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Alguns Homens do Meu Tempo/Ramalho e Eça

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O mystério da estrada de Cintra

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Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz acabam de apresentar ao publico portuguez e brazileiro, ou, antes, de consentir que lhe seja apresentado por um editor intelligente, o livro da mocidade de ambos, que ha quatorze annos teve em Lisboa um successo de curiosidade e depois de enthusiasmo, quando foi publicado dia a dia nos folhetins do Diario de Noticias.

Foi n'essa occasião, e não no livro que depois saiu a lume, que eu li o romance, e lembrava-me, como toda a gente, da impressão immensamente grata, que essa obra improvisada, escripta à la diable, tinha produzido em mim.

Fui, portanto, como é natural, uma das primeiras compradoras do volume, e, decerto, não fui, de todas as que o teem lido n'estes dias, a menos interessada e curiosa.

Queria saber, antes de tudo, se estava muito mudado o meu gosto litterario, se o romance experimental, o romance naturalista, o documento humano, e o estudo frio, analytico, impessoal, das miserias d'este mundo, me tinham de todo roubado a sensibilidade e a paixão, que a mulher tem no espirito, ainda que as não tenha em mais nada.

Felizmente não succedeu assim!

Eu que devoro os romances dos Goncourts, eu que admiro a força rembrandnesca de Zola, eu que me sinto fascinada deante da obra de Flaubert, e que espero muito de Guy Maupassant, o dilecto discipulo, o continuador convicto do grande romancista morto, que escreveu a Bovary―eu posso ainda gosar intensamente um improviso qualquer da mocidade, em que a sensibilidade e a imaginação predominem.

Como eu gostei ainda hoje do Mysterio da Estrada de Cintra!

Infelizmente, conheço-lhe os defeitos innumeros, cousa que não conhecia ha quatorze annos; percebo bem onde os dois auctores foram beber a inspiração de muitas d'aquellas paginas mais brilhantes; estou vendo claramente as inverosimilhanças flagrantes, as falsidades, os pastiches, e, ante a critica da minha envelhecida rasão, educada por Taine, entendo, como entendem os auctores do romance, que o romance é execravel!

Tão indesculpaveis seriam os dois valentes athletas da moderna litteratura portugueza se fizessem hoje um livro assim, como seria lamentavel e triste que elles o não tivessem feito, quando ambos eram moços!

A par das imperfeições, quantas bellezas! que perolas de sentimento, de imaginação, de fina graça, de sonhadora melancolia!...

São falsos os personagens?!

De accordo; são falsissimos! mas são muito sympathicos!

Não ha nenhum de quem eu hontem, depois de ler o livro de um só folego, me não despedisse com uma certa saudade!

A condessa W. é uma condessa perfeitamente talhada n'um velho molde romantico.

Já não ha em parte alguma condessas assim!

No mundo real nunca ninguem as viu; no romance moderno encontra-se de tudo, menos d'aquellas doces mulheres encantadoras e apaixonadas, arrebatadas e elegantes.

Paciencia.

Eu não a queria, decerto, para minha irmã, nem para minha amiga, mas gosto de a vêr assim de longe, na perspectiva que lhe faz o pincel prestigioso dos dois escriptores.

É verdade que ella não passa de uma ociosa e de uma hysterica; não tem rasão, não tem vontade, não tem principios, não tem heroismos de luctadora; moralmente, não vale nada aos meus olhos; artisticamente, encanta-me!

É uma creatura que ama, que soffre, que se mata nas duras penitençias de um claustro mais apertado e mais duro que uma cadeia, e que nas suas agonias impetuosas, nas suas dôres, nas suas ardentes aspirações á felicidade impossivel, se não parece nada com as detestaveis heroinas, inconscientes ou perversas, da moderna litteratura latina, tão desconsoladora, tão dura, tão cruel!

Mas valerá ella mais, por ventura, do que essas valem? perguntas-me tu, leitora!

Vale, sim!

Valem mais as que amam que as que vivem na inercia indifferente do coração! valem mais as que padecem que as que se deixam viver tranquillas na baixesa ignobil do peccado! valem mais as que se arrependem que as que nunca perceberam que erraram!

Decerto, que em face das leis immutaveis do Dever, nenhuma pode ter a absolvição social; no emtanto, ao menos esta, coitada! tem a sinceridade da sua paixão, tem o encanto vivo, penetrante e communicativo do seu fatal amor!

Não discutamos, porém, a moralidade do romance; essa lá lh'a pozeram os auctores na morte e na clausura voluntaria das duas desatinadas heroinas.

Discutamos simplesmente a sua belleza artistica.

O Mysterio da Estrada de Cintra tem paginas, como nunca mais os dois homens, que as escreveram, tornaram ou tornarão a escrever.

Penetra-as o insubstituivel, o capitoso aroma da mocidade; são sentidas, são quentes, são tremulas de ternuras, são flammejantes de paixão!

O conjuncto da obra, é claro que é inferior a tudo que elles tem feito depois: ao humour, á fina e aguda observação, á critica mordente, á analyse incisiva, ao estylo poderoso e vivo das Farpas, do Primo Bazilio e do Crime do Padre Amaro, e dos folhetins ultimamente escriptos para um jornal do Brazil;―mas, apesar de tudo, ha graças e desleixos que o artista só tem na flor inexperiente e virginal do seu talento, e que mais tarde são compensados por meritos mais distinctos, por qualidades superiores, pela firmeza magistral da penna, do buril, ou do pincel, mas que nunca mais podem ser substituidos!

Como as distinctas individualidades dos dois escriptores se destacam bem nas paginas do romance!

A phantasia, o magico poder do estylo de Eça de Queiroz, resaltam ao lado da critica mais philosophica, da observação mais penetrante de Ramalho Ortigão.

A morte de Carmen, a caçada na India, escreveu-as Eça com a penna que mais tarde, convertida ao realismo, contará a agonia de Luiza, a burgueza peccadora, e as soirées de Leiria, entre padres e devotas; a carta de Rytmel á condessa, a descripção do claustro no Minho, as reflexões da pobre amante desvairada, antes da fuga que ia roubal-a para sempre á sociedade em que ella tinha vivido, á casta a que pertencia, revelam já todas as qualidades do espirito observador e amante do pittoresco, que fez de Ramalho Ortigão um dos melhores criticos de costumes da litteratura contemporanea.

A publicação d'este formoso romance arrancou, por uns dias a somnolenta Lisboa ao seu indifferentismo systematico por tudo que seja questão de lettras ou questão de arte.

Nas salas discute-se com immenso interesse o enredo do romance, o seu estylo, o contraste que elle faz com as publicações posteriores dos dois grandes artistas que o firmam.

Marcam-se as diversas étapes que percorreu o espirito de ambos; e faz-se d'este modo uma critica litteraria, bem mais facil do que a que podia ter sido feita ha quatorze annos, quando o livro appareceu pela primeira vez, revelando, a quem sabe conhecer estas coisas, dois e scriptores de raça.

Os homens, como é natural, interrogam insidiosamente as senhoras a respeito do que ellas pensam das duas heroinas do livro.

Elles, já se vê, gostam todos muito da Carmen, um typo estranho, muito menos real que o da Condessa, mas que, ainda assim, n'este momento em que tanto estão attrahindo as attenções do publico as mulheres que matam, tem uma certa opportunidade e uma certa verosimilhança.

A Condessa, porém, tem a sympathia occulta das austeras e a sympathia declarada das temerarias...

Ninguem quereria imital-a, todas a comprehendem mais ou menos.

É uma desequilibrada, uma doente.

A paixão entrou na vida d'ella, como entra um pé de vento n'uma casa mal abrigada.

D'ahi a revolução, d'ahi o desmoronamento.

Não nascêra para o peccado, não.

Era fina, era delicada; tinha o amor e o desejo de todas as harmonias moraes e sociaes; tinham-n'a educado correctamente, convencionalmente; houve quem presumisse na vida da pobre creatura todas as hypotheses, menos a de um sentimento real e sincero.

Foi esse que appareceu; que surgiu fatalmente, chamado por uma serie de circumstancias imprevistas; e como não poude ser na alma d'ella o bom pão que alimenta, foi a cicuta que empeçonha e mata!

É uma peccadora, bem sabemos, mas emfim é uma mulher!

Cumpre-nos a nós fazer com que as nossas filhas sejam mulheres, sem serem peccadoras; amem, sem que o amor as diminua e amesquinhe, antes auxilie o desenvolvimento, são e natural, de todas as suas forças e de todas as suas faculdades!

Se nós nos mettessemos de boa fé n'esta empreza tão grande de pôr na vida o romance, sem lhe pormos ao mesmo tempo o peccado?!...

Realmente a litteratura, que é sempre o exacto reflexo das tendencias moraes e sentimentaes de uma dada época, está accentuando cruelmente e demasiadamente o principio de reacção, que em começo foi justo e foi racional, contra os desmandos nebulosos do romantismo, contra a sensibilidade, exaggerada, lamartineana, da nossa mocidade.

Não seria tão bom que, depois d'estas tristes tentativas experimentaes, que os proprios mestres vão realmente abysmando nos lodaçaes mais torpes da palavra, do estylo e da idéa, apparecesse emfim a litteratura que retractasse o homem―o homem complexo, o homem ondoyant e divers, tal como o viu Montaigne, o homem bom e mau no mesmo dia e ás vezes na mesma hora, o homem capaz de baixezas e de heroismos, de vicios e de abnegações insolitas, o homem n'uma palavra―estranho mixto do que ha de mais bello e do que ha de mais ignobil?!

Não teriam então os detractores da escola naturalista razão para dizer que ella, sendo em principio tudo quanto os seus sacerdotes maximos apregoam e proclamam de scientifico, de grande e de verdadeiro, não passa, na pratica, da escola das feias palávras e das acções ainda mais feias.

O verdadeiro naturalismo seria então creado pela primeira vez, tal como Shakespeare o presentiu no seu espirito barbaro e sublime, tal como Balzac o realisaria se não houvesse morrido no extazi mal definido ainda do seu descobrimento genial!

A litteratura do nosso tempo dar-nos-hia o homem e a mulher que nenhum outro seculo conheceu, e sobre os quaes tem reagido, de um modo estranho e tão difficil de analysar completamente, a influencia da nossa collossal e desequilibrada civilisação, feita de tantas duvidas, de tantas affirmações, de tantos problemas insoluveis...

Evitar o estudo das exaggerações morbidas, dos casos pathologicos, das aberrações mentaes, das enfermidades que pertencem ao dominio da sciencia, não seria no fim de contas o unico meio de rehabilitar a Arte da dependencia, em que ella parece querer estar, do amphitheatro dos hospitaes, ou da enfermaria dirigida por Charcot?

O organismo do homem moderno, na sua complexidade maravilhosa, na enorme e labyrinthada complicação que lhe dá hoje o desenvolvimento do seu cerebro e dos seus nervos, é realmente um estudo difficilimo, um estudo que abrange todos os outros e que exige a analyse penetrante, fina e subtil do physiologista, a observação larga, profunda e sympathica do philosopho, a flexibilidade ondeante, o sopro creador do artista de genio.

Realisar o programma imaginado pelos mestres da arte contemporanea, é bem menos praticavel de certo do que passar ao lado d'elle, como elles até aqui teem feito.

É porque lhes falleceu a coragem para essa empreza de gigantes que elles teem convertido, a pouco e pouco, o seu naturalismo n'uma especie de romantismo ás vessas.

Salvo excepções esplendidas, que são os milagres da moderna arte, os que d'antes faziam anjos, fazem agora monstros! Os que se davam ao trabalho de modelarem as suas estatuas no gello immaculado das alturas, amassam-n'as hoje no barro viscozo dos lodaçaes.

E a verdade onde fica?!...

A mim parecem-me tão pouco humanas as sylphides de Lamartine, como as femeas inconscientes de Zola.

Entre ellas está a mulher. Porque a não procuram? porque é que a não retratam, ou antes, porque é que a não criam?

Esperemos que a litteratura deixe de ser uma escola d'isto ou d'aquillo, uma reacção contra isto ou contra aquillo. Que ella seja serena como a verdade, e será emfim humana; que elle nos pinte quaes nós somos, e poderá então chamar-se natural.

É muito bom estudar as miserias da nossa rua, na phrase pittoresca de Eça e de Ramalho; mas, por Deus! parece-me demasiado restricto esse ponto de vista!

Imagine-se que os escriptores escolheram uma rua infeliz, uma rua povoada de remendões e de vendedoras de peixe!...

Parece-me isso um pouco o caso de alguns dos grandes romancistas contemporaneos!

Nunca me poderei chegar a convencer que abrir as paginas de um livro corresponda a ir visitar um hospital; que folhear um romance me dará conhecimentos eguaes aos que me daria a estatistica do alcoolismo, ou a de outro qualquer dos grandes vicios modernos.

A ignorancia é, de certo, minha, que sei pouquissimo, e que vou aprendendo cada vez menos.

Em todo o caso, obrigada ao Mysterio da Estrada de Cintra, que me repousou um pouco da má companhia a que os mestres me teem habituado ultimamente.