Alguns Homens do Meu Tempo/Teixeira de Queiroz
Com quanto seja avultada a bagagem litteraria d'este escriptor, comquanto seja admiravel a sua actividade intellectual, n'um meio tão hostil a todos os trabalhos de imaginação ou de arte, a verdade é que Bento Moreno não é, e creio que nunca será, um romancista popular.
É restricto o publico que o conhece e admira, e por isso mesmo, mais rigoroso é ainda o dever da critica, perante este ostracismo injusto a que é votado um talento bem nosso, bem portuguez, e d'uma probidade litteraria, presentemente rara em toda a parte, quanto mais entre nós.
Hoje o escriptor portuguez, para ser lido e conhecido, precisa de banalisar-se primeiro no jornalismo de todos os dias. O nosso publico tem apenas a paxorra necessaria para ler as gazetas. Uma élite ha, pouco numerosa ainda assim, que compra a ultima novidade parisiense na livraria da moda, mas isto de ter em cada dia uma ou mais horas destinadas a essa grande e purificadôra cultura do espirito, chamada a leitura, é cousa que realmente não conhecem as nossas mulheres e muito menos os nossos homens.
Os romancistas modernos, capitaneados por Flaubert e por Zola, professam o mais profundo e altivo desdem para com o publico feminino. Fazem mal, e por duas razões:
Primeiramente porque a imaginação e a sensibilidade da mulher são muitissimo mais promptas e accessiveis que as do homem para este genero de leitura, e depois porque a verdade dura, mas positiva é esta: só as mulheres e os homens extremamente moços, isto é, ainda um pouco mulheres, teem paciencia tempo e gosto de lêr romances.
Passado esse primeiro periodo da vida em que o sentimento impera sobre a razão, em que a phantasia é mais forte que o raciocinio, em que as questões do coração são as grandes questões que sobrelevam a todas, qual é o homem que lê romances, e se enthusiasma por esses creadores d'almas, chamados romancistas?
Talvez que os artistas os leiam, mas em cada dois mil espiritos praticos póde talvez encontrar-se um espirito de artista. Não é o bastante para constituir um publico, e sem publico como é que o escriptor póde passar?...
São portanto as mulheres e os moços que restam ao romancista. É sobre esses que elle tem de actuar, é esses que elle interessa e emociona, educa ou perverte, ammollece ou tonifica, agita ou faz pensar.
As nossas mulheres leêm pouco. Falta de tempo, falta de habito, falta de cultura litteraria, falta de gosto ingenito?... Não sei, nem é realmente este o momento de o investigar. D'aqui provem portanto o escassissimo mercado dos nossos livros. É o Brazil que ainda assim se encarrega de lêr o que os nossos escriptores publicam e no Brazil tem Bento Moreno uma popularidade muito maior do que chegou a alcançar aqui.
Foi com um volume de Contos que Bento Moreno, haverá quatorze annos se estreou na litteratura portugueza. Os que lêram este primeiro volume da Comedia do Campo, e os que podiam ter n'este ponto opinião que valesse a pena de attender-se, perceberam no artista que se estreiava faculdades singulares, que davam á sua penna um cunho inconfundivel. Não se parecer com ninguem é a condição indeclinavel, indispensavel do escriptor de raça.
Bento Moreno appareceu logo com um estylo seu.
Era duro esse estylo; não tinha as malleabilidades, as ductilidades e as graças que se assignalam sympathicamente ao instincto do leitor; havia n'elle um não sei quê de primitivo, de ingenuo, de não cultivado, que o tornava talvez ainda defeituoso e tosco, mas as qualidades poderosas do observador e o sentimento vivo e profundo do pittoresco revellavam-se já n'este livro d'um modo surprehendente. A alma primitiva e rude do minhoto, a paysagem deliciosamente verde, e singelamente idyllica do Minho, retratavam-se ali, n'aquelle primeiro livro, em traços admiraveis de verdade e de encanto. Observar e sentir, não serão estas as duas faculdades principaes de todo o artista?
O theatro era talvez monotono e um pouco trivial na sua verdura sem quebras, na sua paysagem sem accidentes e sem relevo accentuado; os personagens não tinham nem o vigor brutal, e o monstruoso aspecto inquietador dos camponezes de Zola, nem a manha, e a velhacaria quasi grandiosas dos camponios de Balzac; mas scenario e figuras eram bem nossas, e não havia nas paginas d'esse livro, como de resto continuou a não haver nas obras de Bento Moreno, reminiscencias litterarias, echos de vozes já ouvidas, copia ou imitação de processos extrangeiros, pastiches de creações alheias!
Seguiram-se, com intervallos desiguaes, a esse primeiro volume de contos minhotos d'um sabor tão vivamente original, sentant le terroir, na phrase franceza para a qual não encontro n'este instante equivalente, muitos outros de varios generos, que accusavam cada vez mais o progresso do estylista e a indole especial do escriptor.
São esses livros o Amor Divino, o Antonio Fogueira, os Noivos, o Grande homem, o Sallustio Nogueira, e os Novos Contos.
D'esta bibliographia variada e extensa o que eu prefiro, são os Novos Contos, o Amor Divino, e o Antonio Fogueira.
Desde que a critica hoje não é mais, no dizer de Anatole France, que as aventuras do espirito de cada critico atravez dos livros que este lê, porque não confessarei que em Bento Moreno prefiro o contista ao romancista?
É que o Amor Divino, os Novos Contos e o Antonio Fogueira, pintam deliciosamente e naturalistamente scenas da vida minhota, quadros da paysagem minhota, traços, condições peculiares, sentimentos e impressões da alma minhota.
Desdenhando inteiramente o successo facil e o applauso condicional d'um publico pouco litterario, Bento Moreno continuou a seguir, com enlêvos de artista, o precioso filão que descobrira.
Elle, de resto, não fez senão recordar-se bem, e traduzir―pondo a nota justa nas suas formosas interpretações artisticas,―as scenas que vira e que presenceára na infancia, inconsciente da graça nativa que d'ellas se evola como um perfume acre e sadio!
Este escriptor, que o publico não tem favorecido com excessiva attenção, é comtudo um dos homens mais doidos pela sua arte, que eu tenho conhecido na minha já não curta existencia.
A fortuna, que ninguem mais do que elle merecia, pol-o desde longos annos ao abrigo d'esta necessidade ferrea, que nos traz a tantos de nós, curvados sobre a banca do trabalho, exhaurindo sobre ella a nossa força, a nossa seiva intellectual, a nossa saude, a nossa alegria, a nossa vida emfim.
Mas que lhe importava a elle esse secundario accessorio?
O trabalho litterario é o grande e o mais profundo amor da sua alma, tão nobremente povoada de affectos santos.
Debaixo do seu sorriso de sceptico, sob a sua palavra um pouco mordaz sem nunca ser maledicente, um pouco acre, sem nunca ser cruel, esconde-se um d'estes corações d'ouro, uma d'estas organisações d'uma sensibilidade exquisita e dolorosa, excessivamente impressionavel, aberta ás proprias dôres, e o que é mais, ás dôres d'aquelles que ama! Esta sensibilidade fez d'elle, irremediavelmente, o artista condemnado ás gestações dolorosas da ideia, aos improbos combates da fórma, ás tristezas invenciveis dos longos periodos de desalento, ás luctas sempre renascentes da creação artistica, laboriosa e terrivelmente fatigante para o cerebro.
Nos Contos de Bento Moreno ha duas figuras, que ressaltam principalmente, com uma vida intensa, com uma realidade violenta. São o abbade e o brazileiro, as duas entidades importantissimas na paysagem risonha e na farta vida tão singela da nossa verde provincia.
Foram Camillo e Bento Moreno os que comprehenderam e puzeram em poderoso relêvo estas duas figuras caracteristicas e tão nacionaes! Em Camillo, a linguagem d'uma riqueza incomparavelmente superior, a intensidade e a vivacidade comica da expressão, que o tornam rival, muita vez triumphante, dos maiores humoristas do mundo, imprimem nas suas creações a perfeição e o cunho soberbo das duradoiras obras, que nenhuma revolução do gosto póde destruir.
Bento Moreno, com muito menos belleza na execução plastica da sua obra, com muitas mais imperfeições de processo, dá uma realidade mais viva, um cunho mais sincero ao personagem. Camillo faz o typo; elle desenha a physionomia muito individual, muito caracteristica da figura evocada, de modo a não deixar que se esqueça mais, ou que se confunda com qualquer outra.
As concepções diversas, que os dois teem da Arte percebem-se claramente nas differenças fundamentaes do modo de a executar. Mas o abbade é tão palpavel e real nos Contos de Bento Moreno, como nas paginas scintillantes de humor do grande romancista, e o brazileiro tem talvez mais verdade, visto atravez da lente microscopica de Teixeira de Queiroz, analysado com a paciencia de naturalista que distingue este observador, do que pintado a fresco em largas pinceladas d'um immorredoiro sabor comico, pelo engenho extraordinario de Camillo Castello Branco.
Percebe-se à priori que o genero em que mais se deleita e em que mais excellentemente se manifesta a imaginação e a observação de Bento Moreno, não favorece n'elle o estudo das complicações psychologicas e dos requintes sentimentaes, que tanto no gosto estão dos leitores contemporaneos.
São almas simples as que elle melhor analysa e disseca. Uma pequena ambição, uma vaidade pueril, um sonho de primitiva singeleza, uma paixão rude e instinctiva; bastam para encher estas vidas ingenuas que o artista se entretem em pôr a nú. Mesmo o drama, quando apparece como no Antonio Fogueira, é um drama sem complicações extranhas, sem contradições, sem complexidade, sem mysterios de indecifravel profundeza.
Ou selvagens, ou pueris, ou violentas ou ingenuas, estas almas sentem impetuosamente, n'uma explosão de instinctos irreductiveis e ardentes; ou vegetam n'uma doçura inconsciente de planta que medra ao sol, bebendo a luz sem saber que a bebe, amando sem ter a impressão de que ama!
O estylo de Bento Moreno que principiou por sêr duro e inflexivel, como se não houvesse meio de o fazer obedecer docilmente á vontade e aos caprichos do escriptor, e que pouco a pouco se foi transformando e aperfeiçoando, ammolleceu-se n'este ultimo livro―Os Novos Contos―em notas d'uma melancolia discreta, e d'uma sensibilidade suavemente vellada, e ha Contos d'elle como a A minha morte, o Nosso Senhor Jesus Christo, o Cego de Guardiam, que dão uma nova phase d'este talento progressivo, e perfectivel como os talentos de bôa raça.
O Amor Divino (pathologia d'uma Santa) foi talvez um dos melhores assumptos, que Bento Moreno encontrou no seu caminho de observador e analysta scientifico das doenças e manias do animal humano.
A influencia do missionario na alma rude, ingenua e candida da mulher do povo das nossas provincias do Norte, é, como todos sabem, poderosissima.
Quando as missões passam pelas aldeas de Portugal, que ainda estão sob a influencia d'esse meio paganismo, que ellas julgam religião catholica, o que succede ahi de perturbador e de desordenado, chega a parecer inverosimil e phantastico.
As raparigas deixam cahir, cortadas aos pés, as longas tranças nem sempre excessivamente cuidadas dos seus cabellos escuros e bastos; as mulheres abandonam pela egreja a casa onde o marido e os filhos ficam entregues á mais deploravel incuria! Ouvem-se pelas ruas e pelas azinhagas de carvalheiras, em que a vinha de enforcado pendura os pampanos verde-claros, brados afflictivos de peccadôras arrependidas que se lamentam; ha restituições de objectos roubados, denuncias de crimes esquecidos, bulhas medonhas entre os paes e as filhas os maridos e as mulheres; as beatas arrepellam-se por quererem, todas á uma, ser a favorita do sr. missionario que mais virtude apparenta; e nos campos tranquillos e nas aldeias monotonas, que a ausencia completa do aceio feminino torna sempre tão tristemente contradictorias com a paysagem circumdante, luminosa, farta e festiva, tamanho movimento, tamanho bulicio, tamanhas luctas se d arrepellam-se por quererem, todas á uma, ser a favorita do sr. missionario que mais virtude apparenta; e nos campos tranquillos e nas aldeias monotonas, que a ausencia completa do aceio feminino torna sempre tão tristemente contradictorias com a paysagem circumdante, luminosa, farta e festiva, tamanho movimento, tamanho bulicio, tamanhas luctas se desenvolvem, que chegam a fazer, de cada passagem de missionarios uma revolução memoravel.
Como em todos os movimentos sinceros da alma popular ha n'este muito oiro e muita escoria, muita cousa boa e muita cousa má.
A inconsciencia animal, em que vive o nosso camponez, é violentamente sacudida pela prédica, sempre adquada ao seu rude auditorio, do missionario que vem espalhar pelo povo a palavra de Deus. E, certamente levar uma pouca de luz a cerebros rudimentares, tão profundamente submersos nas trevas d'uma ignorancia absoluta e d'uma inconsciencia moral verdadeiramente lamentavel, poderia considerar-se uma obra santa, se os missionarios se limitassem a fazer penetrar no duro cerebro dos seus ouvintes algumas noções de moral, de religião e de tolerancia mutua.
É porem exactamente o contrario que succede, ou antes, succede o que é mais pernicioso que tudo!
Dirigindo-se de preferencia ás mulheres, d'uma impressionabilidade mais dolorosa e mais vibratil, d'uma fraqueza organica mais accessivel a qualquer influencia profunda, o que elles fazem é exacerbar-lhes perigosamente a sensibilidade, latente em todo o organismo feminino, e precipital-as n'uma ordem de ideias e de sensações morbidas, que por tenebrosas e desconhecidas, são infinitamente perturbadôras para as infelizes...
Pintando como peccado mortal a florescencia do rude instincto irreductivel, e da innocente e expansiva natureza; condemnando como um crime horrendo o exercicio das faculdades naturaes a todo o organismo humano; fazendo a descripção medonha e phantastica do inferno, que espera todos os que tiverem a desgraça de faltar aos preceitos da Egreja mais orthodoxa, e da Moral mais austera; accentuando com traços realistas, e com violentas côres brutaes, feitas para fallar ao instincto da multidão ignorante, esse Inferno em que os supplicios são comprehensiveis pelo materialismo grosseiro e pelas imagens physicas d'uma revoltante energia;―os missionarios levam a desordem, o desiquilibrio a todas as que os ouvem, e a loucura ás imaginações mais exaltadas, e aos organismos mais fracos.
Quantas raparigas do povo enlouquecem ao ouvil-os!... Quantas, fugindo para o convento ou fazendo-se irmãs de caridade procuram, na lida esmagadora ou na clausura estreita aggravada pelos cilicios e pelos jejuns, o perdão de imaginarios peccados e de phantasticas culpas!...
Pois o Amor Divino é isto que pinta dramaticamente, com verdade, com animação, com muita diversidade de typos e de figuras reaes, e bem tocadas.
O Amor Divino é a acção exercida pela palavra candente e inflammada d'um missionario, no espirito, no coração, na vida interior, d'uma robusta e alegre minhota, risonha, sensual, fortemente retemperada por aquelle bello sol luxuriante e quente para as sãs alegrias da vida e da maternidade feliz!
O missionario transfigura-a, e pouco a pouco, por uma gradação escrupulosamente notada, leva a pobre moça á exaltação, ao hysterismo, ao delirio, ao mysticismo das vizionarias e das stygmatisadas, á morte emfim, acompanhada de torturas e de hallucinações pavorosas!...
Se á belleza d'esta concepção, se á intuição delicada de tantos segredos intimos da organisação feminina, se ao vigor transcendente do assumpto, correspondesse n'este livro―um dos melhores de Bento Moreno―a impeccavel pureza d'uma fórma burilada e perfeita, este volume ficaria como uma preciosidade litteraria incomparavel!
Raras vezes um assumpto tão verdadeiro, tão rico de aspectos diversos, tão suggestivo, se offerece ao estudo d'um observador no genero especial de Bento Moreno!
Tem defeitos o livro? Tem. Mas é um dos melhores, dos mais exactos, dos mais bem feitos que devemos á penna de Teixeira de Queiroz, e é um documento soberbo de verdade, e de vigor naturalista.
O Antonio Fogueira, é outro dos meus estudos favoritos. Que bellas paginas de paysagem, que notação exacta no estudo d'esse typo tão caracteristico e tão popular de feirante, amando os bons cavallos, o bom vinho, as robustas e alegres cachopas, vivendo com a inconsciencia vegetativa d'um bello e forte bruto, que nenhuma lei flexibilisou, em que nenhum principio moral actua, cujo duro craneo não abriga uma ideia, mas em cujo temperamento vegetam―no luxo enorme, na floração purpurea, no regorgitamento sensual da seiva mais opulenta,―os instinctos do selvagem, do animal bravio independente e feroz.
Tanto o Amor Divino como o Antonio Fogueira, tanto o primeiro volume como o ultimo dos contos soltos, não poderiam ter sido escriptos, pensados, sentidos, senão em Portugal, senão na provincia em que teem a sua origem e a sua raiz vigorosa e tenaz. Este merito é enorme n'uma litteratura como a nossa, em que muitos dos melhores livros de costumes ou de analyse psychologica parecem traduzidos do francez!
Eis provavelmente o defeito que as nossas delicadas leitoras lhes encontram. Que lhes importa a ellas, no fim de contas, o que pensa um cerebro plebeu de abbade minhoto, ou de homem do campo robusto, indisciplinavel e brigão?
Que lhes importa o aspecto extranho que assumem, o mysticismo e a exaltação devota, na organisação robusta e brutal de uma pobre e ignorante mulher do campo?
Não é assim que pensam os cardeaes e os prelados, graciosamente affaveis, classicamente eruditos, risonhamente paternaes, delicados casuistas de consciencia, finos argumentadores theologicos e ao mesmo tempo conversadores adoravelmente indulgentes, a quem ellas, as gentis catholicas do mundo, beijam o annel encontrando-os nas salas mais selected, ante os quaes ellas se ajoelham rendidas, nas cerimonias patheticas e magestosas, austeras e tão impressionadôras do culto, que praticam e professam devotamente.
Não é assim que procedem os dandys que ellas conhecem e admiram; nem é assim que a paixão dos divinos mysterios, que o extase das insondaveis beatitudes, as aspirações mysticas e a exaltação sagrada se manifestam nas deliciosas e pallidas mulheres, que ellas tractam de perto, e das quaes algumas se refugiam de vez em quando, do mundo que as trahiu e desenganou, sob o habito austero das vizitandinas, ou sob a grande touca branca de azas soltas das irmãs de S. Vicente de Paula.
Eu propria, mais amiga dos estudos em que a alma moderna, atormentada, saciada, desformizada por uma cultura excessiva, sonhadora de amarguras e de volupias ineditas, traduz as suas dôres peculiares, as suas doenças complicadas e extranhas, eu propria inacessivel ás vezes á sã e robusta influencia da mãe natureza, me penitenceio aqui do crime de que accuso as leitoras.
E no entanto a critica não deve assim proceder, para ser lucida e justa. A sua obrigação é collocar-se nos mais diversos pontos de vista, e explicar e comprehender as mais diversas tendencias.
Acceite, sem condições de especie alguma, o ponto de partida do escriptor, o que ella tem de verificar é se a obra correspondeu á concepção embryonaria, e traduziu bem a sua ideia inicial.
As mais oppostas manifestações de arte são igualmente legitimas perante o critico, os temperamentos mais contrarios obedecem á lei superior que os justifica, explicando-os, e per As mais oppostas manifestações de arte são igualmente legitimas perante o critico, os temperamentos mais contrarios obedecem á lei superior que os justifica, explicando-os, e perante a qual, quem só procura a verdade e só a verdade investiga, tem de curvar-se com respeito sincero.
Não me parece que na sua Comedia burgueza, Teixeira de Queiroz fosse tão feliz como na Comedia do Campo.
O estylo tem sempre progredido, a maneira do escriptor, á proporção que elle avança na vida, vae-se tornando ao mesmo tempo mais flexivel, mais firme e mais sinuosa.
Comtudo é fóra de duvida que o seu instrumento de analyse presta-se menos ao estudo do meio burguez, mais complicado e mais réles, do que se presta á observação larga e feliz dos costumes campestres, e das simples almas plebeias e incorruptas, mesmo até na violencia ou no crime.
Os Noivos são talvez uma pintura exacta. Exacta de mais! Não a sobredoira um raio de luz ideal. N'esse casal burguez profundamente antipathico e inesthetico, o marido é mediocre, pobre, mesquinho de comprehensão e de sentimento, incapaz de nos interessar pela sua figura incolor e em que nenhuma paixão cravou a garra leonina, em que nenhuma força desenvolve e manifesta energias latentes.
A mulher é mal educada, é rélesmente ambiciosa, coquette sem graça, amiga do luxo sem intuição artistica do seu valor, sensual sem impetuosidades de femea robusta e indisciplinavel. O meio em que elles se movem corresponde, pelo seu acanhado ambito, aos personagens, que longe de reagirem contra elle se lhe subordinam ás leis corruptôras.
É esta uma pintura real da pequena burguezia das grandes cidades? Não creio que o seja. Mas é um recanto d'essa classe, que toca d'um lado no povo inculto, que por outro se relaciona com uma cathegoria social mais rica, mais educada e mais ambiciosa; tendo os vicios d'uma e d'outra classe, sem ter nenhuma das qualidades solidas e grandes que no bem, distinguem e caracterisam qualquer das duas.
Essa classe dubia que tem do povo a grosseria do instincto e que tem da burguezia a ancia de parecer, o amor do luxo apparente e barato, a ambição de elevar-se socialmente, o respeito das cousas officiaes, das pessoas e superioridades consagradas, está aqui realmente apanhada, em muitas das culpas flagrantes que a assignalam e a tornam tão profundamente antipathica para o artista! Vê-se que Bento Moreno empregou n'este estudo o mesmo escrupulo de naturalista, a mesma indifferença de observador e de colleccionador, ao qual o sapo e a andorinha, a rosa ou o cardo, a borboleta multicôr ou a viscosa lagarta, interessam igualmente, e igualmente sollicitam e prendem!
Foi o mundo politico que no Grande homem e no Sallustio Nogueira, Teixeira de Queiroz tentou estudar de mais perto.
São simples tentativas no genero estes trabalhos. Em ambos se manifestam as qualidades e os defeitos do escriptor. Mas o estylo tem sem duvida um grande progresso. Faltam os dados para a observação positiva; os factos não tem aquelle carimbo de verdade tão indispensavel ao romancista da nova escola; o documento humano nem sempre é authentico e incontestado. Tudo isto porem virá com o tempo, e essas acquisições secundarias dependem do esforço e do poder de vontade empregados pelo escriptor.
Concluindo repetirei o que já disse. A impopularidade de Bento Moreno é inteiramente injustificavel.
Não falta a este escriptor a graça natural nem o colorido pittoresco e vivo, nem a sensibilidade mais vibrante e mais enternecida!
Elle comprehende a natureza como poucos; é genuinamente portuguez no modo de sentir, e de traduzir a impressão que lhe é suggerida pelo espectaculo do mundo; e no seu talento impressionavel e delicado, ha uma flôr de sinceridade, de honestidade e de nobreza ingenua que me encanta!
No mundo actual em que triumpha o materialismo, o mercantilismo, o amor do ganho, elle adora com tocante desinteresse a Arte, que nem sempre o tem recompensado dos seus extremos, o trabalho que prosegue infatigavel, sempre em busca do melhor, sempre aspirando ao ponto mais alto e á comprehensão mais ampla do seu assumpto, sempre perseguindo aquella verdade relativa que é dado a cada homem possuir ou sonhar...
Cada novo livro tem revellado n'elle um progresso ou de estylo, ou de sentimento e de observação. Espirito eminentemente progressivo, Bento Moreno não nos deu ainda a medida completa do seu valor.
Atravez de todos os seus livros―marcos milliarios d'uma marcha ascencional―elle tem caminhado para alguma cousa de definitivo e de completo, que se está elaborando talvez inconscientemente no cerebro fecundo do notavel contista, e que hade surgir, enriquecida de todos os dons variados e preciosos que elle tem ido lentamente, gradualmente adquirindo e manifestando em cada novo volume publicado.
Entre o auctor do primeiro volume da Comedia do Campo e o auctor dos Novos Contos, que extraordinaria differença, mas que progresso logico e natural!
Muitas das qualidades que só appareceram ali em germen apenas, fructificaram já; muitas estão na primeira flôr, e muitas não conseguiram ainda sahir do estado embryonario em que pela primeira vez appareceram. Mas o tempo que produz o seu effeito n'alguma d'ellas, ha de exercer nas outras a mesma acção embora mais tardia, e cada novo livro de Bento Moreno confirmará, estou certa, este diagnostico da critica.
Felizes os espiritos progressivos porque elles são os que triumpham do tempo, felizes os escriptores que em cada obra affirmam uma nova qualidade, porque n'elles o talento é uma ascenção laboriosa embora, mas feliz e consoladôra para a luz e para o ideal!