Alves & Cia/IV
NETO ENTROU. Ao ver a mesa posta, com o grande empadão, o fiambre e Godofredo de guardanapo entalado no colarinho, e com a garrafa ao lado, Neto ficou junto da porta, com um ar de surpresa, o chapéu numa das mãos, a bengala na outra. Terminou pôr murmurar, com uma ponta de amargura:
— Está bem, vejo que não falta o apetite.
Godofredo erguera-se logo, tomara uma vela de cima do aparador, dirigira-se à sala de visitas. Mas Neto não consentiu.
— Não senhor, temos tempo de falar, acabe você de jantar...
Mas Alves depois de levar à boca uma colher de sopa repelira o prato, tocou a campainha ao lado. Neto no entanto pousava, vagarosamente, o seu chapéu, a sua bengala, numa cadeira - enchendo o silêncio que se fizera, com lentidão dos seus movimentos. Era um homenzarrão, que fora nos seus tempos belo homem, e conservava ainda um bom perfil, a que a extrema palidez dava uma finura e distinção. Sobre a calva tinha duas repas de cabelo, laboriosamente e singularmente arranjadas: o bigode grisalho parecia cortado rente, a direito, duma só tesourada: e os seus menores movimentos tinham tanto uma afetação de dignidade, e de seriedade, que mesmo, nesse momento, tirando devagar as luvas, parecia estar cumprindo um ato importante da vida oficial.
A criada no entanto trouxera o cozido: e, como ela se demorava em volta da mesa, retardando, arranjando, na esperança de ouvir uma palavra, Neto, com um ar de homem de sociedade, mostrou indiferença, um ar natural, dizendo que estava um calor de rachar.
— Muito calor - repetiu Godofredo, que, desde a entrada de Neto, recostado na cadeira, puxando a ponta do bigode, a outra mão no bolso, não levantara os olhos da borda da mesa. Pôr fim a criada saiu, com ordem de esperar pôr outro toque da campainha "para trazer o resto". E logo Godofredo ergueu-se, a fechar a porta.
Então, Neto, vendo que podia falar livremente, sentou-se à borda duma cadeira, esteve um momento esfregando ambos os joelhos com ambas as mãos, e começou num tom lento, com palavras estudadas, de intenção eloqüente, para impressionar.
— Eu cumpri o meu dever de pai...
Esperou um momento, olhando o genro, uma interrupção, uma palavra. Godofredo servia-se de arroz. Neto continuou:
— Cumpri o meu dever de pai, e estou-o cumprindo ainda nesse momento que é solene... Logo que recebi a carta, logo que vi que havia cá na casa desinteligência, vim buscar a minha filha, para dar o tempo, para que se pudessem trocar explicações, para que se desembrulhasse a meada... Quando duas pessoas não estão de acordo, melhor é que cada um se safe para seu lado. De longe, a sangue-frio, trata-se tudo melhor. Cara a cara, palavra puxa palavra, vai tudo pela água abaixo...
As palavras solenes iam-lhe escasseando. E acumulando as expressões vulgares, excitado, falou em cancaborrada.
— Enfim - concluiu ele -, o que eu quero saber é o que significa todo este escândalo?
Godofredo ouvira em silêncio, picando vagarosamente grãos de arroz. Estava decidido a não se alterar, a ser respeitoso e rígido. Desprezava o sogro, pôr histórias equívocas que sabia dele, sobretudo pelos seus sujos amores com a cozinheira. Aquele ar solene não o impressionava: e com duas ou três palavras secas ia facilmente dominá-lo.
— O escândalo não é mais nem menos, do que eu lhe escrevi. Encontrei sua filha com um homem, e mandei-lhe para casa.
O Neto estremeceu. Aquele tom seco pareceu-lhe um insulto. Ergueu-se, com o olho aceso, a calva irritada.
— Ora essa! Ora essa! E se eu não a quisesse em casa? Essa não está má! Então casa-se com uma filha-família, tem-na quatro anos, e, ao fim de quatro anos, agora, minha menina, volta para casa de teu pai? Essa não está má! E se eu a não quisesse em casa, meu caro senhor, e se eu a não quisesse em casa?
Bravejava, esquecidas todas as preocupações com uma voz que se devia ouvir na cozinha.
Muito friamente Godofredo disse:
— Nesse caso ficava na rua.
Isto acabou de enfurecer o Neto.
— Na rua?
— Perfeitamente. Desonrou-me, desonrou a minha casa, aqui não a consinto... Faça as suas malas, adeus! Se o pai, se ninguém a recebe, está claro que fica na rua.
Neto não podia acreditar nesta teima implacável. Tinha cruzado os braços, contemplava o genro, com um olhar que chamejava.
— Homem, deixe-me olhar para si. Deixe-me olhar para si que o senhor é um monstro. Então quer o senhor dizer que abandonava sua mulher, deixava na rua, sem um canto para se abrigar.
Tanta palavra torturava Godofredo. Era como o remexer numa ferida que ainda sangrava. Ergueu-se, querendo dizer ainda uma palavra, acabar a discussão. Mas o Neto não o deixou abrir os lábios, gritou:
— E não se põe uma mulher fora de casa, pôr que se encontrou só a receber uma visita!
Godofredo ficou a olhar para ele, com os lábios trêmulos, sem poder soltar as palavras que lhe estrangulavam a garganta. Era como um horror, de dizer alto, ali, mesmo a um sogro, como a tinha encontrado, nos braços do outro. E, diante deste silêncio. Neto exaltava-se mais, triunfando:
— É necessário provar! A lei pede o flagrante... O senhor não viu nada, não apanhou uma carta...
Toda a cólera de Godofredo fez explosão:
— Cartas infames, senhor. Cartas obscenas, senhor! Sabe o que lhe dizia, que queria Ter um filho dele! Um filho, que eu havia de vestir, de sustentar, de estimar, de educar... Um Filho! E aqui está a educação que o senhor deu à sua filha....
Neto ficara cabisbaixo. A filha não lhe falara de cartas. Passou a mão pelas duas repas da calva com um ar atrapalhado, e murmurou depois dum grande silêncio:
— As mulheres, quando lhes chega a veneta, escrevem cousas sem tom nem som...
Godofredo não respondeu. Passeava pela sala, com as mãos nos bolsos; e sobre a mesa, o seu prato ainda com arroz, ficava esquecido e arrefecendo. Neto então bebeu um grande copo. E subitamente, como tomando uma grande resolução, dizendo a coisa suprema que ali trouxera, exclamou:
— Mas enfim, de que quer o senhor que ela viva? Eu não tenho para vestir, nem para a calçar?...
Godofredo parou logo, no seu lúgubre passeio. Esperava aquilo, estava preparado, tinha a sua resposta, em que pôs um tom de dignidade, de homem superior às misérias do dinheiro:
— Enquanto sua filha estiver em casa de seu pai, e se portar bem, tem trinta mil réis pôr mês.
A calva do Neto iluminou-se: e pareceu subitamente satisfeito, toda a sua cólera desapareceu.
— É razoável, é razoável - disse ele num tom quase enternecido.
Depois os dois homens ficaram calados como se não tivessem mais nada a dizer......
Godofredo tocou a campainha: a criada correu, dardejando desde a entrada um olhar a um e a outro.
— O café - disse Alves.
— E uma chávena para mim, senhora Margarida - disse o Neto retomando na casa a sua familiaridade de sogro.
Godofredo continuava passeando na sala... Neto sentara-se à mesa, e preparava cuidadosamente um cigarro, dando de vez em quando um olhar de lado de lado ao genro. E levou uma eternidade a preparar o cigarro: enrolou-o gordo e liso, depois metendo a onça na algibeira, para tirar a isca, exclamou, com um vago suspiro.
— O pior é o falatório!
Godofredo não disse nada, o outro petiscou lume, acendeu pausadamente o cigarro.
— E a você, na sua posição, na praça, não lhe faz senão mal...
Godofredo voltou-se impaciente.
— E de quem é a culpa?
Pois bem... Mas enfim, o melhor seria evitar o falatório. Pelo menos naqueles primeiros tempos...
Margarida entrou com o café. Godofredo sentara-se. E remexendo o açúcar, um diante do outro, o genro e o sogro, estiveram um momento calados. Neto provou o café, deitou-lhe ainda mais açúcar. Depois deu duas fumaças. E voltou à sua idéia:
— Nem para você, nem para mim, é bom que se ponham pôr aí a falar.
Então aquelas lentidões, aquelas pausas irritaram Godofredo.
— Mas que diabo! Que quer que eu lhe faça?
Mas Neto conservava agora o seu ar calmo e refletido. E com uma voz tranqüila falou dos seus sentimentos. Ele sempre se tivera pôr bom pai; e, se não fossem as circunstâncias em que estava, não teria aceitado mesada para sua filha... Não teria exigido nada. Levava-a para casa, lá viveriam todos, e acabou-se... E tudo o que fosse necessário para fazer cessar o escândalo fá-lo-ia à sua conta.
Godofredo começava a perceber. O Neto tinha uma outra idéia para apanhar dinheiro : e ele quis logo as coisas claras.
— Vamos lá a saber, sem mais circunlóquios, o que o senhor pensa.
Mas o Neto continuou com circunlóquios. O melhor meio de evitar o escândalo. O melhor meio de evitar o escândalo era sair de Lisboa. E a estação favorecia-os, era o tempo de ir para banhos, ninguém se admiraria que ele fosse pôr exemplo para a Ericeira levando sua filha casada. Todo o mundo suporia que Alves não podia acompanhá-la, nem deixar os seus negócios... Mas ninguém sabia se ele ia ou não ver sua mulher todas as semanas. A idéia era famosa, mas...
Godofredo interrompeu-o:
— Mas quer que eu lhe dê o dinheiro para isso...
— A não ser que eu o vá roubar - ajuntou o outro muito francamente.
Godofredo refletiu. Havia ali uma maneira hábil de ir passar o verão para a praia, à custa dele; mas ao mesmo tempo a idéia era prática, matava o falatório. Aceitou. E num instante regularam os detalhes. Para o aluguel da casa na Ereceira, jornadas, transporte de alguma mobília, o Godofredo dava trinta libras; e nos meses de agosto, setembro e outubro, a mesada à filha, para despesas de praia, seria elevada a cinqüenta mil réis. E apenas dissera isto, ergue-se, querendo pôr todos os modos cessar aquela entrevista.
— E não falemos mais nisto, que tenho a cabeça em água.
Estava com efeito pálido como um morto, com um começo de enxaqueca, um desejo de se deitar, de adormecer pôr muito tempo.
Mas Neto, de pé, ainda queria dizer uma última palavra. De ora em diante, ele era o responsável pôr sua filha. Confiava em Deus, tinha a certeza que mais tarde, passado aquele primeiro desgosto, haveria mútua indulgência, e eles se viriam a juntar...
Godofredo negou, com um movimento de cabeça, um sorriso doloroso. Não, nunca de juntaria com ela.
— O futuro pertence a Deus - disse Neto. - Agora concordo que é melhor que estejam separados pôr algum tempo. E era a isto que eu queria chegar: enquanto ela estiver em minha casa, é como se estivesse num convento... Respondo pôr ela.
Godofredo fez com os ombros um movimento vago. Tudo aquilo lhe parecia palavreado. O que queria agora era estar só. Tinha tocado a campainha, Margarida preparava-se para abrir a porta, alumiar ao sr. Neto. Ele tomou o seu chapéu, bebeu, já de pé, o último gole de café, e depois de apertar a mão do genro, saiu, recomendando baixo à criada que tivesse prontas as malas da senhora...
— E manda dizer que não lhe esqueça aquele açucareiro de prata que lhe deu o padrinho nos anos dela... O açucareiro é dela.
E desceu as escadas, regozijando-se desta boa idéia. A filha não lhe dissera nada do açucareiro. Mas enfim era dela, uma bonita peça de prata, e era bom que lhe recolhesse à casa, também.
Fora, a noite estava abafada, e Neto dirigiu-se à casa devagar, levando o chapéu na mão, calculando as despesas da Ericiera, contente consigo. Os banhos iam-lhe fazer bem. Com cinqüenta mil réis pôr mês, da Ludovina, podia-se estar com conforto: e, como a Ludovina não devia aparecer, nem havia toilletes a fazer, ainda se metia dinheiro no bolso.
Quando depois de subir, aos poucos, os seus cento e cinqüenta degraus, bateu à campainha da porta, foi a Teresa, a filha solteira, que veio abrir, a correr, com os olhos brilhantes, toda excitada. Ninguém lhe disfarçara a verdade. Sabia já que a Ludovina tinha sido apanhada com um homem, que havia um grande desgosto, que o pai fora para Ter uma explicação com o Godofredo.
— Então - perguntou ela, sofregamente.
— Lá dentro, lá dentro falaremos.
Atravessaram a cozinha, que estava às escuras com uma claridade de brasa no fogão, onde fervia a chaleira, e entraram na sala de jantar, uma espécie de cubículo nas traseiras. Sentada à mesa redonda, coberta de oleado, a criada, a sra. Joana, uma raparigota fresca, com dois brincos ricos de senhora, e vestido de merino azul, lia o Diário das Novidades à luz dum candeeiro de petróleo, com abat-jour ; e junto ao aparador na sombra, estendida numa cadeira de vime, calada, vestida, estava Ludovina.
Quando o pai apareceu, ela ergueu-se, com os olhos ainda vermelhos, toda vestida de preto.
Neto sentara-se, limpando com o lenço de seda o suor do pescoço. Os olhos das três mulheres devoraram-no. E como ele não se apressava, gozando a ansiedade da família, foi a sra. Joana que gritou:
— Vamos lá, então, fale!
Ele enrolou devagar o lenço e respondeu, no silêncio profundo da sala:
— O Godofredo dá trinta mil réis pôr mês.
Houve uma vaga respiração de alívio, correu um frêmito de satisfação. Teresa olhava a irmã, pasmada daqueles trinta mil réis que lhe vinham a assim para o bolso, pôr Ter sido apanhada com um homem. A sra. Joana confessou que era de cavalheiro. Mas a Ludovina não via nada de extraordinário: era o que faltava é que a pusesse fora da porta, sem cinco réis.
Então o pai voltou-se para ela com a testa enrugada.
— E no fim dizes que não tinhas escrito nada, e ele diz que te apanhou cartas indecentes.
— É mentira - disse ela simplesmente -, as cartas não diziam nada... Eram uma brincadeira.
Houve um silêncio, o Neto, com os olhos na borda da mesa, acalmava dignamente as repas da calva. E as três mulheres continuavam a olhá-lo esperando outros detalhes, toda a história da entrevista.
— E as malas da Lulu, ó papá - perguntou a Teresinha, que vivia desde essa tarde com o desejo de ver chegar as malas, de as ver desfazer, apanhar algum presente.
Mas o papá, todo noutra idéia, continuou, sem responder:
— E ficou combinado que para evitar falatório vamos passar o verão à Ericeira.
Então foi uma alegria. Teresinha bateu as palmas. Joana ria, de satisfação, ela que tanto precisava de banhos. Só Ludovina ficava indiferente com uma sombra de tristeza na face, pensando no belo plano de que Godofredo andava ultimamente falando, os dois meses de agosto e setembro passados em Sintra. E foi sentar-se de novo, enquanto Joana e Teresinha torturavam o papá de perguntas, já com planos, ambas com o entusiasmo daquela estação de banhos... E eram já mil planos. Teresa já palrava desabaladamente. Joana lembrava coisas que seria necessário levar, os colchões, a louça de mesa, e o piano, para dar mais alegria. O melhor seria irem todos à Ericeira, para alugar a casa... Então Ludovina saiu do seu silêncio.
— E é necessário uma casa em que se caiba... Que para dormir num cubículo como este de cá, não tem jeito.
Diante desta exigência, o pai franziu a testa. E não se conteve e disse logo:
— Hás-de dormir onde puderes... Se querias os cômodos da casa de teu marido, portasses-te bem, ficasses lá.
Houve um silêncio na sala. Ninguém jamais ousava replicar quando Neto erguia a voz. Então, naquele silêncio de respeito e de susto, que se fizera em torno da sua voz irritada, ele aproximou-se da mesa, tirou da algibeira um lápis, encavalou a luneta no nariz, e, sob o candeeiro, começou a fazer à margem do jornal os cálculos das despesas da Ericiera. Toda estendida pela mesa, Teresinha via alinhar os números - tanto para casa, tanto da carruagem que os levasse, como uma enfiada de prazeres que brilhavam uns entre os outros. Pôr trás, de pé, Joana dava as suas idéias. Dentro na cozinha a chaleira do chá fervia. Uma tranqüilidade honesta envolvia a casa; e na sombra Ludovina, calada, como esmagada diante da existência que agora a esperava, os incômodos, a má comida, o gênio do pai, a autoridade da criada na casa, tudo o que a esperava e tudo o que perdera, e amaldiçoava a sua infelicidade de ter caído assim nos braços dum sujeito que ela não amava, de quem não recebia prazer, levada àquilo sem saber pôr quê, pôr tolice, pôr não Ter que fazer, nem ela sabia pôr que.