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Ambições/VIII

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VIII


A tarde alongava-se n’um crepusculo aguarellado em leves tintas doiradas, com longes de porcelana japoneza e recortes miudinhos nos primeiros planos.

No terraço, illuminado pela luz do poente sem agonias, as rosas-chá abriam-se aromaticas e dôces.

A viscondessa, reclinada n’uma cadeira da Ilha com baldaquinos bordados, fitava os olhos na Vesper, — que era um ponto mais brilhante no oiro em que o sol se fundia — n’um alheamento, n’um abandono de si mesma, que a puzera triste, d’essa inexplicavel tristeza que infiltram na alma as tardes assim bellas e silenciosas.

O vestido leve de seda escura, com enfeites de renda preta, contrastava fortemente com a pallidez marfinea do rosto. O cabello castanho simplesmente penteado descobria-lhe a fronte alta de intelligencia e juizo claro. A bocca, d’um córte rasgado, trazia-a franzida n’um sorriso de paciente melancolia, que ás vezes se azedava n’um leve sarcasmo de quem muito conhece, e de muito a conhecer se irrita, com as mentiras da sociedade. Alta e elegante, o seu corpo tinha ficado delgado, de mulher que nunca tivera filhos, apezar dos trinta e cinco annos que ia contando. Mas o que sobre tudo agradava n’ella era a maneira senhoril, nobre e consciente e ao mesmo tempo desafectada de andar, de sorrir, de fallar para todos e em qualquer assumpto com as palavras precisas, sem um gesto a mais nem uma pausa de menos, como se toda a sua pessoa tivesse sido harmonicamente feita n’um mundo superior de materia differente da dos outros.

O creado, que chegára á porta, perguntava pela terceira ou quarta vez — se sua ex.ᵃ poderia receber o sr. dr. João Ramalho.

— «Mande entrar para aqui — respondeu como que acordando.

Emquanto o creado ia transmittir a ordem, ella endireitava-se na cadeira para receber o doutor, a quem estendeu a mão branca de dedos afusados, e disse alegremente, n’um afugentar de maus pensamentos que a alliviava:

— «Ainda bem que veiu, doutor, principiava a entristecer, com esta luz, este céo, esta solidão...

— «Como era só principio, ainda venho a tempo de evitar maior tristeza — respondeu a sorrir, ao mesmo tempo que se sentava na cadeira defronte. Se é que a minha companhia póde distrahir alguem!...

— «Aquelles que sinceramente nos estimam, são sempre a companhia que mais nos deve distrahir. Não é verdade?

— «Assim deve ser.

— «E quantas vezes não é!...

— «Não admira, o que não deve ser é o que mais acontece cá por este mundo.

— «É verdade...

— «O Visconde?

— «Deve ter sahido a cavallo, como costuma, antes de jantar. Talvez esteja na bibliotheca, ou tenha visitas... Não lho posso dizer ao certo. Só nos reunimos ao jantar, e para isso é ainda cedo — concluiu, olhando para o cinto onde, preso a uma agrafe d’oiro esmaltado, trazia um pequenino relogio de crystal.

— «Em Lisboa sei que é esse o costume, pelos muitos affazeres do Visconde, mas julguei que aqui lhe pertencesse mais, n’esta liberdade de férias no campo.

— «Não, para nós é já um habito. Depois, aqui tem a politica que o absorve e distrahe: ouvir um influente, attender a outro, escrever cartas e fazer combinações... Toda essa embrulhada, a que sou perfeitamente estranha.

— «Não se interessa então nada pela politica? — respondendo ao signal de negativa que ella fez com a cabeça, continuou — Imaginei que sim. Tenho-a tido sempre como um poderoso elemento na influencia partidaria do Visconde.

— «Porquê?

— «Porque a vejo sempre amavel para os influentes, conhecendo-lhes os fracos e os interesses...

— «Sómente para fazer a vontade ao Duarte, que é a unica coisa que me pede com interesse. Mas é contra minha vontade que elle se mette n’esta vergonha da politica. Os de , os pequenos, como os de , os grandes, é tudo afinal a mesma coisa. Egoistas, ambiciosos, interesseiros, não ha um unico que queira vêr a miseria em que a patria agonisa e se sacrifique para a salvar. E se algum apparecesse, os outros affastá-lo-iam como um perigo para as suas bolsas que o thezoiro enche... Debaixo a cima, a lucta furiosa d’ambições para chegar ao poder; depois... ninguem se salva... O que me desgosta é vêr o Duarte viver com elles, ter os mesmos ideaes estreitos, acceitar os mesmos compromissos para identicos fins. Elle, que é pessoalmente honesto, politicamente iguala-se ao Maximiano Carneiro — porque é igualar-se tê-lo como adversario.

— «Não diga tal, Viscondessa! Pois não a consola que seu marido seja apontado entre os partidos da rotação como um dos raros honestos?

— «Sim, nada do que nós temos nos veiu com a politica, mas isso, meu amigo, é a honradez vulgar do creado de servir que não tira o dinheiro ao patrão mas vê sem protestos os outros encherem as algibeiras.

— «Não crê que em volta do nome honrado do visconde se forme um partido novo a que se juntem as almas ainda impollutas dos moços, cheios de coragem para luctar, resignação para a miseria, e esperança no futuro?

— «Não creio n’esse dôce sonho côr de rosa. Em primeiro logar porque os novos já não são como ha vinte annos os depositarios dos enthusiasmos e das grandes ideias altruistas. Tem-se educado a mocidade para politicos e empregados publicos. Os independentes são uma pequena minoria, que os proprios companheiros alcunham de doidos... Os homens práticos n’este paiz são os que aos vinte annos só teem confiança... nos empenhos.

— «Como está descrente! O Visconde ainda fará alguma coisa, verá...

— «Não creio, o Duarte transige com os meios, e para salvar isto seria preciso não haver transigencias de qualidade alguma. Seria preciso cortar fundo e a direito, sem olhar absolutamente a conveniencias pessoaes.

— «Quer então um novo Pombal?!... — perguntou o medico, rindo.

— «Sem as barbaridades que deslustraram a sua bella obra de resurgimento patrio. Viesse elle!...

— «É então por esse ideal... sebastianico, que lhe não interessa a politica contemporanea?!

— «Decerto! A não ser que o doutor me explique o que o paiz ganha e o que póde advir de grande e compensador para a collectividade portugueza, com a entrada do sr. Domingos da botica para a vereação da camara municipal, ou com a realisação do empenho do Braga, em fazer expropriar a casa do Bernabé, porque affronta o seu chalet mirabolante de burguez endinheirado e estupido. Sim, o meu bom amigo, que é tambem politico, poderá explicar-me essas vantagens...

— «Eu sou um politico... d’agua morna. Auxilio o Visconde por amizade, e acceitei, como sabe, ser deputado por um circulo qualquer para que elle tenha mais um voto na camara... Nunca me encommodei com os meus constituintes, que teem tido o bom senso de não pensarem tambem no seu representante.

— «Quer isso dizer que o doutor, que em toda a sua vida particular não tem uma mancha a enodoar lhe o nome, acha que é natural ser representante d’um povo porque o governo lhe disse que o fosse?! Acceita isso, e acha até muito natural que se faça, o que n’um paiz civicamente bem educado se não faria; e porquê? Porque é politica. Triste palavra que tanta coisa má faz desculpar! Os senhores não creem nos homens que seguem; não teem partido porque não teem convicções!...

— «Mas isso é quasi uma descompostura... — disse de bom humor o medico.

— «Talvez, mas justa, confesse. Um de meus avós recusou representar uma das nossas colonias nas famosas côrtes da regencia de Izabel Maria, porque era impossivel, materialmente impossivel por falta de tempo, apresentar-se eleito pelos seus constituintes com legalidade, visto que as viagens duravam seis mezes e as côrtes constituiram-se em dois... Então, um homem cheio de filhos e responsabilidades, não se importou de desobedecer a uma ordem que ia de encontro á sua consciencia, e agora? Os mais honestos teem a philosophia do doutor. Os homens teem uma consciencia mais lata...

— «E as mulheres fariam outra coisa, minha senhora feminista?

— «Oh, as mulheres não são melhores, porque nem mesmo querem dar-se ao trabalho de pensar. Se ellas pozessem no bem da patria e da familia a energia que dispendem em futilidades, alguma coisa poderiam fazer...

— «Se todas fossem como a Viscondessa decerto que o melhor que teriamos a fazer era ser governados...

— «Não perca os seus madrigaes commigo, meu caro.

— «Mas é sinceramente que digo isto, tenha a certeza.

— «Pois então digo-lhe que está enganado. Quanto mais banal e frivola é a mulher, mais influencia tem no espirito do homem, até ás vezes os mais intelligentes. Na nossa sociedade, que se apregôa a ultima palavra da civilisação, raramente a mulher é a companheira do homem. Elle quer ser senhor; ella, como todo o escravo, corrompe-o. Ora esse papel é baixo e uma alma superior de mulher nunca se sujeita a elle, prefere a sombra da sua modestia...

— «Mas, se a Viscondessa me permitte uma observação...

— «Diga.

— «Parece-me que V. Ex.ᵃ não poderá queixar-se nunca porque é, felizmente, uma excepção a essa regra; o seu lucidissimo espirito deve exercer no do visconde uma salutar influencia.

— «Está enganado; meu marido, como a maior parte dos homens, dispensa o espirito... caseiro.

— «É d’uma ironia pungente — respondeu o doutor, admirado do que ouvia, tão differente do que imaginára. Depois d’um instante de silencio, em que as suas almas se comprehenderam talvez, melhor do que em annos de convivencia, elle perguntou:

— «Ha quanto tempo casaram?

— «O que lhe diz o thermometro?

— «Que o mercurio ainda não gelou...

— «Nem gelará, descance! — respondeu sorrindo e encostando o cotovello a uma pequena meza de jardim. — Temos uma temperatura de estufa, elegante, cuidadosa e sabiamente entretida. Estamos livres das grandes temperaturas tropicaes como dos resfriamentos polares.

— «Permitta-me que duvide um pouco d’essa theoria de velhos egoistas em gente tão moça?!

— «Moços?! Não é tanto assim, sabe que idade tenho?

— «Cálculo trinta... creio que não se importa que o diga.

— «Engana se, tenho trinta e cinco.

— «Somos quasi da mesma idade, eu tenho trinta e oito.

— «Tem graça que só hoje fizessemos esta descoberta.

— «Quando eu vim para aqui era a Viscondessa quasi uma criança.

— «E o doutor outra, pois que somos quasi da mesma idade.

— «Eu sempre fui mais velho que os meus annos. Isto foi ha treze...

— «Tinha eu vinte e dois; estava casada havia cinco...

— «Estão casados ha vinte?!...

— «É muito, não acha, para um homem gostar d’uma mulher?

— «Pelo contrario, parece-me pouco quando ella é... o que deve ser. Casaram muito novos.

— «Eramos primos e noivos desde crianças...

Calaram-se ambos, como admirados de dizerem tanto; é que a tarde, cahindo pacificante e bella, trouxera-lhes aos labios phrases de confidencia que o tumultuar do mundo lhes não deixára nunca sahir do recesso mais intimo dos seus corações.

— «Como sou distrahido... ainda não perguntei pela senhora D. Genoveva!? — disse o doutor d’ahi a minutos, para dizer alguma coisa.

— «Hoje está muito rasoavelmente; estes quinze dias de socego têm-lhe feito bem.

— «O socego é para ella a melhor medicina. E a sua amiga?

— «Bella? Foi passear á quinta. Gosta de andar muito e não se cança. Tem aquella boa educação ingleza que faz homens e mulheres sadios, resolutos, fortes, coisas que eu tanto admiro...

— «E no emtanto a Viscondessa nada tem de ingleza...

— «Nem de inglezada. Admiro a Inglaterra como educadora, mas detesto-a como nação alliada. É mesmo por eu ser uma incorrigivel meridional, cheia de mollezas e desânimos, que admiro e aprecio os que fazem da vida uma coisa simples, alegre e boa. Compare o meu espirito cheio d’amargas duvidas e incertezas crueis com a saudavel e boa razão de Bella!... E ainda o doutor não conhece bem o fundo de probidade e inteireza do seu caracter. Alli onde a vê, é a cabecinha de mais juizo que eu conheço; sem falsas ingenuidades nem descaramentos de demi vierge, tem uma clara noção da vida e acceita a tal qual é, sem covardias nem tristezas.

— «Parece ser sinceramente sua amiga...

— «Se é! Tenho a certeza d’isso. Creio n’ella como em mim mesma. É a minha unica amiga intima, a unica com quem fallo sem reservas, com uma franqueza que não poderia ter com outra que vivesse n’um meio differente. A prima Josephina, por exemplo, é minha amiga, eu tambem a estimo immenso, mas, comprehende, é um espirito completamente alheio ao meu. Tendo vivido sempre n’este meio restricto da provincia, toda absorvida no santo egoismo de esposa feliz e de mãe, não é, nem podia ser, a grande amiga intellectual que é Bella.

— «E agora, com a morte de Pillar, a pobre senhora está n’uma tal depressão moral, que nem sei o que lhe possa interessar!...

— «Com toda a razão; ter uma filha como aquella e vê-la morrer, deve ser para endoidecer! Só pensar n’isso me arrepia! — nervosamente levou a mão á fronte arredando algum cabello mais teimoso. — Sabe o que me disse a Engracia?...

— «Deu-lhe attenção? Olhe que está quasi maluca desde a morte da Pillar.

— «Será tudo imaginação d’ella? O João tambem vagamente me fallou em quaesquer desconfianças...

— «Sim, esse tambem desconfia coisas pavorosamente romanticas; parece que o consola mais a ideia de que a pobre criança não morreu d’uma simples doença para que estava predisposta... Ha n’isso uma especie de vaidade, creia. Na minha vida de medico é frequente deparar com estes exemplares: pessoas que querem ter doenças extraordinarias, que dizem soffrer e sentir coisas espantosas, que querem por força que se lhes diga um nome scientifico para baptizarem a mais ligeira dôr de cabeça, e que ficam radiantes quando se lhes diz que é um caso desconhecido ou raro... Poucas são as pessoas que não sentem como que uma certa vaidade dolorosa, mas que é consoladora ao mesmo tempo, em constatar que alguem da sua amizade morreu de uma doença com um terrivel nome na medicina.

— «Pois sim, será, mas o doutor não desconfia de nada?!...

— «Eu nada desconfiei e nada vi que authorisasse tal supposição.

— «O Vilhegas parece-me um ambicioso sem escrupulos, talvez mau...

— «Não, mais ambicioso do que outra coisa. Agora é todo M.ᵉˡˡᵉ Maximiano, dizem.

— «Mas essa não é rica, o pae deve tres vezes mais do que tem. Apezar do estadão que apresenta, creio que está mettido em tanta negociata que impossivel será sahir-se de todas.

— «Homens como elle nunca vão ao fundo, boiam sempre nas aguas turvas como se fôssem o seu elemento. Elle fará subir o genro, puxando o a si...

— «Pelas orelhas, bem póde...

— «Tenho notado que os Maximianos este anno veem cá muito menos.

— «Visitaram-me durante os primeiros oito dias, como é da etiqueta... São abominaveis! Agora heide ir visita-los antes dos meus annos, para depois se convidarem para o baile. Não imagina o que me irrita esta maneira de vêr do Duarte! Ora se são adversarios, se não se podem tolerar, para que será conservar esta apparencia de relações?!

— «Porque assim mais facilmente se vigiam...

— «Mentiras sobre mentiras para esse ignobil fim?

— «Quer dizer que é um usurpador dos direitos de suzerania do Maximiano cá no burgo?!... — disse o doutor a rir.

— «Deixemos esse assumpto, que me irrita os nervos. O que me diz da Candida?

— «É muito formosa e um tanto incomprehensivel.

— «Eu não sympathiso muito com ella... Estou em crêr no que diz o João...

— «Fallavam em mim? — perguntou este, que tinha entrado sem se fazer annunciar, com toda a liberdade de parente proximo que era dos viscondes, pela mãe.

— «Ora não tinhamos nada mais interessante em que fallar... — respondeu a prima gracejando para não ter que explicar-se mais claramente.

— «Pois é uma ingratidão que tenho a registar, tanto maior quanto é certo ter passado a tarde a ouvir o seu elogio.

— «Estiveste lá em cima com minha mãe?

— «Nem só a tia Genoveva a elogia, minha senhora.

— «Então, quem mais?

— «Adivinhe.

— «A não ser a mamã, só em tua casa ou Bella; mas essa foi para a quinta, e decerto não a procuraste lá por palpite.

— «Pois foi ella mesma quem encontrei, não á beira de poetica fonte desfolhando rosas como Ophelia, mas em plena serra, em caminho da Senhora do Monte.

— «Deveras?! Aquillo é que são pernas!

— «E combinámos voltar no dia da romaria.

— «Juntaram-se os andarilhos; temos desafio como n’aquelle conto da princeza que ia á fonte buscar uma bilha d’agua emquanto os admiradores não tinham tempo de chegar a meio caminho... — observou com paternal bonhomia o doutor.

— «O que mais admira é andarem por este calor na serra e apparecer-me este n’uma frescura de toilette branca de verdadeiro anglo-maniaco...

Elle córou como uma menina sob o sorriso dos dois, que olhavam o seu irreprehensivel fato de flanella branca, a flôr na botoeira, os sapatos de salto raso e a gravata preta, ultimo signal de lucto.

— «Mas, prima, lá em cima não estava calor — respondeu apressado.

— «Ó filho, não me digas isso, que mudo para lá a casa...

— «Sério, prima, na mina estava até fresco...

— «Tens a certeza de teres reparado bem se estava frio ou calor?... — E ria como poucas vezes, assim despreoccupada e feliz.

— «Estava fresquissimo, minha querida — entrou dizendo Bella, vestida de seda crua, já preparada para o jantar. — Adeus doutor, como está? não se resolve a vir um dia dar a volta ao mundo? — Apertava a mão ao medico com amistosa franqueza e continuava para a amiga: — Acredita, Maria Helena, estava tão deliciosamente fresco que encontrei lá as mais bellas avencas que tenho visto.

— «Que exagero! E diz isto uma creatura que tem uma estufa com os mais lindos exemplares que existem em Portugal!...

— «Que barbaridade, queridinha! — e inclinava-se por traz da cadeira a beijar a viscondessa com ternura. — Pois ha nada que iguale o que a natureza nos dá espontaneamente, sem artificios nem cuidados?

— «Preferes então a rosa dos vallados á Marechal Niel?

— «Talvez que sim, vê tu que a rosa vulgar tem mais e melhor perfume do que aquella que a civilisação apenas poude alindar...

— «Sempre o paradoxo!

— «Olha; e apresentava-lhe um pequeno ramo feito de botões de rosas singelas rodeados de avenca muito fresca — queres dizer que é feio este ramo que te trouxe?

— «Este é lindissimo, principalmente pela intenção.

Beijou-a n’um agradecimento commovido.

A noite tinha vindo, entretanto, mas tão claramente illuminada pela lua cheia que mais parecia o continuar d’esse crepusculo doce de verão que as roseiras perfumavam...

O criado que annunciára o doutor veio dizer, n’uma reverencia, — que a sr.ᵃ D. Candida e o tio estavam com o senhor Visconde na casa de jantar, esperando-os.

— «Porque não mandaste entrar para aqui?

— «Como o jantar vae ser servido, o sr. Visconde deu ordem para vir prevenir v. ex.ᵃ

— «Vamos! — disse ella, voltando-se para os tres, que promptamente se levantaram.

Na espaçosa sala de jantar, aberta sobre um terraço sobranceiro ao jardim, as luzes estavam acezas e dispostas de maneira a illuminar a casa sem lhe tirar de todo o encanto um pouco sombrio das antigas habitações, de tecto apainelado e pintado a fresco e de paredes revestidas de azulejos até meia altura.

Sobre o linho alvissimo da toalha, os crystaes lavrados e as porcelanas marcadas, harmonisavam-se com os fructos e as flores espalhadas um pouco por toda a parte, em pequeninas jarras, em cestos, em ramos, ao lado de cada conviva, n’uma prodigalidade que a riqueza do jardim authorisava. Nos aparadores de rica talha Renascença, a baixella de prata, que um artista cinzelara e de Italia fôra trazida para aquelle palacio por um avô dos viscondes, dava um forte destaque de luz junto ao severo mobiliario.

Na parede do fundo, entre as duas portas da bibliotheca, que pesados reposteiros com o brazão d’armas vedavam, um quadro a oleo tomava toda a altura. Era simples a scena e palpitante de vida: um cavalleiro, imberbe ainda, segurava pelo freio um cavallo que se empinava soberbo, espumando, o pello luzidio de suor.

O ar energico e sereno do retratado era de tal maneira humano, que ninguem duvidaria que o pintor tirara do original essa figura, decidida a tudo, antes do que a abdicar. O calção branco e a casaca encarnada do cavalleiro, moço fidalgo e rico homem, destacava-se sangrentamente no fundo plumbeo da tela. Em pé, diante do quadro, o Visconde e a Candida conversavam, emquanto Antonio de Mello, filado pelo Braga, agora seu companheiro insacudivel por causa da sobrinha, e do visconde por causa da casa do Bernabé, estava no vão d’uma janella ouvindo pela millesima vez a pretensão do homensinho.

— «Quando em pequena aqui vinha — dizia entretanto a Candida — nada me interessava como este quadro.

— «Porquê? Não é, apezar de bem feito, uma obra prima que merecesse a attenção de V. Ex.ᵃ

— «Não é isso, que eu pouco conheço de pintura para o apreciar como artista, era a historia do cavalleiro que me fazia scismar!

— «É uma historia romanesca, na verdade, uma lenda d’amôr que não admira que tivesse fallado á imaginação d’uma formosa criança como V. Ex.ᵃ era.

— «Não é certo que foi amado por uma rainha aquelle cavalleiro?

— «É certo! Amado por uma rainha que desprezou para casar com a menina que amava desde a infancia.

— «E por isso foi desterrado para este palacio, não é verdade? O que lhe era elle, sr. Visconde?

— «Meu decimo quinto avô e tambem da Maria Helena e da Josephina, porque descendemos todos do mesmo ramo.

— «Como o sr. Visconde deve ter orgulho em ser neto d’um homem que foi amado por uma rainha!

— «O que vale uma rainha impudíca ao pé do meigo e ideal typo de Griselia, a honesta pastora que torna ditoso o seu senhor á força de resignação e amôr?!... — respondeu a voz clara e insinuante de Bella, que vinha pelo braço de João e estava atraz d’elles.

— «Estou d’accordo — retorquio o visconde, emquanto as duas se cumprimentavam com expansão desusada por parte da Candida e polida frieza em Izabella. — É sempre rainha a mulher que amâmos. Mais do que rainha, porque a pômos alta como as estrellas. E rainhas são todas que dominam pela formosura e pelo espirito como V. Ex.ᵃˢ, minhas senhoras — disse para as duas, mas voltando se intencionalmente para a Candida.

— «Eu, por mim, sou uma rainha sem throno — respondeu ella com sorriso d’amargo desdem.

— «Oh não diga tal, minha senhora: V. Ex.ᵃ possue o triplice throno da belleza, da juventude e da bondade.

— «Por isso procura o do oiro para ficar com quatro pés... muito mais segura — murmurou a viscondessa para o Ramalho, apontando o Braga, n’um tom sacudido, pouco natural na sua costumada frieza.

— «É cruel, viscondessa.

— «Não ouve e nem que ouvisse percebia...

— «Ou fingia não perceber?...

— «Qualquer das coisas me é bem indifferente.

Chegando ao grupo cumprimentou a Candida que se desfazia em amabilidades e desculpas por a não ter logo visto.

— «Não admira, estavamos no terraço...

Voltando se logo, cumprimentou o Antonio de Mello com affabilidade e o Braga com um ligeiro inclinar de cabeça.

— «A sr.ᵃ viscondessa está servida — disse o mordomo de pé, ao cimo da meza.

— «Preveniram minha mãe?

— «A sr.ᵃ D. Genoveva mandou dizer que não esperassem, que descia já.

Effectivamente appareceu logo á porta a mãe da viscondessa pelo braço da dama de companhia. Alta como a filha, apezar de já se dobrar ao peso dos annos, a sua cabeça, como a d’ella, tinha uma dôce expressão que a fazia venerada por todos. A mais do que a filha tinha, não obstante a sua velhice adoentada, um aberto sorriso de quem fruia os ultimos annos d’uma velhice sem desejos nem sobresaltos, n’uma atmosphera confortavel de respeito e grandeza.

A filha correu para ella e carinhosamente a fez sentar no primeiro logar, onde todos depois lhe foram fazer os seus cumprimentos.

— «Aos seus logares! — clamou o visconde estranhamente animado.

Silenciosos, os criados começaram a servir o jantar.