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Anais da Ilha Terceira/I/XXXIV

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A entrada do marquês de Santa Cruz na cidade de Angra foi precedida de um sucesso bem singular e desastroso; o vem a ser que, pouco antes de ele chegar, indo o capitão Miguel da Cunha sobre o vale de Estêvão Ferreira[1] com a sua gente reunir-se ao exército da ilha, sem que ainda constasse estar desbaratado, lhe disseram, pelo contrário, que os castelhanos tinham sido derrotados e que já sem remédio algum se haviam retirado para bordo da sua armada, havendo o marquês perdido todas as esperanças de conquistar a ilha e que todos os soldados que vinham pela estrada adiante (apareciam então as guardas avançadas do exercito inimigo) iam recolhendo-se a suas casas vitoriosos. Do que não duvidando o dito capitão, por ser isto o que muito ele desejava, cheio do maior entusiasmo retrogradou a marcha e entrando pela cidade abaixo dizia em altas vozes: — Vitória, vitória![2]. Engano fatal na verdade, que foi causa da prisão e morte de muitas pessoas, que não podendo já desviar-se dos castelhanos, caíram nas suas mãos, ficando uns prisioneiros e outros mortos.

Achava-se então a cidade e toda a ilha próspera e rica, em razão de nunca ter havido nela saque nem invasão de inimigos, e porque os moradores não haviam escondido coisa alguma, temendo incorrerem nas penas de traidores, e lhes serem tomadas suas fazendas para os delatores, cujo número em toda a parte era grande. Assim, entrando o exército pela cidade sem resistência alguma, por se terem ausentado os seus habitantes para o interior da ilha, nela deu saque por três dias[3]; primeiro os soldados, logo a maruja, e finalmente os turcos e a canalha que vinha nas galés, os quais até os ferrolhos das portas arrancavam, quando não achavam outra coisa, forçando aquelas que achava fechadas, abrindo-as a golpes de machados e com os malhos dos cinco ferreiros que naquele havia na Rua da Guarita[4], da parte do nascente, por onde o exército entrara.

Tudo quanta há de mais cruel e horroroso neste género, experimentavam os infelizes Angrenses da mão do fero vencedor naquele infausto dia 27 e nos imediatos 28, 29 e 30 de Julho de 1583, dias que na verdade foram do maior luto, pranto e horror que tem visto a ilha Terceira. Os poucos habitantes que na cidade havia andavam como pasmados, sem tino algum do que faziam; nem suas fazendas, nem as mulheres e filhos lhes importavam; e uns, para escaparem com a vida, recolherem-se aos lugares mais imundos e desprezíveis; estes fugiam para os campos e matos que mais depressa lhes era possível ganhar; aqueles inadvertidamente se ofereceram às mãos do inimigo, que nem por isso lhes poupou as vidas; e finalmente todos eles sofreram o jugo e o desprezo que o desejo da vingança arrasta ordinariamente sobre um povo conquistado à força de armas.

Não deixaram também de haver muitas desavenças entre os soldados da armada a respeito das coisas saqueadas; e porque sem ordem foram muitos deles pelos matos a buscar gente, gados e escravos, de forma que, chegando alguns onde estava maior número de portugueses, os não deixavam estes com vida. Ainda depois dos três dias de rigoroso saque não cessou a pilhagem, principalmente em uma parte da ilha nos primeiros dez dias; e bem se poderia dizer que esta foi revirada de baixo para cima, apesar das apertadas ordens do marquês para que se restabelecesse a ordem; porém, em parte foi pior o remédio do que o mal, porquanto, temendo os soldados o serem descobertos nos roubos que faziam, e por isso castigados com maior rigor, por saquearem depois dos três dias, matavam os espoliados, enforcavam e matavam muitas mulheres que lhes não davam liberdade para satisfazer seus apetites.

Aos franceses que estavam fora da cidade não davam quartel, pelo muito ódio que lhes tinham; de modo que, encontrando-os em alguma parte, ou nos hospitais curando-se, os acabavam de matar.

Não se pode assaz descrever o incómodo e o péssimo cheiro que havia na cidade naqueles dias, procedido das rezes mortas, porcos e outros animais, do que resultava um cardume de moscas de toda a casta, tão aborrecidas como perigosas.

Igualmente se encontravam pelas ruas muitas pessoas mortas, a quem os espanhóis até haviam tirado os próprios vestidos. Fizeram-se muitos resgates de pessoas à custa de grandes somas de dinheiro; e a outras mataram e enterraram em suas próprias casas e quintais, como também fizeram àquele Diogo Dias, que, como dissemos, se lançou no arraial do marquês a certificá-lo da retirada do conde D. Manuel da Silva, por ser esta uma necessária recompensa do serviço que ele fez contra a sua pátria; e muitos outros homens não apareceram jamais, nem vivos nem mortos.

Logo que o exército entrou a cidade, mandou o marquês pôr guardas nos conventos das religiosas, nos quais estavam recolhidas muitas pessoas, escravos e fazenda; e bem assim pôs guardas às portas das igrejas e conventos de frades, com ordem de não deixarem sair pessoa alguma naqueles três dias. No entretanto ele aposentou-se nas casas da matrona D. Violante da Silva do Canto, filha de João da Silva do Canto, e achando que ela estava recolhida a um convento, lá lhe mandou pôr uma guarda de duas companhias de soldados, para que estivesse em segurança; mandando-lhe também sequestrar toda a sua grande casa e riqueza de bens de todo o género[5].

Meteu-se o marquês de posse dos castelos e fortes da cidade; e, abertos os cárceres e prisões, saiu deles um grande número de pessoas, das quais parte se achava ali por segurança de seus crimes, e tinham acusador em juízo; outros estavam presos por motivos políticos; e muitos deles, como sempre acontece em semelhantes ocasiões, por acusações e vinganças particulares. Pouco tempo depois entraram no porto as galés e saquearam todos os navios que nele estavam, a saber 15 navios, 4 galeras, 5 caravelas e outros baixéis; e tomou 91 peças de bronze e de ferro nos redutos da cidade; e 7 no castelo de São Sebastião[6].

Ao segundo dia do saque, por denúncia que lhe fizeram homens da ilha, e outros naturais dela que vinham na armada, e que não pouparam ocasião oportuna de se vingar, mandou o marquês sair de mosteiro de S. Gonçalo, a muitos homens e escravos parciais amigos de El-Rei D. António que ali estavam escondidos, e os fez recolher à cadeia até segunda ordem[7]; porém os escravos, que eram todos em número de 100, excepto alguns que ficaram escondidos, os tomou para si, e por seus foram embarcados.

O mesmo se fez no mosteiro da Esperança, onde alguns dos refugiados foram presos e levados às galés, por não lhes aproveitar a imunidade da igreja em que se esconderam; e porque as religiosas deste convento eram parciais de D. António, por isto se não perdoou aos que se haviam acolhido à igreja deste mosteiro: indo certo padre, cónego da Sé, cujo nome esqueceu o autor da Relação que seguimos, mostrar os infelizes ali escondidos, e a um parente que estava cercado de mulher e filhos pedindo-lhe o encobrisse, ele, desconhecendo a obrigação que disto tinha, já como próximo, já como parente, o foi mostrar ao comandante da escolta, para que a todos prendesse sem excepção alguma, instando-o também para que levasse com eles prisioneiro ao padre Luiz de Almeida. E não obstante responder-lhe o oficial da escolta que não levava ordem de prender clérigos, ele o persuadiu e instigou a isso, valendo-se de furiosos argumentos, imputando ao réu ser um das mais aferrados ao serviço de El-Rei D. António; porém, enquanto durava esta impertinente e vil denúncia, pôde o mancebo, parente do padre denunciante, escapar-se à escolta; então o comandante, indignado contra o mesmo padre, o levou preso com aquele outro padre Luiz de Almeida, e mais pessoas, para bordo das galés, por não caberem já nas cadeias, em que se achava imensidade de gente presa de todos os estados e qualidade.

No dia 30 de Julho, continuando o saque da ilha, achava-se muita gente da capitania de Angra retirada na parte da Praia; e assim também estavam os moradores desta capitania atemorizados do que ouviam, receando igual sorte que os da cidade, onde se achavam os castelhanos dispersos e distraídos na pilhagem, esquecidos das armas, de forma que parecia mui fácil subjugá-los; e que ajuntando-se naquela capitania 5 000 homens, que havia capazes de pegar em armas, os podiam acometer na madrugada do primeiro de Agosto pela parte do poente, por onde os castelhanos não podiam suspeitar ser atacados; que então, acudindo ali o marquês, deixaria descoberta a parte de levante, pela qual os da ilha poderiam ganhar-lhe a cidade e tomar-lhe as fortalezas, ou, no último caso, vender-lhe bem caras as próprias vidas.

Isto assim pensado entre os capitães portugueses, foram consultá-lo com Mr. de Chaste, e com o mestre-de-campo Caravache, os quais, se haviam retirado à freguesia de Nossa Senhora de Guadalupe, na Agualva, entrincheirando-se no sítio dos Moinhos, com o fim do reunir os portugueses dispersos, e com eles renovar o combate ou capitular vantajosamente. Proposto assim o negócio em conselho de guerra, pareceu muito acertado aos capitães franceses e ingleses; e consultando sobre o modo por que se havia dar o assalto, e tudo assistiram e intervieram as capitães da ilha, votando pelo projecto sem discrepância alguma. Porém não havia em todos a mesma sinceridade, porque um deles, cujo nome ficou em esquecimento, consultando unicamente os meios da remir sua vida e fazenda sem guerra, saiu furtivamente para a cidade, e foi descobrir ao marquês tudo quanto presenciara em conselho; o que ele muito lhe agradeceu, perdoando-lhe desde logo as penas de rebelião em que incorrera antes disso.

Em consequência desta denúncia, mandou o marquês imediatamente lançar bando pela ilha com pena de morte, que a todos seus naturais perdoava o crime de rebelião, pelo que podiam recolher-se a suas casas, e cuidar dos seus bens e fazenda. Da mesma forma perdoou aos soldados, e os convidou a recolherem-se à cidade dentro dos três dias imediatos; e outrossim publicou que os capitães, alferes, sargentos e os oficiais de justiça se lhe viessem apresentar no mesmo prazo, porque lhes faria graça das vidas e fazenda; e que os franceses e ingleses lhe entregassem as bandeiras, instrumentos, armas e munições de guerra; e que lhes daria embarcações seguras para se embarcassem, seguindo para o seu reino viagem com mestres e pilotos de confiança.

Em observância dos pregões deste bando[8] que em toda a ilha foram divulgados, e de uma cópia enviada ao campo de Mr. de Chartres, convocou este imediatamente conselho, composto de toda a oficialidade que estava debaixo das suas ordens, e ouvindo o mestre de campo, Mr. de Caravache, e todos os mais capitães portugueses, concordaram unanimemente se capitulasse debaixo das condições oferecidas, vista a desigualdade das forças e achar-se descoberto o plano da reacção meditada, cujo delator alguns dias depois se denunciou. Foi encarregado daquela importante comissão, por parte dos espanhóis, D. Pedro Padilla, coronel de um regimento desta nação, por ser mui conhecido de Mr. de Chaste.

Mostrou-se o marquês em extremo satisfeito com a resolução tomada pelos franceses, pois só desta forma se poderia evitar a grande efusão de sangue, que de ambas as partes haveria; porém todos os oficiais e os mesmos soldados, assoberbados e desvanecidos com os sucessos passados, instavam para combater, negando dar quartel aos franceses, pela insolência de lhe resistirem sendo tão poucos[9]. O marquês, apesar de não condescender com eles nesta parte, contudo sempre se valeu disso para tornar mais rigorosas as condições da capitulação, a qual não assinou sem que primeiro lhe entregassem todas as armas, excepto as espadas.

Não perdoou também o marquês àqueles que dantes estavam presos; e vindo alguns moradores da ilha apresentar-se pouco a pouco, não deixava o auditor geral de processar e castigar os que tinha por culpados[10].

Marchou enfim para a cidade, no dia 31 de Julho, Mr. de Chaste e o mestre de campo Caravache, em companhia dos franceses e ingleses, na forma da capitulação ajustada, e nela foram recebidos e tratados com a devida honra a suas pessoas. Parece que no dia 3 de Agosto embarcaram em quatro naus grandes, com os mantimentos necessários para a viagem, levando pilotos, mestres e marinheiros franceses; e dando à vela com vento favorável, em breve tempo chegaram a França.

Por efeito desta capitulação ficou o marquês na posse pacífica desta ilha Terceira, removido para sempre o receio de contra ele se renovar o combate ainda que fosse possível ao conde Manuel da Silva retractar-se da sua extrema cobardia, reconciliar-se com os habitantes da mesma ilha, e com as fracções do seu exército oferecer-lhe uma nova batalha, ou ao menos impedir-lhe a comunicação com os campos: uma vez que se tinha perdido a artilharia, e os franceses saído para o seu reino, não havia que recear dos habitantes já cansados, perseguidos e mortos, nem se esperavam socorros alguns de El-Rei D. António, de quem não havia notícia.

Achavam-se as ilhas de baixo ainda na obediência a El-Rei D. António, e no Faial estava o capitão Carlos com presídio de 400 soldados. A fim de a sujeitar e lançar fora dela este presídio, ordenou o marquês de Santa Cruz a D. Pedro de Toledo, duque de Fernandina[11], que partisse logo contra ela, para o que lhe entregou 12 galés, 4 pataxos e 16 pinaças, além de outros barcos grandes e 3 000 homens, entre os quais foram alguns da ilha de S. Miguel[12], e Manuel Cordeiro de Sampaio, juiz do mar.

Pareceu conveniente para o bom êxito deste negócio, aceitar o oferecimento que de seus serviços naquela ilha fizeram ao marquês Gonçalo Pereira e Gaspar Gonçalves de Utra, que na Terceira se achavam pouco antes presos, como temos dito; e porque eram as pessoas mais poderosas da ilha, e com as melhores relações de parentesco, deram todas as esperanças de a fazerem entregar sem resistência alguma, e de que sendo esta entregue, as mais se renderiam logo. Foram portanto admitidos a bordo da armada, a qual navegando com vento favorável chegou em breve tempo defronte da ilha do Pico, de onde saiu logo o capitão-mor, juiz naquele ano, e o seu escrivão da Câmara a render obediência ao novo Rei; o que sabendo os da ilha, na sua volta os mataram.

E indo a armada sobre a ilha do Faial, intimou o duque D. Pedro de Toledo aos seus habitantes a que se rendessem, porque já a Terceira, sua capital, havia dado obediência a El-Rei D. Filipe; porém os faialenses e os soldados do presídio responderam que não reconheciam outro algum rei senão o que tinham jurado, e que por ele haviam de pelejar até ao fim.

Vendo o duque a imprudência e temeridade que parecia haver no conselho dos defensores da ilha, mandou embarcar numa pequena lancha os dois cidadãos, e os fez lançar em uma ponta da ilha mais arredada, onde não pudessem ser vistos de pessoa alguma, afim de prestarem o serviço prometido. Infelizmente não pôde a lancha navegar tão oculta que não fosse avistada do povo e de alguns militares comandadas pelo governador da ilha António Guedes de Sousa, os quais saindo ao encontro de Gonçalo Pereira, que já se achava em terra, lhe perguntaram qual o seu destino; e ouvindo a embaixada, o governador Sousa descarregou uma bofetada no enviado; e não se contentando com haver praticado esta acção ignominiosa, atentando contra o direito das gentes, ele mesmo e um francês lhe tiraram a vida às estocadas[13]. O mesmo se preparavam para fazer ao outro enviado, se ele desembarcasse naquele ponto.

Indignado com este escandaloso procedimento, e não tendo mais que esperar do governador da ilha, desembarcou o duque à frente do seu exército, resolvido a troar um exemplar vingança. E assim investindo primeiramente os 400 franceses, que lhe saíram ao encontro comandados pelo bravo capitão Carlos, e pouco depois chegando alguns portugueses com o seu governador António Guedes de Sousa, se travou um combate que foi mui rijo e aturado; mas por fim, havendo divergência de parecer e desunião entre os da ilha, viram-se os franceses obrigados a ceder ao número que lhes era muito superior, e com morte já de um cento deles, se recolheram ao castelo os demais, donde capitularam com lhes serem somente salvas as vidas[14].

Em consequência da capitulação, entregaram o castelo e todas as munições da guerra que nele e em toda a ilha se achavam, e em diferentes postos dela 60 peças de artilharia. Fez-se imediatamente na Câmara o auto de aclamação do novo Rei; nomearam-se as autoridades judiciárias, e ficou por governador D. António de Portugal, com 200 soldados, e mantimentos para 14 meses.

Os portugueses, com morte de poucos, retiraram-se ao lugar denominado o Morro. O capitão-mor António Guedes foi preso e, por castigo do crime que cometera, pendurado par um braço; e depois de lhe deceparem as mãos, o enforcaram. Vergonhoso e cruel suplício que ele soubera arredar se tivesse aceitado o perdão que pouco antes lhe foi oferecido para reconhecer El-Rei de Castela, e o jurar; mas é certo que o duque lhe fez carga do valor com que ele se defendeu, e esta foi a maior culpa pela qual tão cruelmente perdeu a vida.

Rendida por esta forma a ilha do Faial, imediatamente as ilhas do Pico, Graciosa, São Jorge, Flores e Corvo, se entregaram ao novo Rei; e o duque D. Pedro de Toledo se embarcou na sua armada, com a qual chegou à Terceira a 8 de Agosto de 1583.

Nada mais faltava ao marquês de Santa Cruz para em tudo ser feliz e gloriosa a sua expedição contra a ilha Terceira, senão conseguir a prisão do conde Manuel da Silva. E todavia inúteis seriam as grandes diligências com que por todas as partes o procurava, se por mais tempo ele pudesse andar vagabundo e disfarçado pela ilha, como andava, vestido à castelhana, metido entre os soldados do exército que o procuravam, perguntando ele próprio onde estaria o conde e se o conheciam.

Desta forma disfarçado, caminhava em certo dia numa escolta de soldados para a cidade no intento de se embarcar na armada, e passar nela até se poder evadir com segurança; eis que encontrando-se com esta outra escolta de soldados que levava presa uma mulata, e queixando-se o capitão daquela de não achar o conde a quem procurava havia alguns dias, então a mulata, chamando-o de parte e em segredo, lhe perguntou que lhe daria se ela lhe desse preso o conde, pois bem sabia os prémios que o marquês prometera a quem o entregasse; e respondendo o capitão que a vida e a liberdade lhe daria e meios de que vivesse[15], incontinente a mulata, não querendo perder a ocasião de fazer a sua fortuna, pegando na fardeta do conde (não obstante o sinal que este lhe fazia para que o não descobrisse) e voltando-se para aquele lhe disse: — Capitão vedes aqui o conde Manuel da Silva!.

Tão grande foi a impressão que estas palavras fizeram no ânimo do infeliz denunciado conde, que ele perdeu as cores e ficou extático por algum tempo. Sem demora alguma o capitão desceu do cavalo, e com muita cortesia lhe deu voz de preso. Então o conde disse à mulata: — Se tu me guardares segredo dobrado do que se te oferece te daria eu.

A isto lhe replicou a mulata escusando-se daquele procedimento, por entender lhe escapava a ocasião de se libertar, e que por ser ele tão mal visto da gente da ilha, qualquer o havia descobrir, e ela perder a sua conveniência. E porque estavam muito longe da cidade, e tinham de atravessar matos, por onde mui facilmente podia escapar-se o prisioneiro, depois de vários cumprimentos de parte a parte, montou o conde no cavalo e o capitão nas ancas; e entendendo o conde o receio que havia dele se escapar à escolta, disse: — Senhor capitão, bem entendo a vossa mercê, faz bem em segurar o preso, mas uma coisa devo dizer-lhe: o marquês desejou muito prender-me; eu o mereço: ele não ganhou a Terceira, eu lha entreguei. Tornou-lhe o capitão: — E vossa senhoria porque a não entregou sem guerra e pacificamente?Porque — respondeu ele — me não atrevi com o povo, que receei de se alvoroçar contra mim, como fizera com um fidalgo chamado João de Betancor; e ainda assim mesmo corre entre ele como certo tê-la eu entregado, achando-se por isso tanto contra mim que não achei ninguém que me guardasse segredo, antes todos buscavam descobrir-me.

Desta forma chegou o conde à cidade, e perto já dela montou o capitão em outro cavalo, e o foi acompanhando à prisão que se lhe deu em uma galeota.

Muito maior foi a alegria dos moradores da ilha por haverem prendido o conde, que a dos próprios castelhanos; insultando-o gravemente com palavras picantes e injuriosas nos lugares por onde passava, principalmente as mulheres, o que ele sofria com a maior resignação e ar sereno.

Alguns pretendem que por mandado do marquês de Santa Cruz se lhe deram tormentos para tirarem dele algumas coisas; mas não consta que isso se verificasse, nem se lhe acharam sinais alguns no corpo.

O marquês o mandou preparar para morrer, por instâncias de alguns capitães, mestres-de-campo, e pessoas que vieram na armada, persuadindo-o quanto convinha mandá-lo matar; e que se assim o não fizesse, não tinha ganhado honra alguma na conquista da ilha[16]. E sem embargo de que o conde se não persuadia que o marquês o mandasse matar, antes o reservaria para seu triunfo, vendo entrar na prisão os padres letrados de maior conceito, nos dois dias imediatos, desenganado de que morria, fez seus apontados, e dispôs das suas coisas com a própria mão e punho, confessando-se e tratando igualmente do importante negócio da sua salvação; e tanto assim que no decurso daqueles dois dias e duas noites não dormiu coisa alguma.

Para esta execução mandou o marquês levantar um cadafalso na praça da cidade, e ao terceiro dia foi o padecente conde tirado da galeota, e sobre um cavalo veio até ao lugar do suplício, vestido com um roupão de baeta preta e capuz. Era tão grande a multidão de tropas e povo de toda a ilha para ver esta execução, que se não podia romper por entre ela: e posto no cadafalso o desgraçado conde Manuel da Silva, houve dele uma espécie de piedade e grande lástima da parte daqueles que o viram morrer, apesar do horror que lhe tinham concebido sendo ele a causa única de se achar agora em tão deplorável estado, bem diferente daquele em que havia poucos dias fora visto.

Com muita constância pediu perdão a todo o povo e moradores da ilha; e além de outras coisas que disse comovido, acrescentou, que ele tinha toda a culpa dos seus trabalhos e que bem merecia aquela morte. Imediatamente, de um só golpe e com a sua própria espada, lhe foi decepada a cabeça por um algoz tudesco e posta no lugar onde se achava a de Melchior Afonso[17], verificando-se assim a hipótese que ele julgara impossível quando disse que só dali se tiraria a cabeça daquele infeliz quando se pusesse a sua.

Logo foram tirar da prisão a Amador Vieira, e sobre o mesmo cavalo o trouxeram acompanhado dos padres que o vinham animando a bem morrer. Pediu esta infeliz padecente os mesmos perdões que o conde pedira e confessou que por sua rebelião merecia morrer daquela forma. Seguiu-se Manuel Serradas, capitão de armada, o qual com uma constância inabalável sustentou que morria por seu rei D. António, aclamando-o sem se desdizer até ser decapitado.

Para em tudo ser este dia na ilha Terceira de luto pranto e horror, ainda aqui não teve fim esta cena cruel; foram trazidos, para lhes serem cartadas as cabeças, os supostos réus Fernão de Távora, capitão e fidalgo dos principais cidade, registado nos livros de El-Rei, e que tinha servido em suas armadas; Tomás de Porras Pereira, fidalgo de geração e capitão de uma campanha; Pedro Cota da Malha, o moço, também capitão e cidadão de Angra; o licenciado Domingos Onsel, um dos desembargadores da Relação; Domingos de Toledo, capitão da fortaleza de S. Sebastião da vila e cidadão dela; e Gonçalo Pita, governador do castelo de S. Sebastião da cidade.

Com estes padeceram igual suplício, Gaspar Álvares Chichorro, piloto; o Barroso, sapateiro; e Baltasar Lopes, homem baço, porteiro do concelho. Todos estes homens foram enforcados sem distinção alguma, ainda que se requereu ao marquês, fazendo-lhe ver que os fidalgos deviam ser decapitados em observância de seus privilégios. Jazeram os cadáveres destes infelizes junto da forca até ao outro dia em que foram sepultados[18].

Foram mais enforcados Aires de Porras, capitão de uma companhia, António Matela de Azevedo, alferes-mor da cidade, e Matias Dias, por alcunha o Pilatos, que se achava reservado para este suplício, em razão da maneira com que se houvera na batalha da Salga[19], motivo por que foi enforcado e esquartejado. Foram ultimamente enforcados 17 franceses e 11 portugueses, e dois degolados, cujos nomes não constam. Quanto à gente baixa, foram alguns açoutados, outros condenados a galés e a vários degredos.

Do modo por que o marquês de Santa Cruz houve a si o dinheiro do finado conde Manuel da Silva, trata o autor da Relação, no capítulo 94, que em suma contém ser descoberto o seu secretário, e amigo especial, Marco António (italiano de nação), andando disfarçado e vestido à castelhana; e que sendo preso, com ameaças de tormentos, confessara todo o dinheiro, jóias e pedras preciosas, que o defunto lhe havia confiado; mas porque já neste tempo um capitão espanhol à força lhe fizera entregar tudo o que possuía, a este capitão obrigou o marquês a restituir esse rico espólio, na forma que o recebera; o que somente se conseguiu, por haver Marco António feito a entrega dele diante de testemunhas, as quais produziu contra o capitão, provando-lhe fora tomado depois dos 3 dias de saque.

Privado Marco António daquele tesouro, que em tempo conveniente lhe entregara o seu amigo, nem assim escaparia à vingança do capitão, o qual por todas as partes o procurava para lhe roubar também a vida se o marquês, sabendo-o, lhe não concedesse uma guarda que o acompanhou até se embarcar nas galés para Sevilha, donde passou às Índias de Castela, sem mais dele constar.

No capítulo 95 trata o mesmo autor da Relação largamente do modo pelo qual também o marquês obteve os 11 mil cruzados da Feitoria e rendimento do contrato, que se achavam em poder do negociante Melchior Gonçalves, especial amigo de António Soares, feitor provido no tempo de El-Rei D. Sebastião, por se haver dele confiado quando se retirara a Lisboa, e diz: — que o marquês mandara a Melchior Gonçalves para que dentro de 3 dias improrrogáveis lhe desse conta daquele dinheiro, pois como amigo e confidente do feitor saberia dele; e suposto que Melchior Gonçalves constantemente afirmasse que nem do amigo nem do dinheiro sabia, vendo que os soldados aquartelados em sua casa andavam cavando nas lojas, arrancando os sobrados e descobrindo os telhados (como faziam em muitas casas) para ver se o achavam; temendo, além disto, não se comprometer e pagar com os seus bens e com a vida, antes que os soldados dessem com a parede falsa entre a qual se achava escondido o dinheiro, o foi ele denunciar ao marquês, desculpando-se com a fidelidade que pretendera guardar para com o ausente seu amigo; e como este crime não era capital, antes ia defendido com documentos tão valiosos, mui facilmente obteve do marquês o perdão, e até a sua graça, porquanto ele, mui alegre e satisfeito com Melchior Gonçalves, abraçando-o lhe prometeu grandes favores e mercês em nome de El-Rei seu amo, e finalmente recebeu o dinheiro, de que não soube em tempo aproveitar-se o dito Melchior Gonçalves, em nome do seu amigo António Soares, o qual, sabendo em Lisboa o que a este respeito se passara, faleceu de pura mágoa.

Foram estes os dois mais consideráveis despojos que nesta ilha Terceira encontrou o marquês de Santa Cruz pois que, suposto achasse grande quantidade de dinheiro cunhado em tempo de El-Rei D. António, moedas de ouro, prata e cobre, tudo mandou recolher e queimar em público cadafalso, começando a cena cruel e horrível do castigo dos réus, atrás mencionada, por esta estranha operação.

A 11 Agosto chegou à cidade de Angra o duque D. Pedro de Toledo, na armada com que fora reduzir e conquistar a ilha do Faial. Logo que ele chegou, determinou o marquês enviá-lo para Lisboa com as naus e galés, como enviou alguns dias depois, fazendo embarcar vários clérigos e frades e outros prisioneiros. Na capitânia foi o Dr. mestre frei Agostinho, presidente da Mesa da Consciência, e o licenciado frei Manuel Marques, franciscano, comissário dos conventos destas ilhas.

Dando a nau à vela com vento noroeste, e chegando até à Costa, por se espalharem as galés, caiu esta e outra nau em poder de um corsário que as estava esperando, e tomando os dois padres os levou a terra de mouros, na qual pouco tempo viveu o padre frei Manuel Marques, que ali era cativo; e o Dr. mestre Agostinho foi resgatado para França e viveu em Bordéus, onde morreu anos depois: eram ambos estes padres de 60 anos de idade. Também destas embarcações tirou o corsário uma boa parte das riquezas saqueada na Terceira e na ilha do Faial. Todas as outras galés chegaram a Lisboa a salvamento com o resto dos despojos desta e daquela ilha.

Foram mais degradados nesta armada os seguintes, dos quais a maior parte não voltaram à ilha: Simão Gonçalves de Távora, Fernão Feio, Diogo de Lemos de Faria, André Gonçalves Madruga, Álvaro Pires Ramiles, Sebastião do Canto e Miguel do Canto Vieira, todos capitães das ordenanças, atrás mencionados; e Francisco Dias Santiago, capitão dos 80 jurados. Assim também foram degradados Lourenço de Morais, tabelião; Baltazar Gonçalves; Simão Gonçalves; Bartolomeu Gonçalves; Francisco Fernandes; António Matela; Gonçalo Anes; Braz Rodrigues; António Álvares, Diogo Pires; Gaspar Ribeiro, mestre da casa da moeda; o capitão Braz Dias Rodovalho; e outros muitos.

Continuava o procedimento contra as pessoas que não se haviam apresentado ao marquês dentro nos 3 dias determinados, e contra os principais cabeças, em cujo número entrava Gaspar de Gâmboa, o qual viera à ilha convidado por El-Rei D. António, e por ele fora empregado ao cargo de corregedor em ausência de Ciprião do Figueiredo, e neste exercício se achava. Encontrando-se então ele no primeiro dia com o seu amigo Cristóvão Soares de Albergaria, que vinha com promessa do mesmo emprego, lhe ofereceu os seus livros, para o que entrou em sua casa a ver se ainda se conservavam, porque já os soldados estavam de posse dela, saqueando-a como faziam às mais.

Apenas os soldados souberam quem ele era, e acharam ser o mesmo nomeado em papéis da sua livraria, sem demora alguma o prenderam, sem que lhe pudesse valer o amigo Cristóvão Soares. Ordenou o marquês fosse Gaspar de Gâmboa metido em uma galé, na qual esteve prisioneiro alguns dias, e depois o mandou recolher à cadeia, sem que houvesse pessoa que por ele requeresse, pois todos se desviavam de aparecer em tais casos; e sem mais processo nem ordem de justiça lhe mandaram padres que o confessassem, e depois de confessado o tiraram e enforcaram na forca que estava detrás da cadeia[20], acrescendo à sua desgraça que o algoz o despiu até o deixar em camisa e sem meias, e nesta deplorabilíssima figura esteve pendurado na forca até ao outro dia , em que os irmãos da Misericórdia o foram enterrar, como na forma de seus estatutos faziam a todos[21].

Igual género de suplício se deu ao licenciado Domingos Pinheiro, que servia de juiz ordinário em Angra, e era um cidadão mui grave do serviço de El-Rei D. António, por cujo respeito ele e os mais adjuntos seus companheiros haviam sentenciado várias pessoas à morte. E por isto, temendo-se de ser castigado quando foi entrada a ilha, por conselho de alguns parentes de sua mulher que vieram de Lisboa, de onde ela era, tendo passado os três dias sem se apresentar, rapou a barba e os bigodes e vestiu-se de manto e mantilha em trajas de mulher, com o fim de passar pelas guardas como passavam as mulheres dos soldados e embarcar-se para fora da ilha. Assim o fez em um dia; e indo caminhando atrás de certas mulheres castelhanas com as quais os da guarda costumavam travar conversa e brincar, como ele era homem, logo nos trajes e pelo andar pareceu muito diferente das outras, de modo que isto desafiou a curiosidade a um soldado para lhe ver a cara; mas indo o embuçado escapando-se dele, teve a infelicidade de lhe cair o manto para traz, e acudindo com as mãos a concertá-lo, lhe foram estas conhecidas mui grossas, e visivelmente de homem: sem demora correram a ele os soldados a descobrir-lhe a cara, a qual acharam rapada à navalha. Então deram a voz de preso ao desgraçado Domingos Pinheiro, e o levaram ao auditor geral, que o mandou meter na cadeia, ordenando que se lhe perguntasse quem era. Nenhum recurso havia, nem ele de forma alguma se podia contrafazer e ocultar a sua qualidade, em consequência do que dali a dois dias o enforcaram na mesma forca em que padecera o corregedor Gâmboa, e o conservaram ali até ao dia seguinte.

Além destes dois infelizes padecentes, aos quais se fez crime de sua lealdade, foram com baraço e pregão açoutados pelas ruas públicas da cidade António Gomes, meirinho da executoria da fazenda, e Tomé Gomes, capitão de ordenanças de uma freguesia, o qual faleceu desterrado fora da ilha, e ambos foram processados por serem muito do serviço de El-Rei D. António.

Tal foi a maneira pela qual o marquês de Santa Cruz puniu severamente os cabeças do partido de El-Rei D. António, e a forma pela qual ele se vingou da bem notória fidelidade de muitos portugueses, cujo sangue cruelmente faz derramar: procedimento injusto que jamais pôde esquecer a seus netos para o retribuírem a seu tempo.

Passados os 3 dias de rigoroso saque e depois do bando publicado pelo marquês a fim de se recolherem a suas casas as pessoas que andavam retiradas, fez aclamar nas Câmaras ao novo Rei D. Filipe II de Castela, e primeiro de Portugal; porém não sabemos exactamente em que dia foi, por esquecer isto aos escritores daquele tempo, e não constar dos livros das Câmaras de Angra e de São Sebastião. A este respeito só achámos o livro dos acórdãos da Câmara da vila da Praia, do qual consta que no dia 6 de Agosto, segundo o calendário novo[22], pois contavam-se até à reforma 28 de Julho, foi à Câmara o mestre de campo D. João de Sandoval, comandante do terço de Nápoles ali estacionado, e achando somente o vereador Jerónimo Paim da Câmara, e o escrivão dela, Francisco Ferreira Teixeira, por estarem ausentes os mais, mandou que eles fossem notificados para no dia 11 de Agosto assistirem à aclamação do novo Rei, que se havia de fazer, como se fez, com as solenidades constantes do auto que do mesmo livro extraímos (e vai no Documento J**). Por esta forma não há dúvida que o dia da aclamação do novo Rei seria em todos os concelhos o mesmo 11 de Agosto de 1583.

Sendo necessário restabelecer a ordem administrativa e judiciária, nomeou o marquês, findos aqueles três dias, os oficiais das Câmaras, segundo as informações que poude colher das pessoas convenientes para estes cargos. A Cristóvão Soares de Albergaria, desembargador que o acompanhara na expedição, e deixava de servir de corregedor (outros dizem que de juiz de fora) nas ilhas de S. Miguel e Santa Maria, deu provisão do mesmo cargo para servir em todas as ilhas dos Açores, datado do 1.º de Agosto na qual lhe concedeu os poderes de conhecer em quaisquer causas cíveis e crimes, e de as determinar sem apelação nem agravo, como se manifesta na cópia contida no Documento K**. Porém nesta provisão declarou que o corregedor comunicaria primeiro com o governador Juan de Urbina, ao qual na mesma data proveu no governo de todas as ilhas com poderes mui amplos[23]. Executou-se tudo isto até ao dia 20 de Agosto de 1583.

E porque entre as ordens que ele trazia de El-Rei, era uma muito especial, para que tomada ilha tivesse o maior cuidado com a matrona D. Violante da Silva do Canto, pois que só ela com sua grande riqueza tinha sustentado os franceses e ingleses, assim este general como D. Lopo de Figueiroa, tanto que entraram na ilha, lhe mandaram pôr guarda no convento em que ela se achava, significando-lhe o general que o seu Rei lhe ordenava a levasse consigo a Castela; e que para isto se preparasse.

Não permite a brevidade desta obra o relatarmos largamente quais os grandes preparativos que por ordem do general marquês de Santa Cruz se fizeram em Angra e a bordo de armada, para nela ser recebida esta nobre personagem; e o pomposo acompanhamento que a seguiu; as honras que se lhe fizeram logo que chegou à nau em que devia fazer viajem, e nas diferentes terras onde aportou pois em todas elas saíram a recebê-la as pessoas de maior representação; contudo, abreviadamente diremos o que sobre isto relata em Padre António Cordeiro, no seu Livro 6.º, capítulo 30, compilando o muito que já copiosamente relatara o Doutor Frutuoso, no seu Livro 6.º, capítulos 29 e 30.

Aportando a nau à cidade de Cádis, depois de um mês de viagem, e ficando a fidalga D. Violante do Canto e Silva a bordo três dias, enquanto se preparava e armava escada para sair por ela, chegou à mesma nau uma formosa galé em que ela entrou com toda a sua gente, parentes que levava, e muitos fidalgos castelhanos, isto debaixo de uma salva de toda a armada. Então a esta galé veio segunda vez visitá-la o marquês e declarar-lhe que El-Rei a mandara buscar à Terceira para lhe fazer muitas mercês e a casar. Por ordem do mesmo Rei foi sua pessoa confiada ao Cardeal de Sevilha; e passando a Jaén lhe foi dado um ministro por aposentador com 12 homens de cavalo, sendo obsequiada pelo duque de Medina Sidónia com a maior ostentação e grandeza.

Chegando ali, foi recebida pelo Bispo D. Pedro Sarmiento com todas as dignidades, cónegos e fidalgos do termo, levando-a ao mosteiro de Santa Clara, no qual foi recebida pelas religiosas com as maiores demonstrações de alegria e repiques de sinos. Passados dois meses lhe mandou El-Rei propor casamento; o mesmo Rei lhe escreveu então prometendo-lhe muitas mercês depois de casada com Simão de Távora, que era a pessoa proposta, filho de Álvaro de Sousa de Távora e de sua mulher D. Francisca de Moura, irmã de D. Cristóvão de Moura, depois marquês de Castelo Rodrigo, e donatário de toda esta ilha Terceira. E com efeito mandou D. Violante procuração sua a Diogo de Sousa, arcediago da Sé de Lisboa, seu parente, o qual em nome dela se recebeu com o dito Simão de Sousa e Távora; e este a foi buscar a Jaén com grande estado e, sendo hospedado pelo Bispo, este os recebeu com as solenidades que em Castela se usavam. Passando a Córdova, aí os saíram a receber 200 cavaleiros com tochas acesas, por ser já de noite; e desta forma foram aceites e hospedados em todas as mais terras até chegarem a Lisboa, na qual foram visitá-los todas as pessoas de maior consideração de um e outro sexo. Porém deste casamento não ficou geração, razão por que passou o grande morgadio da dita D. Violante do Canto e Silva a unir-se com outro instituído por seu avô Pedro Anes do Canto, de quem havemos tratado na Segunda Época destes Anais[24].

Embarcou-se o marquês de Santa Cruz D. Álvaro de Bazan, deixando na ilha 2 000 soldados de presídio, a cargo do referido governador Juan de Urbina, e por capitães ficaram um sobrinho do dito marquês, chamado D. Pedro de Bazán, e os capitães Pedro Ximenes de Herédia, António da Rocha, Francisco de Veja, Martim de Aveira, Diogo Soares, D. Cristóvão de Acuña, D. António, o capitão Angel, Cristóvão de Paz, o capitão Arosco, e Guedaco da Veiga, os capitães Rosa e Pacheco e outros mais; e por sargento-mor ficou Lopo de Toxada[25]. Deixou também escrivão, meirinho e auditor, dando à vela com a armada enriquecida dos despojos da ilha, que deixou saqueada e seus habitantes uns mortos, outros feridos, e a maior parte desgraçados, sem terem ao menos uma cama em que dormir.

Chegando o marquês à corte de Madrid, não faltou com as necessárias informações das pessoas que o haviam seguido nesta fatal expedição, e cooperado para o bom êxito da causa pública; o que o Rei generosamente recompensou com ofícios, tenças, hábitos e mercês, como bem se depreende do mapa junto no Documento L**, o qual o Padre Maldonado extraiu dos livros da Feitoria, e que nós tivemos a paciência de combinar. Ainda outras mercês liberalizou El-Rei, das quais não achámos o registo, suposto constarem de outros papéis.

Notas

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  1. [Nota do editor: Actual lugar da Grota do Vale].
  2. Alguma dúvida se nos oferece a respeito desta notícia, que o autor da citada Relação dá no capítulo 86: se já em toda a ilha constava a retirada do exército defensor, como seria possível que a ignorasse este capitão que saía de Angra, onde primeiro que em toda a parte se deveria saber pelos soldados de cavalo e pelos sinais postos sobre as montanhas? O certo parece ser que, decidindo-se a batalha no dia 27 de Agosto pela manhã, ainda até aquele tempo se não soubesse coisa alguma na cidade, e a pessoa que deu a notícia nesse dia de tarde, estivesse ao longe vendo passar soldados sem os conhecer.
  3. Padre António Cordeiro, História Insulana, Livro 6.º, capítulo 29, § 321.
  4. O autor da citada Relação diz que se pusera sobre o castelo da cidade [Nota do editor: Hoje o alto da Memória.] e dali ouvira a grade matinada que faziam aqueles instrumentos ao desferrar das portas.
  5. Padre António Cordeiro, História Insulana, Livro 6.º, capítulo 30, § 330.
  6. [Nota do editor: O actual Castelinho.]
  7. Diz o autor da citada relação: — eram muitos homens doidos, entre eles João Romeiro, Domingos Gonçalves e outro que por uma lança se subira aos muros e por ela descera abaixo.
  8. Não encontrei vestígio algum deste bando, que provavelmente se não copiou nas Câmaras desta ilha, mas dele e trata a Relação mencionada, no capítulo 88, e a provisão do corregedor Cristóvão Soares, que em seu lugar hei-de transcrever.
  9. Mr. de la Clède.
  10. Isto diz o Padre António Cordeiro no lugar citado; contudo não acho o mesmo na Relação a que ele se refere, capítulo 100, porque diz, falando do capitão Trigueiros: — e não se tinha apresentado dentro nos três dias que deu o marquês, porque alguns não se quiseram confiar do pregão, mas o marquês o cumpriu da maneia que o mandou botar.
  11. [Nota do editor: Pedro Alvarez de Toledo Osorio y Colona, Duque de Fernandina.]
  12. Padre António Cordeiro, História Insulana, Livro 6.º, capítulo 30, § 324. Citada Relação, capítulo 86.
  13. Assim lemos no Padre Cordeiro, História Insulana, capítulo 30, § 325. Contudo o autor da Relação que seguimos, diz que a capitão-mor se chamava António Teles, mancebo solteiro, fidalgo bem criado. E ainda que o faz parte na morte de Gonçalo Pereira, não lhe atribui o assassínio. La Clède diz que ele o mandou prender, e tirar-lhe ignominiosamente a vida. Ignoramos onde está a verdade.
  14. Cordeiro, citando Mr. de La Clède, diz que eles capitularam com as mesmas condições que os da Terceira aos quais foi concedida espada.
  15. Padre António Cordeiro, no lugar citado, e a referida Relação, no capítulo 90.
  16. Relação citada, no capítulo 91.
  17. Alguns quiseram que a cabeça fosse do fidalgo João de Betancor; mas isto nem levemente é despontado pelo autor da Relação, que esteve presente neste acto.
  18. Parece que de propósito, o Doutor Frutuoso, no seu Livro 5.º, capítulos 29, 30 e 31, a que se refere o Padre António Cordeiro, quis ocultar o infausto dia destas execuções tremendas; o mesmo intento quis seguir o autor da Relação que temos presente; nem o sabemos por algum outro modo. Provavelmente que isto seria depois dos três dias do saque, e antes do dia 11 de Agosto, como se depreende da ordem porque o citado autor da Relação trata estes factos.
  19. Veja-se o que dissemos no Capítulo III desta Época. Herrera, no Livro 10.º, capítulo 9, tratando desta batalha, diz: — y ay quien afirma que huvo quien saco el corazon a un cuerpo muerto, y se le comio.
  20. O lugar onde se pôs esta forca, era há poucos anos ainda um monturo, ao qual se lançavam coisas imundas, hoje acha-se reduzido a boas moradas de casas.
  21. Citada Relação, capítulo 96.
  22. Desejando o Papa Gregório XIII corrigir o erro de ano em que havia caído a série dos equinócios e solstícios, e por consequência os legítimos dias das cerimónias eclesiásticas; considerando também as muitas disputas que já no Concílio Veneziano se haviam sustentado acerca do dia em que se havia de celebrar a Páscoa, e que, suposto se guardasse o decreto do Primeiro Concílio de Niceia, acontecia que esta e outras festas se celebravam fora de tempo, como se viu desde o ano de 1561. Escreveu a todos os príncipes cristãos para que ouvissem o parecer dos astrólogos de seus Estados, e se reformasse o calendário, que Júlio César, primeiro imperador romano, depois das vitórias de Pompeu formara, compondo o ano de 365 dias menos 6 horas, de cuja falta procedia a diferença. Este tão grave erro do ano, ainda que o reconheceram muitos Pontífices, e se tratou de o emendarem, não pôde concluir-se por outros negócios ocorrentes, até que a dito Gregório XIII despertou os melhores engenhos do mundo, que todavia acharam o melhor modo de estabelecer o equinócio e remediar a inconstância da Lua, para que em tempo conveniente se celebrasse a festa da Ressurreição de Nosso Salvador, e outras festas em seus dias próprios; por esta causa se instituíam aos 5 de Outubro de 1582 um novo calendário, tirando 10 dias, saltando desde os 5 aos 15 de Outubro, para com este salto pôr o verdadeiro equinócio a 21 de Março. O que assim foi recebido em Itália, França, Espanha, Portugal e noutros reinos cristãos, e executado como o Pontífice mandou. Tal foi a mudança do calendário, a que se refere o auto de que se trata, exarada na Câmara da Praia, segundo o calendário novo. A respeito desta correcção veja-se Herrera, na História Geral, Livro 12.º, capítulo 6.º, onde mui científica e copiosamente trata esta matéria.
  23. Este diploma acha-se a fl. 326 do 1.º Livro do Registo da Câmara de Angra, mas não o transcrevemos porque, além de ser concebido pela maior parte nos termos daquele que se passou ao corregedor, acha-se mutilado em uma folha. Encontrámos na Câmara de S. Sebastião muitas assinaturas deste João de Horbina, que assim firmava o seu cognome, e não Urbina, como se lê em diferentes historiadores. No dito diploma é tratado por cavaleiro do hábito de São Tiago, e o Padre Cordeiro lhe dá por avô a Pedro de Urbina, mestre-de-campo general do imperador Carlos V (veja-se o Livro 6.º, capítulo 30, § 336).
  24. São estes dois morgadios possuídos actualmente por Miguel do Canto, filho do coronel José Francisco do Canto, falecido em Lisboa.
  25. Relação citada, capítulo 99. Parte destas oficiais são os mesmos que o historiador Herrera relatou no seu Livro 13, capítulo 10, que diz mostrarem ser homens de experiência e de valor na batalha do dia 26 de Agosto de 1583.