Anais da Ilha Terceira/II/V

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No dia 20 de Agosto de 1641 tiveram os sitiados um bom sucesso, único que lograram enquanto durou o sítio, ocasionado pelo descuido dos sitiantes; porque confiando o capitão Bartolomeu da Costa Pereira no sossego que havia muitos dias se gozava, e não ter o inimigo atacado as trincheiras, deitou-se a dormir a horas de meio-dia, sem deixar alerta as necessárias vigias, pois concedeu licença a muitos soldados para irem visitar suas famílias.

Notaram os castelhanos esta falta, e aproveitando a ocasião, desceu do castelo um sargento a observar o posto por onde mais facilmente poderiam os seus fazer assalto; e achando que em toda a trincheira reinava um grande silêncio, e que no posto do capitão Baltazar da Costa havia menos dificuldades a vencer, por ser a vala menos profunda, correu a denunciar o que presenciara, e que mal se podia acreditar em tais circunstâncias. Não se demorou o mestre do campo um momento, e fazendo descer sobre o campo dos portugueses uma esquadra de 50 soldados bem armados, e dos mais valentes e aventureiros, avançaram estes à trincheira do dito capitão Baltazar da Costa Pereira com o maior ímpeto e esforço, de forma que lhe mataram logo sete soldados, e feriram mais de vinte, e tão gravemente que a maior parte deles pouco tempo depois faleceu, ficando o capitão português tão maltratado, e com tantas feridas, sem acordo de si, que desarmado o deixaram por morto . Dos castelhanos só ficou um sem vida, e poucos feridos ; e vendo eles que os portugueses acorriam a postos com grande diligência, e que o capitão Constantino Machado e o alferes Manuel Cordeiro Moutoso com a sua companhia lhes disputavam a vitória, foram retirando pouco a pouco pelo valado acima, levando prisioneiros o sargento Galassa e dois soldados. Então chegando ao castelo aplaudiram em altas vozes, e com muito estrondo de artilharia o bom sucesso da sua empresa, devida ao culpável descuido dos sitiantes.

Logo que se divulgou este mau sucesso, amotinou-se o povo em toda a cidade, e correndo precipitadamente às trincheiras, vituperava em altas vozes os capitães-mores, aos quais imputava aqueles infortúnios, e por isso jamais se lhes devia consentir o cargo da guerra, antes peio contrário, deviam imediatamente escolher pessoa que bem e fielmente dirigisse este negócio, como verdadeiro português. Tão cega e apaixonada a andava a multidão do povo, que nem os nobres da cidade, nem o corregedor, nem ainda os religiosos, e padres da maior autoridade o puderam sossegar: e decerto que naquele dia se achou a ilha arriscada à última ruína, pela grande inquietação, e motim da gente: e finalmente, encontrando-se com Luiz Pereira de Orta, o aclamaram seu capitão-mor e governador da guerra. Vendo então ele o perigo em que se achava tudo por aquietar o povo, aceitou o cargo, prometendo-lhe castigar os culpados: e desta forma, com bastante trabalho, foi apaziguando o motim; porém no dia imediato, ajudado pelo capitão-mor Manuel Correia de Melo, lhe deu a entender a razão com que procedera, e restituiu os dois capitães a seus postos.

Por este mesmo tempo escreveram à Câmara de Angra os embaixadores portugueses junto à Corte de Londres, D. Antão de Almada e Francisco de Andrade Leitão, uma carta datada em 4 de Julho , dando-lhe os parabéns do modo com que na ilha se procedia contra os castelhanos, e noticiando-lhes haverem concluído pazes com Inglaterra, França e Holanda: e que para segurar perfeita liberdade esperavam brevemente aviso de estar ganha a fortaleza.

A vista desta carta, assim como de outra enviada por el-rei em 7 de Junho aos capitães-mores animando a continuarem o cerco, e prometendo grandes recompensas a seus servidores (Documento R), deu um grande impulso aos negócios, e foi aplaudida e festejada com as maiores demonstrações de alegria: enquanto os castelhanos cada vez mais se apoquentavam, e se iam extenuando pela falta de socorros para se manter sitiados. Ainda no dia 28 de Agosto chegou à ilha uma nau francesa, que haviam dois anos andava ao cerco, enviada das ilhas das Flores e Corvo pelo padre Inácio Coelho , vigário e ouvidor daquelas ilhas: tinha esta nau quase 100 homens do guerra, com 12 peças por banda. Sabendo o comandante notícia da contenda que tinha a ilha Terceira, veio oferecer-se-lhe, contratando-se para servir na armada por duas mil duzentos e cinquenta patacas cada mês. O mesmo contrato se fez com uma nau holandesa, que veio da ilha da Madeira militar a soldo. E desta forma com todos estes navios de guerra, estava a Terceira segura por mar, não cessando no entretanto as demais ilhas em lhe mandar soldadesca; pois bastava dizer que até das ditas ilhas das Flores e Corvo, por solicitações do referido ouvidor, vieram mais de 60 soldados. Desta maneira cresciam de dia em dia as forças da ilha contra o castelo; e para mais aumentarem consideravelmente estas forças, levantou o capitão João Mendes de Vasconcelos , à sua custa, uma companhia, com que serviu até ao fim da guerra, tempo em que lhe deu liberdade para cada um se recolher às suas terras, na forma que se lhes prometera quando se alistaram. Outro tanto não aconteceu aos soldados das Flores e Corvo, aos quais se faltou à palavra, obrigando-os a servir contra vontade, depois de concluído o cerco do castelo: tanto ensina a força do arbítrio!

Em 3 de Setembro veio de Lisboa o capitão João Teixeira de Carvalho, que tinha ido de aviso, e trouxe cartas de el-rei aos capitães-mores e superintendente da guerra, datadas em 7 de Junho, acusando a recepção daquelas que eles lhe escreveram com os capítulos da carta a de 11 de Janeiro, pela qual el-rei de Castela pretendia seduzir os magistrados e povo da ilha para que continuassem a obedecer-lhe (Documento S). Nesta mesma carta persuadia el-rei D. João a que eles sustentassem o cerco; pois não tardaria a enviar-lhes o socorro prometido. Escreveu também à Câmara de Angra na mesma data (Documento T). Deu-lhes outrossim notícia das traições que em Portugal se descobriram contra ele .

Findou porém o mês do Setembro sem que tal socorro aparecesse: o que vendo os capitães-mores, ordenaram mais quatro companhias dos homens nobres e mais antigos da ilha, e fizeram capitães a Cristóvão Borges da Costa, Diogo do Canto de Castro, Francisco de Andrade Machado e Sebastião Cardoso Machado. Entravam de guarda estas companhias de 24 em 24 horas, alternadamente. Fizeram seu quartel às Covas, detrás do muro de S. Gonçalo, e serviam de rondar as trincheiras de noite com ordem de acudir a qualquer assalto.

Se da parte dos portugueses se armavam e dispunham cada vez mais reforços contra os sitiados, nem por isso afrouxavam estes um só instante no intento de os assaltar corajosamente. Enviaram para este fim à cidade notícia de que até ao dia de S. Miguel o Anjo esperavam socorro de Castela; e que não lhe vindo neste espaço tratariam de capitulação. Indústria grande foi esta com o fim de destruir os sitiantes, porque logo vieram do noite com todo o silêncio lançar fogo às trincheiras; o que felizmente não surtiu efeito, por andarem já os nossos mui destros e avisados em semelhantes enredos: e não só apagaram imediatamente o fogo, mas até mesmo com muita artilharia e mosquetaria serviram tanto os castelhanos, que eles bem cedo se arrependeram de tamanha ousadia, e se recolheram ao castelo com grande prejuízo de suas vidas.

Em 19 de Outubro chegaram três grandes embarcações que pela Ponta do Zimbreiro lançaram doze homens vindos numa barca, e estes, avançando por cordas, entraram no castelo. Deu bastante que sentir aos portugueses esta novidade, receando que tais embarcações fossem os socorros esperados pelos castelhanos; conseguiram todavia, com a artilharia da fortaleza de S. Sebastião, estorvar o uso daquela barca para que não voltasse a bordo do navio de onde saíra; e entendendo serem estas embarcações de Castela, largaram sobre elas as nossas três naus, já mui bem guarnecidas de munições e de soldadesca; porém, intervindo a noite, desapareceram as ditas grandes embarcações, sem que soubessem os nossos que rumo seguiram. Pouco depois, foi encontrada uma barquinha saindo do castelo, com cinco homens dos doze que nele haviam entrado, e certificou serem aquelas embarcações holandesas, e do comércio das Índias de Castela; e que enganadas pelos sinais que do Monte Brasil se lhes fizeram, ignorando elas qual o estado da ilha, haviam aportado com sua barca à Ponta da Zimbreiro.

A 25 de Outubro foram apreendidos no Portinho Novo dois castelhanos, que levados a perguntas uniformemente responderam que os sitiados se achavam na última miséria; e que não tinham mantimentos para além de 25 de Dezembro, próximo futuro, e tanto assim que por esta falta comiam couros de rezes, ratos e outras coisas imundas; que não tinham que vestir e calçar, nem mais de 300 pessoas em estado de pegar em armas. Mais se confirmou esta notícia pelos sete holandeses da barca, residentes no castelo, pedindo aos nossos que os resgatassem, pois tinham sido enganados com sinais falsos, e que se achavam agora morrendo à fome.

O mesmo auxílio pediram outros fugitivos que até ao dia 12 de Novembro chegaram às nossas trincheiras, exagerando cada vez mais o aperto em que se achavam os castelhanos, e confirmando ser o número dos doentes excessivo; e que outros muitos atenuados, e na maior fraqueza, nem podiam sequer já andar. Então, de cima das trincheiras, declararam os portugueses ao castelão D. Álvaro, que nenhum socorro absolutamente podia esperar, porque se lhe haviam tomado todos os avisos mandados a Castela; do que ele assaz informado totalmente desmaia; e houve por certo que a fome e a desesperação em que se achava era a retórica mais persuasiva que o podia convencer a entregar-se com os seus nas mãos dos expugnadores.

Contou-se que ele algumas vezes sabia afogar a desesperação em que eles se achavam, dizendo-lhes “Teneis hambre valorosos leones, y no mi comeis aquestas manos!”. Mas o que na verdade continha os soldados para que não debandassem da fortaleza, era a muita vigilância do governador, e os sérios castigos que lhes dava, pois colhendo algum na fuga o mandava logo garrotear, e mortos os fazia pendurar à vista de todos por um pé .

Chegou no entretanto um navio com cartas de el-rei de Portugal aos capitães-mores, e superintendente da guerra providenciando a maneira de formar as companhias dos oficiais que vieram do reino (Documento U); e desejando os mesmos governadores concluir a redução da fortaleza por alguma razoável pacificação, como já por vezes o intentaram, convocaram um conselho de guerra; e requereram ao governador mandasse abaixo à cidade reféns suficientes para tratarem negócio daquela importância; ao que ele respondeu, que sitiados não tinham esse costume; que se pretendiam alguma coisa o comunicassem por escrito, que ele a tudo responderia. A vista de resposta tão arrogante e desarrazoada não se tratou mais de conciliação, e por isso continuaram as hostilidades como de antes. Cresceu o aperto dos sitiados, atenuados de fome e doenças, de forma que desceu do castelo um mensageiro chamando pelo seu nome ao capitão Diogo Leite Botelho, e disse: “El señor maestro de campo suplica a los señores capitanes mores que visto no lle admitiren la embajada del primero d’agosto, que el señor Estevan da Silveira Borges por una dolencia grave de que está infiermo necessita de ciertos medicamentos; que suas mercedes dean serbidos concedellos para su cura.” Porém, sendo sobre isto consultados, os capitães-mores resolveram que não se devia satisfazer o pedido, por não constar como certo ser para algum português, antes ser para outro qualquer.

Então conhecendo perfeitamente os nossos o estado em que se achava o castelo, reduzido a uns poucos de defensores, que já não ousavam sair a campo, em razão do seu limitado número, e fraqueza em que andavam, assentaram que indo procurá-los dentro dos seus redutos acabariam mais depressa com a porfiada contenda daquele sítio; assim, em 16 de Dezembro, saiu o capitão Francisco Pires, natural da ilha Graciosa, e um dos sete que do reino vieram, acompanhado de alguns soldados seus, levando por guia dois espanhóis que do castelo fugiram, e deu repentino assalto ao reduto do inimigo que estava junto da Boa Nova, capturando três soldados, e pondo os mais em fuga pelo fosso acima. A 28 de Dezembro, em outra noite mui tenebrosa, tornou o mesmo capitão, acenu1uanhado dos três soldados castelhanos, e de alguns portugueses, a dar sobre o reduto da banda dos Fenais, que arrasou, levando prisioneiros dois castelhanos, e feriu outros, os quais se recolheram ao castelo com muita dificuldade. Atemorizado com estes sucessos o mestre de campo governador do castelo, desamparou de uma vez os redutos; e tornando em outra noite os portugueses a eles, pensando estarem guarnecidos, os arrasaram, trazendo consigo as madeiras que lhes pareceram de algum préstimo, e largando fogo à lenha dos terraços.

Desenganados finalmente, os capitães-mores e superintendente da guerra de que o governador se não rendia, antes pelo contrário iludia com a maior impudência todos os meios do pacificação, e que armada prometida por el-rei não acabava de chegar com o socorro, obrigados pelas vozes do povo, e do alguns capitães pouco experimentados, assim como de alguns eclesiásticos seculares e regulares, que julgavam o castelo menos fortificado, deliberaram entrá-lo à força de armas; e com efeito um dia antes do assalto, mandaram expor o Santíssimo Sacramento na Sé do Salvador, por consentimento do deão Francisco Raposo, para que os soldados alistados a esta empresa e os respectivos capitães, se dispusessem com os necessários socorros espirituais .

Tais eram os pontos por onde se pretendia dar o assalto ao castelo, a saber: pela frente que está da parte da cidade, e no mar pela Ponta de Santo António, ou pela do Zimbreiro; de forma que batendo-se ao mesmo tempo estes pontos, se escalasse a muralha, com o menor prejuízo que fosse possível, e se tomasse o castelo. E assim resolvido, alistaram-se 4:000 homens; fabricaram-se muitas escadas e dividiu-se a gente em três regimentos. Mas na véspera do dia do assalto soltaram-se os ventos com tal furor, e embraveceu o mar de tal maneira, que não deu lugar à execução do assalto premeditado; em consequência do que no primeiro dia de Janeiro de 1642, reunindo-se no convento dos Jesuítas um conselho de guerra, tomaram o sério acordo de reputarem a empresa por temerária, votando pelo contrário, que se esperasse a armada em que vinha o general Tristão de Mendonça Furtado, e que à vista dela se tomaria a resolução conveniente.

Passou muito tempo sem que houvesse notícia desta armada, e vendo o padre visitador Francisco Cabral a pertinácia do castelão D. Álvaro em se render, deliberou-se escrever-lhe uma carta, como escreveu em 30 de Janeiro, pedindo-lhe a entrega da praça, debaixo de partidos e condições honestas, assim para ele como para a sua gente, convidando outrossim ao alferes D. Pedro Ortiz de Melo para anuir à entrega, e ter parte nas mercês que el-rei D. João a todos mui francamente prometia. A cópia desta carta e a sua resposta vão no Documento V e Documento X. Desde então começou uma activa correspondência entre estas pessoas sobre os meios próprios e adequados para se efectuar a capitulação.

A 11 de Fevereiro chegou a esta ilha o fidalgo Jorge de Mesquita, em um navio holandês, pertencente à armada de Tristão de Mendonça; e no dia imediato chegou outro navio, do qual era capitão F. dos Arcos, noticiando haverem saído do Lisboa a 7 de Janeiro; e que sobrevindo-lhes grande tempestade, se haviam separado das mais embarcações, que já pela demora deviam ter arribado. Era aquela armada composta de 13 navios, em que vinham 1 500 infantes socorrer a Terceira em cumprimento das promessas de el-rei D. João IV; mas foi tão mal sucedida, que, excepto estes dois navios, todos os mais destroçados arribaram a Lisboa; e a nau almirante, em que vinha o valente Francisco Duarte, foi dar à Lourinhã, onde pereceu a maior parte das pessoas que nela iam.

A capitânia lançou ferro defronte da praia de Albufeira, e o general Tristão de Mendonça, com outros fidalgos, meteram-se no seu batel, ou, para melhor dizer, no seu túmulo, contra a opinião dos que ficaram a bordo pedindo-lhes com muitas lágrimas que os não desamparassem. Ao entrar no batel caiu Tristão de Mendonça ao mar, e suposto que com grande custo salvaram, não lhe durou muito a vida, porque logo foi o batel sepultado pelas ondas, salvando-se unicamente o piloto e um marinheiro . Parece que Tristão de Mendonça vinha nomeado capitão general de mar e terra nestas ilhas; e também vinha com ele um corregedor, disposto a executar grandes castigos naqueles de quem já haviam bastantes queixas, segundo as parcialidades que feiamente dominavam em Angra pelo ciúme dos cargos, sobre o que uns, e outros haviam escrito às pessoas de seu valimento na corte. Mas por altos juízos de Deus não se tirou a glória da redução da fortaleza a quem tanto havia sofrido e trabalhado por ela; antes pelo contrário permitiu que eles com os seus poucos e mal exercitados soldados vencessem, para que todo o merecimento ficasse deles todos.

Em consequência das correspondências do superintendente da guerra o padre Francisco Cabral com o castelão D. Álvaro de Viveiros, mandou este participar-lhe no dia 24 de Fevereiro que queria entregar o castelo, fazendo-lhe os nossos aqueles partidos que bem lhe estivessem. E logo assentaram de parte a parte se dessem reféns, enquanto se tratava de concertar os artigos do capitulação, para o que subiram ao castelo os capitães Cristóvão da Costa e Pedro de Bettencourt; e da parte dos castelhanos desceram à cidade com procuração do governador o tenente João Hernandes de Herrera, e o alferes D. Pedro Ortiz de Melo, trazendo por escrito os artigos que, por serem muito honroso aos nossos, lhes foram rejeitados. Nestas correspondências passaram os dias desde 24 de Fevereiro até 4 de Março, em que os procuradores castelhanos se comprometeram à entrega do castelo com as condições constantes dos artigos da capitulação (Documento V), a qual foi assinada no dia 6 de Março de 1642 pelos procuradores castelhanos, pelos nossos capitães, e pessoas da governança da cidade de Angra.

Em virtude do estipulado nesta capitulação voltaram a seus postos aquelas pessoas que serviram de reféns por uma e outra parte, e os capitães mores João de Bettencourt, e Francisco de Ornelas tomaram as casas todas que haviam sobre a Prainha, no quarteirão que fica entre a rua de cima, e a travessa ao norte, que vai de baixo da cidade para a mesma rua, até acabar na rua da Cruz, fronteira ao Portinho Novo, onde também acaba a rua chamada de Jesus, sobre a Rocha; e tudo com a maior brevidade fizeram cercar e tapar. E concluído isto, em uma quinta-feira, 6 de Março, saíram os castelhanos da fortaleza, recolhendo ao referido quartel.

Falando desta capitulação diz o citado conde da Ericeira: “Saiu D. Álvaro com todas as honras que se fazem aos rendidos, muito semelhantes às da sepultura, que executara o cadáver a que se dedicam; porém em D. Álvaro, se houve desgraça, não houve culpa, defendendo a fortaleza até chegar à ultima extremidade”.

Achou-se por conta exacta, gastarem-se nesta guerra assim em fortificações, e pagamento de soldos à tropa, como em outras coisas necessárias ao expediente militar, acima de cem mil cruzados; que tudo el-rei houve por bem despendido; e assim da mesma forma aprovou as capitulações para a entrega do castelo; ainda que muitos as vituperaram, tende-as por indecorosas aos portugueses: o que é mui próprio daqueles, que por não poderem ter parte nas acções dos outros, por mais justificadas que sejam, as aniquilam, julgando-se unicamente capazes de as praticarem com acerto. Custou aquela árdua empresa a vida de 140 portugueses, e o sangue de 120 feridos, que todavia não morreram desta catástrofe. Dos castelhanos, entre homens, mulheres e meninos, passaram os mortos de 300, a maior parte deles de doença; pois só no mês de Janeiro de 1642, faleceram 15, e no mês de Fevereiro, 48.

Poderiam sair com armas 130 soldados, e ainda mesmo destes vinham muitos tão atenuados, que as não podiam trazer às costas. O mestre de campo D. Álvaro saiu tão magro, pálido, e desfigurado, que parecia um perfeito esqueleto.

Fecharam-se os castelhanos dentro do castelo S. Filipe, em Quarta-Feira Santa, 27 de Março de 1641, e saíram dele em 6 de Março de 1642; e desta forma durou a guerra onze meses, e onze dias, havendo 58 anos, 7 meses e 11 dias, em que tinha, sido ganha esta ilha aos portugueses, pelo marquês de Santa Cruz, D. Álvaro de Bazán, em dia da gloriosa Santa Ana.

Notou-se por uma admirável coincidência que outro homem do mesmo nome Álvaro a perdesse, e em dia que no porto da cidade entrou a caravela Santa Ana. Com isto parece, diz o autor da citada Relação, quis mostrar a santa: que se em seu dia se perdera a ilha, por altos juízos de Deus, era ela mesma quem agora a tornava a restituir, por ser passado o tempo prescrito para recompensa de todos os damos, causados pelo rigor do governo castelhano. Contou-se também por mui notável a colheita daquele ano, e se afirma que já mais na Terceira houvera igual abundância de todos os frutos; porquanto valeu o trigo a 40 réis o alqueire; e de tudo o mais houve tanta abundância, que não tinha preço algum. Assim parece vigiar a Providência no meio dos grandes males, socorrendo os homens por meios imprevistos e inesperados.