso mesmo que a humanidade não pára, e caminha incansavelmente á procura do que julga melhor.

Imagina enganar-se?

Muito embora!

Retrocede, mas não pára.

E, n'esses momentos de retrocesso os velhos, que assistem a um espectaculo diverso d'aquelle a que assistiram moços, continuam a chamar ideias modernas ao que mais propriamente se chamaria ideias renovadas.

O naturalismo exigente, exagerado ou brutal, tal como elle hoje tenta estabelecer-se na arte e nos costumes, será uma invenção moderna?

Decerto que não!

Na Grecia encontramol-o soberbo, triumphante, constituindo só por si a religião, a lei, a moral, a civilisação completa, harmoniosa e feliz, que é ainda o modelo para o qual todos os olhos se levantam embevecidos e saudosos.

Na derrocada final do mundo romano, achamol-o como um facto irresistivel, como uma manifestação inconsciente de força, na onda germanica que invade o imperio caduco, e vem refundir physiologica e moralmente a raça cuja actividade especulativa, levada aos requintes extremos, se tornara na mais rapida e fatal das decadencias.

Mais tarde, ao sair das trevas gothicas, o que foi o mundo, senão o mesmo que hoje está sendo com menos pompa decorativa, com menos vigor physico e moral, com menos vivo sentimento do pittoresco?

A ideal exaltação de que o romantismo de 1830 fez escola, seria porventura, n'aquella quadra, uma ideia moderna?

O que foram as epochas de cavallaria, ao mesmo tempo mystica e sensual, o que foi a quadra das côrtes de amor, dos trovadores e dos pagens, dos cultos platonicos levados até ao exagero ridiculo, dos enthusiasmos apaixonados e symbolicos pela mulher, senão a traducção na litteratura e nos costumes do mesmo estado mental, menos requintado, menos perfeito, menos contradictorio, menos complexo, menos civilisado emfim?

Já nada ha moderno sob a face dos ceus!

Nous sommes revenus de tout, mas depois de tudo havermos experimentado!...

Como quer que seja, Octave Feuillet fez um romance, combatendo as ideias modernas, e poz n'esse romance, delicioso em todo o caso, todas as suas qualidades e todos os seus defeitos de escriptor.

Entendamo-nos:

Octave Feuillet não é um escriptor profundo, é um escriptor elegante. Pinta com uma seducção de pincel muito sua, pinta de chic, na phrase de atelier, uma certa especie particular da sociedade franceza.

A aristocracia refinada, devota e monarchica, adora Feuillet, a quem no fim de contas não deve muito, porque se quasi todas as suas mulheres são encantadoras de graça e distincção, n'ellas a virtude é, raramente, um principio inabalavel; em quanto que a fraqueza é na maior parte das vezes um requinte delicioso.

A gente gosta de ler Feuillet, como gosta de estar n'um salão elegante.

Conversa-se ali bem, no tom discreto e nuancé das conversações aristocraticas; respira-se um aroma de feno, ou de tilia, que tem suavidade sem produzir entontecimentos; as reticencias, subtilmente accrescentadas á phrase, dão a esta um sabor vivo e penetrante, sem todavia melindrarem de leve as conveniencias mais correctamente exigentes; as intenções finissimas sublinham o dialogo, a graça da observação substitue-se á profundeza dolorosa da analyse.

A paixão nunca ali soltou o seu uivo estridulo e dilacerante. Ama-se, como se faz tudo o mais... correctamente.

O homem é, primeiro que tudo, gentleman; a mulher é, antes de mais nada, senhora!

As paginas de Feuillet poderiam ler-se á vontade n'um d'estes adoraveis salões convencionaes, que todo o artista aprecia, mas no qual elle não aprenderia nunca a conhecer a rude naturesa brutal, a que tem exigencias fataes, a que tem gritos de paixão impetuosa, a que, pelo amor robusto e sagrado da verdade, atira por terra todas as hypocrisias, todas as convenções, todos os veus, todos os sophismas que a mascaram, que a desformisam, que a falseiam, que fazem d'ella uma coisa immoral e cahida no desagrado das familias.

Feuillet é pois genuinamente, o romancista para a ordem de pessoas acima descriptas, o romancista distincto na mundana accepção da phrase.

São deploraveis os seus imitadores, como são detestaveis na burguezia os salões que tentam imitar a inimitavel graça aristocratica dos outros.

Sob este ponto de vista, um pouco restricto, é que o escriptor tem de ser julgado.

Consideral-o um observador profundo, um psycologico completo, um moralista convencido, é pol-o inteiramente fóra da esphera que lhe é propria.

Com tudo, tal é o desejo que toda a gente professa de fazer positivamente aquillo para que não tem o minimo geito, que Feuillet teve sempre a tentação de versar e discutir problemas moraes e problemas phylosophicos da mais alta importancia.

Na Histoire de Sybille, elle já pintou, delicadamente, finamente, com uma subtilesa de mão encantadora, o conflito que póde dar-se na moderna sociedade entre a mulher educada dentro do ideal catholico mais orthodoxo, e o homem nascido e creado no meio sceptico e indifferente que nos envolve.

Respondeu a este livro―que desejava ser uma these philosophica, e, que foi apenas, felizmente para o auctor, uma novella encantadora,―a Mademoiselle de La Quintinie, de George Sand, e lembro-me d'esse volume como d'um dos mais aridos e mais seccantes da grande escriptora.

É que a these feita romance é quasi sempre pretenciosamente enfadonha.

Agora, é ainda um livro d'esta ordem, o ultimo livro do auctor do Conde de Camors.

Duas questões de uma só vez tenta elle tratar no seu livro. O problema terrivel do casamento, e o problema não menos perturbante, não menos difficil, da moderna educação da mulher.

Vejamos o enredo do livro:

Bernardo de Vaudricourt, um moço pariziense da primeira nobreza, da primeira roda e de primeira educação, apaixona-se por uma menina de eguaes condições de posição, nobreza e fortuna.

Elle, porem, inteiramente contaminado pelas ideias do mundo em que tem vivido, é uma completa imagem do scepticismo contemporaneo.

Já se vê que não tem tido tempo de sondar o que ha, no fundo das questões que regeita.

E sceptico como... toda a gente. Nem melhor nem peior, nem mais nem menos.

A controversia philosophica ou religiosa nunca lhe levou nem uma hora dos dias occupados em montar a cavallo, em caçar, em valsar, em seduzir as mulheres dos seus amigos intimos, em jogar no seu club, e em encher de brilhantes o peito das actrizes em voga. Que querem! É sceptico por dever de sociedade.

Qual é o homem do sport que se atreveria a confessar-se crente nos dias que vão correndo?

Sciencia não a tem, já se vê, mas visto que não sabe quasi nada, entende mais commodo não acreditar no que não sabe.

Como gentil homem que é, tem o que na sua raça, no seu meio, se chama o culto da honra.

A honra é a coisa mais indefinivel e mais elastica que ha n'este mundo.

Dentro dos seus limites cabem tantas e tão boas coisas, que não vale realmente a pena a quem se respeita, ultrapassal-os e excedel-os!

Aliette de Courteheuse, a noiva, é um anjo de puresa, mas é tambem um anjo de piedade orthodoxa. Educaram-n'a dentro do codigo genuinamente catholico; ás crenças que a familia lhe communicou pela educação, reune uma exaltada comprehensão dos deveres e da vida, e um certo desdem aristocratico pela actualidade tão banal e tão cheia de contrasensos, tão feita de transigencias e de covardias.

O amor porém, vence os obstaculos moraes que separam estes dois caracteres tão contrarios, e Bernardo casa-se com Aliette de Courteheuse.

A parte mais estudada do romance é aquella em que Feuillet conta, analysa, descreve e sublinha subtilmente todos os conflictos inevitaveis que d'esta união vão resultar.

Porque Aliette não é uma d'estas catholicas, que harmonisam o baile com os officios, a confissão com as desordens de uma vida à outrance, o mundanismo requintado, com as praticas mais estreitas.

Não!

Esta é uma crente, uma alma que identificou a sua religião e o seu dever, e fez dos dois estreitamente entrelaçados a lei suprema da sua existencia inteira. Esta não é das que pegam no seu catholicismo, como quem pega no seu livro de missa: unicamente para os levar á egreja.

Tudo que ella pensa, tudo que ella sente, tudo que ella pratica, se subordina ao alto principio a que submetteu a sua vida.

No museu de pintura, no theatro, nas salas elegantes onde a vida moderna ostenta as pompas viciosas do seu goso, no interior da familia, ao pé dos indifferentes e ao pé do seu marido Aliette é sempre impeccavelmente, a bella e escrupulosa creatura, que para se respeitar a si propria, precisa de não transigir com os sophismas e as contradicções dos outros, que para não descer aos seus olhos, precisa de não afastar os passos que dá do ideal que concebeu!

Realise-se esta hypothese figurada pelo primoroso romancista,―a mulher profundamente e sinceramente religiosa ao pé do marido indifferente para umas coisas, incredulo para outras, sempre divorciado moralmente da mulher amada,―e ter-se-ha esse obscuro inferno da vida domestica tantas vezes apontado, tantas vezes combatido por mim.

O casamento tem só uma base moral, séria e inviolavel; é a uniformidade de vistas entre marido e mulher a respeito das questões fundamentaes da vida.

A felicidade, sem essa base, é uma chymera irrealisavel, e eis o motivo porque em cem casamentos desgraçados, ha um que o não seja.

II[editar]

A vida dos dois heroes do livro é portanto, dilacerada obscuramente por dissenções intimas, que ambos elles, por mais vontade que tenham de facilitarem reciprocamente a felicidade commum, não podem evitar que se levantem a cada passo.

Conclusão tremenda do auctor, indicada apenas, mas clara para todos os olhos: a mulher piedosa não pode, dado o modo de ver do homem moderno, achar a paz da consciencia, achar a harmonia das coisas na vida conjugal.

Surge, porém, em scena, a mulher educada segundo o que Feuillet quer imaginar o ideal moderno,―a mulher que lê Darwin, que applica na existencia as theorias do grande sabio inglez, que conhece as sciencias naturaes e que fortaleceu o seu espirito na formidavel negação que d'ellas resulta como um effeito fatal,―e Feuillet reune n'ella todas as monstruosidades, todos os crimes, desde a abdicação voluntaria da honra até ao assassinio.

Perto da propriedade rural, para onde Bernardo de Vaudricourt consente em retirar-se com a mulher, depois d'esta ir quasi que morrendo de dôr na vida de dissipação parisiense que ao principio é obrigada a seguir, vive um medico retirado da clinica, um chimico notavel, que fez da sobrinha e pupilla uma discipula dilecta da sua philosophia materialista, uma companheira dos seus trabalhos scientificos, uma ajudante das suas experiencias chimicas e physiologicas.

Sabina, a sobrinha do doutor, é, segundo Feuillet parece pensar, a mulher moderna, tal qual vae ser, creada pela educação que a França está dando ás suas filhas.

Pois Sabina envenena Aliette para casar com Bernardo; consegue casar com este, depois de ter feito morrer de degosto o tutor e tio, e a breve trecho é infiel ao marido, com o primeiro que lhe apparece diante dos olhos, e responde muito serena a quem ousa interrogal-a, que fazendo tudo isto, e muito mais ainda, se é possivel fazer-se mais, ella segue simplesmente até ás suas consequencias logicas as doutrinas com que lhe embeberam o espirito infantil.

Quando o doutor Tallevaut descobre o horrivel crime commettido pela sua adorada sobrinha e lh'o lança em rosto antes da apoplexia que o fulmina, ella respondelhe que é apenas sua humilde discipula.

―«Minha discipula, miseravel! exclama o desgraçado. Pois eu ensinei-te alguma vez principios diversos d'aquelles que eu proprio praticava? Pois eu dei-te, pela minha palavra ou pelo meu exemplo, outras lições que não fossem de rectidão, de justiça, de humanidade e de honra?...

―«Realmente o meu tio surprehende-me immenso. Como é que um espirito tão lucido poude deixar de perceber, que eu podia tirar das suas doutrinas e dos nossos estudos communs, consequencias e ensinamentos diversos d'aquelles que o seu espirito tirava? A arvore da Sciencia, não produz em todos os terrenos os mesmos fructos?... Fallou-me de rectidão, de justiça, de humanidade e de honra?... Espanta-se que as mesmas theorias que lhe inspiraram essas virtudes m'as não houvessem inspirado a mim?... E com tudo a rasão d'isto é bem simples... Sabe tão bem como eu, que essas suppostas virtudes, são na realidade facultativas... pois que não passam de instinctos... de verdadeiros preconceitos que a natureza nos impõe... por que necessita d'elles para a conservação e progresso da sua obra... Gosta de submetter-se a esses instinctos... eu não gosto... eis a unica differença que nos separa.

«―Mas eu não te disse e não repeti mil vezes, desgraçada, que o dever, a honra, a propria felicidade consistiam na submissão a essas leis naturaes, a essas leis divinas?!

―Disse-m'o, «e assim o julga, bem sei... Eu, pela minha parte, creio o contrario. Creio que o dever, que a honra d'uma creatura humana consiste em revoltar-se contra essas servidões, em sacudir essas cadeias com que a natureza... ou Deus, como quizer, nos prende, nos opprime, para nos fazer cooperar, contra a nossa propria vontade, n'um fim desconhecido... n'uma obra a que somos estranhos... Ah! de certo. O meu tio disse-me e repetiu-me mil vezes que era para si não sómente um dever, mas até uma alegria, o poder contribuir humildemente pelos seus trabalhos e pelas suas virtudes para não sei que obra divina, para não sei que fim superior e mysterioso, que é como o alvo supremo, a que o universo se encaminha...

Mas que quer? esses prazeres deixam-me a mim perfeitamente insensivel; não tenho o minimo desejo de levar a vida a constranger-me, a privar-me, a soffrer, para preparar, a não sei que futura humanidade, um estado de felicidade e de perfeição, do qual nada gosarei, festas a que não posso assistir, paraizos, emfim, onde não entrarei nunca!...


• • •

E depois de continuar n'este tom meia hora, amontoando paradoxos, argumentos falsissimos, dos quaes a sciencia humana nunca, que eu saiba, se serviu, acrescenta:

«Um crime foi o que eu perpetrei?... Mas isto de crime não passa d'uma palavra, bem sabe.

«O que é o bem? O que é o mal? O que é verdadeiro e o que é falso?

«Na realidade o codigo da moral humana não passa hoje d'uma pagina em branco, na qual cada um escreve o que quer, segundo a sua intelligencia e o seu temperamento.

«Já não ha senão cathecismos individuaes... O meu é aquelle que me foi pregado pelo exemplo da propria Natureza: ella elimina com egoismo impassivel tudo que a incommoda; ella supprime tudo que lhe é obstaculo; ella esmaga o fraco, para dar logar ao forte... e creia que não é de hoje que esta doutrina é acceite pelos espiritos livres e superiores. Em todos os tempos se disse: os bons vão-se embora cedo! Não, não são os bons que se vão embora, são os fracos, e não fazem mais que o seu dever. Quando a gente lhes presta n'este sentido um pequeno auxilio, imita apenas o exemplo do creador! Leia o seu Darwin; leia o seu Darwin, meu tio!»


O pobre do tio responde a esta bella tirada caindo varado por uma congestão; e Sabina d'ahi a pouco tempo, casada já com Bernardo, responde ao marido, que a accusa de faltar aos deveres mais elementares da mulher, pelo mesmo modo emphatico e pedantesco, e com os mesmos argumentos falseados, desformisados pela vontade do escriptor.

Por tanto a ignorancia de Feuillet a respeito de Darwin, ou a sua má fé litteraria, é evidente na intenção d'esta obra.

Eu não conheço profundamente a doutrina do naturalista inglez; mas conheço-a bastante para poder affirmar que nem essa doutrina é uma philosophia, nem Octave Feuillet tem d'ella a comprehensão mais elementar.

Darwin, dos seus estudos analyticos e das suas observações e experiencias, deduziu algumas leis com applicação restrictamente biologica, e que só por um aventuroso esforço de analogia se podem applicar á sociologia e á historia.

A selecção natural, a luta pela vida no mundo organico não passaram ainda de hypotheses, segundo o rigoroso criterio da philosophia positiva; mas, quando chegassem a converter-se em leis perfeitamente liquidadas, haveria entre o dominio d'essas leis e os factos superiores do pensamento, a mesma distancia scientifica que vae de quaesquer theorias geneseticas do mundo até quaesquer systemas de embryogenia animal.

Resta-nos, por tanto, a convicção de que o auctor procedeu de má fé.

As applicações da doutrina de Darwin aos factos sociaes, feitas pelos mais illustres dos seus discipulos, por Spencer por exemplo, estão penetradas de um espirito moral austero e digno, a que faltará talvez uma base scientifica, mas a que não faltam de certo a elevação e a belleza. Feuillet, por conseguinte, é tão exacto, é tão verdadeiro, é tão honesto na sua obra como seria qualquer livre pensador que, para combater a moral catholica, a mostrasse exemplificada na devassidão de Alexandre Borgia, no instincto sanguinariamente devoto de Carlos IX, no fervor assassino de Torquemada, no fanatismo criminoso dos que acenderam as fogueiras da inquisição, dos que vibraram o punhal da S. Barthelemy, dos que bem disseram as dragonadas de Nantes, dos que organisaram a matança dos Algibenses, dos que teriam perdido a Egreja, se a Egreja não tivesse a salval-a na historia, e ainda na actualidade, a sua missão civilisadora pela disciplina, pela arte, pela politica, pela unidade, pela sciencia, e, sobretudo, e principalmente, por ter mantido sempre, acima do interesse dos individuos e do egoismo das nações, o principio da humanidade, que antes d'ella o mundo não conhecera.

Aquelles todos comprehenderam tão bem o catholicismo, como a heroina de Feuillet comprehendeu o alcance moral, pequeno ou grande, que pode extrair-se da doutrina darwiniana.

Já se vê que o que pode concluir-se do livro de Octave Feuillet é realmente desconsolador até á desolação mais intima e mais profunda.

A piedosa e doce mulher christã, collocada em plena sociedade elegante do seculo XIX, tem que fugir, por que principia a perder pé, e tem medo de naufragar. Entre ella e seu marido nunca chega a realisar-se a união intellectual, a invejavel identificação de duas almas, sem a qual o casamento é apenas a attracção dos dois sexos, legalisada perante Deus e perante o mundo.

A vida intima que todos sonham tão penetrada de luz beatifica, tão unida, tão ardentemente vivida por dois espozos moços, intelligentes, namorados, torna-se para qualquer d'elles um lento e obscuro supplicio que os punge, e que, por mutua caridade, elles tentam disfarçar.

A mulher, desligada do ideal catholico, é o monstro que mata, que atraiçoa, que morde a mão que a alimentou, que precipita na deshonra e na inconsolavel dôr o marido que a estremeceu?... Que ha então a fazer?... Que alvitre proporá o auctor de une morte?... Eu por mim humildemente declaro que não concordo com o que elle diz, que não acceito, as suas aterradoras conclusões.

III[editar]

É fóra de duvida que hoje a questão religiosa, existente em toda a parte, aqui revelada, ali occulta, é uma das causas determinantes do horrivel mal-estar que tortura o nosso tempo e principalissimamente a nossa raça, mas não se conclua da enorme importancia d'essa questão que a mulher,―fatalmente educada n'este meio cada vez mais materialista, mais negativo, mais incredulo em tudo que seja sobrenatural e alem do humano,―se transforme no perigoso monstro phantasiado por Feuillet.

Que culpa teem as pobres creaturas, educadas agora, das ideas que pairam sobre todos nós, que nos penetram insensivelmente, que nos roubam ao influxo mystico do catholicismo, que, mau grado nosso, substituem pela duvida dolorosa, pela curiosidade analytica, pela ancia penetrante de saber, os enthusiasmos fervidos, as crenças pueris e simples da nossa mocidade.

Não são os homens que nos teem ensinado a duvidar do que elles duvidam? não são elles que nos teem perturbado, agitado, com a sua duvida e incerteza? e sobretudo desnorteado com a leviandade cynica da sua negação? E terão elles tambem culpa por ventura de que os descobrimentos extraordinarios e imprevistos da sciencia, de que o alargamento continuo e progressivo do pensamento, de que as lições irresistivelmente verdadeiras da natureza, desvendada emfim, depois de tantos seculos de mysterio, lançassem por terra, de envolta com a tradição desmentida, tantos dos alicerces em que elles haviam construido o edificio da sua crença?!

Sim, o catholicismo sendo o codigo mais completo que a humanidade elaborou ainda, tinha soluções para todas as crizes do nosso destino, podia dar-nos a paz, podia satisfazer as mais irrequietas ambições da nossa alma. Mas esse catholicismo, contra o qual o enorme oceano chamado humanidade deixou durante vinte seculos bater a onda tremenda das suas duvidas―foi por ventura a nossa geração que o fez em ruinas?!

Se a tibieza da fé, se a incredulidade no mysterio, se o desdem pelo sobrenatural são factos, dolorozos muito embora, se assim o querem, mas factos positivamente adquiridos, se a ancia da verdade, impondo-se ao homem, lhe deu na duvida a sua gloria maxima e tambem a sua maxima tortura, se a nenhum de nós, filhos d'este seculo, e vergados ao pezo terrivel e tragico d'essa herança titanica de tantos seculos de investigação e de angustia, nos é dado fugir á excruciante agonia da nossa eterna e audaciosa interrogação, se nós fômos os eleitos da Historia para esta tragedia que consiste em agonisar junto ao tumulo d'um Deus, digam-me: não será tempo de fazer uma tentativa suprema, que pacifique emfim a nossa consciencia desnorteada e vacillante?...

Pois se fora do catholicismo não podem subsistir as grandes leis moraes, de cujo austero cumprimento depende a nossa felicidade e a nossa intima paz, assim se lançam ás gemonias tantas almas sinceras, tantas almas inquietas, tantas almas sedentas de verdade e de justiça, que não acharam na Egreja a solução aos graves e complexos problemas da vida?...

Porque, emfim, o catholicismo não é uma convicção raciocinada, é uma fé subjugadora. Ha muitos espiritos, que, achando a organisação catholica a mais elevada expressão de força intelligente, que, achando a disciplina catholica o mais frizante e Porque, emfim, o catholicismo não é uma convicção raciocinada, é uma fé subjugadora. Ha muitos espiritos, que, achando a organisação catholica a mais elevada expressão de força intelligente, que, achando a disciplina catholica o mais frizante exemplo da vontade applicada á moral, sentem com tudo que, para serem catholicos, lhes falta simplesmente... tudo!

Tudo, quer dizer a fé na origem divina d'essa religião que os enthusiasma, que os apaixona, considerada como resultante de uma serie de leis historicas e puramente humanas. A nossa crença, ou a nossa duvida, estão em nós; mas dependem acaso de nós?

Não, mil vezes não!

Os estados da nossa consciencia proveem do ambiente moral que temos respirado desde o berço e de uma serie de causas existentes já antes de nós existirmos, e cujos effeitos herdámos involuntaria, inconscientemente.

Se a nossa vontade entra como elemento importante na obra complexa do nosso destino, ella é apenas um elemento, subordinado a centenas de outros, que nós não podemos sujeitar, nem prever sequer.

Assim como o sangue que nos corre nas veias vem eivado, ou fortalecido já, de maculas ou de qualidades hereditarias, o nosso espirito traz impresso o cunho de mil influencias anteriores á propria formação d'elle. Ninguem se esquiva ás idéas do seu tempo; e tão impossivel seria Voltaire em plena Edade Media, como S. Francisco de Assiz em pleno seculo XIX.

Portanto, tudo o que se diga hoje, para provar que a mulher é absolutamente obrigada a ter a fé de santa Theresa, não passa d'um entretenimento de rhetorica, sem a minima seriedade, e sem o minimo pezo.

Eu, já se vê, que ponho aqui completamente de parte aquella porção distincta e particular da sociedade do meu tempo, para a qual a religião é um luxo, requintado, feito de pequeninos apuros frivolos, um ritual de praticas estereis, sem pensamento, sem alma, sem significação moral, um preceito de alta educação mystico-elegante, um formulario ôcco, uma lampada artisticamente cinzelada, sim, mas já sem oleo perfumado e sem luz fecunda e clara! Mas se, alem d'essas praticantes, que sabem a letra do Evangelho e que não sabem ou não querem saber a preciosa essencia do seu espirito, se alem d'essas zelosas, que contradizem e desmentem a cada passo a doutrina que acceitam, ha ainda hoje creaturas simples, piedosas, absolutamente crentes, que teem a fé do carvoeiro, como guia da propria existencia, que, aquellas que não podem imital-as lançam para ellas um olhar de admiração, de inveja sem fel, e lhes digam ingenua e simplesmente!―Abençoadas sejaes vós, ó doces e queridas irmãs, que nunca tereis de hesitar nos desfiladeiros e nos algares, nas asperas charnecas e nas rudes montanhas d'esta vida! Abençoadas sejaes vós, que pudesteis fechar os ouvidos ao clamor confuzo das gerações atormentadas e não ouvir o que dizia, no murmurio vago das noites mysteriozas, a voz de tantos ardentes corações, pedindo á Natureza um raio de luz, um raio de verdade, a pacificação suprema ás torturas, sempre renascentes, da Duvida! Abençoadas sejaes vós, que para cada pergunta da vossa consciencia, tendes a resposta prompta do vosso codigo divino!

E depois da rapida e ephemera passagem, que é para vós a vida, tendes, para matar todas as sedes, a Eterna fonte sempre limpida; para compensar de todas as abnegações terrestres, a celeste recompensa, sempre renovada; para satisfazer todas as ambições ainda as mais incontentaveis, a ineffavel beatitude sempre luminoza e sempre azul!

São essas as felizes, as privilegiadas, as raras.

Mas não são essas que precisam das lagrimas da minha piedade, nem dos conselhos da minha razão.

As que n'este momento de transição terrivel, eu supponho bem dignas de piedade, aquellas para quem eu desejava ver formulado um codigo de moral positiva, feito de todas as acquisições da experiencia, são as que não teem uma fé solida a dirigil-as na vida.

A moral preciza de tornar-se independente de qualquer religião, para ser, ao lado d'ella ou sem ella, o principio dominante a que sujeitamos todos os arrojos do nosso pensamento, todos os impetos desordenados da nossa paixão. Porque é fatal que o individuo tenha de sacrificar-se pela collectividade, e que a vontade de cada homem se subordine á utilidade e ao bem de todos.

A moral positiva, disem os seus adversarios, funda-se pura e exclusivamente no interesse. É triste eu bem sei, que é triste, esta conclusão humilhante a que temos de chegar; mas qual é a lei que se nos impôe e que nós acceitamos, que não tenha por fundamento mais ou menos disfarçado o nosso proprio interesse? A felicidade no ceu ou a felicidade na terra, eis os unicos motores que dirigem este hybrido ser, meio animal e meio anjo, que se chama homem.

N'este momento, pois, o ponto interessante e capital a discutir vem a ser este: Dos resultados já liquidados de todas as sciencias particulares poderá sommar-se um capital de conhecimentos positivos, capaz só por si de constituir a moral social?

Se a resposta feita pelos observadores, pelos moralistas, pelos philosophos, fôr affirmativa, que elles tratem de formular esse codigo, visto que a humanidade, eterna tutellada, abomina a independencia da sua propria razão, e preciza de ter escripta, e reduzida a preceitos dogmaticos, cada uma das leis a que tem de subordinar o seu destino.

Se a resposta, por emquanto, for negativa, trabalhe-se no sentido de augmentar as riquezas já coordenadas, e tracte-se de chegar cedo á conclusão pacificadora, pela qual todos nós anceiamos.

Acreditemos, para nossa consolação e para nosso descanço, que ha em nós, independentemente de qualquer principio extranho, embora superior, a aspiração permanente ao que é bom, ao que é bello, puro e harmonioso.


Muita vez, é claro, a paixão desvaira a mulher, mas a mulher religiosa nem sempre escapa a esses desvairamentos, visto que a Historia os aponta nos seculos do mais exaltado ascetismo. Não queiramos particularisar tanto o sentimento da moralidade, que esta não possa viver senão ao abrigo de qualquer templo.

É um mau serviço que fazemos, pois que não nos é dado a nós, nem a ninguem, obstar a que o ideal religioso vá pouco a pouco cedendo o passo á invasão triumphante, embora desconsoladora, da sciencia positiva e experimental.


• • •

Escrevendo o que ahi fica, eu não tomo o partido contra as tendencias da minha epocha, nem a favor d'ellas. Sou o relator imparcial do espectaculo a que assisto. Não ha porém, a meu ver, tragedia mais dolorosa do que esta de que o meu tempo é o theatro.

E sinto no fundo desconsolado e escuro da minha alma de mulher, aquella ineffavel tristeza dilaceradora que Virgilio sentiu, quando, pelas florestas do seu Lacio, ouviu passar a voz lamentosa e inolvidavel, que annunciava ás gentes a morte do velho Pan!

Desgraçadas as gerações que são fatalmente condemnadas a assistirem ao desmoronar de um mundo.