Ambições/X
X
Onze horas. O sol, a prumo, punha na terra incandescencias de dia tropical.
O largo sem arvores fazia ophtalmias com a sua areia granitica a escaldar, reverberando sob esse sol que pesava e se cingia ao corpo como as tunicas de fogo de que nos faliam os livros santos descrevendo os tormentos infernaes.
Apesar d’isso, a animação e concorrencia á romaria da Senhora do Monte não afrouxára desde a vespera. Pelo contrario, até o sol parecia ter subido ás cabeças, a pôr mais vivacidade e mais ardor nos risos e nas cantigas.
Desde a madrugada que os carros se desconjunctavam n’uma pressa de despique, levantando pela estrada, falha de brita, nuvens de poeira.
Os cocheiros, congestionados, nem tendo tempo de limpar o suor que lhes escorria pelas faces, atavam ao pescoço os lenços d’assoar e chamavam os freguezes n’uma pressa d’aviar, como se fosse empreitada carregar com toda aquella gente lá para cima, a tempo de assistirem á missa da festa e ouvirem o sermão do conego Almeida, o melhor prégador da provincia. Cruzavam-se na estrada, paravam no meio do caminho para voltarem a cima com algum descorajoso que não tinha pernas para mais, ajustavam por todos os preços, gritavam para o povo que seguia a pé, obrigando-o a saltar para fóra do caminho, para o matto curto da serra, que parecia uma fornalha a arder.
O pequeno phaeton de João de Mello passava, elegantemente posto e guiado com firmeza, por entre toda aquella inferneira de carros, desde o envernizado char-à-bancs ás galopadas, trasbordando de gente até ao tejadilho, a velha victoria comprada em segunda mão, a caleche, o coupé, até ao classico carro toldado com vistosas colchas de ramagens, vindo das terras onde o macadam não chegava ainda e que só os bois podiam arrastar. Dentro, as senhoras levantavam os vestidos para os não enxovalhar ao pé das canastras da merenda e riam e gralhavam como quem na roda do anno tem poucas festas assim.
Bella, vestida de branco, com um largo chapéo egualmente branco, que lhe punha uma tenue sombra no rosto enrubecido, endireitava-se risonha e firme na almofada, segurando as redeas nas pequenas mãos muito habeis.
João, ao seu lado, concentrava toda a attenção na maneira de seguir por esse caminho eriçado de impedimentos, e pedia-lhe que tivesse cautella, que fosse devagar. Mas quê? ella sentia um prazer louco e uma certa vaidade em levar o cavallo a trote, furtando-o a todos os perigos, não deixando que nenhum outro carro lhe passasse á frente. As azas do seu fino narizito batiam nervosamente, os dentes apertados, a testa franzida n’uma unica préga de poderosa attenção e vontade energica, tudo demonstrava n’ella a excitação da partida. Para traz tinham ficado ha muito as carruagens em que o visconde e os hospedes seguiam, com mais segurança e menos alegria.
Ranchadas de raparigas com as saias arregaçadas, a mostrarem os saiotes amarellos e vermelhos, descalças, para irem mais depressa, lenços vistosos cahidos para traz, blusas frescas as da villa, de casacos azul Prussia algumas, ou brancos e engommados as da aldeia, — sorriam e commentavam com sympathia a passagem d’esse carro novo, duma graça artistica, que assim ia guiado por uma criança vestida de branco como a mais linda fogaceira. Velhos e novos desviavam-se de motu-proprio e seguiam com louvores a mocidade e a formosura triumphantes.
Dir-se-hia que esta festa em plena natureza, resto de paganismo que ficou na ascetica religião christã, como remendo de purpura em fato de burel, commovia e expansibilisava a ingenua e rude alma popular, e resuscitava por momentos o nobre culto da belleza humana.
Á entrada da romaria tiveram que parar; a turba multa dos festeiros impedia os carros de seguirem adeante. Bella, entregando as redeas ao criado, saltou airosamente e n’uma confiança fraternal tomou o braço de João para atravessarem a multidão que ondeava como um revolto mar.
Logo ao apearem-se, uma mulhersinha que alli estava desanimada, n’um sitio de pouca venda, junto á mina, pediu por esmola que lhe comprassem alguma coisa.
Sem esperar que João a ouvisse, atirou-lhe o dinheiro para o regaço e pegou na primeira coisa que viu, um buzio com assobio de chumbo que pretendia imitar o silvo do comboio. Achava engraçado mettê-lo disfarçadamente na bocca e fazê-lo resoar n’um apito prolongado, que se ia confundir com todos os outros que enchiam o arrayal.
Um bando de homens descia então, cantando e dançando pezadamente adeante de duas guitarras, um harmonium e um violão, que vagarosamente os seguiam.
Os dois pararam e afastaram-se para dar passagem ao toque e seus admiradores. Quando Bella ia levar o assobio á bocca, n’uma tentação infantil, um dos homens cantou, abrindo os braços n’um gesto largo que lhe attingiu a mão e lho fez voar não soube mais para onde:
Riu divertidissima com o desespero de João,
que já queria ir bater no bruto.
— «Ora deixe lá — dizia. — Não vê que aquillo é um gesto lindo do amôr?
Olharam-se e, sem bem saber porquê, córaram violentamente, depois desviaram os olhos a um tempo, e sorrindo encetaram a gigantesca empreza de atravessar a multidão.
Estavam na maior balburdia da romaria. O sol de setembro enchia de fogo toda aquella variegada e ruidosa confusão de côres e vozes, que, á força de disparatadas, chegavam a dar um conjuncto harmonico.
Izabella, n’uma alegria de excitação lembrou, logo que chegaram ás barracas, comprar alguma coisa que podesse trazer sempre a recordar aquelle bello espectaculo.
Mas, por mais que procurassem entre as bugigangas empoeiradas, não viam coisa que lhes désse uma idéa local.
Depois de muitas e muitas pesquizas, lembrou Bella a uma mulhersinha, que por força lhe queria vender alguma coisa:
— «Mas vocemecê não tem nada que dê felicidade, que livre de feitiços e maus olhados?
— «Isso tenho, mas é uma coisa tão somenos...
— «Deixe lá vêr, avie-se — acudiu João, um quasi nada impacientado com aquella demora sob o sol, na passagem contínua dos feirantes.
— «Eu mostro, mas os senhores não hão de querer...
A custo, como que envergonhada da pobreza da mercadoria, apresentou na tampa d’uma caixa uns anneis de ferro toscamente gravados com um X ao meio.
— «Deixe cá vêr, é isto mesmo, tem até muita graça! — E, descalçando a luva da mão direita, tirou os anneis preciosos, cujo brilho deixou a vendedora estarrecida, para enfiar o pobre e primitivo aro de ferro de que a mulhersinha affirmava as grandes virtudes para afugentar feiteiceiras e maus olhados...
— «Quer isto? — perguntou João sorrindo e escolhendo o mais pequeno d’entre os que lhe apresentavam.
— «Então, não tem caracter?
— «Tem!... É para trazer sempre, não é? — perguntou á mulhersinha, entregando um tostão para pagar o vintem do custo.
— «Decerto que é para trazer sempre — respondeu Bella sorrindo, emquanto se affastavam — se não fôsse isso não era talisman.
— «Quando olhar para esse infimo annel, tão deslocado entre os outros, pensará em mim, Bella? — sorriu melancholico.
— «Dúvida? Mesmo sem esta recordação eu pensaria em si. Então não somos já dois velhos amigos?
— «Eu sou... muito, muito seu amigo.
— «E, eu não?... Olhe que essa dúvida offende-me.
— «Se o fosse!...
— «O que aconteceria?
— «Nada, não é nada... Sempre quer ir á igreja? — perguntou n’outro tom.
— «Quero, mas é melhor esperarmos pela Maria Helena, não acha?
— «É melhor. Esperemos aqui.
Como estavam no meio do arrayal, ainda que um pouco desviados da passagem, viram a Hortensia, pelo braço do Vilhegas, esticada n’um vestido de seda, ás riscas, com boléro côr de cereja e um grande chapeu enflorado que lhe cobria a pequena cabeça de passaro tonto.
— «Não reparou que fingiu que nos não viu?
— «Talvez não visse.
— «Isso sim!... Ainda a não conhece pessoalmente?
— «Devo tê la conhecido em criança; mas, como sabe, ha uns poucos d’annos que n’esta epoca vou para fóra. Aborrece-me toda esta pretenção de terra de provincia a acapitalar-se.
— «Pois tem perdido bastante, porque ha interessantissimos exemplares d’esta sociedade que cae de podre. Esta m.ᵉˡˡᵉ Hortense Mouton, por exemplo, é deliciosa de tolice.
— «Mouton, quem é?
— «Pois não sabe que ella traduziu o appellido infamemente portuguez?
— «Ora póde lá ser! Diz isso por graça, não diz?
— «Não; é certo. Affiançou-me, pelo menos, uma das suas mais intimas amigas que tem cartas assignadas assim.
— «O que prova a eterna perfidia feminina...
— «Nem que os homens a não tivessem egual, ou peor! Olhe, não procuremos mais longe. Vê aquelles tres elegantes que seguem no coice do prestito maximiano, levando em triumpho a baroneza da Amieira?
— «Só conheço, e mal, o visconde de Alvora.
— «Esse é attaché na legação da Russia, onde nunca poz os pés, mas recebe uns mil reis diarios como official do ministerio dos estrangeiros, onde só vae nos princípios dos mezes para lhe darem o ordenado. O outro é o sr. D. Manuel Pereira de Vasconcellos, que se diz descendente do condestavel Nuno Alvares Pereira, não sei porque bullas, nem mesmo quero perguntar, para não ficar esmagada sob uma alluvião de nobiliarchias. Esse é bacharel formado e espera collocações varias; não escolhe profissão. O terceiro é o sr. Jorge Cabrella, filho d’um rico negociante de cordas, mas que tem o defeito maximo de apertar os cordões á bolsa quando se trata das extravagancias do filho. É um bom homem, sem educação, mas que tem trabalhado muito e sabe o que lhe custa a vida. A mulher é que faz do filho o inutil que vê, querendo-o fazer fidalgo. Em geral são as mães que perdem os filhos, em Portugal, porque conservam o estupido preconceito da bastarda fidalguia que para ahi ficou depois da extincção dos vinculos e dos conventos — de que o trabalho é um desprezo. Sabe o que estes tres homens procuram? Uma mulher que lhes traga em dote a certeza de poderem continuar as suas vidas de ociosos. E lá vão atraz da viuva riquissima, que se fosse pobre ninguem receberia em sua casa...
— «Conhece pessoalmente a baroneza?
— «Conheço e até sympathiso com alguns traços do seu caracter, que, apezar de tudo, é energico e tem certa grandeza. Mas quem me tem fallado d’ella é meu tio, que é das suas relações desde o tempo em que deslumbrou Lisboa com o esplendor das suas carruagens e a extravagancia do seu procedimento. Dizem que muitas vezes se vestiu de homem para andar á vontade. Muitas pessoas se lembram ainda de a ter visto percorrer a cavallo as alamedas de Cintra, de charuto na bocca, acompanhada de rapazes, novos como ella, quando o velho marido se torcia nos ultimos ataques que a livraram da sua incommoda pessoa. Conta-se que alguns assassinios se fizeram por sua causa... não sei! Do meu tempo não é mais do que aquillo, uma viuva rica que se diverte a arrastar uma cauda de pretendentes.
— «São-no aquelles?
— «Com certeza. Mas a baroneza faz-lhes partida, a todos. Não creio que venha a casar, ella que comprou a liberdade e a riqueza que hoje disfructa com os melhores annos d’uma mocidade torturada por um velho avarento e mau; mas, a casar, será com o administrador que lhe tem augmentado a fortuna. Entre todos o que mais merece, o pobre Bento da baroneza, como lhe chamam por lá.
— «Mas tudo isso não prova que aquelles tres rapazes vão alli com essa pretenção ignobil, porque nenhum decerto lhe tem amôr.
— «Mas teem-no ao dinheiro, e procuram-no onde o encontram.
— «Como se pode affirmar isso?
— «Perfeitamente. Na capital eram meus admiradores...
— «E não são aqui?
— «Achei um pó insecticida para os afugentar...
— «Não poderei saber a receita?
— «Talvez precise... tem o merito que eu tinha lá... — ria com muita vontade.
— «Então diga.
— «É segredo entre a Maria Helena e eu, mas ao João digo, vá lá.
— «Obrigado pela confiança, vamos então a saber.
— «Fiz constar que vinha para aqui de mal com meu tio... Percebe?
— «Não, confesso que não percebo.
— «Pois não sabe que meu tio representa uma das maiores fortunas que habitam Lisboa? Pois bem, meu tio criou-me como filha e não tem mais parente nenhum. Quem é, pois, a sua presumida herdeira?... Bom, agora supponha que estou mal com esse tio, eu, que não tenho fortuna propria...
— «Não diga isso! Rapazes a entrarem na vida são lá capazes d’um cynismo d’esses!
— «Creia que é a verdade mais verdadeira.
— «Pensando assim, como pode ter relações com elles?
— «Que ingenuidade a sua! Se fossemos a só fallar aos bons, aos honestos, em pouco tempo teriamos que nos esquecer da linguagem, por inutil... A comedia social diverte-me, porque me não prende nas suas mentiras e vaidades.
— «V. ex.ᵃ poderá fazer isso pela sua educação muito ingleza e pela independencia em que a colloca a fortuna de seu tio. No entanto, parece-me que ainda ha de soffrer com o contacto d’essa gente tão pouco digna. Cá por mim prefiro viver só.
— «Tambem eu preferiria, mas como estou na sociedade em que elles estão, divirto me a observá-los e ás vezes a fazer-lhes partidas. Pois não acha engraçado que elles me julguem de mal com meu tio, aquelle adorado tio William que nunca teve para mim senão palavras consoladoras e risos de approvação?!
— «É muito seu amigo, não é?
— «Muito! É toda a minha familia, e não havia mãe nem pae que fossem mais bondosos e disvelados do que elle tem sido. Não ha ninguem melhor, mais delicado, mais instruido, mais consciencioso, mais artista!
— «Mas que enthusiasmo!
— «E tudo elle merece, creia. Depois me dirá.
— «Espera o aqui?
— «Recebi carta hontem e diz-me que não supporta a Inglaterra sem mim... que vem buscar-me ou estar commigo, como eu quizer. A minha vontade é a sua.
— «Como estão, miss Isabella Burns e o sr. João de Mello? — comprimentou por traz d’elles e com um risinho de mofa o Conselheiro, que o padre Mathias acolytava.
— «Nós perfeitamente bem, e o sr. Conselheiro parece tambem que não ha mal que lhe chegue — respondeu Bella, olhando o d’alto, com um ligeiro tom de impertinencia.
— «Então os Viscondes não vieram?
— «Estamos esperando que cheguem para irmos á igreja. Creio que o sermão não se dirá sem a comparencia de quem tanto dá para a festa.
— «Ora! A Senhora do Monte não precisa das esmolas dos ricos, tem bastante dos pobres — acudiu brutalmente o padre Mathias.
— «No entanto, a missa não principiou ainda, pois que vemos por aqui o sr. padre Mathias.
— «Já lá estão a cantarolar. A mim é que só na ultima extremidade me apanham para aquellas maçadas. Logo de madrugada disse o missóte a uma gentinha que me pagou bem e ainda logo me dão da merenda...
— «Bom negocio, hein? — sorriu o conselheiro para aquelle seu infatigavel agente.
— «É como diz.
— «Miss Bella não está aborrecida com esta algazarra?
— «Não, pelo contrario, diverte-me, porque é uma novidade para o meu espirito. Agora o Conselheiro aqui é que é para admirar.
— «Os negocios... Aborrecimentos e cuidados é que passeiam por aqui os meus cabellos brancos. Miss Bella tem melhores companhias...
João franziu o sobrolho e ia responder azedamente, mas a rapariga não o deixou, continuando com malicia:
— «E no entanto já me não acompanham titulares nem descendentes de figuras primaciaes como Nun’Alvares...
— «Quem tem essa ascendencia illustre?
— «Pois será possivel que desconheça esse avô ao seu hospede sr. D. Manuel Pereira?
— «Tambem não é grande honra descender d’um assassino e ladrão — intrometteu se a dizer, o padre, querendo sempre saber de tudo.
— «Não se trata de Diogo Alves, o assassino celebrado pelas figuras de cera. É do santo Condestabre, D. Nuno Alvares Pereira. Conhece? — respondeu João muito a sério.
— «Ná, esse não sei quem é.
Isabella, com o lenço na bocca, ria perdidamente, emquanto o conselheiro, imperturbavel, fazia as suas despedidas.
— «Que estupido! — dizia depois para João.
— «Não é! Ignorante, faccioso e maledicente sim, mas de bruto não tem nada.
— «O que a Maria Helena se demora! São capazes de faltar ao sermão. Vamos vêr se os encontrâmos?
— «Vamos lá.
Tornaram a atravessar o arrayal. A um lado, sobre uns penhascos, toda uma familia de padre acampára comendo o farnel. João, que era conhecido, foi chamado pelo padre Miguel, que esbrugava uma perna de gallinha com os seus rijos dentes de velho sadio. — Que não acceitava, mas agradecia, respondeu João tirando o chapéo delicadamente.
— «Homem, não seja esquisito, nas romarias não se olha a etiquetas. A sr.ᵃ sua prima talvez goste do nosso vinhito branco...
Isabella pensou, pela primeira vez, que era na verdade temerario affrontar assim os preconceitos portugueses e provincianos principalmente, apresentando-se n’uma festa tão publica com um rapaz que lhe não era familia. Na sua altiva honestidade de rapariga educada para se guardar a si mesma e responsabilisar-se pelos proprios actos, não comprehendêra o que o seu procedimento podia ter de inconveniente aos olhos de toda essa gente, habituada a tudo fazerem menos desprezar as linguas do mundo... Fizeram-na córar mais do que o proprio sol, os olhares curiosos das mulheres que arranchavam com o padre Miguel e melhor a distinguiam da Candida, por quem o velhote a tomou. Lembrou-se do risinho do Maximiano ao encontrá-los, e essa lembrança feriu-a como um insulto. A garganta apertou-se-lhe n’uma crise de choro, vencida com esforço.
Quando a Viscondessa se apeou, correu para ella n’um impeto de reconhecimento e disse-lhe, desopprimida d’um certo mal estar que lhe obscurecia a alma:
— «Como se demoraram tanto?!
— «Nós viemos cuidadosamente, porque a estrada esta má e a concorrencia é enorme. Vocês é que parecia que tinham azas; fizeram successo...
Beijaram-se; Bella tomou-lhe o braço e não mais a largou, como criança atemorizada que se acolhe á protecção materna e só alli encontra valor para resistir.
Na igreja a missa da festa ia effectivamente em meio, mas o sermão demorara-se porque o conego Almeida, pago pelos Viscondes e seu commensal, aguardava na sachristia que elles chegassem para subir ao pulpito e encher a igreja com a sonoridade da sua voz.
Curvou-se deante da Viscondessa com requintes de cortezia, a que ella correspondeu sorrisonha, apresentando-o aos seus hospedes e comprimentando-o antecipadamente pelo seu discurso, que devia ser bom, como sempre... Depois, com o seu pisar firme e gracioso ao mesmo tempo, atravessou a capella-mór, onde tinham logares reservados, baixando a cabeça aos Maximianos, que os defrontavam, como potencia a potencia.
O templo, bastante grande, doirado e pintado de fresco pelas ultimas eleições, estava cheio a não poder mais...
Isabella, que na vespera o tinha visto a meia luz servindo de dormitorio aos romeiros pacatos, quasi o desconhecia na gloria do sol entrando pelas janellas com cortinados vermelhos, no triumpho das luzes, do incenso subindo em espiraes e dos ricos paramentos.
Desinteressada das lithurgias, deixava que os seus olhos e o seu espirito vagueassem pelo recinto sagrado sem que a isso a levasse uma consciente vontade, e sem mesmo pensar deixou-os perderem-se na contemplação dos ex-votos, que se alinhavam como um rosario de lagrimas na parede fronteira. Sorriu complacente aos laudatorios quadros em que a cama e o doente, na ausencia de toda a perspectiva, se alevantam no mesmo plano, em agradecimento á milagrosa santa que arrancára o infeliz condemnado da escuridão sepulchral... Tranças de cabello, roídas pela traça, junto das offertas de cera, amarellecidas umas pelo tempo, diaphanas ainda, como da ultima hora, outras, cabeças, pernas, braços, todo o corpo humano sujeito á dôr, baralhado e destruncado pelo acaso do soffrimento... Mortalhas amarfanhadas e destingidas, pequeninos caixões com bonecos representando a vida d’uma criança resgatada de prematura morte, caixões esguios para homens, outros brancos para virgens...
Tanta desgraça, tanta miseria a acolher-se á crença no milagre, como se a vida sem elle não fosse mais do que um desterro! Bella evocava as dôres que representavam essas offerendas, e a sua alma energica confrangia-se n’uma duvida, n’uma como ansiedade de quem presente que o temporal se aproxima e não tem a certeza de se achar bem couraçado para a resistencia.
Como um raio de sol a alegrar uma enfermaria, as fogaças lá estavam tambem com as suas offertas de milho ou pão de ló em açafates armados em alta roca com flôres e laços enastrados. Nem todas formosas, mas alegres e sadias na graça hesitante do sahir da infancia, com seus vestidos brancos e os peitos cobertos de oiro, ellas representavam tambem um reconhecimento e uma crença, mas a sua offerta significava abundancia e vida; a sua crença ingenua transformava-as em oblata inconsciente ao culto da alegria e da mocidade.
Por fim os seus olhares cahiram sobre os homens de sorriso unctuoso, que recebiam as esmolas, e pensou com amargura na ingenuidade que a hypocrisia explora sempre...
N’esse momento todos se levantaram e sentaram, tossindo, escarrando, installando-se com a maior commodidade compativel com o espaço, para ouvir o sermão.
Depois d’alguns momentos de recolhimento, o conego Almeida ergueu-se no pulpito; alto, moreno, a bocca n’um risco de amavel sorriso, a face azulada de muito escanhoada, o olhar firme, de quem tem a certeza de possuir o auditorio.
Isabella olhou-o e logo recahiu no inconsciente scismar que a levava não sabia para onde, que a tornava tão estranhamente indifferente ao que se passava.
— «O amôr — dizia o conego com a sua voz propositadamente espaçada, para que as palavras se seguissem umas ás outras, n’uma ordem de formatura — é a base da vida. É o principio e o fim de todas as coisas...
Bella ouvia phrases truncadas que lhe entravam na alma e mais a mergulhavam no mysterioso cogitar em que se embebêra.
O amôr!... Era a segunda vez que n’essa manhã o ouvia proclamar, por bem differentes vozes, e com intenções diversas. Sim, porque devia ser o amôr divino esse a que o orador se referia, mas era amôr, alguma coisa superior e forte que transforma a vida e das mais aridas almas faz brotar flores de poesia...
A Viscondessa julgou-a adormecida quando, no fim da festa, lhe tocou no braço e a viu estremecer n’um sobresalto de estremunhada.
— «Dormias? Estarás doente!?
— «Não... O espirito é que me parece que sonhava...
— «Então gostaste do conego?
— «Gostei, é eloquente.
Os Maximianos abeiraram-se, a comprimentar. Era para o dia seguinte o pic-nic projectado e era preciso pormenorizar os ultimos arranjos. A Viscondessa pedia que se não encommodassem; era mais um jantar dado na quinta, para evitar etiquetas, do que verdadeiramente pic-nic, em que todos são obrigados a fornecer iguarias.
Despediram-se depressa para irem até á porta, onde os homens esperavam já; mas ahi pararam estonteadas.
Toda a gente corria, gritando n’um terror pânico; as mulheres agarravam as canastras e fugiam, encolhendo-se, cobrindo-as com o corpo; outras seguravam os homens ou chamavam os filhos; crianças gritavam desesperadamente e todos gesticulavam e fallavam sem que fosse possivel comprehender o que assim alarmava e varria o arrayal, havia pouco tão animado e alegre.
— «O que foi, o que foi?! — perguntaram as senhoras vendo o dr. Ramalho dirigir-se apressado para casa do sachristão.
— «Um homem morto, um homem morto — commentava-se de todos os lados.
— «Não se assustem — disse o Visconde — nós vamos acompanhá-las á carruagem e depois lá iremos ter a casa.
— «Oh Duarte, será melhor não sahirmos d’aqui — aventou a Viscondessa.
— «Não póde ser. Se o povo se lembrasse de invadir a igreja, o que seria de vós? O mais seguro é partirem já.
— «Oh sr. Visconde, não nos abandone, ai que horror! Eu morro de mêdo!... Só de vêr este barulho já estou mal — gemeu a Candida enfiada.
— «Não se afflija, minha senhora, isto não é nada, não ha perigo nenhum, vamos aqui por detraz da igreja, não chega cá, a balburdia!...
— «O melhor é tu dares o braço á sr.ᵃ D. Candida, Duarte. Bella e eu vamos com o João; como somos mais corajosas, basta um defensor para as duas... V. Ex.ᵃˢ sigam-nos de perto, ou se preferem vão adeante, como entenderem... — determinou a Viscondessa, voltando-se para os hospedes, não deixando de aflorar-lhe nos labios o mesmo sorriso de calma delicadesa.
A confusão e a berraria vinham do primeiro largo, de ao pé das pipas desramalhetadas do vinho forte da região, e elles affastavam-se seguindo por detraz da igreja e descendo um bocado de serra até á estrada real, que se desenrolava em caprichosas curvas costeando o monte.
— «Gostava de vêr aquillo de perto — disse Isabella para a Viscondessa e João, ouvindo distinctamente o entrechocar-se dos varapaus e a grita descompassada — deve ser um simulacro de batalha.
— «Isso sim! Tudo aquillo é do vinho a rôdos... Não tem grandesa nem belleza. É raro o anno que não ha desgraças n’esta romaria.
— «Lembra-se de ha dois annos, prima? Ficou ferido o morgado Albuquerque. O que a Pillar se impressionou de o vêr lavado em sangue, cuidando que estava morto! Lembra se?
— «Lembro-me muito bem...
— «Quem serão este anno as victimas?!...