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Anais da Ilha Terceira/II/IV

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Verificada a aclamação do novo rei em todos os concelhos da ilha Terceira, como fica dito, resolveram os capitães e pessoas do conselho de guerra mandar às ilhas de baixo fazer a mesma aclamação, e também para que delas viesse algum socorro. Para este fim escolheram o capitão Vital de Bettencourt, irmão do capitão-mor de Angra, e o padre frei António Evangelho, da Ordem Seráfica, os quais partiram imediatamente, e desempenharam tão bem esta diligência, que em pouco tempo fizeram a aclamação do novo rei D. João nas ilhas do Pico, Faial e S. Jorge, sem oposição alguma, e com toda a solenidade. E por desejarem quanto antes recolherem-se à Terceira, em razão de quererem trazer alguma pólvora e munições que nestas ilhas lhes deram, mandaram à ilha Graciosa Constantino Pais, para que nela promovesse a aclamação.

A 19 de Abril, partiu para esta mesma ilha o mestre frei Diogo das Chagas, a pedir uma meia colubrina de bronze que lá havia, com ordem de verificar a aclamação, no caso de não estar ainda feita; mas porque já o dito Pais a tinha proclamado , voltou o religioso à Terceira, e desembarcou no porto da vila da Praia a 22 de Abril, entregando ao capitão-mor de Ornelas a peça e munições que pôde obter.

Achando então ali ordem do provincial seu irmão Frei Mateus para visitar as ilhas de baixo, tornou logo a elas gastando todo o mês de Maio naquele serviço em favor da causa do novo rei; porquanto, além de exortar os povos à pontual execução de suas ordens, mandou em todas as comunidades se cantasse a ladainha costumada; e que pelos claustros e coro se fizessem particulares orações pela sua conservação. Tais foram os serviços prestados por este respeitável religioso, a quem as ilhas dos Açores devem também a investigação de seus mais apreciáveis monumentos históricos, e a verdadeira narração destes factos.

Às ilhas das Flores e Corvo foi enviado um fidalgo de Angra por nome F. de Sá, que nelas fez a aclamação; e ainda que mais tarde cuidaram estas ilhas de remeter à sua capital o socorro que lhes pedira, não deixaram por isso de se mostrar menos leais e fiéis do que as outras deste arquipélago. Ainda que todas as mais ilhas não hesitaram em reconhecer e aclamar el-rei D. João IV, é certo que a ilha de S. Miguel e a de Santa Maria mais tarde lhe obedeceram.

Duas vezes mandaram os governadores à ilha de S. Miguel para que nela se fizesse a aclamação; e contudo não consentiu o conde de Vila Franca, donatário da mesma ilha, persuadindo os da governança da cidade e a nobreza para que a não fizessem, com o fundamento de não terem ainda participação do governo português. Foi portador do precatório dos governadores, pela primeira vez, o padre António Mendes de Vasconcelos, beneficiado na igreja de Santa Cruz desta ilha; da segunda vez foi o padre Agostinho Paim, eclesiástico de muita autoridade, que voltou à Terceira assaz ofendido dos modos indecentes e grosseiros que com ele se praticaram, depois das instâncias e observações feitas ao conde, mostrando-lhe o padre o caminho que devia seguir, como legítimo português. Todavia em 6 de Abril escreveu el-rei ao dito conde a carta que vai no Documento H. Escreveu também à Câmara de Ponta Delgada, ao juiz de fora, e a outras pessoas autorizadas da ilha, dando-lhes parte de estar restituído à posse do reino, e ordenando-lhes o aclamassem, e fizessem obedecer naquela ilha, concorrendo no acto a nobreza, clero e povo .

Em consequência desta ordem logo se verificou a aclamação na ilha de S. Miguel e na de Santa Maria, nas quais havia muito tempo que os povos pública e particularmente requeriam ao conde a fizesse. Sabido isto na Terceira, logo os governadores lhe mandaram pedir socorro, que prontamente lhes foi enviado, a saber: algumas peças de bronze, pólvora, e bala; assim como de todas as outras ilhas. E da ilha de S. Jorge veio o capitão-mor de Armada que ocupava Francisco de Carvalhal, passando este a servir de almirante.

Recebendo el-rei D. João as cartas enviadas por Francisco de Ornelas em 24 de Março, por uma caravela vinda de Havana, onde fora de aviso, e as que lhe mandou a Câmara de Angra em 31 do dito mês, e a 7 de Abril, nas quais lhe davam parte de estar aclamado, jurado, e obedecido nesta e nas demais ilhas, e de se achar sitiado o castelo S. Filipe; e que somente faltava o submeter-se a ilha de S Miguel e a de Santa Maria, logo sem perder tempo escreveu ao conde de Vila Franca a carta de que já falei; e outrossim escreveu aos governadores da Terceira duas cartas, que eles receberam a 21 de Abril em uma caravela vinda por S. Miguel, na qual veio Diogo Botelho de Vasconcelos, com soldados pagos à sua custa para servir na guerra. Já no fim de Maio veio da mesma ilha o capitão Manuel de Medeiros, que também à sua custa trouxe 50 homens, com os quais andou quase três meses em um dos navios de Armada, servindo com muita grandeza e vontade.

Além destes avisos que foram enviados a Lisboa, foi o terceiro a 22 de Abril em uma caravela vinda da Baía, na qual foi o respeitável religioso franciscano frei António Paim e o capitão João Teixeira de Carvalho. O quarto aviso foi a 25 de Abril, em uma das fragatas sevilhanas de Armada, de que era capitão o esforçado Roque do Figueiredo. Nela foi Manuel do Canto de Castro, que ia cumprimentar el-rei e dar-lhe conta dos serviços feitos à coroa: em remuneração do que lhe concedeu el-rei o hábito de Cristo com uma boa tença, que, segundo parece, ele não gozou tão cedo por algumas oposições que teve .

Segundo todas estas participações, conheceu el-rei o perigo da sua causa nesta ilha; e serem infrutíferos todos os meios propostos a reduzir à sua obediência o castelo S. Filipe; entendendo além disto, que entre os principais da governança da terra haviam já, e se poderiam suscitar, desavenças e descontentamentos, que de ordinário em todas as partes se aumentam com o desejo dos cargos; resolveu tomar séria resolução no caso; em consequência do que despachou o padre Francisco Cabral, da Companhia de Jesus, que já nestas ilhas servira de visitador, e juntamente sete capitães de muita experiência nas coisas da guerra ; para levantarem companhias e servirem às ordens dos capitães-mores, aos quais somente confiou o governo da guerra: e por superintendente dela nomeou ao dito padre Francisco Cabral; a quem outrossim entregou firmas, e poderes para segurar títulos e mercês, havendo necessidade para isso.

Escreveu também às Câmaras da ilha, ao cabido da Sé, onde servia de deão o padre Francisco Loureiro Raposo, e a outras pessoas do melhor conceito, louvando-lhes muito o zelo com que se haviam portado na sua aclamação; e prometendo-lhes grandes favores e mercês: o que tudo bem se depreende da cópia das cartas dirigidas às Câmaras de Angra e vila de S. Sebastião (Documento I e Documento J).

Nesta mesma ocasião mandou el-rei o quartel das pazes feitas com Holanda Zelândia, e Frísia a respeito da divisão dos mares, da linha para cá, na forma que fora assentado com o nosso embaixador Tristão de Mendonça: declarando nele o modo com que se haveriam os portugueses com os navios encontrados nos mares de seus domínios . Chegaram estas cartas e ordens em 25 de Abril, e publicaram-se no dia 27, na praça de Angra, com toda a solenidade militar. Vieram em uma nau holandesa, que com o seu capitão ficou a soldo para servir na armada da ilha; e assim com outra nau holandesa que viera do Faial, e outra que chegou da Índia, teve a armada onze grandes embarcações, sustentadas à custa dos cofres da ilha. Enviou el-rei, além disto, na referida embarcação 25 quintais de pólvora, outros tantos de bala, excepto morrão, e outras armas e munições de guerra.

Logo que chegou o visitador padre Francisco Cabral, reuniu-se no colégio dos Jesuítas um conselho de guerra, em que ele apresentou as instruções que trazia: e aqui os capitães-mores lhe deram conta de todos os meios intentados para reduzir o mestre de campo e governador do castelo a entregá-lo; e de como ele mui arteiramente os soubera iludir, a ponto de reter ainda na prisão os nossos enviados. Então, em presença das ordens que trazia o superintendente padre visitador, tranquilizaram-se mais os ânimos dos governadores, dispondo-se com todas as veras a continuar o cerco da praça e a remover para sempre algumas desinteligências, que andavam entre os capitães e oficiais subalternos sobre preferência de postos. E considerando mui seriamente o perigo em que se achava a ilha enquanto o castelão se não rendesse, foram de parecer os vogais do conselho, que o visitador, como superintendente da guerra, lhe participasse as ordens que tinha de Sua Majestade. Contudo, por mais escritos que o visitador fiz lançar no fosso junto da Porta Falsa do castelo, jamais teve resposta de algum deles; antes pelo contrário, e acintosamente, não cessava o governador de bombardear a cidade e as trincheiras, o Castelo dos Moinhos e os redutos em que os portugueses se achavam fortificados.

Vendo os governadores que das suas trincheiras não eram bem ofendidos os inimigos, por estarem mui distantes, deliberaram chegá-las mais ao castelo, segundo o plano e traça que deu Francisco de Castro, natural do Porto, homem assas experimentado nas guerras do Brasil contra os holandeses. E com efeito, começou-se a trincheira por detrás das casas de Vital de Bettencourt (hoje Solar ou Quinta da Madre de Deus), descendo pela ermida da Boa Nova, e correndo por meio das hortas, a dar na rocha do Fanal; nesta trincheira se ia trabalhando de dia e de noite, com bastante risco por ser debaixo de artilharia e mosquetaria do inimigo.

Entregou-se a fábrica destas novas trincheiras ao tenente Sebastião Cardoso machado, que para o coadjuvar escolheu os capitães Jerónimo Fernandes Coelho e Roque de Figueiredo; de forma que em pouco tempo as efectuou, e ficaram pelo método mais fácil e proveitoso conhecido naqueles tempos; a respeito do qual lhe escreveu el-rei em 7 de Junho uma carta de agradecimento (Documento K). E esta é a quarta das que lhe enviou durante o sítio do castelo; por ela se vê qual era o caso que fazia el-rei de suas virtudes, e ainda a dependência que dele tinha. As testemunhas daquele tempo juraram as gloriosas acções deste nobre terceirense, como se vê pela afirmativa do governador do castelo, Manuel de Sousa Pacheco, que por conter a exacta relação de alguns factos retocados nesta obra, ofereço (Documento L).

Não só os soldados e os paisanos, mas até os clérigos e os religiosos franciscanos trabalhavam no entrincheiramento referido; de forma que se admirou a constância de quatro frades da classe dos pregadores e confessores, que não somente exercitavam naqueles trabalhos da sua profissão, senão ainda ajudavam os soldados na construção das trincheiras, sendo que neste serviço mais se distinguiu frei Manuel dos Santos. Tal era o amor da liberdade que a todos desafiava ao sofrimento dos mais penosos trabalhos!

A 12 de Maio, pelas 11 horas do dia, quinta-feira, saíram da fortaleza os castelhanos, cometendo as nossas trincheiras com tiros de mosquetaria e de artilharia; e suposto acharem-se as trincheiras bem guarnecidas de tropa, acudiu a gente que andava pela cidade com tal fervor, que os castelhanos se viram obrigados a retirar a toda a pressa, com perdimento de dois soldados, e outros vários feridos, sem prejuízo dos portugueses que notável fosse; do que ressentido o castelão, no mesmo dias às 11 horas da noite tornou a mandar investir as trincheiras, com tal valor que sobre durar o combate por espaço de duas horas, e já a 3 de Maio, sexta-feira, dia da Vera Cruz, com inumeráveis tiros de uma e outra parte, e com repetidos encontros de lança e espada, se viram os castelhanos obrigados pela esquadra do alferes Manuel Gonçalves Carvão, a retirar-se até ao fosso do castelo; e com tão feliz sucesso o fez, que bem poucos feridos houveram portugueses. Os castelhanos também contaram alguns feridos, e mortos, ainda que ao certo se não soube qual o seu número, porque furtivamente os retiraram do campo, como sempre fizeram depois de tais conflitos.

A 20 de Maio, dia da Santíssima Trindade, acometeram os castelhanos as nossas trincheiras com grande fúria, durando a peleja toda a noite, sem descanso algum, morrendo dois portugueses, e ficando três feridos, e ainda mais dos castelhanos, que após de si levaram os cadáveres dos dois mortos e, por insulto, os puseram sobre uma parede, despojados de todos os vestidos e armas. O que vendo o valente capitão João de Ávila, e não podendo sofrer tamanha desumanidade, dando um repentino assalto, os foi retirar à vista dos espoliadores .

Por este mesmo tempo criaram-se duas companhias de aventureiros, uma das quais foi entregue ao capitão Pedro de Betancor, natural da ilha da Madeira, que muito bem se portou sempre, assim no mar, como na terra. Da outra companhia foi nomeado capitão João Ibré, filho do extremado português Melchior Machado de Lemos.

Em 29 de Maio chegaram à vila da Praia dois navios franceses que vinham de Lisboa, e o corregedor Manuel Figueira Delgado e o capelão Roque do Figueiredo, que dissemos tinha ido com aviso, e pelas muitas instâncias que fez a el-rei, e a seus ministros dos quais foi mui bem recebido, por sua pessoa e boa reputação , lhe despacharam 50 quintais de pólvora, muito morrão e balas de artilharia de que já havia bastante falta.

Vieram também nesta embarcação cartas de el-rei para os capitães-mores (Documento M) e para outras pessoas principais, em resposta das que lhe escreveram, e enviaram pelo vigário geral o Dr. Gaspar Cardoso Cardim. A que foi dirigida à Câmara de Angra consta da cópia (Documento N). Nas que el-rei mandou aos capitães-mores João de Bettencourt e Francisco de Ornelas dava amplos poderes de se valerem, para sustentação da guerra, de quaisquer dinheiros pertencentes à real fazenda que nas ilhas se achassem ; o que tudo foi do grande proveito, e concorreu mui para todos se animarem, e se continuar o cerco da fortaleza.

Parece que nesta mesma ocasião mandou el-rei a carta patente de 29 de Abril, pela qual dava comissão ao capitão-mor Francisco de Ornelas, para tratar com o mestre de campo D. Álvaro do Viveiros a entrega do castelo, prometendo-lhe o título de conde, com dez mil cruzados de renda, ou o que a ele mais parecesse (Documento O).

No dia seguinte desembarcou também o novo provincial da religião seráfica destas ilhas, frei Mateus da Conceição, o Corvo, já livre de seus cárceres e trabalhos , restituído por Sua Majestade ao governo desta província, como tinham pedido os capitães-mores (citado Documento M). Som embargo de que o padre visitador Francisco Cabral havia muito tempo que lidava para comunicar ao governador D. Álvaro as ordens que trazia, não o pôde conseguir, até que, por decisão tomada em conselho de guerra, se mandou um enviado do propósito com uma carta ao dito governador. Foi este um mulato, que das nossas trincheiras saiu com tambor e bandeira, em sinal de embaixador; e quando já perto o vieram buscar alguns soldados castelhanos, levando-o ao governador com os olhos vendados para que não desse fé do que via. Lida então pelo governador a carta, mandou um sargento que o viesse acompanhar fora do castelo, e com recado de que responderia brevemente. E com efeito, pouco tempo depois, no mesmo dia 31 de Maio do 1641, desceu o sargento à trincheira do capitão João de Ávila, que o foi esperar; e depois de recíprocos cumprimentos, lhe entregou uma carta para os governadores, e em continente se despediram, cada um para o seu posto.

Lida a carta, assentou-se que não convinham ao decoro português os meios propostos pelo governador D. Álvaro, a termos de se verificar a conferência proposta pelos nossos capitães e superintendente da guerra; por isso continuaram as correspondências de parte a parte até ao dia 2 de Junho, em que se concordou viessem do castelo em reféns à ermida da Boa Nova o tenente João Hernandes e o alferes D. Pedro Ortiz de Melo; e que da parte da cidade fossem o tenente Sebastião Cardoso Machado e o capitão Tomé Correia da Costa. E sendo com efeito juntos na dita ermida, entre as suas e as nossas trincheiras, foram lidas as ordens de Sua Majestade, e expostas as mercês que ao mestre de campo D. Álvaro, a seu tenente, e alferes oferecia, entregando-lhe estes o castelo. Comunicado tudo isto ao governador, assim mesmo recusou, dizendo que há muito tempo sabia da oferta, mas que não cabia em sua pessoa aceitá-la.

Recolhidos então cada um ao seu posto, continuaram as hostilidades com o mesmo ardor; nem jamais parou, nos dois dias destas embaixadas, senão dentro nas horas em iam e vinham. Por esta causa se não fez em 30 de Maio a procissão do Corpo de Deus, e somente a festa na Sé, onde com muita elegância orou o dito padre visitador; e de tudo isto se deu parte a el-rei .

No dia 20 de Junho de 1641 pela manhã apareceu uma grande embarcação em direitura aos ilhéus da Mina, que estão abaixo da vila de S. Sebastião; e em pouco tempo o comandante dela, D. Luís Peres de Viveiros, que era irmão do governador D. Álvaro, abordando à baía das Mós, que fica da parte de oeste, muito a seu salvo desembarcou sobre os ilhéus os 300 soldados que trazia, ignorando ainda qual o estado da ilha contra o castelo . Largou imediatamente a nau a encontrar-se com duas fragatas nossas que já a procuravam. Eram estas embarcações holandesas e pertencentes à nossa armada, para a qual andavam transportando víveres; e conhecendo ser a nau a mesma que se esperava de Sevilha, como o tinha anunciado Manuel do Canto de Castro, a vinham assaltar.

Vendo D. Luiz de Viveiros que a tripulação das fragatas era portuguesa, e que os comandantes, pondo-as em ordem de batalha, lhe ordenavam se entregasse à obediência de el-rei D. João IV, cheio de assombro, e julgando-se inteiramente perdido se resistisse, ou fizesse o menor movimento, houve por melhor o entregar-se; assim o fez com toda a guarnição da nau, em que se arvorou o pavilhão português e deu à vela para reunir-se com a nossa armada, que andava muito ao largo.

Enquanto os castelhanos desembarcavam e procuravam o único passo por onde se podia subir a terra, acudiu alguma gente da vila de S. Sebastião, e os detiveram ali. Pouco depois chegaram da cidade alguns soldados de cavalo, e três companhias de infantaria, assim como outras três da vila da Praia; chegaram também uma da dita vila de S. Sebastião, e outra do Porto Judeu; e em todas estas companhias havia mais de 700 portugueses, além dos soldados de cavalo, e todos às ordens do capitão-mor Francisco de Ornelas, a quem neste dia coube a glória de os conter, pois que sem ordem nem disciplina queriam investir os castelhanos e destrui-los no ilhéu, onde se achavam abaixo da rocha.

Mandou ele então que os castelhanos subissem e que se rendessem com todas as armas e munições que traziam, como sem perda de tempo fizeram, e sem darem um só tiro, entregando-se prisioneiros à ordem do nosso capitão-mor; porque fazendo o contrário não escaparia um só com vida no ponto em e se achavam, cercados por mar e por terra, dos homens e da natureza, por causa do medonho inacessível das rochas e profundidade dos mares. Foi este o resultado que teve o socorro trazido por D. Luiz de Viveiros a seu valoroso irmão D. Álvaro, e que a poder verificar um seguro desembarque, correria grande risco aos expugnadores do Castelo de S. Filipe.

Foi tão reconhecida a importância desta presa que se reputou uma decisiva vitória, já por ser obtida sem mortes nem ferro, já porque se tirou ao castelão o auxílio de mantimentos, e grande quantidade de munições: pois só de pólvora lhe vinham 150 quintais, e outros tantos de morrão; muito chumbo, muitas armas de todo o género, e outros instrumentos bélicos. Mas o certo é que estes castelhanos se entregaram sem controvérsia nem partido algum, e que eles vinham tão estropiados e mortos de fome, que apenas desembarcaram, passando por um cerrado de tremoço verde, não obstante o demasiado amargo deste fruto, o foram comendo como se fosse um saboroso manjar.

Despertou este sucesso nos ânimos dos oficiais da Câmara da cidade o desejo de edificar um forte no lugar único por onde se podia sair a terra, bem defronte do cais natural que ali se achava; e já no ano de 1644, servindo de juízes Álvaro Pereira de Lacerda, e vereadores Baltasar na Costa Pereira, Luiz Pereira de Orta, Pedro Álvares Pereira, e procurador Pedro Lagar, mandaram, a grande custo, levantar ali um excelente forte com seu torreão, polvarim e casas, impondo-lhe o nome do Bom Jesus, e sobre o portão lhe assentaram as armas de el-rei D. João IV, em cuja memória o edificaram, como consta do livro dos acórdãos da mesma Câmara e de uma inscrição que se lê encaixada na muralha fronteira.

Vinham por comandantes desta expedição D. Luiz Peres de Viveiros, e os Capitães D. António de Osés e D. João da Estrada, com seus oficiais subalternos da mesma nação, cujos nomes não acharam os cronistas daquele tempo. Vinha também um corregedor português, os quais foram todos presos naquela noite para a cidade, a saber: D. Luiz, para o Colégio da Companhia, onde se deteve dez dias, e depois o levaram para a fortaleza de S. Sebastião; e o corregedor para o convento da Graça, com soldo e ordenado suficiente à sustentação de cada um deles. Dos soldados, foram 250 transportados à ilha de S. Miguel, depois de curados no hospital, para onde foi a maior parte; e os outros foram destacados em diferentes pontos desta ilha.

Conta-se que não podendo o capitão Luiz de Viveiros ocultar a mágoa que padecia, nem dissimular o sentimento da sua desgraça, rompera em certo dia nestas palavras, que bem mostravam a dor que o oprimia: “Ni ho serbido a my Rey; ni libertado a my hermano”!

Além destes mui consideráveis prejuízos, não cessava el-rei de Portugal de corresponder-se com os governadores e superintendente da guerra, com a Câmara da cidade e com outras pessoas, mandando-lhes muitos socorros e agradecimentos pelo bem com que se houveram com sua aclamação e na expugnação da fortaleza; prometia-lhes finalmente que após estes socorros não tardaria a enviar-lhes uma armada que se estiva preparando (veja-se Documento P).

Aconteceu por este tempo, fugirem do castelo para os nossos, dois castelhanos, e confessaram o aperto em que estavam os sitiados, pois era certo que da gente capaz de pegar em armas só teriam 300 homens; que de pólvora e bala já havia bem pouco dentro da praça; e que de mantimentos, bastantes se haviam perdido, e alguns que restavam eram nocivos, e incapazes de se fazer uso deles; motivo por que já se tinham sustentado da carne de alguns animais de carga e de outros imundos . Após estes fugitivos, veio um escravo de Pedro do Canto de Castro contando a mesma calamidade; e acrescentou mais que os castelhanos, impacientes de lhes não chegar socorro, construíam uma embarcação coberta para a mandarem de aviso a el-rei seu amo, a qual já estava quase acabada e se dizia a queriam lançar ao mar pela Ponta do Zimbreiro.

Não era falsa esta notícia, porque em a noite de 11 de Julho, lançou o governador por aquele ponto a dita embarcação com dez soldados dentro dela; porém sendo vista por um barco de pesca, deram esta notícia aos capitães da guerra que, pela manhã, mandaram em seguimento dela a caravela do Sardo, guarnecida de tropa e com dois falcões de bronze; e suposto que a não avistassem já, sempre foram seguindo o rumo que lhes pareceu levava; e felizmente depois de três ou quatro dias lhe deram caça, trinta e cinco léguas ao sul da ilha; e investindo-a logo a levaram sem a menor resistência, trazendo-a ao porto de Angra com os soldados que levava, os quais sendo perguntados, confirmaram a notícia do aperto em que se achavam os sitiados; porém não entregaram as participações que levavam ao governo de Castela, porque um artilheiro português, mestre da embarcação, tudo lançou ao mar antes de ser rendido; e ainda teve a coragem de insistir, negando responder a quanto lhe perguntavam sobre o estado da fortaleza e dos sitiados; sem embargo do que nem por isso foi tratado com o rigor que merecia a sua ingratidão para com a pátria, do que muito se murmurou naquele tempo contra os capitães-mores, e superintendente da guerra. Foi esta nova mui celebrada em Lisboa, e por isso el-rei lhes escreveu uma carta (Documento Q) com que se alegraram muito os sitiantes, esperançados no muito que ele parecia interessar-se pela ilha Terceira.