Anais da Ilha Terceira/I/VIII

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Ficando na ilha Terceira Diogo de Teive loco-tenente do capitão Bruges, e com todos os seus poderes foi tal o abuso que deles fez, que logo começou a empossar-se das melhores terras, distribuindo outras pelos seus adjuntos e amigos[1], desprezando futuros, e não se embaraçando com o direito de terceiro; em razão de se achar munido da força e da autoridade, e confiando na dificuldade dos recursos. Em consequência do que Duarte Paim, que ficara procurador na ausência do dito capitão, sem perder tempo, deixou a procuração a Gonçalo Anes da Fonseca, segundo nomeado, e saiu para a corte.

Constando então ao Infante D. Fernando a inquietação, que na ilha andava por falta de bom governo, enviou a ela Álvaro Martins Homem, fidalgo de sua casa, como deixámos dito no capítulo antecedente, com promessa de uma das capitanias[2], em que pretendia dividir a ilha: e por seu ouvidor mandou Afonso Gonçalves de Antona Baldaia; mas a sua chegada em vez do diminuir estes males, ocasionou outros maiores, pela maneira violenta com que o dito Álvaro Martins Homem começou a assenhorear-se da parte de Angra.

Já muito antes havia chegado a Lisboa a caravela que partira da Praia, em que se dizia embarcara o capitão Bruges: e porque sua mulher Sancha Rodrigues do Toar, achando-se ali com sua família, nenhuma outra notícia tinha de seu marido senão que ele efectivamente partira para o Reino a ir ter com ela, não pôde deixar de persuadir-se de que tramas sinistras haviam posto termo à sua existência. Em tal extremidade casou sua filha mais velha Antónia Dias de Arce[3], a quem pertencia a doação, com o mencionado Duarte Paim, fidalgo inglês[4], com o qual já em vida de seu pai estava destinada a casar.

Verificado o casamento, e correndo tão manifestos indícios da morte de seu sogro, nem por isso Duarte Paim cuidava de se encartar na capitania, julgando em todo o vigor a originária doação que em falta de varão chamava expressamente sua mulher Antónia Dias; e quando todo lhe seria mui fácil obter naquele tempo, se entregou ao descuido ou ao mau conselho, de modo que não tratou senão de se embarcar para a ilha Terceira com sua mulher, persuadido que tudo estava em seu favor e que ele seria nela recebido a braços abertos, e mãos cheias de flores. Infelizmente tudo achou em contrário[5], porque Diogo de Teive sustentava com ardor a demanda a respeito da Serra de São Tiago, e desta não se terminou senão depois de muitos anos, e por intervenção de El-Rei[6]; e assim também os ditos Álvaro Martins Homem, e Afonso Gonçalves de Antona Baldaia se haviam assenhoreado da parte de Angra, fazendo obras mui consideráveis, na firme resolução de se demorarem ali para sempre[7]. Em vista do que principiaram a mover-se entre eles tais dúvidas e embargos a respeito das terras, e sobre a validade do título de Álvaro Martins Homem[8], que foi necessário recorrer ao Infante D. Fernando, e com tão infelizes auspícios que já era falecido em Setúbal, a 18 de Setembro de 1470[9]. Contudo, o apelado Álvaro Martins Homem não cessava de promover as obras referidas, aliciando ao mesmo tempo algumas famílias, que naquela parte foram estabelecer-se.

Vendo-se Duarte Paim obrigado a seguir em Lisboa os mencionados pleitos, de que se apelara, substabeleceu segunda vez a procuração de seu sogro em Gonçalo Anes da Fonseca — por saber e conhecer a altivez de seus brios, e ânimo — e partiu para a corte[10].

Esta época em que se aumentou muito a povoação, foi certamente das mais violentas que experimentou a Terceira, tudo nela foram desassossegos e mortificações. Os grandes da terra achavam-se em grave discórdia em consequência de suas ambiciosas pretensões; não havia governo, e isto bastava. O Infante D. Fernando nos últimos anos de sua existência havia retirado os olhos daqui; e ainda que ele meditara uma divisão proporcionada e justa, mal informado, a deixou envolver em contestações; nem se julgou com resolução de confirmar a doação da ilha à herdeira necessária do finado Jácome de Bruges. Tais foram as intrigas da corte! E por fim, o desamparo em que parece esteve a Terceira durante o espaço de dez anos, induz uma bem fundada suspeita, de que com ela, em todo esse espaço, não houve comunicação alguma[11].

Não havia o Infante D. Fernando terminado o recurso interposto contra Álvaro Martins, por haver falecido pouco tempo antes de chegarem os autos a Lisboa; e passando o governo dos Açores à Infanta D. Brites[12], sua mulher, na menoridade do Duque D. Diogo, seu filho, logo que ela soube da discórdia e inquietação que havia na ilha entre os dois[13], resolveu por uma vez por termo a este grande negócio, fazendo intimar a viúva Sancha Rodrigues de Toar, e assinando-lhe o termo de um ano, e depois mais tempo, para que desse conta de seu marido, ou vivo ou morto, declarando que aliás proveria a capitania na pessoa que lhe parecesse[14].

Passou com efeito o prazo mencionado sem que a viúva alegasse outra coisa do que — ter seu marido Jácome de Bruges passado à ilha, e que ao Reino não voltara, nem ela o vira mais, nem sabia dele — com a qual resposta se resolveu a Infanta dividir a ilha em duas capitanias independentes, concedendo uma a Álvaro Martins Homem, e outra a João Vaz Corte Real, o aquela que ele escolhesse, mercê que havia vários anos solicitavam em prémio de seus relevantes serviços; e nesta na forma se lhes passou o título das doações, tudo conforme a intenção do Infante D. Fernando, que já em sua vida tentara a divisão em vista do plano que lhe fora enviado figurando a ilha igual desde a Ribeira Seca ao limite da Agualva; e porque a carta de Álvaro Martins Homem chegou primeiro que a de João Vaz Corte Real, contra ela começaram os embargos por parte de Duarte Paim, alegando o direito adquirido por sua mulher, ainda em vida do capitão Bruges, seu pai, na forma de sua carta: e a desigualdade da partilha em duas capitanias por esse limite. Consequentemente teve Gonçalo Anes da Fonseca, procurador de Duarte Paim e sua mulher, fortes debates com Álvaro Martins Homem, quando este pretendia verificar tal demarcação: e são estes os debates de que trata o Documento D, e os únicos que parece houveram em ausência do capitão Bruges, e a que se refere o artigo 32.º de Foral do Almoxarifado (Documento C).

Todavia continuava este pleito, e correndo os seus termos, foi avocado a Lisboa, onde se pediu informação à Infanta, que fizera a doação, e conta-se por certo que ela compadecida de Duarte Paim lhe propusera: que visto João Vaz estar ainda no Reino, lá o acomodaria em outra igual mercê, e que ele aceitasse, e se contentasse com a capitania de Angra, porquanto lhe não parecia bem tirar a Álvaro Martins Homem da ilha quando já nela ele tinha feito serviços tanto do seu agrado.

Proposto a Duarte Paim o ânimo da Infanta, quando lhe cumpria muito agradecê-lo e dar-se por satisfeito, não o fez assim: antes disse com animosidade — ou há-se ser tudo ou nada! — e porque de tão grosseira resposta assim constou à Infanta, ela se estimulou sobremaneira, vendo-se depois obrigado a continuar, inutilmente, demanda contra a doação do dito João Vaz Corte Real.

Acrescenta o citado mestre Diogo das Chagas (artigo 1.º): — E é tradição de antigos que a demanda correu por muitos anos, e que ele, para bem de sua justiça acostara para prova do seu libelo aos autos o dito Alvará, e que certo criado do capitão (João Vaz) réu lhe sumira o dito Alvará que não aparecendo, o juiz da causa dera sentença contra ele; e que, assim ficara excluído, como sempre ficaria, pois tinha a senhora dita Infanta contra si por se não querer acomodar com o que era bem, como ela queria, na forma que acima temos dito.

Pretendem outros que o mesmo Duarte Paim morresse sem alcançar o despacho pró nem contra: e assim parece a respeito da capitania de Angra, a respeito da qual nada se alcança. Não foi assim da capitania da Praia: porque se verificou uma composição no ano de 1521, e se pôs silêncio perpétuo na causa. Assim perderam os descendentes do capitão Jácome de Bruges o direito à capitania da Terceira, que a ele deve a glória da sua povoação.

Desenganada a Infanta que Duarte Paim não admitia composição, e terminadas que foram as dúvidas entre os doados Álvaro Martins Homem e João Vaz Corte Real a respeito da fiel demarcação das capitanias, ficando agora pertencente à parte de angra as terras da Agualva para o norte: havendo o mesmo João Vaz Corte Real escolhido para si a parte de Angra, como lhe fora outorgado, mandou a Infanta dar-lhes título de partilha, como se manifesta na carta passada em 17 de Fevereiro de 1474 a Álvaro Martins Homem, a fl. 70 do Livro do Tombo da Câmara da Praia (Documento D), e da que foi passada a João Vaz Corte Real em 2 de Abril do mesmo ano[15], que se lê no Tombo da Câmara de Angra, a fl. 243, e vai no Documento E.

E assim ficou dividida a ilha entre estes dois capitães com as cláusulas e condições nelas declaradas. Verificou-se esta partilha desde a Ribeira Seca, onde está o Porto Novo, em direitura dos pastos da Junqueira a dar na cafua do Ajuntamento, como se vai de noroeste ao sueste, emendando a antiga divisão que por ir dar às terras de Agualva era muito desigual; contudo ainda depois João Vaz pretendeu alargar os marcos de sua capitania, sobre o que teve desavenças com o procurador de Duarte Paim; e muitos anos depois seu filho, e o neto Manuel Corte Real, com Antão Martins, a respeito do limite dos Altares, que por sentença final[16] se julgou na Relação a favor do último no ano de 1568, e ficou pertencendo à capitania da Praia, posto o marco além, onde está o Serro dos Folhadais[17], que é ao oés-noroeste, e antes ficava ao noroeste (veja-se Cordeiro, História Insulana, Livro 6.º, capítulo 5.º).

Mas voltando ainda às causas por que ficou excluída a filha do capitão Bruges da sucessão na capitania referida, parece não haveria outra mais poderosa do que a falta de autorização régia, que devera preceder ao seu casamento com Duarte Paim, por ser ela da casa dos Infantes, porquanto na forma da Lei Mental, e pelo que contém semelhantes doações, devia este matrimónio ser contraído com pessoa que fosse da mesma casa, e nomeada por eles, como se acha na doação da ilha de São Miguel a Rui Gonçalves da Câmara[18], feita em Évora pela Infanta D. Brites a 10 de Março de 1474, confirmada pelo Duque D. Diogo em Estremoz a 26 de Julho de 1483; como aconteceu com Álvaro Martins, segundo do nome, capitão da Praia, que casou com a dama D. Beatriz de Noronha, precedendo licença régia para a celebração da escritura, o que teve lugar nos palácios de El-Rei à Ribeira, a 9 de Maio de 1513; e como finalmente se praticou com D. Cristóvão de Moura, nomeado por El-Rei D. Filipe para casar com D. Margarida, filha de Vasco Anes Corte Real. E porque se faltou a esta essencial condição, e Duarte Paim não só deixou de ser nomeado pelo Infante, mas até era filho de estrangeiro, foi a causa porque, segundo parece, lhe pereceu o direito adquirido à capitania como legal administrador de Antónia Dias, sua mulher.

Notas[editar]

  1. Não consta quais eram os senadores associados no governo administrativo e judiciário, nem onde faziam suas reuniões, mas sabe-se que João da Ponte havia estabelecido sua casa e tomado data em Belo Jardim, Gonçalo Anes na Ribeira Seca, João Leonardes na Ribeira de Frei João, e João Coelho no Porto Judeu; e porque os de Porta Alegre estavam muito arredados da Praia, supõe o padre Maldonado que na dita Ribeira do Frei João se reuniram para os actos municipais conforme a qualidade de governo que nesses princípios adoptaram, por ser ali o centro.
  2. Pelos anos de 1466 em diante, segundo melhores conjecturas.
  3. Já era então falecida, diz Maldonado, a outra filha, ou havia tomado o estado de religiosa.
  4. Era filho único de Valentim Paim, fidalgo da casa de El-Rei D. Duarte, casado com D. Brites de Badilho, e neto de Tomás Elim Paim, que passou a Portugal secretário da Rainha D. Filipa de Lencastre, mulher de El-Rei D. João I. Cordeiro, Livro 6.º, Capítulo 17.º, diz que Duarte Paim casara na Terceira. Porém o mestre Diogo das Chagas, o padre Maldonado, e outros, afirmam que este casamento fora celebrado em Lisboa, e que Sancha Rodrigues nunca viera à ilha.
  5. Diz o padre Maldonado no Alento 1.º, §32.
  6. Não se decidiu este pleito em vida destes litigantes, e só em tempo de seus filhos Diogo Paim e João de Teive, por intervenção de El-Rei, porque segundo contam o mestre Diogo das Chagas e o padre Maldonado, indo El-Rei à relação e vendo o feito tão volumoso, que andava em uma azémola, culpando os desembargadores de consentirem em tanta alicantina, eles lhe fizeram ver que mais admirável era a amizade dos dois fidalgos, que se embarcaram em um mesmo navio a cuidar do sei direito, e em Lisboa moravam na mesma casa, comiam a uma mesa, e requeriam nos auditórios juntamente, sem que entre eles houvesse o menor dissabor, por terem assentado, jamais falar na sua demanda: pelo que El-Rei os mandara chamar e os conciliara, para que um partisse a herdade em questão e o outro escolhesse: como efectivamente aconteceu, partindo João de Teive, e escolhendo Diogo Paim a parte do sul, na qual, por testamento feito no ano de 1534, instituiu João de Teive a capela de Nossa Senhora de Assunção, erecta no mosteiro de S. Francisco da Praia, anexando-lhe 4 moios de terra. Alguns se persuadiram ser o instituidor Diogo de Teive, porém não é exacto, em vista do citado testamento.
  7. Com efeito quem seria capaz na ilha de julgar a causa de tais poderosos? Dizem que Afonso Gonçalves de Antona fora enviado lugar-tenente de Álvaro Martins e com poderes de mediar nas questões entre ele e Duarte Paim; e que por sua frouxidão as não decidiu como se esperava. Seja como for, Diogo de Teive não largou o cargo de capitão senão muito depois, como vemos do Documento F: e nisto concorda o referido padre Maldonado, concedendo que ele governou até ao ano de 1480, em que serviu de ouvidor geral António Afonso.
  8. O alegado doutor [João] Cabral [de Melo] falando deste título diz assim: — com efeito se fosse uma doação clara e expressa da capitania da ilha, ou parte dela, não se repartiria depois esta entre João Vaz Corte Real, ou não se daria a este a escolha: mas fez-se uma e outra coisa.
  9. Mr. de la Clède diz que o Infante D. Fernando falecera na vila de Setúbal em o ano de 1469 (veja-se o Tomo 6.º, Livro 12).
  10. Assim se explica António Correia da Fonseca de Ávila.
  11. Parece que este seria o tempo em que de Portugal não houve notícia por espaço de 8 anos, segundo Frutuoso. O mestre frei Diogo das Chagas lhe dá 9 a 10 anos. Veja-se a Topografia do padre Jerónimo Emiliano de Andrade, segunda parte, a página 26.
  12. A Infanta D. Brites, sucedendo no Grão Mestrado o Duque de Viseu, seu filho, o como era de menoridade, por concessões pontifícias e régias, é que o administrou em seu nome (veja-se Definições e Estatutos da Ordem de Cristo, parte I, tomo 3.º, página 9).
  13. O citado padre Maldonado.
  14. Veja-se a carta de João Vaz Corte Real (Documento E) onde se diz: — que a verdade dele o soubesse e mo certificasse assinando-lhe para isso o termo de um ano, e depois mais, do qual em alguma maneira, com todas as diligências que nele fez me não trouxe certidão. — Cumpre notarmos que as cartas que andam transcritas nos livros de Cordeiro e Maldonado não são conformes com a que adiante oferecemos; não só em data, que é do 1474, como em muitas palavras, das quais umas se omitiram, e outras se transpuseram. E quando naquele se lê: — E porquanto a dita ilha não era partida entre o dito Jácome de Bruges — se há-de ler — entre o dito João Vaz Corte Real.
  15. A cópia que anda no padre Cordeiro não é fiel. Além de várias palavras que estão pospostas, e omitidas pelo copista, acha-se na linha 21 uma grande diferença de sentido quando diz: — E porquanto a dita ilha não era partida entre o dito Jácome de Bruges e Álvaro Martins — deve ler-se: — entre o dito João Vaz Corte Real e o dito Álvaro Martins. — Também o virgulado não é exacto, nem a data que deve ser de 1474.
  16. Consta de uma sentença sobre a saída dos pastéis, e direitos pertencentes aos respectivos donatários, e se lê a fl. 39, verso, do Tombo da Câmara da Praia.
  17. [Nota do editor: Hoje denominado Serro da Ribeira dos Gatos, freguesia dos Altares. O marco ficava frente à Canada das Almas, nas proximidades do local que por essa razão é hoje denominado Cruz do Marco.]
  18. Outrossim me praz que concertando-se o dito Rui Gonçalves não haver filho lídimo, e havendo filha lídima, que a dita sua filha herde por seu falecimento a dita capitania, contanto que ela case com homem que viva com o dito Senhor, e por seu aprazimento, sendo pessoa que bem o mereça, e convenhável, &c. &c.. O padre Maldonado copiou esta carta.