Anais da Ilha Terceira/II/VI

Wikisource, a biblioteca livre
Saltar para a navegação Saltar para a pesquisa

Entregues as chaves do castelo, e despedidos dele os castelhanos, imediatamente se levantou o pavilhão de Portugal, com as armas reais, na guarita mais elevada, que fica da parte da cidade : o que em toda ela causou uma extrema alegria, e por muitos dias foi solenizada esta aparição com as maiores demonstrações de um perfeito júbilo.

Convocaram então os capitães-mores uma junta, ou conselho, para elegerem a pessoa que devia ficar com o governo do castelo, até última resolução de Sua Majestade e quem lhe devia levar a nova da entrega da fortaleza; e ainda que houveram diferentes pareceres, e nisto se gastaram alguns dias, vieram em fim a concordar, que servisse no castelo o capitão-mor da cidade João de Bettencourt, e seu cunhado, o capitão-mor Francisco de Ornelas, levasse a el-rei o aviso, por ser a ele confiada tão arriscada empresa, e haver tido nela a melhor parte.

No dia seguinte tomou posse do governo do castelo o referido capitão-mor da cidade, e Francisco de Ornelas partiu para Lisboa, onde chegou brevemente, e foi recebido com aquelas honrosas demonstrações que merecia o seu bom procedimento. Fez-lhe el-rei mercê da comenda de S. Salvador de Penamacor, com dez mil cruzados de renda, pois era esta uma das grandes comendas com que costumava honrar aqueles de que se dava por bem servido; e à vista de toda a Corte, o pôs à sua mão direita, dando-o a conhecer a todos os que lhe iam beijar a mão. Pelo que ficou neste dia Francisco de Ornelas mui autorizado e engrandecido. Mas em breve tão distintas honras e mercês, excitaram nos ânimos de alguns naturais, e parentes seus os maiores ciúmes e mortais ódios; de tal forma que em bem pouco tempo ele se achou prisioneiro de Estado, e obrigado a responder de facto e de direito em cinco dias que lhe foram assinados . O resultado deste processo ver-se-á no ano de 1643.

Enquanto na ilha Terceira se efectuava a capitulação, e D. Álvaro de Viveiros com todos os seus, desalojava do castelo, recolhendo-se ao quartel da Rua de Jesus, não cessava el-rei D. João no projecto de enviar o socorro prometido; e como em Lisboa tinha fundeado parte da armada de Tristão do Mendonça, destroçada pela horrível tempestade de que já falei, e se achava incapaz de seguir viagem, e constava que este infeliz general se afogara, não se demorou el-rei em prontificar outra armada para o mesmo fim; pelo que fez equipar 7 caravelas com 300 soldados, bem guarnecidos de munições e artilharia grossa, nomeando por general de mar e terra António de Saldanha, do seu conselho, que servia de capitão-mor na torre de Belém, fazendo-o logo embarcar em direitura a esta ilha Terceira, entregando-lhe, além disto, algumas cartas para os governadores da guerra, magistrados da cidade, e uma para a Câmara, todas datadas em 10 de Março, dando-lhe parte do mau sucesso da armada de Tristão de Mendonça, e instando com todas as veras, para que a Câmara, da sua parte, fizesse com que o mais cedo se verificasse a entrega da fortaleza coadjuvando o novo general a empresa, a fim de se conseguir com próspero sucesso, de forma que os moradores da cidade descansassem dos trabalhos de guerra tão dilatada; e finalmente prometendo um eterno reconhecimento pelo bem que a mesma Câmara, e toda a cidade, procediam. A cópia desta carta, e das que foram escritas aos capitães-mores vai sob as letras Documento Z e Documento AA.

Navegou com efeito o general António de Saldanha com vento favorável, e em pouco tempo chegou a esta ilha, três ou quatro dias depois de haver saído para Lisboa o capitão-mor Francisco de Ornelas. Vinha com poderes de capitão de mar e terra, e governador das justiças em todas as ilhas dos Açores. Trouxe consigo Manuel de Sousa Pacheco, fidalgo da casa real, para ficar como governo do castelo. Constou, pela visita que foi a bordo da armada, que andava junto dos ilhéus, ser o socorro há tanto tempo esperado, e soube o general do estado da ilha; como já se achava reduzido o castelo: e que se tinha enviado à corte notícia deste feliz resultado. Então Saldanha disfarçou do melhor modo que pode a mágoa, que lhe causou esta nova, por lhe escapar a honra que de tal jornada poderia tirar, se porventura achasse o castelo sitiado, e o fizesse render à força das armas.

Chegando ao porto de Angra, salvou e lançou ferro defronte das pontas, enquanto o castelo e a cidade desenvolviam as maiores demonstrações de alegria; e desembarcando em terra, foi recebido com régia pompa, e solenidade, acompanhado da Câmara, nobreza e povo, debaixo do pálio, conduzido à Sé catedral, e introduzido nela com as cerimónias e aparato devidos a semelhantes personagens, o que ele não dispensou .

Depois do assistir a um solene Te Deum, foi conduzido ao castelo S. Filipe, onde o governador interino João de Bettencourt do Vasconcelos lhe entregou as chaves, com as etiquetas do costume . Mostrou-se este fidalgo mui benévolo e afável para todos, como era próprio de sua índole e excelente nobreza, ouvindo a todos com a maior atenção e deferindo-lhes com juízo e acerto; e posto achasse os moradores da cidade divididos em parcialidades, ocasionados pela ambição dos cargos, notando o ânimo de cada um, empregou todos os meios de pacificação e de brandura para os aquietar, evitando quanto lhe foi possível o rigor dos castigos. Contou-se que ele escrevera ao conde de Vila Franca, residente na ilha de S. Miguel, dizendo-lhe: “que mais lhe custava abrandar os corações dos naturais, e tirar a má vontade que tinham uns contra os outros, do que lhe poderia custar o render o castelo, se nele achara inimigo”.

E assim com muita razão se afirma, que a não ser este fidalgo tão generoso e bem intencionado, à vista dos ódios que todos os dias se desenvolviam contra uns e outros, e querendo ele usar da amplitude dos poderes que trazia, decapitara e enforcara muitos; porém a todos pacificou, e compôs, sem molestar pessoa, reputando aquelas paixões como filhas de motivos particulares, e próprias da efervescência dos ânimos, ainda perturbados com o estrondo dos conflitos bélicos, em que de ordinário mais domina o império da força do que o da razão. E na verdade, que destes inveterados ódios nasceram efeitos mui prejudiciais. Murmurou-se abertamente contra os governadores, e outros do conselho de guerra, imputando-lhes culpas, e entretenimentos secretos com os sitiados; e que de propósito queriam demorar o cerco, para que chegasse o auxílio prometido aos castelhanos, com o qual se sustentassem, ou capitulassem mais vantajosamente, obtendo títulos e honras desconhecidos em semelhantes ocasiões. Vendo portanto o general que a presença dos castelhanos, ainda que estavam alojados em quartel cerrado, causava muitos ciúmes e desconfianças aos moradores da ilha, e era motivo de muitas murmurações e animosidade do povo, sempre inquieto, primeiro que tudo, exigiu que lhe mostrassem os artigos da capitulação que se haviam assentado; e achando que se tinham recolhido ao quartel com as armas e peças grossas, e nele metiam guardas, contra o estilo de semelhantes capitulações, pois logo que chegaram ao quartel as deviam largar, as mandou pedir ao mestre de campo D. Álvaro de Viveiros; e recusando ele entregá-las, e argumentando com o capitulado, e palavra real empenhada, lhe deu o general tais razões, em abono das mesmas capitulações estipuladas, e por ele referidas, que o mestre de campo se deixou convencer, entregando-as logo; com que o povo se aquietou inteiramente; e para segurança dos castelhanos lhes mandou o general pôr guardas portuguesas à porta do quartel, onde os nossos lhes iam vender, por seu dinheiro, os mantimentos e outras coisas de primeira necessidade. Para melhor se evitarem algumas dissenções e ataques do povo, que por vezes se tumultuou, proveu no cargo de juiz do povo, em 17 de Maio, o provedor mais velho da casa dos vinte e quatro misteres, Manuel Fernandes do Melo autorizando-o para “andar de vara vermelha , na forma que se costumava em Lisboa; e por ela ser conhecido e buscado quando se tratasse do bem comum e ele o propusesse em câmara, avisando do que sucedesse”.

Mandou outrossim o general se desse execução ao alvará por que el-rei concedeu ao juiz do povo 40$000 réis, na qualidade de recebedor dos dois por cento, atentos os serviços no provimento do castelo, e empréstimos que fizera; e por haver construído à sua custa um caminho para utilidade dos moradores de Angra, no despacho e condução das fazendas desembarcadas no porto . Fez executar e registar os títulos das mercês concedidas a várias pessoas, sobre que andavam algumas dúvidas: como foi a respeito do alvará concedido a Domingos de Paiva, soldado, filho de Manuel Dias Afoito , a quem el-rei, pelos relevantes serviços prestados no ano de 1626, acompanhando as naus da Índia, concedeu o foro de moço de sua câmara, com 460 réis por dia, e três quartas de cevada, como já concedera a Alexandre Coelho, pelos serviços feitos no estado do Brasil desde 1626 até 1629. Mandou cumprir a provisão de 11 de Maio de 1641, pela qual se determinava dar a cada um dos vereadores da Câmara de Angra dois cruzados todas as vezes que fossem nas procissões, e outro tanto por visitarem as fortificações; e a cada um dos misteres 700 réis, como se praticava na ilha de S. Miguel.

E suposto ser coisa bem árdua naquele tempo o encontrar a liberdade e privilégios dos soldados, quanto aos processos em que eles eram partes, ou sobre que respondiam nos conselhos de guerra, parece que a seu requerimento se despediu alvará em 14 de Junho, cassando alguns destes privilégios, e ordenando ao corregedor servisse de auditor da guerra; o que logo o general executou sem hesitação alguma, pois era essa a sua convicção.

Para ocorrer às graves despesas do exército nesta ilha, passou el-rei em 7 de Março regimento a fim de nela se cunhar moeda, e o fez entregar ao general, enviando juntamente com ele o corregedor Gaspar Mouzinho Borba, que unicamente viesse conhecer das denúncias da nova moeda; e que depois do estabelecida a respectiva casa nesta ilha, passasse às outras dos Açores, excepto à do S. Miguel, para nelas verificar a conclusão e cunho da mesma moeda; e para isto enviou dois oficiais de cunho . Numerou então o corregedor e rubricou livros para registar o dinheiro que se ia recolhendo, e saía, passando depois às ilhas acompanhado de algumas pessoas de inteligência. Era o valor da nova moeda o mesmo que em Portugal, a saber: passaram com uma nova marca as moedas de ouro que valiam 1$600 réis ao valor de 3$000 réis; a 60 réis os meios tostões, e corriam neste preço os dois vinténs. A 15 de Maio do 1642 embarcou-se o mestre de campo D. Álvaro de Viveiros, com todos os soldados castelhanos, e mais pessoas de um e outro sexo, que ao todo seriam trezentas. Foram em uma excelente nau inglesa, ajustada a lançá-los ou na Corunha ou em Sevilha.

Da saída dos castelhanos deu parte o general a el-rei, dizendo-lhe também que chegara a esta ilha o patacho da Índia, com grande importância, e as considerações com que o retivera para o levar em sua companhia, quando passasse a Lisboa. Participou mais o que tinha feito e ia fazendo em ordem à defesa e segurança do castelo; e como sossegara os ânimos dos moradores da ilha, inquietos com a presença dos castelhanos e parcialidades entre si, etc. A esta carta respondeu el-rei em 5 de Julho (Livro 3.º do Registo da Câmara de Angra, fl. 299) ordenando-lhe que partisse com a maior brevidade para Lisboa, levando em sua companhia todos os navios que estivessem do viagem para o Reino; e que fizesse escoltar o dito patacho da Índia com a maior segurança. E para que não faltasse no castelo coisa alguma à sua segurança, (já o general havia deferido à Câmara de Angra sobre este objecto) de maneira nenhuma lhe tirasse artilharia, nem munições que estivessem em bom estado e que lhe restituísse a companhia de ordenança, e as guardas que dela saíam; nem também lhe tirasse os canhões, que havia comprado; nem o castelo desse passaportes quando saíam os navios do porto da cidade; e que finalmente não fizesse inovação qualquer no sistema administrativo, com que parecesse receberiam os moradores moléstia e sentimento. Também el-rei escreveu à Câmara da cidade no mesmo sentido (citado Livro do Registo, fl. 197 verso).

Representou a Câmara da cidade ao mesmo general António de Saldanha, em 5 de Julho, para que fortificasse a ilha, e não deixasse levar o dinheiro dela para fora, acrescentando à súplica: que el-rei Filipe levara a artilharia, receando-se dos portugueses, pois que desde a Cidade à Praia haviam nesse tempo 300 peças, e actualmente, não existiam mais de 20; que ele general deixasse ficar as munições já embarcadas, para que não viessem os inimigos atacar a ilha com a fama de estar desguarnecida, como se jactavam os holandeses o fariam, com só quatro mil homens. Atendendo então o general a esta mui justa reclamação, deu princípio a um forte da banda do Zimbreiro, debaixo da cortina do muro que estava mais raso com mar, para que melhor ofendesse o inimigo, se por ali intentasse acometer o castelo. E com o produto da nova moeda, em breve tempo levantou um terço, comprando em toda a ilha quantos cavalos lhe pareceram de melhor préstimo, para duas companhias de cavalaria, que levantou, das quais fez capitães António do Canto de Castro, e um nobre fidalgo da casa do mesmo general, cujo nome não disseram os antigos. Visitou todas as fortificações desta ilha, e mandou reparar os fortes mais necessitados, pondo em perfeito estado de defesa todos os pontos susceptíveis de desembarque, abastecendo o castelo de mantimentos para um ano. Na mesma diligência passou à vila de S. Sebastião, onde foi recebido pelas companhias da ordenança com salvas de mosquetaria; jantou ali e no mesmo dia, acompanhado do seu estado maior e da nobreza da vila, desceu à vila da Praia, que o recebeu com régia solenidade, como se praticara em Angra .

Antes que o general partisse da ilha, deu o regimento, por onde se devia regular o mestre de campo Manuel de Sousa Pacheco, a quem el-rei mandava fica governador e capitão-mor das ilhas Terceiras, com ordenado de 600$000 réis anuais.

Continha-se este regimento em 40 artigos, e era datado em 14 de Agosto. No trigésimo artigo determinava que ficasse extinto o ofício de lealdador dos pasteis, com todos seus oficiais, por lhe constar achar-se acabado o trato e lavoura daquela planta. Determinava outrossim, que os três mil cruzados, consignados para a factura da Sé, se não continuassem a dar, por haver necessidade de fortificar a costa; e porque se davam havia mais de 60 anos, e neste espaço se tinha feito de tal dinheiro muitas despesas supérfluas: portanto, que, concluída a fortificação, tomando-se assento, assinado pelo bispo, corregedor e provedor, se efectuasse o acabamento do templo . Contudo este capítulo foi derrogado em provisão de 2 de Março de 1644, na qual se determinou a continuação da obra, e o pagamento dos três mil cruzados dos direitos do pastel .

Dispostas assim estas e outras muitas coisas, em observância das ordens recebidas, preparou-se o general para se transportar a Lisboa; o que ele participou à Câmara da cidade de Angra, já no princípio do mês de Setembro, levando toda a infantaria e cavalaria que recrutara, nesta e mais ilhas dos Açores: e em pouco tempo, com próspera viagem, fundeou a respectiva armada no Tejo. Logo que se abriu comunicação com Portugal, ajuntou-se na Câmara de Angra a nobreza, clero e povo, com assistência do corregedor Manuel Ferreira Delgado, a fim de escolherem um procurador que , por parte da cidade, fosse requerer o que achasse conveniente. E com efeito recaíram os votos no fidalgo Francisco de Bettencourt Correia e Ávila , morador em Angra, o qual sem perda de tempo se embarcou para a corte, levando vários apontamentos aos quais se deferiu, como se verá no decurso desta obra; dando-se a este procurador assento no 1.º banco, como já estava determinado por el-rei, em atenção aos serviços da cidade de Angra na aclamação e na restauração do castelo.

Em prémio de tão porfiosa e dilatada campanha concedeu el-rei às pessoas que nela se distinguiram tenças, hábitos e mercês, regulando-as não como os pretendentes as requeriam e esperavam , mas sim conforme o merecimento e distinção de cada um.