Ambições/XII

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XII


Chegára finalmente a noite do baile que trazia alvoraçadas as cabeças em toda a villa e arredores.

Poucos havia que se não estivessem preparando para a festa, porque os viscondes que em Lisboa se prodigalisavam pouco, tinham na provincia relações com todos, e a todos convidavam para o baile que costumavam dar depois da romaria, nos annos da Viscondessa.

Aquella boa gente que durante o anno pouco se mostrava, como que armazenando energia e dinheiro para gozar por atacado durante os dois ou tres mezes em que os forasteiros lhe animavam a terra; não fallava n’outra coisa, não pensava senão no baile e nos arranjos para se apresentarem á altura de quem os convidava...

Não seria possivel calcular as horas angustiosas que tal divertimento fizera já passar ás meninas da terra. Esta, porque uma impingem maldita lhe nascera na face; outra, porque o teimoso papá lhe não déra a certeza de a levar, e só á ultima hora diria que sim, quando fosse impossivel arranjar o vestido, e a ter que levar um fato já visto todas preferiam não ir.

Desde manhã que as meninas Souzas, em saias de baixo e papelotes, mascaradas de cold cream para amaciar a pelle, o collete apertado para adelgaçar a cinta, se afadigavam nos ultimos preparativos, fazendo uma préga mais funda, cosendo plissés, lustrando os sapatos e lavando as luvas, mandando a criada percorrer as lojas, pondo emfim a casa n’uma dobadoira para que os seus vestidos fizessem morder de inveja as amigas Cunhas e as delambidas das Costas mais as do recebedor e as do escrivão... Umas e outras não pensavam n’outra coisa e contavam as horas com a solicitude de quem vae contando os momentos que os separa da suprema felicidade.

A Viscondessa, innocente causa de tantos cuidados e despezas, desde as oito horas que entrara na sala e conversava com os convidados que já a esperavam perfilados em trajes de gala.

Mal terminara o jantar subira a mudar de vestido e descera logo por saber o costume da velha-guarda, as Rebellas com as suas saias embaloadas de sedinha antiga, a irmã do velho abbade, o Domingos e outros, que ainda pertenciam aos bons tempos honestos em que os saraus terminavam com escandalo depois da meia noite.

Isabella, desejosa de ajudar a amiga e tambem porque a espicaçasse a curiosidade de ver o primeiro desfilar solemne de toda aquella gente que já conhecia, apressou-se a descer á sala de recepção.

O seu rosto delicado de pequena loira estava como nunca de um encanto espiritual, que enlevava. A sombra de melancolia que lhe enodoava a alma desde aquelle passeio á romaria, realçava-lhe a formosura, tornando-a mais feminil e humana.

Os olhos tinham menos vivacidade maliciosa, o sorriso franzia-se n’um quasi preguear de quem quer com elle encobrir lagrimas, os gestos eram mais lentos e as faces empallidecidas já não semelhavam um rosicler de dia álacre.

Ao lado da Viscondessa, toda de preto, o decote a envolver-lhe o busto em soberbas rendas hespanholas, afogada e coroada de brilhantes, a cauda a faze-la mais alta; Bella, simplesmente de branco, um ligeiro vestido de crepe da China, transparente e leve como a espuma, com a saia redonda cahindo naturalmente, sem enfeites que a arrebicassem, sobre o pé calçado de meias de seda preta e sapato sem salto, sem mais joias alem de um collar de perolas que o tio lhe escolhera uma a uma com meticulosidade de conhecedor e capricho de milionario; ellas harmonisavam-se bem, apezar do contraste, como duas flores criadas com luxuoso esmero na mesma atmosphera de elegancia e riqueza.

Uma entrava apenas na vida, sentia-lhe o primeiro golpe e curvava a cabeça com resignação apezar do seu espirito naturalmente revoltado, porque a sua dôr era d’aquellas que amachucam almas delicadas e quebrantam a vontade dos caracteres impollutos. A outra, levantava-a já com orgulho, como se os desgostos fossem cadinho onde a alma se lhe purificasse e enrijasse para supportar a existencia.

Iam chegando os convidados e eram já tantos que o salão de entrada, uma linda miniatura da sala dos espelhos de Queluz, tornava-se pequeno para tanta gente.

— «Vae-se tornando impossivel respirar aqui — disse a Viscondessa á amiga. — Vae lá para dentro, minha filha, bem basta que soffra eu, já que não tenho outro remedio.

— «Não, estou melhor junto de ti.

— «Fazes-me mais favor indo ver o que se passa pelas outras salas, insistiu para a convencer.

— «Encarrega-se d’isso a Laura, respondeu indicando a Viscondessa de Pereira que só n’esse instante appareceu pelo braço do marido, bem posta no seu vestido lilaz, que lhe ia a matar á côr branca de leite.

— «Não é a mesma coisa, bem sabes que faço cerimonia com ella.

— «Pois então deixa primeiro entrar as meninas Souzas.

— «Quando virão ellas!?

— «Não se demoram, ouvi guinchos, vejo a pera militaresca do tio, e o nariz achatado do pae alem á porta da entrada, já os garotos furam por todos os lados... não devem tardar, verás... Olha que isto de levar crianças a festas d’estas é espantoso! Eu se fosse a ti prohibia.

— «Posso lá fazer isso! Quem dá prova de falta de educação e de senso é quem os leva; os donos de casa tem que se aguentar...

— «Se alguem fizesse isto em Inglaterra era logo accusado a uma sociedade protectora da infancia como autor de infanticidios...

A Viscondessa teve apenas tempo de disfarçar o riso para receber as quatro irmãs, direitas como fakires que engulissem espadas, o cabello em carapinha sobre os olhos, o pó de arroz empastado sobre a pelle de um trigueiro requeimado, quasi amarello sépia. As duas primeiras de azul e verde, sem sombra de gase que tentasse velar o largo decote que exhibia o peito forte; as mais novas escondendo a indecisão dos bustos de anemicas, a sahir da infancia, com exagerados folhos de crêpe-lisse amarella.

Atraz a mãe, gorda e ofegante, mostrava a physionomia lorpa e materialmente inexpressiva que as filhas terão aos sessenta annos, depois de uma mocidade consumida a procurar marido, logo inferiorisadas após o casamento, tornando-se criadas dos filhos e as servas do homem que as sustenta e veste.

As raparigas fitaram Bella com o sobrecenho desdenhoso de quem tem visto muito nos clubs das praias onde o tio as levava, de annos a annos, á pesca de marido.

— «Oh Maria Helena, não me deixas continuar aqui? — perguntou ella disfarçando o riso com o lenço.

— «De modo nenhum, além de ser um incommodo, parece-me que és capaz de me comprometter... Olha o João, que vem mesmo a proposito para te offerecer o braço.

— «Da melhor vontade — disse este adeantando-se — tanto mais que andava já procurando V. Ex.ᵃ para ser meu par na primeira quadrilha e na primeira valsa. Não é isso o que diz o seu carnet?

— «Exactamente.

Isabella tomou-lhe o braço com uma perturbação inexplicavel e, como na romaria, iam em silencio atravessando a multidão buliçosa.

— «Oh, miss Bella — cumprimentou o Telles, que encontraram vindo da sala onde os homens rodeavam o visconde — hoje como nunca a abreviatura do nome de V. Ex.ᵃ é a expressão da verdade.

— «É realmente mais bonita a abreviatura do que o nome, não importa que não corresponda á pessoa.

— «Oh se corresponde! E plenamente, como um delicioso nome de princeza encantada que é.

— «Sim, recordo-me de que me contavam a historia de uma princeza, Bella, que foi amada por uma féra...

— «E que por fim se commoveu e chegou a amar o pobre monstro que a adorava!...

— «Porque afinal não era mais do que um principe encantado. N’estes tempos banaes em que os encantamentos não existem, as bellas já deixaram de amar as féras que as perseguem...

Deixou o Telles desapontado, a morder o raro bigode nervosamente, e seguiu pelo braço do João.

— «Foi de uma crueldade para o desgraçado!... — disse-lhe este quasi a mostrar no riso a alegria que lhe déra.

— «O que quer!? Tenho dias em que me sinto sem paciencia nenhuma para aturar parvos. Se as minhas palavras fôssem veneno, matava-os a todos.

— «Que barbaridade!

— «Era uma limpeza que a hygiene aconselharia...

— «A bondade acolhedôra com que ás vezes os attende é que os convence de que pódem dispensar-lhe os seus galanteios.

— «É simplesmente para conversar, mas nunca lhes dei motivo para se julgarem auctorisados a dirigirem-me galanteios. Se é que taes baboseiras o são.

— «Com esta gente quanto menos conversas melhor...

— «Despresa os então muito?

— «Em geral não despreso ninguem, mas aborrecem-me os seus ridiculos. Depois, são maldizentes e invejosos. A não ser com o dr. Ramalho, com o abbade e uns cinco ou seis rapazes que fôram meus companheiros na escola do Padre-Mestre, e que são hoje uns honestos trabalhadores, vivendo dos seus officios, poucas relações tenho na villa. Como sabe, ha uns poucos d’annos que vivo mais tempo fóra do que aqui.

— «Sim, os seus provincianos tem defeitos, mas olhe que os lisboetas não lhes são superiores. Ora repare no modo impertinente, pela sobranceria e insistencia com que a Viscondessa de Pereira fita o lorgnon em todo o mundo. É, impossivel aquella Laura! Vê? Ahi está, é boa rapariga, e intelligente, mas tem a mania das relações de nome; tudo quanto não seja fazer a Avenida, como lá dizem, ir a S. Carlos, vender prendas nos bazares de caridade ou frequentar celebridades, é fóra do tom e faz perder a linha. E que infinidade de pessoas pensam como ella em Lisboa!

— «Nem V. Ex.ᵃ imagina o que por lá existe! Que miserias a fingir opulencia, quantas dôres que só a vaidade causa, que tristeza nessa vida postiça e sem elevação moral!

— «Conhece bem a vida de Lisboa?

— «Muito bem, tenho vivido lá bastante e sei perfeitamente o que tem de falsa. De quantas familias sei eu que passam o verão calafetadas em casa para dizerem que villegiaturam pelas praias elegantes!

— «O que quer dizer que tinha eu razão quando lhe dizia que é peor ainda a pretenção dos lisboetas... — retrucou Bella sorrindo.

— «Não sei... O que quer dizer é que, julgando-se differentes, não são mais do que eguaes productos de uma sociedade sem elevação, pobretona, sem amôr ao trabalho e sem modestia, uma sociedade em que todos são fidalgos e tem vergonha de serem o que realmente são.

— «Resumindo...

— «Póde viver-se apenas com raros que se isentam d’este vicio geral. E é o que eu faço aqui e em toda a parte.

— «Eu tambem — volveu Bella — tenho um horror intimo, instinctivo, quasi louco, ao contacto com a multidão...

— «Haja vista a noite da romaria em que cuidei que ficaria doente.

— «É certo, mas não foi n’aquella festa por ser popular. Pelo contrario, eu estimo o povo e desejava poder-me identificar com as suas festas, que têm de superior a sinceridade na alegria, a animação sem convencionalismos; hoje, a impressão não é de assombro como foi no arraial, é de tristeza, de profundo desgosto; toda esta gente grave imaginando que se diverte dá-me a impressão de uma mascarada n’um enterro...

— «A mim tambem esta festa me afflige muito, mas eu tenho outras razões....

— «Não se podem dizer?

— «Podem. Faz um anno que a Pillar aqui estava, e tão cheia de vida, tão alegre!... Dançou toda a noite com aquelle estupido que já hoje a esquece pela Carneiro!... Não imagina como isto me faz soffrer!

— «Les morts vont vite, meu amigo.

— «Quando não eram verdadeiramente queridos. Eu sinto hoje como no primeiro dia a dôr violentissima que a morte de minha irmã me causou. Não pode comprehender a repugnancia que o Vilhegas me inspira! Ás vezes como que uma onda de sangue me sobe á cabeça e penso que me seria agradavel despedaça-lo com as unhas, ferozmente, como um animal bravio. Um estremecimento nervoso lhe percorreu o corpo.

— «E ella amava-o?!...

— «Muitissimo, desde criança. E pensar em que se vivesse seria hoje a mulher de tal homem!... Antes morta, está mais descançada.

— «Não diga isso! Eu queria tanto que a Pillar vivesse! Seriamos duas irmãs, porque os nossos espiritos se irmanavam, tenho a certeza, pelo que d’ella me têm contado.

Insensivelmente tinham-se affastado para a ultima sala, ainda deserta, e sentado no vão de uma janella.

— «Tem rasão. Foi um horror a sua morte. Não faça caso. A minha cabeça fraqueja sempre que fallo n’isto. Mudemos de assumpto, que miss Bella não tem culpa das minhas dôres para com ellas entristecer o seu espirito despreoccupado...

— «Imagina que eu não tenho tambem lagrimas a recordar e a verter ainda?...

— «V. Ex.ᵃ?!

— «Eu, sim! Sob esta apparencia de alegria e despreoccupação, sabe lá que amarguras posso recordar! Poderá sequer comprehender as vergonhas e as dôres de que a minha infancia se teceu?

— «Tambem soffre? Oh, desculpe o egoismo, mas quasi o estimo porque sômos assim mais irmãos, pela amargura...

— «Sim, irmãos, e como tal o estimo, João!

— «Só como irmão?...

— «Sim... — vendo que queria protestar accrescentou: — não perturbemos o encanto d’este affecto, sejamos apenas irmãos...

Estendeu-lhe a mão, n’um d’aquelles seus antigos gestos de rapariga educada sem biôcos, e na preoccupação evocativa em que o seu espirito se alheava não reparou que toda estremecia ao contacto d’essa mão que queria considerar fraterna.

— «Se o João soubesse o que foi a minha infancia! — proseguiu.

— «Não viveu sempre com seu tio?

Abanou a cabeça negativamente, e, passados momentos:

— «Já tinha dez annos quando fui para a sua companhia.

— «Até ahi?!...

— «Vivia com... em casa de meu pae. Não se póde dizer que vivesse com elle, porque só raramente o via. Ah! como isto me faz mal, fico nervosa, sabe?!

— «Faz-lhe mal, sim. Está n’uma tremura e tem as mãos geladas... mudemos de assumpto. Tudo quanto lhe diz respeito me interessa, mas não a quero vêr triste — disse-lhe com doçura.

— «Não, — respondeu sacudida, querendo fugir á commoção que a tomava e a fazia estremecer, deliciada, por encontrar uma tão grande ternura a diluir-se em palavras tão simples, mas tão repassadas de affecto e respeito, ditas n’aquella voz um pouco velada, de amoroso. — Quero contar-lhe o que foi a minha primeira infancia. Não lhe disséram ainda de quem sou filha?!...

— «Tentaram dizer-mo, recusei saber tudo aquillo que não viesse da sua bôcca.

— «Como esse procedimento é nobremente orgulhoso! Admiro o pelo caracter, mas, mais me obriga ainda a dizer-lhe o que me entristece e envergonha. — Como o João ia responder, atalhou — não me responda! Deixe-me dizer-lhe tudo de uma vez só, sem respirar, como quem se resolve a beber um remedio custoso. Toda a demora me faria perder a coragem. Meu pae chamava-se Pedro Avellar; nunca ouviu fallar de um banqueiro com este nome que foi accusado de falsificar lettras e quebra fraudulenta e que n’essa quebra arrastou muita gente que lhe tinha confiado as suas fortunas e tinha negocios com elle? Antes do escandalo final desappareceu e ninguem mais soube onde pára. Esse era o meu pae. Um desgraçado, uma victima mais do que um malfeitor. A sociedade tinha-lhe permittido todos os desregramentos porque era rico e para o exilio pouco ou nada terá levado d’aquillo que dizem ter subtrahido; as mulheres e o jogo tinham-no arruinado primeiro. A minha mãe é que era inglesa, sobrinha unica do tio Burns que a tinha educado e criado com os mesmos cuidados e mimos com que depois me tratou a mim. Mas a minha mãe era melhor do que eu, de uma doçura, uma passividade angelical. Nunca abriu os labios para um gemido de queixa. Os escandalos que meu pae deu, logo após o casamento, eram taes e tantos que o tio queria que ella requeresse separação. Como não quiz, sahiu elle de Portugal, onde então vivia tambem uma grande parte do anno. Nunca mais se viram. Quando eu tinha dois annos morreu minha mãe — de desgosto, de saudade!? Sei lá comprehender em que rios de lagrimas se affogou aquelle pobre coração! As horas que eu tenho passado a querer evocar a dolorosa physionomia da sua ultima hora, quando concentrasse em mim todas as suas forças vivas, n’um ultimo olhar de angustia!... — Um soluço nervoso sacudiu-lhe todo o corpo doridamente. João, com os olhos avermelhados de lagrimas que reprimia, quiz interrompê-la com alguma palavra consoladora, mas suspendeu o com um gesto e continuou:

— «Não diga nada, que a piedade da sua attenção vale bem mais do que todas as palavras.

Cahiu n’um fundo meditar; depois continuou n’uma voz quebrada, vinda do sonho da sua recordação infantil, como a recitar sem interesse phrases que lhe sahiam dos labios já feitas, a contar essa historia milhões e milhões de vezes pensada e nunca repetida, que se lhe tinha fixado na memoria como melodia sempre egual de um instrumento mechanico.

— «Imagine o que seria a vida d’uma criança passada entre criados que, a não ser a bonne, uma pobre velha inglesa que criára a mamã, eram d’esses que a fortuna traz e leva, como lama de enxurrada. Raras vezes via meu pae, mas quando o via eram tantas as festas e os presentes que me dava que eu tinha por elle uma verdadeira adoração. Não houve decerto criança que mais faustosamente fosse passeada pelas ruas de Lisboa, nem que mais rica fôsse em brinquedos e mimos. A criadagem, sabendo que tudo lhes era desculpado se me tratassem com carinho, não havia capricho que me não satisfizessem. Podia dizer-se que era feliz, se não houvesse não sei que saudades ou presentimentos infantis, que por vezes me punham em crises de lagrimas. Um dia, já então tinha oito annos, sahi a passear com a bonne, e vi n’uma montra o brinquedo mais interessante que até então tinha visto. Maravilha chegada de Paris e que o negociante não imaginava, por certo, vender tão depressa. Imagine uma linda bonequinha vestida como uma marquesa do seculo desoito, com alta cabelleira empoada e vestido no rigor da moda de Versailles, n’um palacio verdadeiramente principesco. Tinha tudo aquella feliz imagem de outras bonecas vivas, que egualmente envelhecem e morrem na ociosidade e no luxo em que a minha pobre boneca se fanou. Cadeirinha para passear, criados empoados, pequena sala de receber no mais rigoroso rocaille, salão, casa de jantar, alcova com seu leito baixo de grande cabeceira entalhada e doirada... emfim era uma verdadeira marquesa do grande seculo á qual não faltava a soubrette theatral, o abbade poeta, nem o fidalgo galante. Parece que estou a vêr todo este encanto da mais louca phantasia infantil, — terminou sorrindo á ingenua recordação, que dava um pouco de frescura e mimo ao sombrio evocar de uma infancia de orphã, criada no fausto, e tão pobre de alegrias simples e de affectos desinteressados.

João sorria tambem de tanta ingenuidade á mistura com o estranho vibrar de uma alma de mulher já feita pela dôr e pelo pensamento.

Bella continuou:

— «Quando vi aquella maravilha estaquei defronte da loja, ao cimo do Chiado, e custou muito á bonne arrancar-me d’alli. Devia ser coisa bem cara para que a pobre mulher apertasse as mãos na cabeça quando fallei em pedir a meu pae que ma comprasse. Mas que valor póde dar ao dinheiro a pessôa que não lhe sentiu nunca a falta? No entanto, com os discursos da velha inglesa, sempre me acanhei de pedir a realisação d’esse desejo. Tão pouco habituada estava a uma contrariedade que, de noite, não dormi com o socego de costume, e quando de manhã fui fallar a meu pae, que por acaso não tinha dormido fóra, elle estranhou-me o parecer. Inquirida com interesse, não tive forças de negar e, n’um mar de lagrimas, confiei a minha dôr pelo desejo não realisado. Elle sorriu-se, acarinhou-me com a delicadeza de uma affectuosa mãe e, passado duas horas de ter sahido de casa, appareceu me um gallego á porta com o meu thesoiro. A alegria, que tive ao vêr desempacotar, peça por peça, o que constituia o meu sonho realisado, não se descreve. Já elle então luctava com difficuldades, mas não recuou em arcar com mais essa despesa para satisfazer o capricho de uma criança mimosa! No entanto, pouco se importava com a minha educação moral; que para a outra tinha professoras que pagava generosamente para me aturarem com paciencia... E costumava dizer, quando lhe censuravam a maneira como me educava, ou... me deixava por educar, que é mais proprio: — O unico fim da existencia na sociedade em que vivemos é a felicidade, e a pequena assim é feliz!... E era o como poucas crianças o tem sido, n’uma inconsciencia, n’uma innocencia, que a maldade passava por mim sem me macular o espirito, porque a não comprehendia. D’este sonho fui despertada um dia brutalissimamente por uns agentes da justiça, que nos sellavam as portas e poriam na rua se a bonne não conseguisse que eu habitasse no meu quarto até que o tio Burns respondesse ao seu telegramma. Eu fiquei como que assombrada, cahida d’um mundo desconhecido onde me collocara, com a minha marquesinha, sem chegar bem á comprehensão nitida do que me succedia... Foi desde então que me chamaram Isabella Burns, e nunca mais me fallaram de meu pae — como coisa vergonhosa...

Terminou n’um murmurio, curvando a cabeça para esconder as lagrimas que lhe corriam silenciosamente pelas faces.

— «Pobre criança! — disse João apertando-lhe a mão com respeito.

— «O quê?! Pois não me quer mal por ter aquelle pae, que a sociedade me manda despresar, depois de o ter pervertido, e que eu, apesar de tudo, recordo com a affectuosa saudade?...

— «Como poude pensar tal, Bella? Ao contrario, parece que a estimo mais, muito mais ainda, porque sabe o que é soffrer.

Levantou os olhos, ainda humidos de pranto, e ia responder-lhe, mas foi interrompida pela Viscondessa que entrava pelo braço do Dr. Ramalho.

— «Então vocês vêm se esconder a um canto despresando a valsa?! Sim senhores, dão um grande apreço á minha festa, vejam o que tenho a agradecer-lhes!...

— «É verdade que sim! Tinhamo-nos esquecido de que estavamos n’um baile...

— «Cabecinhas de vento! Ora vão recuperar o perdido, andem, a valsa convida.

— «E tu não vens tambem dar uma volta? — perguntou-lhe a amiga levantando-se e beijando a com uma nervosa affectuosidade que deu logo a perceber á Viscondessa que alguma coisa se passára de estranhamente grave entre os dois.

— «Eu? Já estou velha para valsas, quando muito o passeio da contradança cerimoniosa. E mesmo isso, querem crêr que já me fatiga?! Estou positivamente velha.

— «A prima deu agora na galanteria de se querer fazer uma avósinha...

— «Infelizmente sem netos. Já me vão tardando os que tu me has de dar, sabes?!...

João sorriu e não protestou. Isabella tomou-lhe o braço e disse, como quem quer terminar a conversa:

— «Vamos então á nossa valsa?

— «Miss Burns, encontro-a finalmente — entrou dizendo o visconde d’Alvora, retorcendo o bigode e empertigando-se para disfarçar a rotundidade do seu corpo abbacial.

— «Que empenho era esse, visconde? Julgava-me perdida e queria merecer alviçaras?

— «Oh não! O simples empenho que tem todo o cavalheiro em offerecer o braço á sua dama. — E offerecia-lho na verdade, sempre retorcendo o bigode e olhando João com altivez desprezadora.

— «Peço perdão, sr. Visconde, mas eu prometti a primeira valsa ao sr. João de Mello.

— «Mas, minha senhora, nós já estamos na segunda.

— «Não posso considera-la assim, visto que não assisti á primeira. Espero que me desculpará, meu caro visconde.

— «Eu não devo prescindir da honra concedida...

— «Mas prescinde porque eu desejo, e porque é de justiça. E vou já passar procuração ao tio William, que vem atravessando a multidão dos valsistas com a mesma impassibilidade com que atravessaria uma avenida deserta, para ser arbitro n’este importante pleito.

Na verdade Mr. William Burns vira de longe a sobrinha e sem mais cerimonias resolveu atravessar o enorme salão onde os pares dançavam ou esperavam a sua vez, fazendo roda, apertando-se e confundindo-se.

Olhava-os com interesse de observador, fitando todos com a viva curiosidade de uns olhos azues que lhe illuminavam a fronte de propheta e attenuavam o geito da bocca d’uma ironia mordente.

Alto e robusto, hombros largos, voz, olhar, gestos e o proprio andar, demonstrando a placida serenidade do homem saudavel e forte, bem equilibrado na vida; e que, apezar dos longos annos de existencia laboriosa, ainda se sente com musculos superiores aos dos rapazes a quem uma infancia atrophiada preparou uma mocidade rachitica.

Olhou o Telles a calçar as luvas e apressurando-se em amabilidades para a mais velha das Souzas, arrogante na pretenção de valsista incansavel e elegancia sem rival. Ouviu de passagem que ella respondia aos enthusiasmos litterarios do rapaz por Loti e Huysmans com a sua predilecção por Paul Féval e Montepin, que conhecia dos folhetins.

— «Garrett — dizia estendendo o beiço carnudo — não conheço. É francês? De Herculano já ouvi dizer que tinha um romance bonitinho, empresta-mo?!...

O inglês sorriu e cumprimentou a baroneza que estava de pé, pelo braço do D. Manoel Pereira, que lhe ficara fiel, e disse lhe com amavel bonhomia: — «Sempre gentil, minha cara baroneza: dir-se-hia que descobriu a receita da bella Diane de Poitiers...

— «Mr. Burns sempre galanteador e... mordaz. Assim me passa uma certidão d’idade compromettedora... — ria francamente, porque tinha o bom senso de não querer ser moça pelos annos, contentando-se em o ser de facto pela elegancia e pelo espirito.

Mr. Burns que a estimava pelas suas reaes qualidades, escurecendo defeitos com os quaes nada tinha, respondeu sorrindo e continuando o caminho:

— «O que quer, minha amiga? diz o ditado português que ha um sujeito velho, que não aprende linguas novas...

No meio da sala esbarrou com o par valsista por excellencia, Mademoiselle Hortense e o Vilhegas, que no dia seguinte seriam fiancées — participava a todo o mundo.

A mãe não estava menos soberba com o seu vestido rosa velha com traine de velludo verde e adereço de esmeraldas, tal qual fôra ao paço quando ministra e merecêra descripção especial no Illustrado. Mr. Burns parou para a cumprimentar, achando-a cada vez mais formosa, parecendo irmã da filha.

Agradeceu a amabilidade que lhe não era das mais agradaveis, porque detestava o titulo de mamã. Até por muitos annos a filha vivera quasi sem que as relações da mãe dessem por isso, ou no collegio ou em casa de parentes ou entre os criados, quando em familia, para que a mãe se não apresentasse com tal certidão de idade... Só o desejo de a casar e livrar-se assim de uma companhia importuna por indiscreta, vencera o receio de se envelhecer com a sua apresentação na sociedade.

Rodeando um pouco para não ser atropelado, mr. Burns encontrou o visconde que ia tirar a Candida para valsar. Sorridente, recusou, a não ser que o sr. Braga consentisse, pois o considerava como noivo, faltando-lhe apenas que o Visconde, em seu nome, fallasse ao tio. O velhote, como que assoberbado com tanta felicidade n’uma idade e com um physico que não eram os mais proprios a inspirar amoroso interesse, consentiu em que dançasse com o illustre amigo. — Ora essa, a menina bem sabia que não tinha outra vontade que não fosse a sua...

O inglês teve um rapido franzir de sobrancelhas de quem vê um caminho que lhe não parece o mais direito e ficou um instante parado a seguir a casaca preta do Visconde, que no giro da valsa se confundia com o vestido negro com palhetas d’oiro d’essa formosissima mulher sorrindo bondades e de uma quasi ingenua perfidia á força de inconscientemente sentida e usada.

Já voltavam e paravam deante do uzurario a quem dizia n’um meigo arrastar de phrase: — que o visconde a encarregara de lhe dar a boa nova de que estava emfim resolvido a seu favor o negocio da casa de Bernabé... — e ainda o velho William alli estava a considera-los attentamente.

Depois encolheu os hombros e foi mais adeante, até onde a mais nova das Costas conversava com a mais nova das Souzas, ambas insignificantes, inferiorisadas pelas irmãs, a Costa um pouco mais bonita, clarinha e gorda, com grandes olhos inexpressivos em que as pestanas demasiado compridas davam um aspecto de boneca de loiça. Viu-as alongar a vista pela grande sala de baile — a que os espelhos das portas dobravam, pela illusão, o tamanho — em procura de par e ouviu-as murmurar:

— «Parece que não ha rapazes!...

— «Elle ainda os ha — commentou a dos olhos tristes — mas parece que viram lobo!...

Sorriu ainda; e foi com o rosto aberto n’esse sorriso entre caridoso e ironico que chegou ao pé da sobrinha, o seu enlevo como artista, o seu amôr como tio, quasi pae.

— «Jesus, que longa e difficil travessia, querido tio! Julguei por vezes vê-lo sossobrar em tão perigoso mar! — dizia-lhe ella a rir, com affectuosidade.

— «Ainda por cima a ingratidão de uma troça! Ora eu que emprehendi esta jornada só para a vêr, porque a minha amiguinha já nem se importa de se mostrar ao velho tio! Sim senhor, deixa-me á meza com os caturras, não me procura na sala de jogo onde os velhos se refugiam... estou perfeitamente posto á margem.

— «Não diga tal, querido tio! Pelo contrario, estava-o esperando para lhe dar a honra de o fazer juiz n’um pleito que ora aqui se debate. Exponha a sua queixa, visconde.

— «Oh, miss Burns está brincando, eu cedo sempre á vontade das damas, embora a justiça lhes faça mingua.

— «Oh, muito obrigada pela generosidade, mas nós as mulheres já temos os nossos direitos: queremos tambem as nossas responsabilidades. Despresamos a vossa piedade cavalheiresca, que nos dava a irresponsabilidade... das crianças. — Respondeu Bella com certo entono comico, que muito divertiu o tio e fez esboçar um sorriso ao João, a quem a questão não agradava.

— «Vamos, Visconde, não ha remedio: ella reclama justiça, justiça se fará, mas... talvez de moiro, que é o que ellas querem...

— «Se elle não apresenta a queixa, já vê que é uma prova de que não está seguro da sua justiça...

— «Menina, isso é um sophisma.

— «Não é tal! O caso é que a valsa acaba e a questão não acaba antes. Eu a exponho em duas palavras. O sr. João de Mello convidou-me para a primeira valsa e o Visconde para a segunda. Ora eu estive lá dentro e só agora venho dançar, — qual é a primeira para mim?

— «Realmente! — Burns deu uma alegre risada — um theologo não defenderia melhor um dogma arrevezado. Tu tens razão, o teu par é o João e o meu caro Visconde vae ficar compensado passando pelo Messias desejado de duas almas em pena que lhe vou mostrar.

E levou o alegremente a uma das pobres raparigas que lamentaram não ter par que dançasse com ellas uma vez ao menos...

Bella agradeceu-lhe com um sorriso, e, pondo a fina mão desluvada no hombro de João, deixou que elle a enlaçasse com um respeito quasi de religioso tocando em preciosidade cultual.

Seguiram na valsa colleante que os levava na corrente de um rythmo de musica vinda do norte, do paiz dos longos amores sentimentaes e dos lendarios castellos alcandorados nas montanhas...

Iam, levando-se nos braços um do outro, sem se verem nem ouvirem por entre aquella confusão divertida, obedecendo quasi mechanicamente ao espreguiçar inebriante da musica, n’um estonteamento de felicidade que parecia dar-lhes asas n’uma inconsciencia a roçar pelo sonho, tão intenso, tão extra-terreno era esse goso.

Só quando os ultimos acordes morreram nos violinos chorosos é que elles pararam, ambos egualmente atordoados e commovidos, deante de uma das portas do terraço, onde se ia respirar um pouco d’ar puro embalsamado pelas rosas trepadeiras.

— «Sabe que está encantadora, miss Bella!? — murmurou João levando-a para a varanda onde se refugiaram os conversadores.

— «Não diga isso, meu amigo.

— «Porque não, se é a verdade, o que sinto, o que vejo com os meus proprios olhos?!...

— «É o mesmo que qualquer outro me diria.

— «E que culpa temos nós de que as palavras estejam tão banalisadas que não haja meio de exprimir com ellas uma coisa nova, delicada, e sentida como eu a sinto?!

— «Que voz a sua, João! não me falle assim! Atemorisa-me. Eu, que nunca tive medo de coisa alguma, estou agora tremendo como uma criança — dizia commovida, encostando-se á balaustrada de pedra e ficando toda na sombra.

— «E porque é que a sua voz treme como a minha, porque é que nos seus olhos as lagrimas querem rebentar, Bella?!...

— «É verdade, estou a chorar, mas porquê?!... — e tentava sorrir mas não conseguia dominar a tremura do seu pequenino queixo de uma pureza de linhas verdadeiramente infantil.

— «Porque me ama, Bella. Para que nega-lo? Porque me ama como eu a amo, com toda a minha alma, com todo o meu sangue, com a certeza de que o seu espirito e o meu se identificarão sem se absorverem, que seremos dois amigos para caminharmos juntos na jornada da vida...

Fallou por muito tempo, muito, tecendo sonhos, bordando phantasias, que ella ouvia enlevada, encostando a cabeça á mão que lhe deixava livre, numa passividade deliciada.

Calaram-se ambos, sem nada encontrarem que exprimisse a ternura immensa que transbordando da alma lhes enchia os olhos de lagrimas de ventura.

Elle, mais forte, conseguiu articular uma palavra que dizia o desejo ansiante do seu coração na sua mesma simplicidade — «Amo-a!...

Bella estremeceu toda, como se fosse emergindo n’um banho de caricias, e ciciou n’um halo de sonho: — «tambem eu o amo...

E de mãos enlaçadas, olhos nos olhos, sorriso com sorriso, assim ficaram completamente alheados do borborinho e esbanjamento de alegrias e egoismos que se degladiavam na arena do baile com brutalidades de feras em pleno circo romano...