Anais da Ilha Terceira/IV/VII

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OITAVA ÉPOCA[editar]

CAPÍTULO VII[editar]

Instalação da Junta Provisória e actos da sua gerência. Vinda dos primeiros socorros na fragata Brasileira Isabel. Rebelam-se os povos da ilha Terceira, levando à frente o capitão João Moniz Corte Real, Joaquim de Almeida Tavares, e outros, que todos são desfeitos e postos em debandada junto ao Pico do Seleiro.[editar]

Não obstante as providências e cautelas adoptadas pelo governo interino, encontravam-se em todas as repartições certas dúvidas e embaraços que retardavam sobremaneira a devida marcha dos negócios; e parecia que o mesmo governo em pouco tempo acabaria de perder o resto da força moral com que tão vigorosamente soubera proclamar os direitos d’el-rei D. Pedro IV.

Existia porém, entre os seus membros, o respeitável ancião João José da Cunha Ferraz, de quem tenho faltado, que resoluto e firme em seus princípios, bem de perto alcançava a origem de tamanhos inconvenientes e o perigo eminente da causa pública.

Foi então ele que propôs e instou se nomeassem mais dois membros para comporem o governo, e que tomasse o nome de Junta Provisória, ficando subordinada à Junta estabelecida na cidade do Porto; e para isto fez que, no dia 28 de Agosto, se convocasse a Câmara Municipal da cidade, e que ali requeresse e propusesse a criação da mesma Junta. O que assim se executou pelas três horas da tarde, achando-se presentes os membros do governo interino, o reverendo cabido por seu procurador e todos os comandantes das fortalezas e oficiais superiores, com o fundamento de que devendo julgar-se coacto, e por consequência ilegítimo, o governo do infante D. Miguel, devia igualmente reputar-se incomunicável este com aquele mesmo governo, reconhecendo-se como único e legítimo governo do reino a Junta Provisória, estabelecida na cidade do Porto, visto que se achava reconhecida pelos plenipotenciários do imperador do Brasil e rei de Portugal, em seu manifesto, de 10 de Junho próximo passado.

Sendo unanimemente aprovada esta proposta, ficaram eleitos para compor a junta, o referido dr. Ferraz, o juiz de fora, que servia de corregedor, José Jacinto Valente Farinho, José Quintino Dias, comandante do Batalhão 5.º de Caçadores, e Teotónio de Ornelas Bruges Ávila, que servia de capitão de voluntários. E dando-se a tudo a devida publicidade, exarou-se o auto no livro competente.

Cuidou portanto a Junta desde logo mui seriamente em sustentar e defender a ilha dos inimigos internos e externos, e assentou, conforme o seu plano de defesa, que para o distrito da Vila de S. Sebastião devia mandar logo um destacamento de 20 praças do 5.º de caçadores, comandado por um subalterno, reunindo-se-lhe um cabo e seis soldados de artilharia, formando este distrito as necessárias guardas; que, para o distrito de S. Mateus, na ocasião de rebate, marcharia uma força de 12 praças, comandada por um subalterno, com duas peças de campanha de calibre 3, guarnecidas, com soldados de artilharia e alguns milicianos; e que na linha do norte haveria desde logo, além das vigias nos lugares de Vila Nova e Biscoitos, destacamentos mensais de um sargento, um cabo e seis soldados, para observação, não só das embarcações que aparecessem, como também da conduta dos habitantes daquelas imediações. E com efeito assim se cumpriu.

Como o governo interino, logo que fora instalado na ilha da Madeira e nesta ilha, dera parte a el-rei D. Pedro, imperador do Brasil, pedindo-lhe os necessários socorros com que se pudesse sustentar, imediatamente se passaram as ordens aos seus plenipotenciários, o marquês de Palmela e o visconde de Itabayana, que se achavam em Londres, os quais incessantemente cuidaram de dar as necessárias providências e subministrar os possíveis socorros aos novos governos estabelecidos nas ditas ilhas, começando pela da Madeira, com expressa recomendação de os trazer todos à ilha Terceira, no caso de se não poder desembarcar naquela outra ilha, como de facto aconteceu, por se achar então bloqueada com navios de guerra portugueses; por esta causa voltou sobre a Terceira a nau rasa, ou fragata, brasileira Isabel, em que vinham os socorros, e na quarta-feira, 4 de Setembro, apareceu esta defronte do porto de Angra.

No dia imediato foi visitada pelo respectivo cônsul Gerardo de Oliveira, de quem se soube trazia ofícios e alguns emigrados que vinham ao serviço da Junta Provisória. No dia 6 de Setembro desembarcaram com efeito, os tenentes, José Maria Taborda, António César de Vasconcelos e dois oficiais de marinha com ofícios para a Junta.

Por causa do mau estado de saúde não desembarcou o comandante, como convinha aos negócios da ilha; e por isso, no dia seguinte transportaram-se a bordo da fragata os membros do governo, dr. Ferraz, Teotónio de Ornelas e o secretário Manuel Joaquim Nogueira, com os referidos oficiais, e decidiram, em execução das instruções recebidas do imperador, que sem perda de tempo tomasse o comando de toda a capitania dos Açores o brigadeiro Deocleciano Leão Cabreira, que se achava a bordo, ficando a seu arbítrio a escolha de quatro ou cinco oficiais dos que se achavam ali mais práticos de engenharia e artilharia.

Antes porém que se verificasse o seu desembarque, oficiou o novo general à Junta e ao comandante da fragata nos termos que se evidenciam do documento anexo (Documento T).

No dia 8 de Setembro desembarcou o general com o possível aparato, salvas e repiques de sinos das igrejas da cidade, e com as mais demonstrações de regozijo público, e no dia 9 tomou posse da presidência do governo e do comando geral das armas, pondo-se à sua disposição todos os recursos enviados de Londres, a saber: algum dinheiro, armas e munições de guerra e vários oficiais emigrados, entre os quais se contavam: Sebastião Drago Cabreira, irmão do general; o coronel José António da Silva Torres; o coronel Raivoso; Sá Camelo; Narciso de Sá Nogueira e seu irmão; e outros, que já me não lembram; assim como o general Moura; o tenente D. Vasco Guterres; Jorge Wanzeller; Bernardo Mendes da Costa; e o médico José Gomes Braklamii.

Todos estes tomaram no dia 6 a resolução de ficar na ilha; sendo militares de muita experiência e consideração1; o que tudo foi de grandiosa estima em razão da falta que havia, principalmente de oficialidade, no batalhão de caçadores, e pelo desalento em que se achavam os defensores da ilha. Desalento assaz reconhecido pelo recente acontecimento do dia 5 de Setembro, em que, tocando-se a rebate, por se supor que já apareciam navios da esquadra realista que viera combater a ilha da Madeira2, devendo comparecer todos os militares a pegar em armas e acudir a seus postos, viu-se, com bastante sobressalto, que os da 2.ª e 3.ª linha se não apresentaram; e contudo não foi este procedimento suficiente para que os soldados do Batalhão 5.º de Caçadores desanimassem; antes pelo contrário se houveram com o maior entusiasmo e denodo, esperando a ocasião de se assinalarem com mais uma vitória.

Em consequência da posse do novo general cessaram as funções do comandante das armas Joaquim de Freitas Aragão, o qual se despediu das tropas com muitos agradecimentos da boa disciplina e obediência às suas ordens. Ao mesmo tempo que o general Cabreira, desejando conciliar os ânimos dos soldados, como é costume, e atrair a atenção de todos os habitantes da ilha com aquelas maneiras agradáveis e insinuantes que lhe eram muito naturais, lhes proclamou nos termos seguintes: “Que ele se lisonjeava em extremo de ver-se nas circunstâncias de poder cooperar para a sustentação da legitimidade d’el-rei o Senhor D. Pedro IV nesta importante parte dos domínios portugueses; e confiado no nobre e exemplar comportamento dos comandantes dos corpos, governadores, comandantes militares dos diversos departamentos, assim como dos oficiais inferiores e soldados dos diferentes corpos desta capitania; que não ousava duvidar, nem por momentos, de qual seria o resultado da heróica disputa em que se achavam empenhados”.

Mandou outrossim o mesmo general fazer pública a sua satisfação pela vinda da fragata brasileira; e por ser seu empregado, por ordem do governo, o coronel José António da Silva Torres; manifestando assim um extremo júbilo, e contando com o triunfo da causa em presença deste e de outros iguais defensores3.

Logo que se receberam estes socorros e que o general se apossou das armas, cuidou a Junta Provisória de enviar ao Rio de Janeiro um de seus membros para mais de perto informar ao imperador de qual o estado da ilha e para solicitar de viva voz outros socorros indispensáveis. Para isto escolheu o seu secretário, o bacharel Manuel Joaquim Nogueira, o qual partiu no dia 24 de Setembro, indo em sua companhia o valente José Inácio Silveira, de quem já falei4; dirigindo-se porém a Inglaterra, este deputado ali foi achar a grata notícia de que el-rei D. Pedro havia já totalmente abdicado a coroa de Portugal em sua filha D. Maria II.

Da demasiada licença da tropa se queixavam amargamente os povos e os juízes territoriais, os quais, além do mau tratamento que recebiam para suprir a falta das coisas exigidas nos aboletamentos diários, demasiadas e impertinentes requisições de todo o necessário à sustentação dos soldados e oficiais, as tiravam do uso de suas casas e famílias, como eram lenha, roupa de cama; trem de cozinha e muitos outros bens; não falando nas faxinas efectivas, carros, bestas, forragens que se lhes pediam e extorquiam à força.

A todos estes excessos ocorreu o general impedindo, quanto era possível as violências contra o direito de propriedade, sem contudo faltar ao necessário das tropas em marcha. No seu tempo se estabeleceu mais pronta e fácil comunicação dos telégrafos: e teve lugar o primeiro trabalho da imprensa, onde somente se copiavam as ordens do governo. Trabalhou desde logo para que as averiguações sobre factos de rebelião se fizessem com humanidade e debaixo de certas fórmulas, que desviassem para longe o ódio e a crueza com que até ali se praticavam nas praças públicas, por meio do terrível suplício das varadas, esse castigo bárbaro, que não diferia muito da antiga tortura e da infâmia do baraço e cutelo; mas, apesar dos seus mais vigilantes cuidados, mais tarde se deixou de usar, com o fundamento de incutir algum medo aos muitos desertores e pessoas que acintosamente auxiliavam os facciosos, por não se persuadirem que jamais fosse possível que semelhante causa tivesse o efeito projectado.

Desejando, outrossim, a cooperação de todos os militares, e não ignorando quanto o louvor justamente empregado adianta as acções nobres, elogiou e agradeceu ao comandante da companhia de voluntários o zelo com que se portara na organização da mesma, convidando novamente os habitantes da ilha para que se alistassem, mostrando-lhes as vantagens resultantes do mesmo alistamento, e a brevidade do serviço que tinham de fazer, com o privilégio de escolherem à sua vontade os respectivos oficiais: e que desejava criar outro igual corpo de artilheiros, oferecendo-se ele mesmo a ser o comandante, pois era esta a sua arma. Incumbiu então o alistamento ao inspector das ordenanças José Maria de Carvalhal, o qual, apesar de sua grande actividade, mui pouco adiantou neste negócio.

Logo que entrou a servir o mesmo general, fez-se uma estrondosa promoção em todos os corpos da 1.ª, 2.ª e 3:ª linha5 e parece que nesta foram contemplados os influentes nos feitos do dia 22 de Junho, segundo a proposta da Junta Provisória, como se disse no capítulo II.

Determinou além disto o general quantos e quais os distritos que ficavam estabelecidos.

Segundo o novo plano, compreendia o da Praia, os fortes dos números 31 a 17 no Porto Martins, com os respectivos destacamentos, dando lhes o regimento por onde se deviam regular, com 50 praças, rendidas mensalmente. Demarcou o distrito da Vila de S. Sebastião, com os fortes do número 1 até 16, com 77 praças.

E com todas estas providências e cautelas não desalentavam as esperanças dos inimigos da legitimidade, antes à porfia subornavam os soldados, que continuamente desertavam do Castelo, acolhendo se às freguesias mais remotas da ilha e às montanhas até que achassem ocasião de se incorporar com os chefes do partido realista, que também andavam homiziadas, no sentido de se rebelarem contra o governo estabelecido.

Querendo também o general persuadir aos povos quais as intenções em que se achava de levar as coisas pelos meios de pacificação e suavidade, proclamou-lhes a obediência às leis e o respeito às autoridades, aconselhando-lhes que não dessem ouvidos a seduções e asilo a desertores, declarando-lhes as rigorosas penas em que incorreriam; porém todos estes esforços e zelosa caridade aceitavam eles com desprezo e vilipêndio de seu autor, chamando-lhe impostor e cobarde.

Tais eram os progressos do sistema constitucional estabelecido nesta ilha enquanto os seus inimigos, ainda que dispersos e mal sucedidos no dia 22 de Junho, se faziam respeitar pela firmeza de seus princípios, reunindo vontades e ganhando simpatias por uma maneira inexplicável; só lhes faltava um cabeça, um chefe que os chamasse a campo, e ansiosos esperavam essa ocasião, que não tardou muito.

Não faltavam descontentes, e muitos dos principais da ilha, senhores de grandes casas, proprietários e negociantes, tinham, havia alguns anos, mostrado um grande rancor e ódio entranhável à causa da liberdade pelos bem notórios fundamentos de que livremente se tem falado nestes Anais; e não obstante a proscrição de muitos deles e o terror em que viviam outros, não faltavam alguns que se quisessem arriscar à empresa, especialmente os compreendidos nos acontecimentos dos dias 17 e 18 de Maio e 22 de Junho. E assim, no intento de suplantar o sistema estabelecido e vingar ofensas recebidas, sentimento que naturalmente impera sobre o coração humano, valeram-se de João Moniz Corte Real que, tendo-se retirado à sua quinta de Belém, depois do desastroso acontecimento do referido dia 22 de Junho, julgaram ser o mais próprio a dirigi-los e o foram procurar, fazendo-lhe ver, com palavras bem concertadas, a necessidade de reagir contra aquele então insignificante número de pessoas, qual era o dos liberais com os soldados do Batalhão 5.º de Caçadores — que por meio de tantas e tais insolências, diziam eles, e vexames dos povos se tinham arrogado o poder de decidir das vidas e fazendas dos cidadãos beneméritos e honrados terceirenses — parecendo-lhes indecoroso, que achando-se Portugal sujeito ao novo rei D. Miguel, e as mais ilhas deste arquipélago, somente na ilha Terceira, se jurasse e obedecesse a outro monarca — por absoluta vontade de tais e de tão poucos indivíduos — nos quais de facto não existia algum amor pátrio, nem convicção de princípios, mas antes ardia o desejo de vinganças particulares e vistas em futuros interesses de cada um dos “sectários da usurpação” — que tal era o título com que se munia D. Pedro, imperador do Brasil, chamando seu a um reino e domínios que de nenhuma forma lhe pertenciam.

Acrescentavam que estes partidistas e verdadeiros rebeldes, com receio de serem punidos algum dia por sua íntima adesão a tais princípios, lhes faziam frente e vociferavam proclamando-se verdadeiros amantes da constituição e do rei. Que era assaz vergonhoso o considerar, como homens nobres, descendentes de ilustres guerreiros e eles mesmos com os necessários conhecimentos, se dessem por convencidos nas actuais circunstâncias e se tornassem indiferentes em uma questão de tamanha importância6.

Com estes e iguais argumentos que em semelhantes casos emprega a sedução e astúcia dos homens, decidiu-se João Moniz a tomar parte na reacção, confiado nos recursos que à primeira vista lhe pareciam exequíveis. Não deixava de o assustar o ardor e rapidez com que se procedia na devassa contra os compreendidos nos movimentos dos dias 18 de Maio e 22 de Junho de 1828, pelos quais já nesse tempo haviam algumas pessoas indiciadas7; intimidava-o o desejo das vinganças, o exílio de tantos que por iguais motivos andavam homiziadas longe de suas famílias e as severas punições e castigos que todos os dias se viam praticar; porém, revoltava-se o espírito ao ver que tão poucos indivíduos quisessem assenhorear-se de uma ilha inteira e sustentar direitos de sucessão régia altamente questionados e decididos pela maioria nacional.

Não era enfim de sua convicção obedecer ao governo estabelecido na ilha Terceira, por quanto o considerava ilegal e intruso, desde que fora deposto o capitão-general Manuel Vieira de Albuquerque e Touvar, à voz de quem ele obedecera como autoridade legitimamente constituída.

Entendia, além disto, Moniz, que, na qualidade de militar comissionado pelo mesmo ex-general, lhe convinha corresponder-se com os governadores das mais ilhas deste arquipélago e assim também com os outros oficiais empregados no dia 21 de Junho pelo extinto governo-geral, oficiando-lhes para que lhes enviassem alguns socorros de gente e munições de guerra com que ele se propusesse debelar o governo estabelecido, conforme o plano que com os seus adjuntos havia traçado, o qual vinha a ser: — receber todos os desertores do Batalhão 5.º de Caçadores e as mais pessoas que se lhe apresentassem e se achavam reunidos, a esse tempo, entre o Posto Santo e a Terra Chão — assim como também, contando com os oficiais deportados nas ilhas de baixo, formar um corpo com que se revoltasse, depondo o governo e proclamando o sistema transacto e o seu rei absoluto D. Miguel I.

Aprovado o plano, não se demorou João Moniz em oficiar a António Isidoro de Morais Âncora, que fora deportado e que agora se achava governador na ilha do Faial, para que este lhe enviasse 600 armas e 120.000 cartuxos embalados e com as competentes pederneiras; recomendando-lhe que o desembarque destas munições se faria no porto dos Biscoitos da Cruz, que fica ao norte da ilha Terceira, apoiado por ele Moniz com os referidos desertores e mais alguma gente que se lhe havia de reunir.

Isto assim resolvido, enviou à ilha do Faial a Carlos José da Silveira, oficial da secretaria, que furtivamente saiu com Joaquim de Almeida, às 11 horas da noite de 18 de Setembro, pelo porto das Cinco Ribeiras em um barco de pescaria da freguesia de S. Mateus, a cuja tripulação o mesmo Almeida pagou muito bem para irem nesta diligência; e a suas famílias deixou mesada prevenindo qualquer falta: fazendo tudo isto à sua custa com outras muitas e avultadas despesas, que foram ocorrendo no progresso desta árdua empresa.

Navegou o barco com próspera viagem em direitura à Vila do Topo, na ilha de S. Jorge, e poucos dias depois passaram os dois emissários à referida ilha do Faial, onde Joaquim de Almeida foi muito bem recebido e dali enviou outros ofícios para a ilha de S. Miguel com participação do projecto e do andamento em que iam os negócios. Todas estas ilhas e as mais deste arquipélago se achavam obedientes ao governo do infante a quem tinham aclamado por seu rei, e naquela de S. Miguel achava-se constituído o governo de que era chefe, como em outro lugar se disse, o general Henrique da Silva Prego.

Logo que chegou a fragata brasileira de Londres com os socorros já relatados, e apenas apareceu em frente da ilha pela parte da Praia, tinha Joaquim Coelho da Rocha8 feito um triste ensaio da sua insubordinação contra a causa da liberdade, armando-se com alguns soldados desertores e outras pessoas com que marchou até à freguesia das Lajes no intento de surpreender o destacamento que ali se achava, por se dizer, com alguma probabilidade, ser aquela embarcação uma da esquadra que viera contra a ilha da Madeira; e tanto isto foi comunicado à Vila da Praia, saíram alguns oficiais de justiça com parte do destacamento para o prenderem. Mas antes que esta força se aproximasse, retiraram-se os amotinados sem que então respirasse, quem os autorizara a pôr-se em campo para um tal fim, aliciando o dito Rocha todas as pessoas que encontrava para que o seguissem. E sem embargo de que nada efectuou com esse tumulto, sempre deu a conhecer a existência de um foco de onde podia romper a mais considerável explosão.

Enquanto porém o chefe João Moniz solicitava os socorros de que tenho faltado, o general Cabreira não perdia um momento para os impedir. Avisava o comandante da fragata que apertasse o bloqueio, porém ele em nada interferia. Mandava também de guarda costa duas barcas canhoneiras para ver se davam caça às correspondências das ilhas todas, donde a cada momento se esperavam recursos9 a favor dos facciosos; porém tudo foi baldado, porque apesar de todos os meios para lhe obstar ao desembarque e dos castigos que se prometiam e davam aos infractores das ordens do governo, indiciados no crime de rebeldia, achava este não poder suspender a torrente de revoltosos movimentos que, de dia para dia, ameaçavam um rompimento final.

Vendo portanto o perigo das coisas, em razão dos receios que se poderiam oferecer aos inimigos, sem embargo das penas decretadas contra os que os auxiliassem; e convencido de que nenhum prémio era capaz de lhe fazer entregar qualquer dos chefes revoltosos, antes pelo contrário em toda a parte os asilava o povo da ilha, enviou o tenente-coronel João Silveira Machado, que lhe servia de ajudante de ordens, para que de sua parte procurasse a João Moniz Corte Real e lhe propusesse certos partidos e ofertas bem vantajosas aos seus interesses, a fim de que ele e os seus desistissem da empresa meditada e se lhe viessem reunir; porém não era possível o aceitar uma tal proposta, nem Moniz queria anuir a ela, não só porque divergiam em política, senão porque sem dúvida o reputariam de traidor e infiel a seus amigos, irmãos de armas e pessoas encarregadas de para ele solicitar os recursos de que muito carecia.

No 1.º de Outubro, quarta-feira, chegaram à ilha os enviados do Faial e entraram no porto dos Biscoitos da Cruz11, trazendo um mesquinho auxílio que mal se parecia com a requisição feita, pois somente o governador lhe enviava pouco mais de 200 espingardas quase todas incapazes de servir; cartuxos e algumas balas, mas nenhuma pólvora; e nada de soldados, nem de oficiais, de tantos que pelas ilhas se achavam.

Quando Moniz chegou ao porto, com Eustáquio Francisco de Andrade, capitão que fora de milícias, já o armamento e munições estavam desembarcados e o escaler de vela, porque se estivesse presente, é de supor que de nenhuma forma aceitaria a remessa, antes pelo contrário abandonaria o projecto daquela arriscada empresa, que desde logo muitos dos seus consideraram por temerária.

Naquele estado tão pouco lisonjeiro, certamente, se achavam as coisas quando o veio procurar o seu parente João Moniz de Sá, um dos mais abastados proprietários da referida freguesia dos Biscoitos, e com seu auxílio fez o capitão João Moniz transportar dali o péssimo armamento para a margem esquerda da ribeira da Lapa, junto do sítio da Arrochela, caminho dos Altares, posição esta que lhe pareceu a mais vantajosa para a reunião projectada, e também para repelir qualquer encontro do inimigo.

Porque era tempo da colheita dos milhos, foi necessário muito trabalho para reunir os soldados, assim de milícias como dos outros corpos extintos, por andarem ocupados na mesma colheita.

Nesta parte João Moniz viu com bastante pesar o quanto era dificultoso, e quase impossível, levar a efeito a reunião daquelas facções e muito mais hostilizar os destacamentos que se achavam dispersos na ilha; o que de certo o faria desistir, a não se lembrar que o governo de Portugal apreciaria este ponto e se não esqueceria das vantagens e circunstâncias da Terceira, para a sustentação da sua causa; e que a esquadra destinada à conquista da ilha da Madeira viria sujeitar o Castelo de S. João Baptista, com as mais forças auxiliares, quando se verificasse o sítio para que os liberais se dispunham, continuando, como se via, a recolher dentro nele as coisas necessárias à sua manutenção: e nesta esperança, ao seu ver bem fundada, se sustentou, conseguindo, já próximo da noite, pôr em armas pouco mais de 90 soldados que fez acampar no dito sítio da Arrochela.

Logo que anoiteceu foi Joaquim de Almeida aproximando-se da freguesia dos Biscoitos, em ponto avançado com alguns soldados, esperando ser atacado por alguma força inimiga desde que daquela freguesia se retirara José Borges do Canto, e seu familiar Joaquim José Gato, levando à Praia a notícia daquela reunião.

Comandava então ali o destacamento de caçadores do 5.º o capitão de artilharia Luiz Manuel de Morais Rego, que apenas soube o que se passava nos Biscoitos oficiou ao general11 dando-lhe parte de não sair a dispersar o ajuntamento, pelo perigo em que ficava aquele ponto, nem certamente ele tinha forças para tanto, ainda que era um dos melhores militares que na ilha se achavam.

Inteirado o governo do que se passava, redobrou as guardas e foi tomando todas as medidas convenientes para uma próxima campanha, considerando mui perigoso aos seus destacamentos uma semelhante reunião.

Em todo aquele dia, e no imediato, 2 de Outubro, foi entrando muita gente da maior parte das freguesias da ilha, principalmente das circunvizinhas e tomando lugar no campo dos amotinados, havendo precedido avisos dos chefes João Moniz Corte Real e Joaquim de Almeida Tavares e simultaneamente por mandado dos oficiais das extintas milícias e ordenanças, de forma que toda e qualquer pessoa se considerava naquele tempo habilitada para avisar soldados e até se arrogava muitas vezes o direito de ameaçar e prender os desobedientes e remissos — por ser coisa, diziam, do real serviço.

Fez-se por consequência nestes dias um numerosíssimo ajuntamento de gente, que ascendia a 1.500 homens, todos armados de espingardas, espadas, chuços, foices, e outras armas. Cresceu o entusiasmo e uma estranha alegria, sem que lhes faltasse coisa alguma de mantimentos pão, carne e vinho, e também dinheiro para o imediato pagamento de soldo aos soldados e paisanos desta milícia, e empresa, à qual concorreram as pessoas mais distintas das freguesias circunvizinhas, animando com suas palavras e presença os novos guerreiros, que, em vista de tão grande número, contavam já como certa a vitória.

Nem lhe faltavam em toda a parte espiões, que descobriam e delatavam tudo quanto se passava nas sessões da Junta Provisória, nos conselhos de guerra, dentro na cidade e nas vilas12, e finalmente em toda a ilha: e até passou por verdade que por muitas vezes do castelo saíram munições de guerra ao poder dos revoltosos; a voz era pública, e disto se jactavam muitas pessoas desafectas ao sistema constitucional, esperando a cada momento se verificasse lá mesmo alguma reacção contra a Junta Provisória.

Sabendo o general que o plano do inimigo consistia, primeiro que tudo, em desarmar os destacamentos que se achavam nos diferentes pontos da ilha, marchar para a Vila da Praia e nela restabelecer o governo do infante D. Miguel, convocou um conselho militar, em que, depois de muitos debates13, se decidiu partisse uma força suficiente, em duas divisões, a dispersar a reunião daquela gente que se achava nos Biscoitos; e que uma delas, composta de 20 soldados, fosse em volta da ilha, pela parte de oeste e a outra de igual número marchasse em direcção à dita freguesia, que fica ao norte da ilha, tomando a estrada pelo Pico da Bagacina.

Saiu com efeito o primeiro destes destacamentos, comandado pelo alferes Luiz Vilares de Andrade, e chegando à povoação onde se achava acampado o inimigo encontrou Joaquim de Almeida que, à frente de alguns soldados, o procurava pela Canada do Caldeira. Irrompeu então o fogo, onde os caçadores não deixariam de levar a vitória pelo valor com que por algum tempo se defenderam; mas sobrevindo João Moniz em favor dos seus com um reforço bem armado, acrescendo além disto a situação do lugar que era o mais conveniente para emboscadas, viram-se aqueles obrigados a ceder o campo, ficando-lhe dois soldados gravemente feridos; e ali foram todos finalmente desarmados e presos em uma casa à disposição do tenente Joaquim Coelho da Rocha, de quem já falei.

O outro destacamento que saíra em volta da ilha pelo portão de S. Pedro da cidade era comandado pelo capitão Guedes, no destino de surpreender o armamento desembarcado no porto daquela freguesia dos Biscoitos, e chegou somente até à igreja de S. Roque dos Altares. Logo que se acabou o conflito com o primeiro destacamento, correu Joaquim de Almeida a encontrar-se com este segundo, e depois de alguma resistência conseguiu desarmá-lo, perseguindo a toda a brida13 o comandante, que só pôde escapar-se até o sítio denominado as Casas Novas, já na freguesia da Serreta.

Feito prisioneiro este destacamento, foi recolhido à mesma casa em que se achava o primeiro e as armas se entregaram aos soldados inimigos. Também os oficiais foram ali guardados pelo referido tenente Joaquim Coelho da Rocha o qual, abusando do seu ofício, os insultou com todo o género de palavras de que era capaz o seu génio altivo e petulante e arrancando-lhes as bandas lhes pedia conta dos procedimentos transactos, dando bem a conhecer, que a não respeitar muito o capitão Moniz, lhes imporia a ultima mão, apesar de prisioneiros de guerra: acção cruel e tão vil que lhe granjeou o ódio de todos quantos a presenciaram, admirando pelo contrário a moderação do chefe daquele partido e o seu bom e caritativo proceder para com estes e com os mais prisioneiros de guerra.

Tal era o estado das coisas no campo dos amotinados, enquanto, recolhidos na cidade, os liberais não só receavam pela vida dos prisioneiros e pela falta das suas armas como também pelo muito que ia crescendo a reunião dos povos naquele ponto, fazendo cada vez mais arriscada a causa constitucional, em que se achavam empenhados.

Muito se afligira também o general Cabreira com estas notícias, temendo as necessárias consequências, vendo amotinado um povo sem experiência da guerra de que precisamente havia de ser vítima; informado com exactidão de que, sendo ele naturalmente dócil, só agora, pelas sugestões do partido realista, se aventurava a ter parte numa semelhante revolta quando bem lhe conviria o sossego e a útil aplicação a seus negócios agrícolas. Da maneira porque se lhe figurava o combate e surpresa daqueles destacamentos no dia antecedente inferia, que, ou mui respeitável era a força dos adversários, ou mui fraca a resistência e o ânimo dos comandantes e soldados, que grande falta lhe fariam no corpo do batalhão.

Por esta ocasião o foram procurar vários indivíduos, paisanos e militares, requerendo-lhe atacasse o inimigo com todas as forças para o dispersar de uma vez, impedindo-lhe um maior ajuntamento e oferecendo-se-lhe ao mesmo tempo para, no enquanto, guardarem e guarnecerem o castelo principal, ao que em tudo parecia o general indeciso e duvidoso, desculpando-se com o perigo da marcha por estradas desconhecidas e por montanhas e matos quais inacessíveis; temendo, principalmente, o perigo de vida em que se achavam os prisioneiros que por vingança podiam ser assassinados; e, sem embargo de ter contra si a maior parte dos votos da oficialidade, nem se venceu que os paisanos e voluntários presidiassem o castelo, nem que naquele dia saíssem todas as forças a combater o inimigo: — deferiu-se para no dia seguinte se tomar o acordo mais conveniente, conforme as ocorrências o demandassem, não sem grande impaciência dos soldados, que, à porfia iam oferecer-se para comporem a divisão expedicionária, a fim de resgatarem seus camaradas, que tinham por muito desprezo o haverem sido presos em uma revolta daquela natureza sem primeiro vingarem o crédito do corpo a que pertenciam.

Afligia-se também o general por saber que o inimigo ia alojar-se na Vila da Praia, ponto que sem dúvida seria evacuado pelo destacamento que lá se achava, e que muito bem convinha para nele se conservar qualquer força dirigindo dali as operações convenientes por mar e por terra.

Pelo que desde logo assentou, devia destacar as possíveis forças, bloqueando o porto com as duas barcas canhoneiras14 em presença da fragata brasileira, cuja resolução para tomar parte nos acontecimentos da ilha ainda não era de todo sabida pelos realistas.

Na madrugada do dia 2 de Outubro marchou com efeito essa multidão de gente que constituía a reunião na mencionada freguesia dos Biscoitos ao norte da ilha, e distante da Vila da Praia 5 léguas, saindo pela estrada da beira-mar até à freguesia da Agualva, no intento de tornar o caminho de cima, que vai dar ao lado da serra do Paul, e ir surpreender o destacamento da mesma Vila; mas pelas falsas notícias recebidas pelo capitão Moniz de que a Vila já fora evacuada, mudou o plano dirigindo-se a ela pela estrada debaixo.

Na passagem das diferentes freguesias ajuntaram-se-lhe muitas pessoas de livre vontade, trazendo as armas que possuíam. Todavia fizeram-se algumas prisões arbitrárias em indivíduos suspeitos, como foram a Mateus Borges do Canto, José Borges seu irmão, e a Joaquim José seu familiar, que andando homiziados tiveram a simplicidade de se ir entregar ao serviço de seus inimigos, pagando-se-lhes então com serem conduzidos, guardados e escoltados com os demais prisioneiros de guerra.

No lugar da Vila Nova prenderam os padres Joaquim Augusto, que servia de beneficiado na igreja de Santo Espírito, e o cura Agostinho de Lemos, por serem geralmente reconhecidos como inimigos do sistema despótico.

Cometeram-se igualmente nesta marcha outros excessos que não merecem relatar-se nesta obra, por serem praticados por pessoas do povo, seduzidas com lisonjeiras esperanças de um melhor futuro, e pela usada inclinação dos homens a vinganças de coisas particulares, como é bem sabido em semelhantes ocasiões.

Então, sabendo o comandante do destacamento que se achava na Praia, como os amotinados se dirigiam a surpreendê-lo, tendo feito recolher ao Castelo de S. João Baptista quantas munições de guerra, armas e artilharia, convinham retirar por lhe não servirem na defesa daquele ponto, marchou a retirar-se na cidade, enquanto os habitantes da Vila se conservavam pacificamente, prontos a franquear as portas à multidão expedicionária que, proclamando-se libertadora, sem ordem e na maior confusão deu entrada na praça e em pouco tempo atulhou as ruas da mesma Vila.

Aquartelou-se uma grande parte nos conventos de S. Francisco e da Graça: outra pernoitou pelas casas dos moradores e pelas da alfândega; e todos com a maior satisfação, como se nada tivessem a recear, ou se tudo aquilo fosse uma perfeita romaria.

Concorriam nesta reunião grande parte dos moradores de toda a ilha, não somente pessoas do povo, senão dos principies e mais influentes, com alguns eclesiásticos, os capitães e mais oficiais das milícias e ordenanças, assim os demitidos como os novamente propostos, que, ou por aviso dos cabos de esquadra e soldados ou por mandado dos oficiais de justiça, espontaneamente acharam de um estrito dever o comparecer naquele festivo acto nacional.

Fez-se o quartel-general na casa da Câmara, de onde se expediam as ordens necessárias, e ali se achava o quartel-mestre Francisco de Paula da Silva, negociante da praça da cidade. Já depois da noite foram chamados os vereadores e mais oficiais da Câmara, pessoas principais e autoridades da Vila, assim seculares como eclesiásticas, e em presença de todos, com assistência da oficialidade, se exarou um auto no livro das vereações, pelo qual se havia por nulo e de nenhum efeito o que se fizera no dia 22 de Junho, relativo aos factos praticados em Angra pelo batalhão de caçadores no dia 22, e foi por todos mui cordialmente assinado.

Ao mesmo, e com juramento, anuíram coactos os oficiais prisioneiros, aos quais nesta ocasião entregaram as espadas e as bandas que lhes tinham sido arrancadas nos dias antecedentes. Em resultado, ficaram nomeados, por voto geral membros do governo interino, o cónego João José Belo e o ex-corregedor Francisco José Pacheco, com o brigadeiro D. Inácio de Castil, aos quais imediatamente se dizia dar parte.

E para que o general Cabreira se resolvesse a entregar-se com as tropas do seu comando estacionadas no Castelo de S. João Baptista, assentou o capitão Moniz com os do conselho, em execução final do referido auto, enviar-lhe um emissário com parte oficial do estado destas coisas, exigindo anuísse à aclamação d’el-rei D. Miguel I, ponderando-lhe o quanto convinha evitar desgostos de pessoas e famílias, pois que ali se proclamavam os princípios que então vogavam na Europa em oposição das instituições liberais.

Escolheram então para ser o emissário a João de Sousa Nunes, capitão de ordenanças no Cabo da Praia, que de facto partiu com a parte oficial; chegando porém à Vila de S Sebastião, o fez apear tumultuosamente um José Machado Pereira, oficial de sapateiro, que ali, com outros indivíduos de igual porte, davam ordens em nome do novo rei15, e o substituíram para o mesmo fim por José Machado Homem da Costa, ex-capitão de ordenanças da mesma Vila, o qual, fardando-se muito a seu prazer, por entender que disto lhe proviria uma boa reputação e que lhe seria restituído o mesmo cargo de que fora exautorado: persuadido além disto de que se lhe guardaria o privilégio de embaixador, aceitou a missão e deu entrada no castelo já de noite, mas apenas recolheu dentro das portas e entregou o ofício, logo com muito desprezo o desarmaram e lançaram em uma medonha prisão junto das mesmas portas, quase privado de luz e proibido de comunicar com pessoa alguma. Conservando-se ali mais de 24 horas sem comer nem beber16, havendo-se desta maneira por bem respondida a embaixada que trouxera.

Em todo o dia 3 de Outubro continuou a entrar na Vila da Praia inumerável povo de toda a ilha e pessoas distintas que se iam incorporar nas tropas realistas, suprindo alternadamente a falta das muitas que durante a noite daquele mesmo dia se haviam retirado a suas casas, receando funestos resultados desta campanha.

Cuidou-se então na resenha da gente de guerra, distribuindo-se por ela 200 armas que se achavam capazes de entrar em fogo, a maior parte das quais se acabavam de prontificar ali com grande custo pelos serralheiros da vila17. Estas armas se entregaram aos soldados mais experimentados na guerra.

Com igual cuidado tratou o capitão Moniz de ver se poderia enviar alguma embarcação à ilha de S. Miguel, de onde não tivera até ali resposta alguma, participando o estado das coisas ao capitão-general destas ilhas que, já dissemos, tinha nela sua residência, pedindo-lhe o possível auxílio: e todavia não pôde vencer as dificuldades que se lhe opuseram ao intento, antes por este e outros mais factos se devia persuadir Moniz de que a fortuna lhe era adversa e que todos os elementos, por assim dizer, o desfavoreciam ou conspiravam contra ele.

Distinguiram-se no seu campo, como oficiais de melhor préstimo, os capitães José Borges Escôto18, João Moniz de Sá, Francisco Caetano, Mateus Pamplona Corte Real, o tenente Joaquim Coelho da Rocha, João Baptista Ribeiro, António de Sousa da Costa Evangelho, José Narciso Parreira, Joaquim Coelho de Meneses, Francisco Martins Codorniz e o capitão Enes19.

Havia, além destes oficiais, seguramente 3.000 homens armados de espadas, foices, dardos e espingardas, ainda que em péssimo estado; e em todos estes combatentes reinava o entusiasmo e o decidido amor para sustentar os “inauferíveis direito” do seu proclamado rei D. Miguel I.

Em pouco tempo soube o capitão Moniz o mau sucesso da embaixada ao Castelo de S. João Baptista. Durante a noite pôs vedetas em todos os caminhos e entradas da Praia, onde incessante continuava nos preparativos para receber o inimigo, que, assentou em conselho, devia ir esperar ao cume da Serra do Paul, como foi, por ser esta posição a mais vantajosa, auxiliada por uma emboscada que se podia fazer no pinhal do capitão-mor João Sieuve; vendo porém que o inimigo não chegava, ao romper do dia 4 de Outubro retirou à dita Vila insistindo no mesmo projecto.

Ali soube logo de manhã, por João Baptista Correia de Ávila, que um corpo de tropa do batalhão de caçadores se preparava no castelo para vir dispersar a reunião, e castigar os seus autores. Preciso é confessar, por crédito da história, que o grande concurso de gente armada, que andava dentro na Vila e nas suas imediações persuadia intimamente os néscios da arte militar de que o resultado da empresa seria em favor desta multidão; e por isso as autoridades eclesiásticas e civis e os corpos monacais da mesma Vila não cessavam de prestar os mais relevantes serviços à causa da realeza, distinguindo-se em tudo e por tudo o juiz ordinário Francisco António Ramalho de Medeiros.

No mesmo dia, sábado, 4 de Outubro, às 11 horas da manhã, certificou-se pelas guardas avançadas e soldados de cavalo que cercavam as estradas até aos Cinco Picos, que vinha com efeito um destacamento procurá-lo e que a fragata brasileira se aproximava da baía da Praia em auxílio daquela força, cuja marcha se fazia pela estrada de cima.

Determinou então saíssem a esperá-la com as respectivas divisões Eustáquio Francisco de Andrade, Mateus Pamplona, Joaquim de Almeida, João Moniz de Sá, Joaquim Coelho da Rocha, José Borges Escoto, e outros mais, enquanto ele por se achar gravemente aflito e com acesso de febre, em razão da perna que tinha deslocado impedindo-o para montar a cavalo, conduzido nos braços de alguns homens se retirou à Serra da Praia, que fica a leste da Vila, no intento de dar aquelas providências que fossem compatíveis ou salvar a vida no caso de se perder a acção.

Às 10 horas do dia tinha recebido ordem o capitão António Homem da Costa Noronha para imediatamente prontificar meia brigada de artilharia que devia fazer marchar em frente do palácio do general Cabreira. E da mesma forma ordenou este ao major José Quintino Dias, governador do castelo, que despedisse para o mesmo posto uma força composta de 150 praças bem municiadas. O que pontualmente se executou.

Partiu esta força pela estrada de cima, levando à frente o mesmo general Deocleciano Leão Cabreira, o coronel José António da Silva Torres, na qualidade de comandante da divisão, o capitão José Maria Taborda, comandante de infantaria, e o comandante em geral de artilharia, o capitão Luiz Manuel de Morais Rego; porém, a uma légua de marcha, assentou a oficialidade não ser prudente que o general se desviasse da cidade, por ser nela indispensável a sua assistência.

Em consequência tomou o comando geral o dito coronel Torres, que, seguindo o seu destino, chegou próximo ao Pico Velho, situado ao lado esquerdo da ladeira denominada — Pico do Seleiro20, de onde observou que assim pelas montanhas da retaguarda como pelas da frente havia milhares de pessoas emboscadas. Eram 5 horas da tarde.

A fragata brasileira no entretanto, entrando dentro na baía da Praia, parecia ameaçar os amotinados que dentro na praça conservavam, sem ordem nem disciplina alguma, em número avultado21.

Ali fez alto a divisão e o comandante coronel Torres determinou que a artilharia avançasse pela estrada e que a infantaria estendesse em atiradores, o que assim praticado a 200 passos do referido Pico do Seleiro, romperam os amotinados o fogo de fuzilaria, que logo lhes foi correspondido com tiros de peça de campanha, entregue ao 2.º tenente Joaquim Maria Pamplona22.

Continuou o fogo de metralha e fuzilaria por espaço de hora e meia, sem vantagem de parte a parte, mas logo que os realistas foram flanqueados pelos oficiais Sá e Borges, tudo se pôs em debandada: e dali por diante houveram daqueles alguns mortos, porque os liberais os alcançavam descobertos na retirada23.

Chegando às primeiras casas da povoação denominada Casa da Ribeira, estenderam-se os soldados, entregando-se à pilhagem daquele lugar e suas imediações. Em consequência desta licença militar, entrou em casa de José Fernandes de Miranda, cura da ermida de S. João, um soldado assassinando-o cruelmente24 para o roubar, como roubou tudo o que pôde e achou, apesar das lágrimas e clamores do miserável padre que lhe pedia com as mãos postas o não matasse; e semelhantes a este facto realmente horroroso se contaram alguns outros, perpetrados não só pelos soldados como também por certos oficiais que haviam desembarcado da fragata brasileira.

Contou-se naquele tempo que o número dos mortos excedera a 14, além dos feridos; contudo ainda hoje se ignora, assim como o número dos soldados da divisão vitoriosa que ficaram no campo e os gravemente feridos, por quanto nisto se guardou muito segredo, acreditando-se que o fogo lançado pelos caçadores a três casas de palha fora para nelas queimarem alguns mortos dos seus e se não acharem confundidos com os paisanos, assassinados a seu arbítrio já muito longe do campo da batalha mesmo quando alguns desses infelizes iam cuidar de recolher seus rebanhos, ou quando se recolhiam dos campos a suas casas sem ter parte no motim.

Tal é o resultado de semelhantes conflitos, onde padece a virtude e a inocência às mãos da crueza e da barbaridade!

Não se soube mais do capitão Moniz, nem dos outros revoltosos que tomaram o caminho dos Biscoitos, uns como desertores a esconder-se pelas grutas e matos, outros a procurarem asilo em casa dos parentes e amigos, na maior inquietação e desassossego que se pode imaginar.

Soube-se depois que o dito chefe Moniz, passando essa noite asilado em casa de um lavrador da Serra, retirou-se em a noite imediata à Terra Chã, que foi sempre o local da sua maior protecção. Joaquim de Almeida, também constou depois, embarcara para as ilhas, pelo Porto Judeu, até que se retirou a melhor segurança.

Aproximando-se a noite, foi a divisão vitoriosa alojar-se em um serrado que fica defronte da arquinha de onde se divide a estrada de cima para o lugar da Casa da Ribeira. Dali, sendo já mui tarde, participou o comandante da divisão ao general qual fora o resultado do combate, pelo ofício cuja cópia vai adiante (Documento U), oferecendo-se para o levar o juiz ordinário Francisco António Ramalho, que apesar de todos os perigos, partiu pela estrada de cima, chegou à cidade pelas 3 horas da noite e foi recebido pelo general com muita satisfação, prezando em muito o serviço que lhe fizera, de tal forma que o condecorou com a patente de tenente-coronel de milícias — ad honorem — que muito bem o merecia.

Sabendo o comandante na mesma noite que os destacamentos feitos prisioneiros nos Biscoitos, que se achavam na cadeia da Praia, se queriam vir apresentar mas que receavam ser atacados pela populaça, e como se achavam desarmados requeriam lhes fosse alguma força escoltá-los. Não achou contudo prudente distrair força alguma daquele ponto até que pela manhã marchou para a Vila sem que se lhe opusesse coisa alguma e fez alto na praça mandando então soltar os presos.

E constando-lhe que o tenente Joaquim Coelho da Rocha, sem temor nem pejo algum, andava pela mesma Vila, esquecido do muito que havia feito na reunião dos Biscoitos e daí para cá até se acabar o combate, mandou em seu alcance o alferes Luiz António Esteves, por apelido o Bravo, que depois de preso lhe deu uma cutilada no pescoço, lembrado talvez do muito que ele merecia aos seus camaradas na mesma situação de prisioneiros

Antes que a divisão se pusesse em marcha, mandou outrossim, ao alferes Luiz Vilares de Andrade que intimasse os oficiais da Câmara, juntos a esse tempo em vereação, para lhe entregarem o livro das actas em que se escrevera o auto de aclamação d’el-rei D. Miguel I. Diligência que o dito alferes executou pontualmente, como se lê no (Documento V), declarando os vereadores que deixavam extirpar o livro por não terem força com que pudessem resistir.

Concluído tudo isto naquela manhã, enviou os soldados desarmados e os feridos com o dito Joaquim Coelho, a cargo do sargento de voluntários Luiz de Melo, embarcando-os nas canhoneiras para a cidade e não podendo seguir além do Castelo de S. Sebastião, pelo muito vento contrário, vieram saltar no porto do Porto Judeu, donde foram conduzidos por terra à cidade no mesmo dia à tarde.

Já nela tinha recolhido a divisão, sendo recebida com repiques de sinos em todas as igrejas e com satisfação dos amantes da causa constitucional que muito se aplaudia25.

No dia 6 de Outubro chegou um brigue inglês convidando os seus nacionais que nele se quisessem recolher a embarcar para fora da ilha. Contudo não constou que pessoa alguma aceitasse.

Com o resultado deste combate assegurou-se aos liberais a posse da ilha Terceira, ainda que ao interior dela se retiraram muitos comprometidos e que em grande número se armaram de guerrilhas, assim naturais como desertores dos dois batalhões: e por muito tempo inquietaram as povoações, dando que entender aos inimigos com suas sortidas26.

No alcance deles saíram, no dia 7 de Outubro, 200 soldados em direitura aos Biscoitos, por se anunciar estavam lá reunindo gente de diferentes classes, e por mar foram algumas peças de artilharia; porém não encontrando quem se lhe opusesse, nem sabendo ainda qual o fim do chefe dos revoltosos João Moniz, recolheu a Angra, parte da divisão pelo portão de S. Bento e a outra pelo de S. Pedro; a tempo que continuava a entrar no Castelo de S. João Baptista grande porção de víveres, muitas munições de guerra, chuços, espingardas e outras armas que os juízes pedâneos, com o maior cuidado e trabalho, andavam procurando pelas casas e palheiros das respectivas freguesias. Pela imediata execução destas ordens houve muito que louvar em alguns juízes: na capitania da Praia se portou maravilhosamente o capitão de artilharia Luiz Manuel do Rego; e em Angra os capitães Francisco José da Cunha e Agapito Pamplona Rodovalho.

Fez-se tudo isto para livrar a ilha de cair nas mãos dos inimigos internos e externos, por se dizer que a esquadra do infante D. Miguel, saindo da ilha da Madeira, vinha impreterivelmente sobre esta; e por não haver forças bastantes para lhe resistir, se mandou abandonar todo o litoral, retirando a artilharia de bater, com tenção deliberada de recolher ao castelo com todos os comprometidos até que do Brasil se desse o necessário socorro, municiando os emigrados do Porto, o que incessantemente suplicava a Junta Provisória ao marquês de Palmela.

Foi esta Junta Provisória instalada no dia 5 de Outubro, elevando-se a ilha à categoria de reino; e foram criadas as três secretarias: dos negócios internos, da guerra, e estrangeiros; para cujo fim foram nomeados Alexandre Martins Pamplona, o tenente-coronel Manuel de Sousa Raivoso e José Maria de Sá. Porque estes últimos não aceitaram, ficaram servindo Teotónio de Ornelas e Pedro Homem de Noronha, escolha que bem agradou aos moradores da ilha.

Cuidou logo a Junta na suspensão do habeas corpus por espaço de um mês, durante o qual se publicaram vários indultos e proclamações aos povos com o fim de evitar todo o comércio e trato com os rebeldes.

Igualmente se tratou de remover da ilha todos os compreendidos nas devassas por motivos políticos: voto com que inteiramente se não conformou o general Cabreira; e por esta causa começaram entre ele e o coronel Torres mui sérias indisposições que, por mais de uma vez, iam sendo funestas à causa principal.

Por efeito destas medidas de prevenção, e por serem pessoas mui aferradas ao partido contrário, foram demitidos do batalhão de artilharia de linha os seguintes: Francisco de Paula Moniz, António Joaquim Pinheiro, Luiz Pacheco, e Estêvão Pacheco seu irmão, José Joaquim, João José de Bettencourt e Francisco de Paula da Cunha.

Foram ainda demitidos (portaria de 23 de Outubro) o coronel do exército, ex-capitão-general destas ilhas, Manuel Vieira de Albuquerque e Touvar; o tenente-coronel António de Morais Âncora; Manuel José Coelho Borges; o tenente-coronel Tomás Manuel Palmeirim; e João Baptista, Jacinto Manuel de Sousa, Francisco Manuel Coelho Borges, capitães; e os tenentes António Pacheco de Lima, José Joaquim Pinheiro, Sebastião Cabral de Vasconcelos, Cristiano José Garção, e Inácio José Pinheiro. Foram mais demitidos, e desonerados de todos os seus empregos, o tenente-coronel Manuel Joaquim da Silva, e o 1.º tenente Roberto Luiz de Mesquita; e da armada real, demitido e desonerado do governo da ilha de S. Miguel, o capitão-tenente D. Pedro José de Lencastre; e o ajudante do Batalhão de Caçadores n.º 5, António Plácido de Bettencourt.

Em 30 de Outubro foram demitidos os capitães de ordenanças Bento Coelho da Costa, Agostinho de Lemos, e o da Vila de S. Sebastião, José Ferreira Drummond. Foi também desonerado do comando da fortaleza de S. Sebastião da cidade, o capitão-de-fragata Teófilo Rogério de Andrade.

Cuidando-se incessantemente no provimento da praça de S. João Baptista, acautelaram-se os pontos mais importantes da ilha onde se poderia fazer desembarque segundo as notícias exactas da próxima vinda da esquadra; e assim havia a maior diligência em vigiar a Praia com um reforço de tropa suficiente; a costa da Vila de S. Sebastião27, S. Mateus da Calheta e o porto dos Biscoitos.

Chegando o dia 12 de Outubro, dispuseram-se luminárias e todas as mais coisas em demonstração de regozijo público em toda a cidade por ser o aniversário do nascimento d’el-rei D. Pedro IV. Houve grande parada, assistindo os membros da Junta Provisória a um Te-Deum de música que a dois coros se cantou na igreja Catedral, seguindo-se depois um esplêndido jantar no palácio do governo; e expediu-se ordem aos párocos para se exortarem os povos a não transigirem com os amotinadores.

Poucos dias depois apresentou o dr. Ferraz uma pastoral em mesa capitular, para também se enviar aos párocos, fazendo ver o erro e divisão em que se achavam os povos quando somente deviam obedecer às autoridades constituídas, sendo por assim, coerentes nos princípios de fidelidade e exactos observadores do juramento prestado à pessoa d’el-rei e de sua augusta filha.

Exigia por fim, e mandava que em todas as paróquias e nas colegiadas da Vila da Praia e de S. Sebastião se fizesse um ofício de nove lições, por alma de todos os que “faleceram por causa dos desastrosos acontecimentos dos primeiros daquele mês”. E que em todo o bispado, nos primeiros três dias, se fizessem preces — pro qua cumque tribulatione — continuando na missa a oração enquanto durasse o mal que oprimia os povos. O que tudo nesta ilha se executou pontualmente.

Em 28 de Outubro decretou a Junta Provisória que a ilha Terceira era o único território português onde se sustentavam os direitos d’el-rei D. Pedro; e por esta mesma ocasião declarou qual o título da cidade de Angra (Documento X e Documento Y). Decretou também o formulário dos títulos e diplomas do governo, o tratamento e a direcção das partes oficiais e dos requerimentos para os tribunais; e assim outras providências indispensáveis ao andamento dos negócios.

A 30 do mês passou-se portaria contendo a demissão de vários militares, em que se compreendia o capitão do exército João Moniz, de quem se tem falado, e o alferes José António de Oliveira; e de milícias — o major António Moniz, Jacinto Pacheco de Lima, o tenente Manuel Dias da Silva e o ajudante Manuel de Ávila.

No entretanto os principais cabeças de rebelião João Moniz e Joaquim de Almeida Tavares, com alguns desertores, discorriam pelo interior da ilha e entravam por algumas povoações armados, com ameaças e procedimentos rigorosos, sem que pessoa alguma se atrevesse a opor-se-lhe não obstante escaparem-se várias vezes aos destacamentos que os procuravam, sem que eles ousassem encontrá-los, nem havia quem indicasse onde habitavam de noite.

Nestas circunstâncias julgou a Junta Provisória que devia por em custódia todos aqueles indivíduos que mais se tinham declarado a favor da usurpação e dos quais resultavam maiores suspeitas pela protecção dos facciosos28. Foram então presos Luiz Meireles do Canto e Castro, o padre Silvestre dos Santos e Luiz José Coelho, com ordem para embarcarem para fora da ilha. Foi mais preso e recluso no convento de S. Francisco o vice-vigário das Doze Ribeiras, José Luiz de Melo; e noutras prisões Manuel Tomás de Bettencourt, João Sieuve de Seguier, Luiz Gomes, frei António de Pádua, frei Mateus d’Ave-Maria e o leigo frei Manuel da Luz, todos religiosos franciscanos; Jerónimo Martins Pamplona, António Moniz, o padre Barcelos, o vigário das Quatro Ribeiras, José Moules, e o padre João Pedro. Todos estes foram levados para diferentes prisões e removidos29 para o Castelo de S. João Baptista, para onde, nesse mesmo dia, foi levada toda a artilharia do Castelo de S. Sebastião.

Por igual medida de prevenção foram postos em sequestro os bens dos cabeças da revolta, Moniz e Almeida, e assim também os de Mateus Pamplona e Eustáquio Francisco de Andrade, que eram os mais salientes do partido.

Inúteis se tornaram todas as diligências da Junta Provisória para ser obedecida na ilha de S. Miguel pois oficiou ao juiz de fora de Ponta Delgada, ordenando-lhe suspendesse o ex-corregedor Francisco José Pacheco e o ex-general Manuel Vieira Touvar, os quais tinham sido deportados para aquela ilha. Porém os micaelenses não convieram, antes os obsequiaram e prezaram muito.

Além das demissões de que tenho falado, passaram à classe de soldados todos os oficiais que desde o dia 22 de Junho foram mandados sair; e demitiram todos os cadetes que se achavam em iguais circunstâncias. Também foi demitido o engenheiro Manuel Joaquim e os capitães Cunha e Abranches “pelo seu decidido aferro à causa da usurpação”. Passaram à classe de oficiais o tenente João Manuel de Torres e o alferes José António de Oliveira; e ficou inabilitado o brigadeiro D. Inácio de Castil, por se ter recusado a membro do governo interino.

Sendo necessário que os regulares entrassem nos seus deveres, de que tanto se haviam apartado, e respeitassem o sistema estabelecido, foi intimado o provincial dos franciscanos, frei João da Purificação, para que admoestasse os seus súbditos e irmãos a não tomarem partido contra os princípios liberais; porém recusando ele obedecer, e persistindo em aconselhar mal os súbditos, foi suspenso em mesa definitorial em 30 de Outubro, passando a substitui-lo frei Mateus Evangelista; do que se deu parte à Junta Provisória e ao cabido em 30 de Outubro30. Não ficou esquecido o cónego João José Belo, que fora nomeado pelos revoltosos governador do bispado; a este inabilitou a Junta para o serviço eclesiástico.

Com estes castigos e ameaças pretendia-se desviar os incómodos que estes homens poderiam arrastar e não se enganavam em tanto presumir deles; muito mais depois que se soube, a 25 de Outubro, estar próxima a vinda da esquadra que acabava de subjugar a ilha da Madeira; e por isso entendendo sempre em fortificar-se dentro do castelo, oficiou a Junta Provisória ao cabido31 para que ali fizesse recolher toda a prata da Sé, e das igrejas de toda a ilha; a mesma ordem foi enviada aos conventos de ambos os sexos e à recebedoria da fazenda, de onde foram com efeito levados os respectivos arquivos, e dinheiros, e se recolheram todas as bancadas de prata, lâmpadas e muitos dos vasos sagrados, custódias e outras mais coisas32. Tudo enviado pelos vigários das diferentes freguesias e prelados das corporações religiosas entre escoltas de soldados, com muita cautela, principalmente as ricas e antigas preciosidades e alfaias das igrejas da Vila da Praia, aonde se transportou o dr. provisor Ferraz, no intento de conduzir as religiosas da mesma Vila à cidade; porém elas não quiseram aceitar o convite que se lhes fez, excepto quatro, duas de cada um convento, as quais foram recolhidas nos mosteiros da Esperança e de S. Gonçalo33.

No meio de tamanha perturbação e eminente risco da causa constitucional, recebeu a Junta Provisória lisonjeiras notícias com que muito se alegraram os defensores desta ilha. Por uma carta do marquês de Palmela, escrita a 31 de Outubro, em que lhe participava a resolução de lhe enviar quanto antes algumas tropas e os mais socorros de que tanto carecia; e também lhe comunicava que el-rei D. Pedro IV tinha efectuado a total abdicação da coroa de Portugal em sua filha D. Maria da Glória (Documento Z). Com esta grata notícia vinha reconduzido o secretário da mesma Junta, Manuel Joaquim Nogueira, que desta comissão fora encarregado, partindo da ilha em 24 de Setembro próximo passado.

Notas[editar]

1. Houve, bastante hesitação em alguns destes oficiais para saltarem em terra, em presença do estado vacilante em que se achava a ilha, entregue a facções e partidos internos.

2. Quando apareceu a fragata brasileira temeram verdadeiramente os destacamentos que estavam fora da cidade. Achando-se nesse dia destacado na Vila da Praia o alferes Luiz António, por apelido o Bravo, nome que lhe davam por uma não sei se afectada valentia de que fazia alarde ordinariamente, tive oportunidade de observar o muito que destacamento receava ser atacado naquele ponto, e que por certo o abandonaria necessariamente, apesar dos protestos e da fala que tumultuosamente fez o dito Bravo.

3. Não se duvidava que o general falasse muito do coração, mas o certo é que em todo o tempo do seu governo o coronel Torres foi o seu maior competidor e rival de glória, tomando pretexto de que ele usava de meios impróprios porque demasiadamente brandos e suaves, quando devera empregar castigos rigorosos a fim de conter a disciplina, e nos povos chamar à obediência das leis os descontentes das instituições liberais.

4. Parece que ia solicitar reintegração de serviços. Porém veio a morrer muito depois sem recompensa alguma.

5. Foram nomeados capitães de ordenanças da freguesia da Agualva, Luiz de Barcelos, e das Quatro Ribeiras, Manuel Caetano de Barcelos, ficando demitidos Francisco Gil de Vasconcelos e Francisco Linhares Pereira; que até nas duas mais insignificantes povoações da ilha era necessário mudar esta oficialidade!

6. Este facto e outros mais de que se trata neste Capítulo foram-me comunicados pelo mesmo João Moniz Corte Real no ano de 1852 não se duvidando prestar-me esclarecimentos sobre tudo que dele exigi a tal respeito.

7. Procedia na devassa o juiz de fora da ilha de S. Jorge, achando-se indiciados o mesmo João Moniz, Joaquim de Almeida Tavares, Mateus Pamplona Machado, e outros muitos que depois foram presos e perseguidos dentro e fora desta ilha.

8. Era natural das Quatro Ribeiras, tenente de milícias, e tinha servido por vezes de juiz almotacé; naturalmente ousado e temerário, contudo tinha poucas simpatias. Era de uma família das mais distintas daquele lugar e seus pais ainda viviam.

9. Alguns acreditaram que o general nunca tivera certeza da saída do barco para as ilhas a pedir socorro, e que somente houveram suposições disto.

10. Um pescador, por alcunha o Craca, foi o arrais do barco para a ilha de S. Jorge e Faial, e o mesmo que trouxe o escaler Real ao porto dos Biscoitos.

11. Foi portador do ofício o autor destes Anais, que então habitava na mesma Vila da Praia.

12. Houveram bem fundadas suspeitas que por muitas vezes o juiz ordinário da Praia se comunicava com os rebeldes; e também se disse que do Castelo saía muita pólvora para o campo furtivamente, e que mesmo certo militar comandante de um destacamento a passava ao inimigo. Estes boatos, que vogavam por verdadeiros, não me habilitam, contudo, a manchar as coisas deste homem respeitável por seus conhecimentos e serviços à causa da liberdade; e por isso ocultarei aqui o seu nome.

13. Presenciei este conselho no qual o tenente Borges da ilha de S. Miguel, e outros mais valentes militares, com o general sustentaram que se devia atacar o inimigo com todas as forças, porque depois de se ajuntar maior número de povo seria mui difícil o dispersá-lo na posição em que acampava.

14. Contaram-se naquele tempo casos mui singulares praticados por Joaquim de Almeida, que, por ser um dos melhores cavaleiros da ilha, espirituoso e valente, por muitas vezes se expôs aos últimos perigos montado em uma generosa e bem adestrada égua, de tal forma que ele por si só se tinha constituído o terror de seus adversários; falava-se de suas aventuras neste género com a maior admiração e respeito.

15. Os principais influentes eram os ex-capitães José Machado Homem e António Ferreira Fagundes de Ormonde; e dos artífices os sapateiros Vieira e Parreira, com outros mais.

16. Fui eu que no dia 5 de Outubro de manhã o visitei, levando-lhe algum alimento, pois não tinha comido coisa alguma no dia 4. Achei-o com muita resignação e sangue frio, como era próprio do seu génio. Tão mal visto da tropa, em razão da embaixada, que por vezes esteve em perigo a sua vida, e de certo o iriam assassinar à prisão, a não ser o muito respeito que guardavam ao general Cabreira.

17. Aproveitou nesta ocasião mais que todos o serralheiro Joaquim, o Castelhano, que foi muito bem pago.

18. Era de todos o mais hábil porque de muitos anos servia no regimento de milícias da Praia, com os necessários elementos, assim por sua pessoa de bens, como pelos conhecimentos da arte: assim houvesse ele regulado melhor a economia da casa vinculada que possuía, que não acabara na lamentável indigência em que o conhecemos.

19. Ficaram todos pronunciados na devassa que sobre estes factos se tirou, e foram ultimamente livres do crime de rebelião pelo decreto de amnistia datado de 21 de Abril de 1830; mas padeceram gravíssimos incómodos de suas pessoas e famílias.

20. Tomou o nome de seu antigo dono, André Dias Seleiro, que fez testamento em 1520.

21. Assevera-se que toda a gente armada ascendia o número de 6.000 homens; porém eu não afianço o cálculo de 4.000.

22. O outro parque de artilharia, de que era comandante João Moniz do Canto, chegou mais tarde ao fogo, por embaraços que se lhe opuseram no serviço das bestas.

23. Parece que começou a retirada quando os amotinados viram despedaçado pelo ar um pobre Francisco Machado Faria, o caçador, morador em Porto Judeu, e casado.

24. Dizem que este bárbaro se chamava Pedro Portugal, e que o assassínio tivera lugar no dia 5 de Outubro, logo que o infeliz acabara de dizer missa.

25. O coronel Raivoso e o capitão Taborda foram os dois de quem se contaram proezas nesta retirada. A este se atribuiu a cruel morte de um pobre velho que conduzia uns porcos a sua casa, já à boca da noite; e a de outro miserável que para se desviar de ser encontrado em sua casa junto da estrada fugira para uma figueira da qual foi derribado a tiros de espingarda. Observei a entrada desta divisão que a si própria se vitoriava, coberta de louros e ramos de árvores, e notei na face dos mesmos constitucionais uma alegria aparente, em razão dos estragos que a necessidade da guerra fizera praticar à tropa. Mas poderia afirmar-se que a cidade e toda a ilha se enlutaram sabendo o que se passara, concluindo-se disto que as demonstrações de regozijo eram nascidas do medo dos soldados caçadores.

26. Foi assaz notável o entusiasmo e constância de muitos desses desertores: um destes infelizes houve que, pondo a espingarda debaixo do braço direito, disse que se matava e morria contente por ser realista. E assim foi, que a bala lhe saiu pelo pescoço fora e ele caiu morto; quão iludidos não andavam ambos os partidos beligerantes que à força muito querer tão pouco alcançaram!

27. A 16 de Outubro partiu para esta Vila um destacamento de 50 soldados com um capitão; e no dia 15 tinham saído da mesma Vila para o castelo 57 carros carregados de artilharia grossa. Assim também no dia 18 de Outubro foram da Praia 52 carros levando outra quantidade de peças e munições de guerra: e tudo ia à custa de faxinas, e em carros dos pobres lavradores, que muitos ficaram quebrados e os gados destruídos e estropiados.

28. Já no dia 26 de Outubro se tinham mandado 20 homens abater e destruir o pinhal de Joaquim de Almeida; e por estes mesmos dias foram tomadas outras providências.

29. No dia 24 de Outubro.

30. Eram membros do definitório o dito frei Mateus, frei João de Santa Clara, frei André da Assunção, frei Francisco do Monte Olivete e frei Manuel d’Ave-Maria; guardião, frei Francisco de Santa Ana; custódio, frei Eleutério do Coração de Maria; e frei Manuel do Rosário, secretário; e foi este um dos mais violentos actos desta corporação.

31. Em 26 de Outubro.

32. Até o dia 29 recolheu-se no Castelo toda a prata, assim como as riquezas da Sé, bancadas de prata, lâmpadas e vasos sagrados, que se poderiam dispensar do uso ordinário; a prata do Colégio, a do mosteiro de S. Gonçalo e do convento da Graça; e entraram 57 carros de lenha de pinho cortado na Quinta da Pateira (primeira mata artificial que na ilha houve), do deão Frutuoso José Ribeiro, contra quem se procedia por seu decidido aferro à causa do infante D. Miguel.

33. Passou-se portaria em data de 25 de Outubro para que o cabido ordenasse esta diligência pelas notícias de que o inimigo desembarcaria na Praia (cartório do mesmo cabido).