Anais da Ilha Terceira/I/XI

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Tantos foram os povoadores que à ilha Terceira concorreram em vida dos donatários João Vaz Corte Real e Álvaro Martins Homem, que todas as terras susceptíveis de cultura foram doadas; e da mesma forma aquelas que só eram boas para sustentação de gados, exceptuando unicamente os logradouros públicos nas montanhas interiores da ilha que por muitos anos andaram abertos aos gados bravos e comuns, na forma das respectivas doações e foral do almoxarifado. Neste número de baldios contamos a Queimada, o Sanguinhal, o Escampadoiro, e outros grandes terrenos, parte dos quais se acham aforados pela Junta de Melhoramentos da Agricultura, e pelas Câmaras; e outra monta se pode considerar devoluta sem proveito conhecido da sociedade.

Já em tempo do capitão Jácome de Bruges se haviam fundado algumas igrejas paroquiais em benefício do culto divino; e como os lugares onde os povoadores mais poderosos assistiam ficavam distantes uns dos outros a mais de uma légua, era por isso necessário dividi-las. Foi portanto a primeira destas paroquiais, na jurisdição de Angra, a de Santa Bárbara das Nove Ribeiras, criada com vigário a quem se assinou ordenado de 2$000 réis em dinheiro; dois moios de trigo, e duas pipas de vinho; dois beneficiados, um com ordenado de 5$000 réis para servir de tesoureiro; e outro com 6$000 réis a título de coadjutor. A esta mesma paróquia ficou anexo o lugar de São Bartolomeu dos Regatos, onde residia um capelão com 5$000 réis de ordenado.

No mesmo tempo, e pela mesma forma, foi erecta paroquial a igreja de São Sebastião, vila do mesmo Santo; e lhe ficaram anexas as capelanias do Porto Judeu, e Ribeirinha, com ordenado de 5$000 réis a cada um de seus capelães[1]. Com este mesmo ordenado de 2$000 rés, dois moios de trigo e duas pipas de vinho foram também criadas as vigararias de Santa Cruz na Praia, Santo Espírito de Vila Nova da Serreta e São Roque dos Altares. Todas as mais que hoje são paróquias foram criadas na forma de capelanias, com o dito ordenado de 5$000 réis, conforme a ordem de suas antiguidades, mas destas não se pode alcançar certeza alguma.

Não achamos, contudo, que a paroquial de São Salvador fosse contemplada nesta reforma; nem sabemos qual era o ordenado do seu vigário, ou se teve algum curato sufragânio; só vemos que no ano de 1486, que parece o desta reforma, lhe foi enviado o seu vigário frei Luiz Anes, capelão da Infanta D. Brites, com o ordenado constante do alvará, que vai sob a letra — Documento I —; e por este mesmo se ficaram regulando todos os párocos das ilhas dos Açores, quanto celebração das missas por alma dos Infantes D. Henrique e D. Fernando, percebendo o mantimento e ordenado referida, até que no ano do 1568 se alterou essencialmente, e acrescentou depois por muitas vezes.

Tal era o incremento da população, e aumento das paróquias nesta ilha Terceira, e nas demais dos Açores, que no ano de 1487, ou já no de 1489[2], o Grão Prior de Tomar D. Diogo Pinheiro[3], que as governava no espiritual, mandou a elas D. João Aranha, Bispo de Anel, que as visitou, nelas crismou, e deu ordens sacras.

A respeito da era prefixa em que Angra, e a Praia foram elevadas à categoria de vilas reina uma grande confusão por falta dos necessários documentos; diremos contudo o que havemos alcançado.

O padre Maldonado, na Fénix Angrense, Alento 3.º, diz que Angra fora criada vila em tempo do primeiro capitão, Jácome de Bruges, e constituída república com seus distritos, por se avantajar a todos os mais lugares em razão do seu porto e ribeira, e pelo comércio das embarcações que em sua angra aportavam.

O Padre António Cordeiro, no Livro 6.º, Capítulo 10.º, da História Insulana, julga que Angra fora logo em princípio criada vila pela voz do povo, e com o consentimento tácito dos Reis[4]; e que suposto se não saiba quando a Praia fosse também criada vila, esta de algum modo considerava como capital a vila de Angra, e lhe mandou a nova da primeira vitória contra os castelhanos, não obstante residir o capitão Jácome de Bruges o mais do tempo na Praia, mas isso era por ter lá terras, e não porque ali fosse a cabeça de toda a ilha.

O mestre frei Diogo das Chagas afirma que lera em alguns papéis, posto que não autênticos, que já no ano de 1480 a Praia gozava do título de vila sem que o fosse; em prova do que ofereceu o requerimento de protesto feito pelos deputados da Praia no ano de 1482, exigindo que Duarte Paim conviesse na mudança da povoação para dentro da terra de sua sogra Sancha Rodrigues de Toar, pretendendo provar com ele, haver já em Angra vila com ouvidor e seus oficiais, quando ainda agora se pretendia formar povoação dentro da Praia, só porque o lugar era mais defensável contra os inimigos. Veja-se o Documento G.

Agora nós em presença destas opiniões, interpondo o nosso parecer em matéria de tanta obscuridade, parece-nos que nem Angra nem a Praia foram vilas com título legal antes do ano de 1474, em que a Infanta D. Brites dividiu as duas capitanias, porque essa qualidade se acusaria nas cartas do doação, e até no foral do almoxarifado, que foi em data mais antiga; e provavelmente seria caso, ou por ser outra a forma de governo da ilha, ou por falta de meios para eleição dos cargos municipais, e de outros elementos indispensáveis a tais estabelecimentos; principalmente se considerarmos o abandono em que esta ilha se achou desde a morte do Infante D. Henrique até ao ano de 1475, em que ainda governava Diogo de Teive, e em que se não cuidava senão de sustentar litígios sobre o possessório da mesma ilha.

Decididos porém até ao ano de 1480 os embargos de oposição às mencionadas cartas de divisão, e sendo os donatários João Vaz e Álvaro Martins da classe dos mais nobres e poderosos[5] da casa dos Infantes, a cujo serviço andavam, é provável que não só obteriam mais privilégios e liberdades para si, senão ainda para a capital onde cada um havia de estabelecer o seu governo e fazer assento com seus descendentes; pelo que lhes seria a ambas estas povoações concedido o título de vila pela Infanta, no espaço que vai de 1473 a 1480 em que sabemos, pela demanda de João Leonardes, que já em Angra servia de ouvidor António Afonso, ante o qual se deu força contra João Vaz Corte Real por causa da doação da terra das Contendas a seu filho Gaspar Corte Real.

Finalmente, de uma sentença da Relação, que se lê a fl. 46 do Tombo da Câmara da Praia, preferida a favor do concelho contra o capitão Antão Martins da Câmara, em 23 de Junho de 1576, sobre não ser o povo obrigado a fazer e reparar a cadeia, consta, pelas alegações que se fizeram na parte do concelho apelado, o dizer: que a dita Vila estava em posse de mais de cem anos, assim contra o dito capitão Antão Martins, como contra os mais capitães seus antecessores, que foram capitães de porem carcereiros, e alcaides pequenos, e a repararem a cadeia como alcaide-mor, e assim de fazerem cadeia às suas custas...... e desde que a dita Vila era Vila sempre estivera em posse das cadeias dela serem feitas, à custa dos capitães e não as fizeram e repararam nunca os moradores da dita Capitania da Praia.

Ora nesta alegação autêntica achamos um documento incontestável de que na era de 1480 em que Angra era vila com seus oficiais, também a Praia o era; porquanto haviam mais de 100 anos, diz a sentença, que a vila tinha posse de lhe ser feita e reparada a cadeia pelos capitães antepassados do apelante Antão Martins da Câmara. Mas se todos estes documentos não provam suficientemente a criação da vila da Praia nesta época, sirva ao intento uma justificação de nobreza que conservo[6] pela qual consta que no ano de 1487 era na dita vila juiz ordinário Pedro Álvares Biscainho, que a sentenciou em 19 de Abril; e servia de escrivão público Henrique Cardoso, que a processou.

Em cada uma destas Câmaras foram logo criados os respectivos oficiais, a saber: em Angra dois juízes ordinários[7], o primeiro dos quais servia de presidente, e lhe estava confiada a administração orfanológica. O segundo substituía-o nestas atribuições, por qualquer impedimento temporário, e despachava nos feitos cíveis e crimes. Haviam mais três vereadores, e um procurador do concelho, quatro dos misteres, um tesoureiro, e um escrivão, que só escrevia nos livros dos acórdãos, registo, e no das contas, e para o mais só teve fé pública muito depois.

Na Praia foram também criados dois juízes na forma dita, dois vereadores, um procurador que servia de tesoureiro, dois dos misteres, e um escrivão; contudo esta pauta foi alterada acrescentando-se mais um vereador.

Era a eleição destes vereadores trienal, e feita por pelouro, na forma da Ordenação do Reino, presidida pelo ouvidor geral ou pelo seu delegado; e quando se estabeleceram os corregedores, a estes pertencia exclusivamente a factura das eleições, e abertura do pelouro, e na sua falta aos donatários ou seus ouvidores, sobre o que houveram sempre grandes desinteligências. A eleição dos almotacés era dos vereadores da Câmara, e, não obstante, sempre houveram muitas contestações entre eles e os ditos ouvidores que se intrometiam na factura deles.

Notas[editar]

  1. O padre Maldonado extraiu estas notícias importantes do Livro da Feitoria, onde se achava o alvará de acrescentamento das ordinárias a estes capelães, em data de 16 de Fevereiro de 1560.
  2. Tal é a notícia que encontrámos em Maldonado.
  3. Eis aqui o título deste grande funcionário eclesiástico: D. João Pinheiro, Grão Prior da Ordem de Cristo, Doutor in utroque jure, Vigário Geral no Temporal e Espiritual da Ordem da Cavalaria e Mestrado de Nosso senhor Jesus Cristo em a vila de Tomar, S. Tiago, Santarém, Santa Maria de Alcácer, em África, das ilhas da Madeira, Açores, Cabo Verde, da Etiópia, e das Índias, Imediato à Igreja de Roma. e do Conselho d’El-Rei nosso Senhor, e seu Desembargador do Paço, e repartições, Prior da Colegiada de Santa Maria de Oliveira de Guimarães, etc., etc. Quanto ao seu vasto domínio já o dissemos no Capítulo IV.
  4. Temos este exemplo no lugar de Vila Nova da Serreta [Nota do editor: Hoje a freguesia de Vila Nova], que suposto nunca fosse vila, assim é apelidada nos papéis e actos públicos.
  5. O padre Cordeiro, no Livro 6.º, Capítulo 4.º, trata da nobreza do João Vaz Corte e diz que ele já tinha sido porteiro mor do Infante D. Fernando, pai de El-Rei D. Manuel. No Capítulo 3.º aquele autor diz: Álvaro Martins Homem não era de menos qualidade e fidalguia que seu companheiro João Vaz Corte Real pois..... Em uma sentença que se acha no Tombo da Câmara da Praia, fl. 46, diz o procurador do concelho contra Antão Martins, que ele era fidalgo de solar, e como tal a seus assinados se dava crédito de escritura pública, ainda que a quantia excedesse da 100$000 a 200$000 réis; e por isso não podia subtrair-se a mandar fazer a cadeia, como tinha assinado em acórdão da Câmara no ano de 1540.
  6. Justificação tirada a requerimento de António da Fonseca de Ávila, em 16 de Novembro de 1615, que faz menção doutra tirada na dita vila da Praia, a requerimento de Antão Gonçalves de Ávila, sentenciada pelo referido juiz naquele ano de 1487.
  7. Como em Angra se descaminharam todos os livros dos acórdãos até 1640, só podemos descobrir esta forma de governo por algumas sentenças da Relação no Livro do Registo, pelos anos de 1533. Pela demanda de João Leonardes (Documento F) se vê serem juízes em Angra, no ano de 1510, Rui Dias e Afonso Álvares. De Uma doação que fez Vasco Anes Corte Real ao hospital de Angra em 5 de Novembro de 1531, consta serem juízes João Borges e Afonso da Costa.