Ambições/XI
XI
— «O que tens, Bella, estás doente? — perguntava a viscondessa carinhosamente, passando o braço pela cinta da amiga e levando-a para fóra da clareira onde os criados preparavam a meza para o jantar.
— «Porque perguntas isso?
— «Porque ha dias que te vejo entristecida, silenciosa, tão mudada que nem já me pareces a minha Bellasinha, a alegria de nós todos!
— «Todos!... — e suspirou fundamente.
— «Todos, sim; temos duvidas de menina romantica? Mas o que sentes?
— «Nem eu sei. Creio que estou na mesma; não sinto nada, não me doe nada.
— «Naturalmente foi o sol da Senhora do Monte que te fez mal... — disse-lhe ainda a viscondessa, sorrindo com uma pontinha de amigavel malicia.
— «Não me fez mal nenhum; e porque havia de fazer? Estou habituada a sahir com todo o tempo. Não tenho nada, sinto-me bôa... Pois tu não vês que estou na mesma?... — e olhava para a amiga, tentando convencê-la, appellando para uma força que já não tinha, a da serenidade d’ânimo.
— «O que querem então dizer essas lagrimas a bailarem-te nos olhos?... Queridinha, não se tem impunemente vinte e dois annos!
— «Mas o que tenho eu? Oh, Mary, se sabes o que sinto, se desconfias alguma coisa, dize, por Deus te peço! Eu não sei o que é.
— «Deveras?... Á tua cabecinha tão ajuisada não veio nunca o pensamento de que ha em nós um coração, um doido, que se póde conservar adormecido, mas que em acordando faz sempre loucuras?!...
— «Mas que loucuras póde fazer o meu, que tão egualmente reparto entre ti e meu tio?
— «E mais ninguem merece a sua sympathia, minha senhora?!... Nem aquelle que alem vem com tão melancolica sombra? — perguntou-lhe ao ouvido e indicando João que se aproximava acompanhado pela Candida e seguido por mais pessoas que vinham ao pic-nic.
— «João? Sou muito amiga d’elle, sou, mas que tem isso de extraordinario? Não é teu primo, quasi filho pela amisade? Estimo-o por isso como a um irmão muito querido.
— «Sabes? É custoso acreditar n’essa amisade fraternal entre uma rapariga como tu e um rapaz como o João, educados n’um meio de intellectualidade que lhes fará difficil a escolha em Portugal, ambos livres e comprehendendo-se bem... Elle é muito bondoso; gostava que se entendessem definitivamente. Não te poderia vêr casada com qualquer homem, Bella. Seria uma profanação vêr-te nas garras d’esses abutres... de dotes. E tambem não gostava de vêr o João ligado á maior parte das mulheres que conheço.
— «Eu não me casarei nunca!
— «É possivel, mas não é provavel, filha. Eu sei que não admittes o casamento como estado social, como unico emprego para a arrumação da mulher, mas és muito affectiva e muito expansiva para que as amisades de teu tio e a minha, por maiores que sejam, te possam encher a existencia.
— «Maria Helena — respondeu Bella sombriamente — tu sabes o segredo tristissimo da minha vida, comprehendes que não posso casar, que não posso, ou não devo, gostar d’elle, de ninguem que seja honesto. Não, não posso amar a sério!...
— «Oh, filha!...
— «Sou brutal, não achas? Mas concorda em que sou rasoavel. Imaginas que teria a triste coragem de contar ao João, ou a outro qualquer homem que amasse — e se o amasse é porque o julgava honesto e bom — que meu pae fez dividas que não pagou, e jogou o que tinha e o que não tinha, fugindo sob a maldição de toda a sociedade, e vive sabe Deus em que miserias, ou morreu de fome e vergonha?! Querias que impudicamente abrisse a minha alma e lha mostrasse despedaçada como ma fez a vergonha de meu pae? Querias isto? Não! Ha muito que resolvi não casar, para me não prostituir acceitando qualquer d’esses sem honra nem brio, que pouco se lhes daria do nome de meu pae fazendo-me meu tio sua herdeira. Julgava-me forte, incapaz de gostar d’um homem a ponto de me parecer um martyrio incomportavel a memoria d’aquelle, que, apesar de tudo, foi um carinhoso pae!...
— «Isabella, imaginas que o João te accusaria das faltas de que não és, não podes sêr por fórma alguma, responsavel?...
— «É natural; por isso que é honesto, é que mais lhe deve repugnar a filha d’um...
— «Cala-te! Encommoda-me vêr-te assim. Não, o João não era capaz d’isso. Tenho mesmo a certeza que deve já ter havido alguma bôa alma que lhe dissesse não só a verdade, como a mentira... E vê lá se elle por isso te abandona um instante.
— «Talvez não saiba nada... Ninguem seria capaz d’essa infamia. Não é a mais negra das vilesas essa de contar a vida dos outros?... — um soluço fundo apertou-lhe na garganta a voz ansiada e terminou, quasi n’um tremulo de lagrimas: — Porque me não hão de deixar gosar esta dôce amisade espiritual que tanto me consola?... É tão bom, tão delicado, tão ao contrario dos outros, que o meu espirito, educado no despreso pelos homens, se depura e eleva na convivencia do d’elle.
— «Pois farás o que entenderes, com a condição de te não vêr triste e muito menos infeliz.
— «Cumprindo o meu dever não o poderei ser, não é verdade?
— «Se o dever nos desse felicidade!... Depois, o dever é tambem ser franco para quem estimamos...
Chegou n’esse momento o grupo em que vinha o João, um pouco affastado e silencioso como sempre, n’aquellas companhias.
A Candida, radiante, dava o braço ao Visconde, e jungia ao seu carro triumphal o Braga, cada vez mais apaixonado, e os rapazes hospedes da casa.
Depois da ceremonia dos comprimentos, dirigiram-se em festiva algazarra para o sitio destinado para a festa, uma clareira entre arvores seculares onde se cruzavam ruas de copados cedros. D’uma cascata, perto, a agua cahia a cantar de pedra em pedra por entre as begonias velludosas, os fetos arrendados e a avenca franzina.
Chegava o juiz, arrastando a perna gottosa ao lado da mulher vestida de côr de canna, — «com um fato usado, explicava o marido, porque para festas no campo não se podia levar coisa boa.
O dr. Pinto veiu logo atraz, rindo sempre muito alto, a sacudir as barbas brancas de propheta; depois chegou o Domingos, de sobrecasaca preta bem lustrosa como se assistisse a casamento ou enterro. As cunhadas, as manas Rebellas, falladoras e alegres, mettiam as raparigas a um canto. E vieram ainda as meninas Costas e as Souzas, a rir e a gralhar, guinchando a proposito de tudo e de nada: achando pilhas de graça ao Móttasinho, chamando o Neves para a sua róda, olhando para o Telles como para uma praça forte a desafiar conquista.
Por fim, fazendo se propositadamente esperar como pessoas reaes, chegaram os Maximianos, com espavento e comitiva. O padre Mathias á frente, a baroneza pelo braço do conselheiro, o Jorge Cabreira fallando ao ouvido da conselheira n’uma intimidade que trazia sorrisos a todas as boccas. No coice do prestito, mademoiselle Hortense, entre o Vilhegas e o visconde d’Alvora, com o descendente de Nun’Alvares ao lado. Toda de escarlate, com cinto preto, semelhava uma papoila, e ria, encantada com aquella festa: — d’um chic hors ligne. Perfeitamente aristocratica: já lhe parecia estar em Cintra ou n’outra villegiatura civilisada. Nem menos de tres viscondes, um conselheiro, uma baronesa e duas viscondessas, não fallando dos bachareis, que esses eram a élite do pensamento — voltava-se toda para o Vilhegas, envolvendo-o n’um olhar desvanecido e languido.
— «Oh, mademoiselle Hortense, sabe lá o que é vêr titulares reunidos! — commentou o d’Alvora, desdenhoso. — Em Portugal não ha o que se póde chamar uma nobreza. Em Hespanha, sim, aquillo é que é grandeza! Uma vez em casa do duque d’Ossuna, a uma ceia, reunimo-nos seiscentos titulares.
— «Ih!... Essa agora foi d’arromba; o que vale é estarmos ao ar livre, oh Visconde! — commentou o D. Manuel Pereira.
— «Não acreditas? Pois olha que em Hespanha ha trezentos duques, fóra o resto. Palavra d’honra, oh menino!...
Quanto mais crúa fosse a mentira, com mais segurança elle fallava, endireitando-se, estendendo a mão em juramento, torcendo o bigode encerado.
Decididamente, mademoiselle Hortense estava com a sua gente. Era impagavel aquelle Visconde. Ninguem como elle para marcar um cotillon e saber fallar a uma grande dame ou a uma jeune fille na ultima corrida de Longchamp, na cantora em voga, nos escandalos de foyer, no couplet mais gamin. Tinha como ninguem o savoir vivre d’un vrai azuré. Não era possivel sem elle fazer-se uma festa distinguée — explicava ao Vilhegas, um pouco deslocado entre aquella fina flôr da elegancia lisboeta.
A Viscondessa ia-os recebendo a todos com aquella amabilidade que chega a ser natural á força de usada nas pessôas de que a posição social fez escravos. Ouvia o juiz gabar o peixe assado que mandára, uma especialidade lá da casa — ella diria depois se a mulher não tinha um optimo paladar de cosinheira...
Respondia gentilmente a um e a outro, procurava para cada qual a phrase mais propria a causar-lhe a satisfação da vaidade, sabendo de ante-mão o que interessava a toda essa gente para quem o marido lhe pedia que fosse amavel.
Isabella acompanhava-a como de familia e ajudava-a com um interesse que não estava nos seus habitos e a affastava de João, que, junto do dr. Ramalho e outros, ouvia os commentarios á romaria da vespera.
— «Creia você, dr. Pinto, que o homem não está nada bem; deram-lhe a matar com um marmeleiro que lhe circundou a cabeça; não affirmo que se salve.
— «Oh diabo, que lá se vae um quarenta maior!...
— «Dois, porque o Manuel Duarte, da Povoa, é que bateu, — veiu dizer o padre Mathias com um arsinho picante de troça.
— «Ainda se não sabe quem foi.
— «Foi elle, ha testemunhas. Além d’isso, você bem sabe que ha muito que andavam de rixa por causa da agua da Lameira.
— «É o mesmo, elle ou outro, o exame medico é egual — respondeu o dr. Ramalho.
— «Se os não corrompo na conversa... — achegou-se o Domingos.
— «Ora essa! — riu ás escancaras o dr. Pinto — o amigo Domingos não corrompe ninguem, nem a si mesmo, é incorruptivel.
A conversa estirou-se renhida sobre o assumpto que a todos interessava como caso que se dera quasi á sua vista e que tanto peso tinha na politica local.
No mais acceso d’ella, affastou-se o padre Mathias sorrateiramente e chamou o Maximiano a um lado.
— «Sr. Conselheiro, nas eleições dos quarenta temos o Manuel Duarte por nós.
— «A esse tempo deve elle estar na Penitenciaria, homem.
— «Não irá para lá, se V. Ex.ᵃ quizer. O caso é que não morra o Cabral, de S. Mamede...
— «O que quer você dizer com isso, padre Mathias?
— «Depois lhe explicarei. Vá segurando o juiz, que eu logo fallo com o da Povoa. O Ramalho não percebe nada de politica. Perder um quarenta maior sem mais nem menos... é parvoeira... Eu vou fallar ao Vilhegas. Não percebe a tramoia?
— «Eu não, por emquanto ainda não attingi o que você quer.
— «Não me posso agora explicar. Só duas palavras: supponha que o homem não morre e o juiz manda fazer novo exame e esse exame é feito por medico nosso, que do processo de jury faça um processo criminal de galão branco, em que o réo fica á mercê do juiz... — atabalhoou confidencialmente.
— «Sim senhor, sim senhor, você vale um thesouro; não ha de ser um triste abbade de aldeia — aqui é que eu o quero! — o velhote que trate das contas e do breviario.
Deixando radiante o incansavel galopim, encaminhou-se para o juiz, fingindo naturalidade, fallando com um e com outro, até que o poude abordar. O padre chamou o Vilhegas e arrastou-o para longe da criadagem, que se azafamava nos ultimos detalhes da meza.
— «Está por isto ou não está? — ouviram-lhe ainda dizer.
— «Se o conselheiro fizer empenho — respondeu a meia voz o medico.
— «Nada que não ha de fazer, é uma cartada de mestre. Se é! De uma assentada apanhamos os quarenta em que elles teem tido a maioria. É um rombo d’alto lá com elle. Se o Manuel Duarte vae comnosco, temos mais o pae e os dois cunhados marchantes... O Cabral, doente... É como lhe digo, quando mal se percatam temos o concelho na mão. Uns parvalhões que ainda fazem politica com lealdade... — e ria surdamente, satisfeito de si. — E você? vae ou não vae adeante com o negocio do casorio? Olhe que o pae gosta de você, homem, basculeja-me até de que o prefere para genro antes do que a esses bonifrates de Lisboa.
O Vilhegas, n’um d’aquelles rasgos de quixotesco orgulho que são sempre de effeito em almas de meridionaes, e de que elle abusava, um pouco sinceramente, tambem, sem mesmo dar por isso, respondeu com emphase:
— «Sim, tambem me parece que elle me vê com bons olhos. O padre Mathias comprehende que sendo eu, como elle, filho do meu trabalho e da minha intelligencia, o conselheiro me estime. Os meus pergaminhos são as cartas de bacharel conferidas pela Universidade de Coimbra. Hei de subir e fazer subir os meus; agora lá vae o meu irmão Pedro para Coimbra, e em breve poderei dizer que tenho mais um bacharel na familia!
O padre Mathias, muito terra á terra, não percebeu, n’aquellas phrases descosidas, o embryão de um discurso de futuro deputado da minoria affirmando os seus principios democratas e liberaes, para mais depressa ser chamado ao paço e entrar nos salões da alta burguezia que tem titulos e dinheiro, e nas relações dos grandes nomes historicos, que, apesar de tudo, ainda exercem influencia no espirito d’esses ambiciosos ansestralmente servos, a quem a educação e a vida ensinou o caminho por onde se sobe aos pinaculos de uma sociedade em descalabro, mas não ensinou a verdadeira liberdade, que só dão o trabalho e o despreso por taes processos e correlativos premios.
— «O que é verdade é que você tem boa familia — affirmava o cura — O João com uma fortuna d’aquellas, a Candida uma belleza... Olhe a roda que lhe fazem todos esses janotas da capital.
— «Que me importa d’esses parentes que só valem pelo dinheiro e pela formosura? Eu valho pelo talento, que é mais.
— «Decerto que é. E a pequena, a Hortensia?
— «Veja como ella já me anda procurando com os olhos.
— «Bom, bom, homem, isso é que eu desejo. É aproveitar, olhe que a fortuna não bate á porta duas vezes... Depois, veja lá se esquece dos amigos, hein?! — batia-lhe no hombro com familiaridade: — Olhe que fui eu que o apresentei em casa do conselheiro...
— «Protegê-lo hei, pode crêr — terminou o outro com importancia.
— «O que andará o cura a tramar? — dizia o dr. Pinto ao ouvido do Ramalho, que encolheu os hombros indifferente.
— «Minhas senhoras e meus senhores, dizem os praticos que vamos emfim ser servidos — gritou o Visconde alegremente.
As conversas suspenderam de prompto e todos, n’uma celeridade que denotava bons appetites, correram para a comprida mesa de pedra, que comportava mais de cem convivas.
Cada qual procurou o logar que melhor convinha aos seus interesses e affeições, foi o motivo por que Bella se encontrou, sem saber como, á direita de João de Mello e com o Telles á esquerda.
Defronte assentava-se a Viscondessa e a muito espirituosa Viscondessinha de Pereira, sua hospede e amiga, casada com o mais condescendente dos maridos e não sabendo que mais mal dissesse do casamento — essa prisão celular para um espirito de mulher superior — dizia. O pobre rapaz, de um loiro deslavado e uns olhos de velha porcelana desmorecida pelo uso, olhava-a encantado com tanta graça e belleza e considerava o casamento a melhor das instituições.
Seguia-se o Ramalho, o dr. Pinto, a baroneza com a sua côrte de pretendentes, e ao fundo o Visconde junto da Candida, que enfeixava no seu côro de louvadores o Braga e os mais rapazes de fóra que a sua excepcional belleza attrahia.
— «Está doente, miss Bella? — perguntou João, cuidadoso, á sua visinha.
— «Não, porquê?
— «Ainda a não vi comer nada...
— «As deusas não comem mais do que petalas de rosa e bebem a doce ambrosia — respondeu do lado o Telles, com o seu ar pretencioso de janota e lyrico provinciano.
— «As do Olympo, pode ser... As que habitam este valle de lagrimas achariam pouco substancial — alimento tão poetico.
— «As senhoras vivem de poesia.
— «Já vejo que sou o escandalo do meu sexo, pois prefiro um sangrento bife á ingleza a uma grinalda poetica. Uso de um appetite nada ideal, como vê.
— «Mas hoje está-se desmentindo, miss Bella — censurou com bondade o João.
— «Ora! Pois, se tenho estado sempre junto dos cestos da merenda, fui-me aproveitando da situação...
— «Fallaram para ahi em bifes — reclamou o dr. Pinto — onde é que ha bifes?
— «Aqui, vindos da casa do sr. Conselheiro — respondeu da extremidade da mesa a voz grossa do padre Mathias.
— «Deixe lá ver isso, homem, não faça monopolio! — Recebeu o prato esbracejando alegre, serviu-se abundantemente, comeu e ainda com a bocca cheia dirigiu se ao Maximiano: — Estão muito bons, estão optimos, uma especialidade, sim senhor. Ainda assim, Conselheiro, não chegam aos calcanhares dos que se comiam na hospedaria de sua mãe, a sr.ᵃ Joaquina, lembra-se?
O conselheiro mordeu os beiços e agradeceu com um sorriso amarello a lembrança do dr. Pinto. A conselheira, vermelha como a lagosta de que se servia com gulodice, voltou-se para o Cabreira e achou intoleravel aquella gente de provincia. Se a familia do marido e principalmente aquella mãe estalajadeira eram o pesadello da burgueza afidalgada, que não perdia a occasião de fallar nos tios, titulares da ultima hora, que nas quintas phyloxeradas do Alto Douro tinham encontrado o filão d’uma grande fortuna e pelas praias e thermas passeavam as filhas e as flatulancias dos seus estomagos.
A Hortensia é que não tinha ouvido nada, entretida como estava a dizer para o Vilhegas, — que a lingua franceza era afinal muito pobre.
— «Não ha maneira de se dizer é preciso!
— «Ha — respondeu muito sério o dr. Ramalho — é que V. Ex.ᵃ se esqueceu.
— «Como, então?
— «Il est précis...
— «C’est vrai, c’est vrai!... — continuou muito interessada a sua conversa em francês, não reparando no fungar sarcastico dos que tinham percebido a troça do medico.
— «Oh Visconde — chamou o d’Alvora com emphase — nós agora podiamos dizer como n’aquella historia dos Viscondes: Sêmos aqui tres Viscondes! É sêmos ou samos?...
— «É verdade, o terceiro era o mais prudente, que respondeu não saber. Temos bons colegas, não ha duvida... — respondeu o amphytrião rindo e deixando cahir sobre alguns dos convivas o seu olhar scintillante de ironia.
A festa prolongou-se pela tarde fóra sem esmorecimento de animação. Os ditos voavam de conviva para conviva, ás vezes do fundo para o principio da mesa, n’um esfusiar de alegrias despreoccupadas que contrastava rudemente com o luminoso e tranquillo cahir d’aquelle dia estival.
Ás gargalhadas e ás vozes juntava-se o tinir dos copos e dos talheres n’uma algazarra e sem cerimonia, para a qual os criados davam o seu contingente, correndo, fallando, pedindo coisas uns aos outros, n’um reboliço que unicamente lhes desculpavam n’aquelle caso excepcional.
Terminara o jantar, que já só era seguido pelos mais destemidos campeões do garfo e faca. Já d’aqui e d’alli rompiam effusivos os brindes que as pragmaticas baniram dos grandes jantares de ceremonia.
Bella, que durante todo o tempo conversara com João e com o Telles, disse a este, vendo-o recusar o vinho loiro e perfumado que o chefe da mesa vinha offerecendo:
— «O quê?! O sr. Telles não bebe vinho?!
— «Oh! não, minha senhora! Não posso tomar nada que me excite os nervos doentiamente emotivos...
— «É incrivel! Um poeta não beber o nectar que reluz como topasio no fundo da copo, é quasi uma blasphemia. Não sei que poeta latino disse que parecia impossivel que se trocasse por miseraveis moedas de prata o oiro liquifeito e perfumado que se vertia em taças de crystal, nos banquetes da civilisada Roma!?...
— «Apesar de toda a sua decadencia ainda podiam com isso os descendentes de Romulus, mas nós, os abastardados filhos dos grandes navegadores, com os nervos crispantes como temos...
— «E porque tem assim os nervos? Uma raça só é decadente quando o quer ser pelo desleixo da sua educação e costumes... Mas não vamos entrar agora em sabias discussões educativas, que mal iriam a um fim de jantar em pleno campo. Diga-me antes, que mal lhe poderá fazer uma gotta de Kumel tomado com o café?
— «Mas se eu tambem não bebo café!
— «Tambem não? Nem fuma, aposto! É então um verdadeiro regimen de abstinencia a que sujeita esses pobres nervos pelo crime de sentirem a vida com mais acuidade?!...
Divertia-se a faze-lo fallar, com a presumpção do costume, sobre a neurasthenia artistica que dizia ter contrahido desde que perdera noites e dias a escrever o livro de edição esvaída, que dava a toda a gente: Verde mar... Para se divertir com o espanto do Telles tomava um ar masculinisado que não tivera nunca, apesar da sua livre educação feita ao lado do tio, errando pela Europa em busca da egualdade de clima, que, dizia elle, os medicos lhe recommendavam e só uma constante emigração pode fornecer aos super-civilisados que o requinte do luxo e da arte fizeram regressar ao nomadismo dos povos primitivos.
— «Pois eu, sou exactamente o contrario — continuava a rir — posso beber impassivelmente todos os excitantes porque os meus nervos, se é que os tenho, não se lembram de me encommodar. — Pegou na garrafa e continuou com ironica amabilidade. — Bebe, sr. Telles? Só hoje, para nos acompanhar...
— «V. Ex.ᵃ manda! Beberia até a cicuta que matou Socrates offerecida por tão delicadas mãos — respondeu desvanecido, apresentando o calice.
— «Não posso agradecer-lhe o desejo de fazer das minhas pobres mãos cumplices de tão nefando crime. Agora, sr. Telles, á minha saude, e a voltar — levou o copo á bocca e pousou o com naturalidade, vasio, sobre a mesa.
Quando olhou para o pharmaceutico e o viu torcer-se em caretas caricaturaes e apertar o estomago como quem se escaldou, partiu na mais sonora gargalhada que durante a festa se tinha dado.
João não poude deixar de sorrir das caretas do Telles, apesar da tristeza que lhe causava ver esse espirito habitualmente calmo e simples estorcer-se em risos de troça, n’uma desforra da natureza, que não esquece nem poupa, que no rosto angelico, na alma limpida de Bella apresentava quando a amargura lhe acicatava os nervos, um como reflexo do sangue d’esse pae que era ainda para elle um mysterio, mas que lhe diziam, em carta anonyma, aventureiro e elegante, sem escrupulos nem piedade, o homem de mais espirito e de mais coragem que se tem apresentado a deslumbrar e a enganar Lisboa.
— «O senhor acha isto forte? — dizia ella ainda a rir.
— «É lume, minha senhora.
— «Pois eu achei tão agradavel que vou repetir; dá-me, João?
— «Oh Bella!... — disse este a meia voz, entristecido, emquanto lhe deitava o licor.
— «O que é? — Olhou-o bem de frente e vendo-o com parecer desapprovador fingiu esquecer-se do que estava a fazer, e mettendo a faca por debaixo do copo fê-lo cahir com um telintar crystalino sobre a meza de pedra.
— «O que foi? — perguntaram algumas vozes.
— «Nada — disse a Viscondessa, que tinha observado a scena — crystal partido porte-bonheur.
— «Um telegramma para a sr.ᵃ D. Isabella — veio dizer o guarda-portão, entregando o subscripto amarello a um criado que logo lho apresentou, sobre uma salva de prata.
— «Oh! Vê, Maria Helena.
— «Então o que dizia eu? É uma grande felicidade para nós. — E muito alto, propositadamente: — Duarte, um telegramma de M. Burns prevenindo-nos de que vem ámanhã no comboio das nove. Para ser amavel até ao fim, depois de se ter sacrificado, privando-se da companhia da sua adorada sobrinha, vem ainda assistir á nossa festa.
— «Muitos parabens, miss Bella! Ámanhã irei esperar seu tio e pedir-lhe-hei que se continue a sacrificar, ficando tambem.
Ella abaixou a cabeça agradecendo, emquanto toda a meza estremecia n’um fremito de respeito.
Os pretendentes da baroneza olhavam se desconfiados com pressa de retomarem os seus logares junto da presumptiva herdeira do riquissimo inglês.
— «Grande subida de cambio!... — disse a meia voz, escarninhamente, o dr. Pinto.