Anais da Ilha Terceira/IV/VIII

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OITAVA ÉPOCA[editar]

CAPÍTULO VIII[editar]

Os excessos dos amotinados obrigam a Junta Provisória a pôr-lhes as cabeças a prémio. É criada uma comissão para sentenciar os criminosos. Vinda da esquadra inimiga e inúteis pretensões de reduzir a Terceira por sublevação interna. Tenta o general Saldanha o desembarque da tropa auxiliadora e é repelido pelo bloqueio inglês. Socorros oportunamente enviados pelo marquês de Palmela. Novo plano de defesa. Perigo da causa pública pelos vergonhosos partidos e dissidências dos membros da Junta Provisória. Carência absoluta de meios pecuniários.[editar]

Continuavam os amotinados com muitos desertores a invadir algumas povoações da ilha, principalmente a Terra Chã, que fica a oeste da cidade, e Santa Bárbara das Nove Ribeiras e Biscoitos do Porto da Cruz. De forma que encontrando dois soldados do partido contrário, em diferentes sítios, os mataram barbaramente1, tratando muito mal todas aquelas pessoas que lhes pareciam desafectas ao seu pensar: razão porque a Junta Provisória estreitava de dia em dia as prisões dos compreendidos em semelhantes atentados; sem embargo da oposição que lhe fazia, com seu voto e de viva voz, o general Cabreira, que por toda a parte se proclamava um eficaz mediador entre os partidos dissidentes, mostrando-se por isso desafecto ao sequestro nos bens do ex-capitão-general Touvar, que se achavam em poder do seu parente Pedro Jácome de Calheiros, ex-juiz de fora da Praia; assim como aos que se fizeram a João Marcelino, Fernando Joaquim e outros2, notados pelos movimentos do dia 18 de Maio próximo passado.

Mas nem por isso se abstinham os desertores e mais descontentes, antes pelo contrário, cada vez mais orgulhosos e destemidos, armavam desordens e muitos roubos consideráveis, em tanto que obrigaram a Junta a publicar o decreto de 6 de Novembro, suscitando a execução do §345 e §346 do Alvará de 1765, que impunha gravíssima responsabilidade aos juízes de vara branca, ordinários e territoriais, e a quaisquer pessoas que dentro de suas comarcas ou distritos, casas ou propriedades consentissem, ou dessem ajuda e favor, directa ou indirectamente, a desertores, sem os capturar e recolher em prisões seguras: tanto que infligia aos eclesiásticos a pena de desnaturalizações dos domínios portugueses.

Em fim, para de uma vez acabar semelhantes perturbações anárquicas, fez a Junta publicar o decreto de 4 de Novembro do mesmo ano de 1828, pelo qual se prometiam 200$000 reis a quem apresentasse cada um dos primeiros motores destas desordens, a saber: João Moniz Corte Real e Joaquim de Almeida Tavares.

Querendo facilitar a sua captura assentou que se essa pessoa tivesse algum crime ou fosse desertor de 1.ª ou 2.ª linha ficaria perdoado e absolvido plenamente, recebendo o indicado prémio de 200$000 reis. O mesmo se prometia a qualquer pessoa que denunciasse em segredo o lugar em que eles estivessem escondidos ou acoutados. Prometiam-se mais 100$000 reis a quem prendesse os réus de rebelião João Moniz de Sá Eustáquio, Francisco de Andrade, Mateus Pamplona Machado, João Cabral e o soldado que fora sargento de artilharia João José de Melo; e semelhantemente se perdoava ao denunciante qualquer crime em que estivesse compreendido (Documento AA).

Afixaram-se todavia editais para este fim e entretanto não se poupavam estratagemas com que alcançassem os homiziados2. E notou-se que vivendo eles entre as povoações mais retiradas da ilha, ninguém, ainda levemente, quisesse indicar onde se achava qualquer. Tanta era a afeição que lhes tinham, e a indisposição contra o governo! E de tal forma este se reputava desservido pelos oficiais de ordenanças que encheu as ordens do dia com as demissões desta classe, cuja relação enfadonha passarei em silêncio para não mortificar os leitores.

Como de facto, apesar de todas estas medidas e ameaças, não tinham fim as animosidades dos desertores e guerrilhas, tornou-se de absoluta necessidade executar a pena última em alguns criminosos. Não sendo possível congregar-se a junta criminal, estabelecida no alvará de 15 de Novembro de 1810, por se terem sublevado e subtraído ao domínio da sua capital as ilhas deste arquipélago, foi criada uma comissão militar composta dos seguintes membros: coronel José Rodrigues de Almeida; corregedor interino José Jacinto Valente Farinho, tenente-coronel João Silveira Machado; o de milícias da ilha do Faial, João Ithon Zargo da Câmara; major de artilharia Luiz Manuel do Rego; juiz de fora da Praia, Pedro Jácome de Calheiros de Meneses; e o da ilha de S. Jorge, João Silveira da Luz. Supranumerários, major do 5.º de Caçadores José Quintino Dias e major Joaquim de Freitas Aragão.

Compôs-se o conselho militar dos seguintes: presidente, o dito José Rodrigues; relator, Farinho; vogais, João Silveira Machado, António Borges Leal, major Freitas Aragão, Luiz Manuel do Rego e João Silveira da Luz. Supranumerários, o capitão José Maria Taborda, Vasco Ricardo de Sequeira e Teotónio de Ornelas.

Aqui deixo escritos os nomes dos sujeitos, que, com o título de juízes, foram instalados em uma comissão para decidirem os crimes de deserção e rebeldia; aos quais foram entregues as vidas de muitos infelizes que a atrocidade de seus crimes, a sua pertinaz rebeldia, e sobretudo a dura necessidade da guerra, tornou vítimas imoladas ao ressentimento da Junta Provisória.

É verdade que esta comissão bem podia ser menos severa se o receio da própria existência a não inquietasse, e o eminente risco da causa pública; e servindo-me agora do que a semelhante respeito disse um ilustre escritor do nosso tempo, concluirei este artigo com as suas próprias palavras, escusando-me a desculpa de parcialidade: “como o objecto destes Anais seja fazer deles uma espécie de arquivo, em que se guardem as lembranças não só dos crimes ou das boas acções dos principais indivíduos que nesta época mais figuraram em bem ou mal, porém dos nomes deles, para que aos vindouros ou sirvam de bom exemplo ou de pública execração...” (diz o autor José Liberato Freire de Carvalho).

No meio de tão afanosos cuidados e dos males que sofriam os defensores da Terceira pela falta dos recursos pecuniários, apareceu um novo lume de bem fundadas esperanças, com que sobremaneira se alentaram, suavizando-se com a grata notícia de que, suposto o imperador do Brasil fosse informado pelo marquês de Barbacena da perfídia do infante D. Miguel, desde que este desembarcara em Lisboa; contudo persistia constante na resolução de enviar sua filha para Portugal com o fim de ser educada; incumbindo o marquês (além da importante missão de verificar as núpcias do imperador com a princesa D. Amélia) de a acompanhar e guardar, informando-se primeiro em Gibraltar do estado dos negócios de Portugal, e do caminho que devia seguir.

Que sabendo o marquês estar ultimada a usurpação, e que o infante se achava proclamado rei, e nesta qualidade governando o reino, excepto as ilhas da Madeira e Terceira, onde não era obedecido, assentara retroceder a viagem de Génova a Viena de Áustria para Inglaterra, onde esperava o devido apoio à causa de seu amo.

O marquês partira na fragata brasileira Imperatriz levando a seu bordo a rainha, a qual desembarcando com efeito em Falmouth a 24 de Setembro, de onde agora escrevia à Junta Provisória participando-lhe a sua chegada e a maneira porque fora honrada pelo governo inglês e recebida pelos fieis súbditos portugueses que haviam preferido todos os incómodos da veda à escravidão, e manifestado toda a fidelidade, e adesão à causa constitucional.

Recebeu ao mesmo tempo a Junta uma proclamação feita no Brasil, e assinada por el-rei D. Pedro, em que se declarava a firme resolução de não transigir jamais com o usurpador da coroa portuguesa.

Esta inesperada notícia e correspondência oficial se apressou a mesma Junta a publicar, e a transmitiu em 24 de Novembro, por cópia, aos juízes territoriais da ilha os quais, pela maior parte, a não queriam acreditar, julgando-a apócrifa; e mesmo a repugnavam ler publicamente.

Houve então por ordem da Junta as necessárias demonstrações de regozijo público, e um Te-Deum na Sé Catedral, assim como nas igrejas principais, conventos e mosteiros de freiras, excepto na Conceição, onde a abadessa4 o recusou fazer cantar sofrendo de boa vontade o ser por esta falta asperamente repreendida.

O áspero e inacessível das rochas desta ilha e a inconstância de seus mares nos tempos do Inverno, desviaram o governo de Portugal de mandar sobre ela a expedição que, depois de muitos obstáculos, saiu contra a ilha da Madeira, onde se verificou o desembarque a 22 de Agosto.

Tinha ordem o general Prego de voltar com esta esquadra sobre a Terceira, e por isso determinou aos comandantes que no caso de dispersão se reuniriam os navios no Tejo. Já próximo à ilha de S. Miguel sobreveio com efeito um mau tempo, debaixo de grande trovoada, e por isso alguns navios da esquadra procuraram o rumo de Lisboa, enquanto 3 fragatas, a corveta Urânia e um brigue, saindo para estes mares, vieram mostrar-se no dia 25 de Novembro, ancorando defronte da Vila da Praia; e no dia 10 de Dezembro apareceu a nau D. João VI aproximando-se dos mesmos pontos.

Parece que depois de sair em terra um emissário, que no lugar de Vila Nova lançou alguns impressos e uma proclamação que foi achada na porta da igreja da Misericórdia, com a relação do sucesso da ilha da Madeira, enviara o comandante da nau dois indivíduos que saltaram na costa do Porto Judeu com dois ofícios para João Moniz Corte Real, um do general Prego e outro do comandante da expedição, o coronel José António de Azevedo Lemos, dizendo-lhe que a maior força da esquadra estava ausente; mas que com a pouca gente que lhes restava da expedição pretendiam intentar o desembarque, comunicando-se-lhe o ponto onde o deviam verificar. Ofereciam além disto muito armamento e munições de guerra com que bem se podiam armar as milícias e toda a gente do partido, exigindo por conclusão a resposta de tudo no dia imediato, pelo porto das Doze Ribeiras, onde a mandariam buscar por alguma embarcação própria.

Recebidos os ofícios por João Moniz, respondeu com poucas esperanças de operar a reacção, não só pela grande actividade das tropas e do general Cabreira, que por meios de brandura e persuasão ia contendo os povos; senão porque pelas recentes notícias do interesse que tomava o imperador D. Pedro nos negócios de sua filha estava em grande risco a empresa revolucionária.

Todavia esta resposta, pouco agradável para os comandantes da esquadra, não lhes chegou a bordo porque não mandaram por dia no lugar indicado5, sem que constasse jamais qual fora a causa desta falta.

Vendo o general que não podia efectuar o desembarque por lhe falharem as correspondências da ilha, e considerando-se pouco seguro nestes mares por causa da estação invernosa que não podia tardar, navegou para a ilha de S. Miguel onde desembarcou os 200 soldados que trazia, tomando o comando da ilha, que tinha o ex-general da Terceira, Manuel Vieira Touvar de Albuquerque.

Poucos dias depois fez embarcar grande quantidade de armamento, debaixo do comando do capitão Jacinto Manuel de Sousa, para ser entregue nesta ilha ao capitão Moniz; porém não se sabe porque razão o foi ele desembarcar na Vila do Topo da ilha de S. Jorge, de onde enviou à Terceira o sargento João José de Melo, com a correspondência do general Prego e com as patentes em que nomeava a João Moniz governador desta mesma ilha.

Contou-se por verdade que apenas deram vista nestes mares as embarcações da esquadra, fora visto um estandarte branco sobre uma alta montanha da próxima ilha de S. Jorge; entendendo-se por isto haverem combinações entre pessoas destas ilhas com os comandantes da armada. Também se disse que sobre algumas eminências desta ilha se fizeram sinais com fogos de noite; mas o certo é que não apareceu movimento algum da parte dos povos, qualquer que fosse o seu desejo.

No entretanto as tropas da ilha manifestavam-se na maior atitude, revestidas de coragem e firmeza: por quanto, o general Deocleciano Leão Cabreira, não obstante a sua provecta idade, desenvolvia a maior energia e actividade raras vezes conhecida. Marchava de dia e de noite em roda da ilha, visitando pessoalmente os pontos mais arriscados à frente de uma brigada de Caçadores e artilheiros, com duas peças de campanha, decidido a disputar o passo ao inimigo em qualquer parte que ele tentasse desembarcar. E com mágoa via que as embarcações de guerra não faziam o menor sinal de hostilidade, ou fosse porque a tripulação se não achava em estado de desembarque (isto era o que ele mais conjecturava), ou porque de terra lhe não correspondia o suposto auxílio.

Ignorava-se perfeitamente a causa de tamanha apatia. O certo é que depois daqueles navios andarem vários dias ensacados nas baías da ilha, e quase sempre na da Praia, e mesmo comunicando-se a nau com a fragata brasileira Isabel, que de contínuo vinha ao porto de Angra refrescar, desapareceu destas águas, deixando o governo da ilha em perfeita tranquilidade, contentando-se o comandante da nau com ter recolhido a bordo algumas pessoas comprometidas, que fugiram para ele, alguns dos quais nunca mais à ilha tornaram; e de ter recolhido também alguns carneiros do ilhéu do Porto Judeu, que teve em segura conquista; assim como os mantimentos que ultimamente iam em dois barcos para a dita fragata brasileira, verificando-se por esta ocasião aquele bem reconhecido provérbio — do inimigo não há que fiar. — E foi este o único resultado desta expedição que tantas esperanças deu por muito tempo aos inimigos da Carta Constitucional e d’el-rei D. Pedro IV.

Conhecendo portanto o chefe dos revoltosos, João Moniz, que todas as correspondências lhe andavam cortadas e que a empresa meditada não parecia ter o efeito desejado, lembrou-se e conseguiu construir no lugar da Matela uma embarcação, na qual trabalharam oficiais calafates da cidade, e nela ir avisar o general Prego de qual fosse o estado da ilha, e que ela se lançaria pelo referido porto das Cinco Ribeiras.

Muito conveniente parecia a todos os seus esta máquina, que podia ser a pronta salvação dos mais comprometidos, cujas cabeças andavam a preço e no maior risco; todavia, ainda por esta vez, a fortuna desmentiu as lisonjeiras esperanças que ao capitão Moniz e seus companheiros tinham entretido alguns dias.

O general Cabreira, depois de muitas diligências, investigações, súplicas e rigorosos castigos de muitas pessoas, veio a saber que se achava construída aquela embarcação, e pronta de tudo, com gente e mantimentos para a viagem. Marchando então com a maior parte do batalhão de Caçadores e duas peças de campanha (desconfiando de alguma emboscada, por ser o terreno mui próprio a esse fim) fez alto na Canada dos Folhadais; e no dia seguinte foi dar com aquela embarcação, como lhe tinham dito, pronta de tudo; e largando-lhe o fogo, debaixo de grandes aplausos da tropa, marchou para a cidade, trazendo consigo a bom recato, a família do capitão Moniz, que encontrou em uma pequena habitação, fazendo-a recolher no mosteiro de Nossa Senhora da Conceição.

Aqui expiraram quase todas as esperanças dos revoltosos; e Moniz, vendo que lhe falhavam todos os recursos, olhando por si e pelo grande empenho que havia de se apossarem dele, resolveu pôr-se a salvo da ilha para fora, no intento de não prejudicar mais aqueles seus amigos cujas cabeças andavam postas a prémio com a sua; e vendo também quão fatais eram os castigos de pessoas, fazendas e grandes edifícios, que as tropas levavam a ferro e a fogo por sua causa, além dos vivos ultrajes, castigos, penas e torturas de muitos infelizes que lhes caíam nas mãos, sem forma alguma de processo, e que de parte a parte andavam sacrificados a antigos ódios e desafeições: por tudo isto, aventurou-se ao último transe, e confiando-se de dois indivíduos do partido liberal, encontrou neles aquela extrema beneficência e fidelidade que nas suas circunstâncias de forma alguma esperava.

Conta-se por certo que ele embarcara no porto de Angra para a ilha de S. Miguel, vestido à maruja como se fosse da tripulação do navio inglês que o levou. Igual destino, e por semelhantes meios, guiou a Joaquim de Almeida Tavares, Mateus Pamplona Corte Real e Eustáquio Francisco de Andrade, algum tempo depois, a outras ilhas deste arquipélago e a Lisboa.

Começou então a Junta Provisória a respirar com mais liberdade, ainda que muito a inquietavam os desertores e afligia as pessoas suspeitas, inclusivamente a maior parte dos empregados eclesiásticos; e por isso ordenou ao cabido os suspendesse e provesse os lugares vagos em sujeitos de confiança, o que pontualmente foi executado, porque logo a 5 de Dezembro suspendeu o deão dr. Frutuoso José Ribeiro, por se afirmar oferecera dinheiro para se prontificar a referida esquadra.

A 15 de Dezembro foi suspenso o ouvidor da Praia António Coelho Souto-Maior, e nomeado o vigário Manuel Paim da Câmara, que parecia amante da causa da rainha. Foram mais suspensos e presos os seguintes eclesiásticos: o padre José de Meneses, vigário das Lagens6 e o cura José da Rocha; o vigário dos Biscoitos — Francisco António da Silveira; o dos Altares — António Pedro Godinho; o da freguesia de S. Jorge das Doze Ribeiras — José Luiz; e o da Ribeirinha — Manuel Correia de Melo; o cura da Matriz da Praia — Bruno Fagundes, e o beneficiado José Joaquim de Ávila; o padre José Patrício; e outros mais cujos crimes eram o ser desafectos ao sistema constitucional, e o falarem desacauteladamente contra o governo.

Em cúmulo de tantos males e receios em que se achava a Junta Provisória acrescia a falta de numerário, apesar de se ter aberto de par em par o cofre da fazenda, o dos defuntos e ausentes e os de muitos proprietários da ilha Terceira; assim mesmo tudo isso era pouco ou quase nada, porque as demais ilhas dos Açores se achavam rebeladas, até mesmo a do Faial, que à vista da fragata brasileira se tinha querido revoltar, e chegando alguns oficiais a recolher-se a bordo de dia, tornou a cair no domínio do seu infante e rei D. Miguel I.

No entretanto recebeu a Junta Provisória ofícios do marquês de Palmela, que também por esta ocasião escreveu ao governador das armas, dizendo-lhe, pela segunda vez, que el-rei D. Pedro havia abdicado a coroa em sua filha D. Maria da Glória, e que por essa razão era desnecessário que o secretário da mesma Junta Provisória, Manuel Joaquim Nogueira, continuasse viagem para o Rio de Janeiro; e que, visto haver-se em Plymouth jurado preito e homenagem à rainha em 12 de Outubro, convinha fazer-se a mesma cerimónia nesta ilha.

Em presença do que passou a Junta ordem às câmaras, para que em corpo diplomático, e no dia 7 de Dezembro, prestassem e fizessem prestar o dito juramento. O que de facto se praticou com as legais solenidades; e no dia 8 prorrogou-se a suspensão do habeas corpus por mais 60 dias. Desta data em diante todas as provisões, decretos, sentenças e outros papéis do expediente se passaram em nome da rainha D. Maria U.

Por este mesmo tempo, e sob pretexto da falta de capitulares na Sé, ordenou a Junta fossem nela incorporadas as colegiadas da matriz de S. Sebastião, da Conceição dos Clérigos e de Santa Bárbara7; ficando servindo ali até que de todo acabaram os serventuários beneficiados das mesmas. E tudo isto fazia para diminuir o partido suspeito, ou com vistas no futuro, que o tempo justificou por verdadeiras reformas.

Vendo também a eminente necessidade de eclesiásticos de sua confiança para o serviço das igrejas, oficiou ao cabido, em 10 de Dezembro, para que lhe propusesse padres capazes do ofício paroquial, inclusivamente regulares; e já em 13 de Fevereiro de 1829 intentando contra os religiosos franciscanos e capuchos existentes em Angra, exigiu do cabido os fizesse recolher à Praia, dizendo carecia os conventos para quartéis de tropa; determinando-Ihes ficassem ali somente dois ou três frades com o vigário in capite; ao que o mesmo cabido satisfaz no dia imediato. Por outra portaria na mesma data dissolveu todos os pupilos e donatos daquela ordem.

Ao mesmo tempo que algumas religiosas dos mosteiros desta ilha, aborrecidas da clausura e impacientes pela vida do século, solicitavam, ou antes inquietavam o cabido com requerimentos para lhes dar licença, a título do mudança de ares; todavia ainda que era um maior número, veio a limitar-se a duas do mosteiro da Luz: todas as mais, por esta vez, se arrependeram!

Porfiavam os amotinados em suas criminosas tentativas; em tanto que entrando à mão armada no lugar da Terra Chã, com violências e extorsões, foram a causa dos soldados do 5.º de Caçadores, comandados pelo alferes Veríssimo José Gonçalves, incendiarem ali duas casas, onde habitavam as famílias mais ricas do mesmo lugar, no qual, dias antes8, chegara a apreender as cavalgaduras dos dois chefes Moniz, e Almeida.

Foi este procedimento extraordinário com o fim de ensinar os povos a recusar suas moradas e protecção aos revoltosos, que armados em guerrilhas inquietavam as povoações9. Igualmente se dava na parte da Praia, em que servia de comandante do destacamento o tenente Narciso de Sá Nogueira, por ordem de quem foi incendiada uma boa casa nova, que era de Domingos Faria do Rego, da freguesia das Lajes, dizendo-se que antecedentemente pernoitaram ali os guerrilhas.

O ardor com que procediam estes militares em semelhantes execuções, e contra inumeráveis pessoas suspeitas de terem relações com os revoltosos, deram muito que sentir aos povos, e somente achavam apologistas naqueles que andavam nas diligências de exterminar os do partido contrário. Mas sobretudo os castigos e suplícios em que foram postos vários indivíduos do povo, a mandado do tenente Sá Nogueira, quando lhe denunciaram estar-se fabricando um barco acima da Agualva para transportar da ilha os principais cabeças da revolta, excedem toda a expressão; porque não foi necessário outro algum género de prova do que a denúncia de uma ou duas pessoas, que logo se procedia à prisão e em menos de 24 horas saíam os pobres indiciados às praças e lugares mais públicos, onde eram verdascados cruelmente.

Desta forma vieram à praça da Vila da Praia cinco indivíduos (com excepção de outros por diferentes vezes) acriminados de uma demasiada licença de falar contra o governo10, e de terem aprovado em público a construção do barco, o qual com efeito se achou quase concluído acima do pico dos Louros: em consequência do que foram os supostos réus metidos, no quadrado, onde nus da cintura para cima, os vararam áspera e cruelmente, ficando despedaçados e doentes para toda a sua vida. Este desumano procedimento, semelhante a outros, que em diferentes lugares se praticaram causou muito horror e uma geral aversão contra o comandante, a quem pouco tempo depois o general repreendeu vivamente, removendo-o para outro distrito, já muito depois de bem fundadas queixas por estes e outros súplicas que deu, sem a necessária forma de processo, a respeito de indivíduos seculares e eclesiásticos; e mesmo de alguns religiosos franciscanos11, aos quais mandou prender e remover de seus conventos por simples denúncias e por suspeitas.

E foi presenciado em muitas ocasiões não haver amigo, ou pessoa de seu conhecimento, que lhe quisesse pedir, ou interceder por qualquer desses desgraçados, com medo de lhe desagradar, ou de ser tido como fautor de rebeldes; vociferando, que ele devia ser um fiel executor das ordens da Junta Provisória12, que mui sabiamente decretava as varadas, como excelente preservativa da enfermidade — rebeldia.

Procedia este rigor não só de ser aquele militar um valente e exaltado constitucional, homem de muita inteireza, se não também do ódio que jurara contra os paisanos, desde que uns 12, na freguesia do Porto Judeu, se armaram de paus e foices, para vingar os excessos que alguns caçadores cometiam, achando-se com ele destacados na Vila de S. Sebastião.

E com efeito, desde que a esquadra se retirou destes mares, como já em seu lugar se disse, a Junta Provisória tomou a si o castigar e prender muitas pessoas da ilha, a fim de se manter com respeito, sendo por isso punidos, como lá dizem, os justos e os pecadores — Tírios e Troianos — dispensando maiores formalidades. Por esta forma decretou 300 varadas a cada um dos seguintes indivíduos: — Francisco Vaz Pereira, capitão de ordenanças da Ribeirinha; — José Luiz, da Canada dos Folhadais; — ao alferes José Machado Fialho, do Porto Judeu; — Manuel Gonçalves Silva, também da Ribeirinha; — e António Vicente.

Por não fatigar o leitor dispensar-me-ei aqui de relatar o muito que se passou nos diferentes pontos da ilha, em que se achavam destacamentos: as violências feitas aos moradores desses lugares, para lhes assistirem com as coisas indispensáveis à sustentação, e os flagelos que os mesmos destacamentos por todos os modos descarregavam contra os seus benfeitores, como em prémio do bem que deles recebiam; assim como os duros suplícios das varadas e bastonadas de que usou, principalmente nas freguesias de Santa Bárbara, lugar da Terra Chã, e outros, por ocasião de se procurar o barco feito no lugar da Matela. A pena recusa escrever tamanhas calamidades: sepultemos, por ora, no esquecimento esses efeitos desastrosos de violentas paixões e desacertos, em que nadaram ambas os partidos; e

«Bom será que os que estão também cansados

«De me ouvir, co’a folha aqui dobrada

«Dêem tempo, a que a voz aflita e mesta,

«Não venha de importuna a ser molesta.

(Per. Eleg., Canto IX.)

Já no fim de Dezembro de 1828 chegaram a esta ilha as fragatas britânicas Ranger e Nimrod, pondo-lhe rigoroso bloqueio, com que reforçaram o que por parte de Portugal andava nestas águas. Era este bloqueio mandado pelo ministério inglês de Lorde Wellington13, sempre persistente em negar os necessários socorros aos terceirenses, depois que se dissolveu o depósito de Plymouth e que os emigrados foram forçados a sair dali por um acto mesquinho e inóspito daquele ministro, que também proibiu saíssem dos portos de Inglaterra embarcação algumas com emigrados para este ponto, com o especioso pretexto de neutralidade na questão portuguesa; mas nem por isso a briosa gente emigrada desistiu e mudou de parecer, antes dando mais este exemplo de intrepidez e lealdade se resolveu, quaisquer que fossem os obstáculos, a partir para este seu premedita do destino; e deu à vela de Plymouth em 4 navios de transporte, contendo 600 praças às ordens do general Saldanha.

E porque o marquês de Palmela, que tratara este negócio, não pudera convencer o gabinete inglês a que se fizesse o desembarque na Terceira, pela dita razão determinou que a expedição saísse por escala, procurando entrar na mesma ilha, pois vinha sem armas nem munições de guerra; e que não podendo conseguir entrada, fosse em direitura ao Rio de Janeiro: contudo, o general Saldanha, reunindo todos os navios, fez-se à vela para esta ilha, onde chegou, com próspera viajem, no dia 16 de Janeiro de 1829, defronte da Vila da Praia14, e indo já debaixo das baterias da mesma Vila, em frente da fortaleza do Espírito Santo, rompeu a fragata Ranger o fogo contra os dois primeiros transportes, fazendo no brigue Suzana bastantes avarias, além de lhe matar um soldado e ferir gravemente um paisano: facto este tão horroroso que, por ser cometido pelo mais antigo aliado de Portugal, não deve riscar-se da memória dos portugueses. Seguiram-se então os avisos e intimações do capitão Walpole; em consequência dos quais, depois de mui acalorados protestos15, se retirou o general Saldanha para França, onde chegou em 30 de Janeiro.

Este procedimento escandaloso foi vivamente sentido por todos os que o presenciaram e despertou na França, e mesmo em toda a Europa, muitas simpatias a favor dos emigrados e defensores desta ilha: ao mesmo tempo que a desobediência do general Saldanha, em não sair de Plymouth, como se lhe ordenara, motivou em Inglaterra uma grande jactura à emigração.

Todavia não desistiu o marquês de Palmela do tentar outros desembarques na ilha, nem cessou de lhe mandar as necessárias munições de guerra para 50 bocas de fogo, que lhe enviou, além de 4.000 espingardas e espadas em grande número; e até o fim de Março, 1.000 homens de desembarque; apesar do rigoroso bloqueio, sempre iludido pelos transportes destas expedições, o que parecia obra milagrosa da Providência.

Foi uma parte do Batalhão da Rainha o primeiro corpo que desembarcou nesta ilha em 8 de Março, comandado em dois navios pelo coronel António Pedro de Brito, e por estes mesmos dias16 desembarcaram em Angra 607 praças de diferentes corpos.

A vinda oportuna destas forças deu um duplicado valor à Junta Provisória para melhor firmar as suas deliberações. Já, por medidas de cautela, tinha feito demissões dos seguintes empregados oficiais de fazenda: Joaquim Bernardo da Fonseca, contador; Manuel de Lima da Câmara; Acúrcio Garcia Ramos; e José António Borges. Demitiu também a José Augusto Cabral de Melo, secretário da Junta do Paço, que todos eram tidos por inimigos do governo estabelecido. Mandou também proceder a sequestro nos bens de Pedro Gonçalves Franco, administrador do estanque do tabaco. Foram presos, para o depósito no monte Brasil: o cura da igreja de S. Bartolomeu, José Inácio Tristão; e o padre José Martins, capelão do castelo; e lá se conservaram com o grande número de prisioneiros por iguais opiniões; não cessando os cruéis castigos das varadas, que, seria enfadonho relatar, depois do que fica escrito a este respeito.

Houve também a Junta por acabado o tempo ao juiz de fora da Praia, Pedro Jácome de Calheiros e Meneses, fazendo-o substituir pelo bacharel João Silveira da Luz17, e mandando embarcar aquele para França ou Inglaterra.

Desembarcando o referido Batalhão de Voluntários da rainha, mui bem fardado, logo foi destacado para a Vila da Praia, como ponto de grande importância; e sendo aquartelado pelas casas e no convento da Graça18, começou desde logo uma grande consternação por causa do aboletamento desta gente, que de tudo carecia, e que mesmo se considerava com direito de exigir o melhor tratamento, à custa dos moradores da Vila e sua jurisdição, que todavia não faltaram em lhes prestar os possíveis recursos de camas, lenhas e outras coisas para os usos necessários, como lhes determinava a Câmara Municipal: o mesmo sucedia nas mais povoações da ilha, com bastante reclamação dos seus moradores19.

E sendo toda ilha considerada uma praça de guerra, deu-se consequentemente a necessária forma em harmonia com o primeiro plano de defesa. Criou-se para tanto um governador militar, que foi o referido coronel António Pedro de Brito, de quem foram ajudantes de ordens os capitães de Caçadores n.º 9, Florêncio José da Silva e Manuel Alexandre Travassos, que o tinham acompanhado.

Criou-se também um Supremo Conselho de Justiça Militar, e uma Relação, em ordem a substituir a antiga Junta de Justiça. Guarneceu-se com artilharia de bater os pontos mais susceptíveis de desembarque, a saber: Porto Judeu, Vila de S. Sebastião e o Porto Martins, que eram os mais desguarnecidos; e o mesmo se fez em outros lugares da ilha, continuando pela parte do sul um activo serviço de fortificação e reparação de estradas, de forma que senão poupava dinheiro, nem serviço de faxinas o mais apertado.

Entregaram-se as postas a dez sargentos de cavalaria, que circundavam a ilha, a qual também foi dividida em oito distritos militares20, e fez-se rondar de noite a costa por barcas canhoneiras, mui bem preparadas. Das diferentes fracções de tropa que vieram chegando organizou-se o batalhão provisório, que se alojou na cidade, prestes a acudir a qualquer ponto, onde o chamasse a necessidade da guerra.

Criaram-se duas companhias de Caçadores, ao mesmo tempo que se procedia a um rigoroso recrutamento; ainda que mui pouco se confiava dos recrutas nesta mesma ilha; e também para que os especuladores dos cereais e dos mais géneros de consumo não monopolizassem, como em tais ocasiões sucede, estabeleceu a Junta Provisória, em 20 de Março, uma tabela que remeteu às câmaras para fazerem executar nos seus respectivos concelhos21; porém, as dificuldades que esta providência trouxe consigo em pouco tempo a tornaram odiosa e improcedente.

Como a Junta Provisória ia vendo os resultados de suas tarefas, quis fazer o primeiro ensaio das tremendas execuções, para que se dispusera, ordenando à comissão militar que desse fim aos necessários processos, o que ela fez sentenciando a morrerem fuzilados os criminosos: Francisco Gonçalves, oficial de pedreiro; Francisco José Afonso, tambor de artilharia; e Joaquim Coelho da Rocha, de quem já falei — pelo ânimo deliberado de atentarem contra os direitos majestáticos. — Prestaram-se por tanto a estes padecentes os necessários socorros espirituais, e foram levados ao Relvão junto do Castelo de S. João Baptista, em presença de uma fracção de cada um dos corpos de linha, e fuzilados pelos sargentos de milícias.

Procediam os seus crimes dos tumultos do dia 4 de Outubro de 1828; e suposto que o chanceler22 recebesse ordem para imediatamente fazer subir o processo aos juízes, por muito tempo o foi espaçando, dando lugar à defesa dos réus, até que finalmente se julgou improcedente. Igual morte se deu a alguns soldados do Batalhão 5.º de Caçadores23.

É de toda a justiça o confessarmos que em uma terra, onde quase todos os seus moradores estavam indispostos contra o sistema constitucional, pelas razões sobejamente expendidas nestes Anais, tinha o governo estabelecido a vencer no dia sumas dificuldades, e com efeito maravilhosamente as venceu, e suplantou seus inimigos, que andavam espavoridos, considerando como impossível o vencerem já somente segundo os planos ideados; careceu porém o mesmo governo da necessária prudência, força e virtude para desviar, longe de si, as suas próprias e mesquinhas paixões: do que resultou uma extrema inquietação, que inesperadamente lhe sobreveio, e que ia de uma vez pondo termo a seus actos administrativos, e até à própria existência de alguns de seus membros.

O coronel Torres, e o general Cabreira foram os actores principais desta cena desagradável. Pretextavam-se afectados zelos à causa pública, e debaixo desta especiosa capa24 pretendia Cabreira obter o posto de capitão-general; mas não o podendo alcançar, e receando a vinda do general Saldanha, com quem tinha inveteradas desinteligências, segundo era fama, retirou-se à Inglaterra, sucedendo-lhe no cargo seu irmão Sebastião Drago Valente de Brito Cabreira, por decreto de 3 de Março de 1829. E todavia continuou a mesma Junta divergente em seus actos.

Já em tempo do dito general Cabreira foram os principais debates entre ele e o coronel Torres, aparentemente por causa dos rigorosíssimos castigos por este votados contra as pessoas do povo, indiciadas e apanhadas em correspondências com os chefes dos amotinados e com os guerrilhas, que sem temor algum entravam nas povoações, e mesmo chegavam às portas da cidade.

Com a ausência daquele seu rival de glória foi Torres ganhando maior ascendente com os outros membros da Junta: e por consequência os usados castigos foram objecto e vasto campo para os debates dos dois partidos, em que se dividia a mesma Junta; porque, enquanto uns julgavam esses castigos como necessários para evitar alguma nova sublevação, outros os julgavam inúteis e cruéis, impróprios de um governo constitucional: de forma que, com estas e semelhantes indiscrições, ocultando sempre motivos particulares, se procurava trazer às mãos o Batalhão 5.º de Caçadores e o dos Voluntários, que eram os mais decididos e que se rivalizassem poderiam mais facilmente abandonar a disciplina e revoltar-se; e por este meio deixar aberta às vinganças dos colegas que se opunham, não obstante os valiosos serviços por eles prestados à causa da liberdade.

Não faltaram pretextos, e sonhadas desconfianças de José Quintino Dias, comandante do Batalhão 5.º, afirmando-se que o posto assentava melhor no coronel Zeferino de Sequeira, como exacto observador da disciplina militar, que muito convinha observar em ambos os partidos da Junta, os quais independentemente contavam com a protecção das armas.

Não era fácil nestas circunstâncias o calar a murmuração da tropa e oficialidade novamente chegada: por toda a parte se falava sem peso nem medida alguma, lançando veneno em todas as acções e procedimentos da Junta, ainda os mais lisos e sensatos: e por fim, queria a facção desorganizadora se escolhesse uma Junta Militar, em que não entrariam pessoas naturais da ilha, pois que (dizia ela) as não haviam com a necessária capacidade e independência; e para isto melhor se conseguir, muitas vezes foi aliciado com palavras e promessas sedutoras o dr. Ferraz, instando-se para que desistisse de membro da Junta, e o mesmo se cometeu ao secretário Alexandre Martins Pamplona, fazendo-se-lhes ver o quanto era melhor viverem retirados em suas casas, descansando de tantas fadigas como convinha já a seus estados e idades avançadas.

Sem embargo de tão vantajosas conveniências, os dois ilustres membros da Junta não cediam os cargos que tanto se ambicionavam para sinistros fins. Foi então que se pôs em acção a terrível máquina da falsidade, para se obter por força o que por boas maneiras se não podia conseguir. Em uma noite mui escura, retirando-se a suas casas os dois, Ferraz e Pamplona — foram procurados por alguns vultos que pretendendo assassiná-los o não puderam todavia conseguir, correndo sobre o primeiro, que milagrosamente se salvou, por já estar perto de casa; e assaltando o segundo, só puderam dar-lhe uma estocada de raspão, e da qual ainda escapou com vida, por auxílio do criado, que o acompanhava.

No entretanto lavravam grandes desinteligências entre o Batalhão de Voluntários; e para melhor se obter o seu resultado, estabeleceram-se na Vila da Praia, onde ele se achava, correspondências; e com efeito conseguindo-se formar partido, no dia 4 de Maio do ano em que vamos de1829, formou o batalhão em quadrado, metendo nele o seu comandante Manuel Joaquim de Meneses, a quem se fez saber: que a Junta Provisória o queria privar do comando, instando-o consequentemente para se tomar resolução em contrário. Porém, todos estes passos foram baldados porque o comandante, percebendo de onde partia a intriga, não se deu por ofendido; e desta forma conseguiu desarmar o plano dos revoltosos.

Desmanchada assim aquela tão criminosa tentativa, e não podendo alcançar outro meio de levar a efeito a completa aniquilação da Junta, recorreu-se a outra mui diversa trama. Antes porém de relatar qual foi ela, direi que, suposto se organizasse um processo a respeito daquele criminoso atentado, o presidente da comissão militar, a quem foi entregue para o continuar, conforme o depoimento das testemunhas a que procedeu, informou25, ser um dos próprios membros da Junta que espalhara o boato de que se pretendia estabelecer um governo militar, havendo para este fim uma facção republicana, que procurava depor a Junta, enviando emissários à Vila da Praia, onde fomentava e promovia a intriga com muito artifício. Desta maneira se empeceu totalmente o processo, que aliás teria outro mui diverso andamento, a não ser a categoria da pessoa nele complicada.

Vamos a uma outra tentativa, e não menos perigosa. Pôde, no dia 6 de Junho, um iate americano iludir o bloqueio do infante D. Miguel, e fundear na baía do Fanal; e, sendo já alta noite, os escaleres da nau D. João IV remando com o maior sossego, o assaltaram de improviso e o apreenderam. Ora, um tal procedimento causou um geral sobressalto e desconfiança na tropa, que se achava em toda a ilha; e ao mesmo tempo a facção desorganizadora, culpando a sentinela da ponta de S. Diogo, que defendia a baía do Fanal, passou a dar como traidores alguns membros do governo, enviando à Praia, na manhã do dia 8, um emissário académico, por nome Manuel Anacleto do Vale, com estas falsas notícias: — que os tais membros da Junta receberam e mandaram correspondências oficiais ao comandante do bloqueio para lhe entregar a ilha: que nestes termos era necessário marchasse o Batalhão de Voluntários para a cidade, onde acharia em armas o 5.º de Caçadores, disposto a unir-se-lhe para operarem em contrário daquele proceder.

Em consequência de uma impostura também inventada, e afirmada com todas as veras pelo sobredito académico, parece não havia que duvidar; mas o comandante do batalhão achou dificuldade em acreditar tanta maldade de uns homens tão distintos, e que tão arriscadamente se haviam comprometido até ali pela causa da liberdade, quando poderiam transigir com os inimigos, debaixo das maiores garantias para suas pessoas, e até aceitando as mercês e partidos vantajosos que se lhes ofereceram; e por esta mesma causa em continente destacou para a cidade o major Passos, que indagasse o que havia àquele respeito, e lho viesse denunciar.

No mesmo tempo andavam pelos diferentes grupos os emissários e os partidistas da revolta, persuadindo-os a que sem demora se pegasse em armas, e se fosse por fim a um governo tão infame e traiçoeiro. Apesar de tudo isto, o justo respeito devido ao comandante e o diminuto crédito que a muitos dos voluntários merecia o académico; assim também outras dificuldades que se antolhavam, deixaram em descanso o batalhão. Esperou-se pelo enviado major Passos, e mesmo antes que ele chegasse, entrou na Vila, nessa mesma tarde, o académico Simão José da Luz, certificando o contrário de quanto dissera o seu colega Manuel Anacleto do Vale, pois que havia em Angra inteiro sossego e que a Junta funcionava insuspeita: não obstante o ser exacto que os escaleres da nau haviam apreendido o iate americano, sem que a sentinela da ponta de S. Diogo desse por isso, em razão da escuridade da noite e do sossego com que remaram pela baía. Com esta notícia se tranquilizaram com efeito de uma vez os ânimos.

Em consequência destes movimentos, algumas pessoas suspeitas foram incomodadas e presas26, ainda que se lhes não formou processo; e o voluntário académico, autor daquela impostura teria de sofrer a pena última, se outra fosse a actualidade contudo, ainda que mais tarde, obteve soltura, vindo o processo a expirar com a mudança do governo que logo se seguiu.

No meio de tão graves inquietações ocorria a falta de numerário, não sendo suficientes os cofres da contadoria dos defuntos e ausentes, como já disse, e do algumas confrarias de que se lançou mão; pelo que, vendo-se a Junta Provisória no último apuro, obrigada a sustentar tamanhas despesas com tropa, que não podia esperar tempo algum pelos seus vencimentos, mandou por em circulação a antiga moeda de papel, que existia na alfândega, sob o valor de 200 e 4$800 reis27, e ao mesmo tempo fez cunhar outra no valor de 2$400 reis; porém a este papel moeda faltou em pouco tempo o necessário crédito, de tal forma que com suma dificuldade, se alcançava a metade do seu valor: razão porque teve de recorrer a outro expediente, que na verdade foi tanto mais útil, mandando fundir os sinos das igrejas e dos conventos do toda a ilha28, os quais em breve tempo foram reduzidos a moedas de 80 reis, e dali a pouco se aumentou o seu valor a 100 reis, por efeito da ambição com que o público as recebeu.

Foi esta moeda de um cunho mui grosseiro, por falta das necessárias máquinas; aperfeiçoando-se, se tanto podemos afirmar, com o socorro de uma lima, que lhe tirava as sobras: e por esta mesma causa se tornava mais dificultosa a sua falsificação. No 1 de Junho determinou a Junta Provisória que da mesma forma corressem as apólices de 1$200 e de 2$400.

Por este mesmo tempo tornava-se mui escandalosa a pertinácia dos académicos, existentes no Batalhão de Voluntários destacado na Praia, em se quererem separar do mesmo corpo, exigindo imperiosamente se lhes guardassem certos privilégios e isenções com que se desviavam da necessária disciplina. Esta pretensão injusta, e filha de um orgulho insuportável deu muito que sentir ao governo, que por fim lhes concedeu a separação, passando então a aquartelar-se nos Biscoitos, e depois no convento dos Capuchos, extramuros da cidade28, para onde alguns deles também levaram o seu irregular e irreligioso modo do viver, que tanto ofendeu a moral pública.

Querendo o marquês de Palmela animar os esforços das tropas aqui estacionadas e mostrar ao comandante do Batalhão 5.º, qual o agradecimento em que lhe estava a Rainha, enviou-lhe uma bandeira ricamente bordada por ela mesma, escrevendo-lhe o honroso ofício cuja cópia vai no documento anexo (Documento BB).

Foi esta generosa oferta mui apreciada peio batalhão, e devidamente invejada pelos outros corpos que não pouco se estimularam pelo amor da glória.

Notas[editar]

1. Achou-se o cadáver de um destes miseráveis meio enterrado na Canada dos Folhadais, e já quase de todo corrompido; fez-se-lhe então corpo de delito, e somente houveram indícios do matador. O segundo morto foi o cabo Ambrósio, de quem também se não descobriu o assassino.

2. Procedeu-se também a sequestro nos bens do general Prego, que andava a bordo da nau D. João VI e nos de José Acúrcio das Neves, o mais saliente português, defensor dos direitos do infante D. Miguel.

3. Publicou-se e edital em 15 de Novembro. Não faltaram ainda estratagemas para se trazerem ao laço os chefes da rebelião: por diferentes vezes saíram da cidade carros cobertos de palha, com soldados armados e outras vezes vestidos de camisolas em ar de jornaleiros, assim como também de mantos e capelos como se fossem mulheres passando pelas casas e lugares onde supunham andarem os refugiados; e com tudo isto nada aproveitaram.

4. Esta religiosa era irmã do deão Frutuoso José Ribeiro, e bastava isso!

5. Todas estas informações colhi do mesmo João Moniz, que mui francamente as deu; mas não conservava já cópia alguma das participações oficiais que eu desejava neste lugar.

6. Este respeitável eclesiástico que por sua pessoa, nobreza e saber merecera sempre um distinto lugar na sociedade (se nos é permitido esquecer algumas passagens da sua vida quando secular) foi denunciado por certas palavras menos cautas que dissera e preso; como por suas moléstias não podia montar a cavalo, o vi eu entrar na praça da Vila da Praia dentro em uma sebe sobre um carro, e encostado num colchão, que era compaixão vê-lo; apesar de tudo revestido de muita presença de espírito, perguntou em alta voz ao comandante do destacamento, Narciso de Sá Nogueira, para onde o mandava conduzir, e aceitou com muita gravidade a ordem. Pouco depois, pelo respeito que lhe era devido, e em atenção a ser um provecto octogenário, pai do guarda-mor da cidade Joaquim de Meneses, do tenente-coronel dos Biscoitos, o honrado Manuel José de Meneses, ambos vivos, foi enviado para sua casa e emprego.

7. Deram entrada nos empregos da Sé no 1.º de Janeiro de 1828.

8. No dia 14 de Dezembro. A casa era de André Machado.

9. Houvera denúncias de terem estado naquelas casas os referidos chefes.

10. Vi esta dolorosa cena em que representavam Anastácio José, oficial de carreiro; Jacinto Vieira, tesoureiro de Vila Nova; e o Carapeta do Porto Martins e outros que me não lembram. 11. O pregador frei Emídio, e o leigo frei João da Madre de Deus; assim como os presbíteros dos quais já tratei. Por estes mesmos tempos indo o padre frei José da Glória, religioso franciscano, dizer missa à quinta de D. Ana Ramos, além da cidade, o assassinou um destacamento de Caçadores, e foi lástima vê-lo trazido à cidade amarrado em um carro como se fosse um irracional. Semelhante a esta se fizeram outras mortes cruéis, que muito desacreditavam o sistema proclamado.

12. Ordem do dia de 21 de Novembro, pela qual a Junta decretara 300 varadas a cada um soldado desertor; mas a maior parte dos comandantes de distritos ou destacamentos, procediam de livres arbítrio, arvorando-se intendentes da polícia, e assim castigaram cruelmente por crimes que lhes não pertenciam como foi o alferes Vilares, e Luís António — o Bravo — às mãos de quem, se pode dizer morreu o valente António de Ávila, do Porto Judeu, por se dizer largara fogo a uma casa de palha; e foram estropiados outros homens do que ou morreram ou ficaram para sempre dentes; e é de notar que não obstante a crueldade de tais suplícios, como que pareciam correr alegres ao martírio quais primitivos atletas de religião católica romana.

13. Ingratíssimo duque da vitória (lhe chama certo escritor) “que mandou metralhar os portugueses nas águas da Terceira, procederes que lançaram um ferrete indelével sobre seu nome e que segundo nossa opinião não serão jamais imitados”.

14. Seriam 9 horas da manhã.

15. Para eternizar esta insigne maldade se lavrou na mesma ocasião um protesto que anda impresso nos já referidos Anais de J. L. Freire de Carvalho (tomo 2.º a página 8), e para esclarecimento dos leitores se transcrevem estas peças oficiais extraídas do apêndice ao padre Amaro, na parte XIV, que vão incorporadas aos documentos deste volume.

16. A 6 do dito mês.

17. Tomou posse no dia 16 de Janeiro de 1829.

18. Desde dia 19 de Janeiro deu a Câmara as maiores providências, corrigindo que a mesa da Misericórdia recebesse em seu hospital os militares; e no convento da Graça aprontou-se enfermaria para 160, prontificando a Câmara todas as camas, que não fui possível havê-las dos moradores.

19. Seria narração interminável se eu pretendesse relatar aqui os vexames e ataques que se fizeram a muitos cidadãos e mesmo autoridades da ilha, a fim de prestarem à tropa socorros a que não eram obrigados: quartéis à sua vontade, camas, lenha e trem de cozinha; além das forragens que forçosamente se tiravam dos povos. Os juízes territoriais sofreram coisas inauditas; entre outros não deve esquecer o honrado juiz ordinário da Vila de S. Sebastião, Francisco Machado Faleiro, que, usando o seu costumado brio, teve de pagar de sua casa muitas coisas estragadas e desencaminhadas pela tropa, nessa apertadíssima crise.

20. Deste plano se aproveitou algum tempo depois o conde de Vila Flor, e o fez passar como seu.

21. Que se seguiria desta tabela? Não apareceram géneros alguns à venda: trigo a 450 reis o alqueire; milho a 300 reis; sal a 200 reis, &c, &c.

22. Não alcancei quem era este empregado, cujo nome não quisera ocultar ao leitor.

23. Foram sentenciados, e arcabuzados com toda a solenidade, em execução das portarias de 25 de Maio e 4 de Junho de 1829 os seguintes soldados, por terem entrado nos movimentos dos primeiros de Outubro: Félix Maurício, Manuel Jacinto, Luiz Pinto da Costa, António José Coelho e Francisco de Paula.

24. Era esta a fama que andou naquele tempo e a voz da maior parte dos homens mais distintos da ilha. Este mesmo é também o sentido em que deste militar falou o autor do Sítio do Porto, que foi um dos emigrados. Repetidas vezes tenho eu mencionado o seu nome com elogio, e tão longe me acho de menoscabar sua memória e serviços, pelo facto de sua prematura ausência deste país, que muito pelo contrário vou aqui transcrever um trecho, escrito pelo autor dos citados Anais, em que o mesmo general é engrandecido (vide 2.º volume, a página 36) «Por um excesso de brio, (diz ele) de independência e de generosidade, o general Cabreira vendo-se o alvo de mil intrigas, e não desejando mostrar-se ambicioso, nem recorrer a medidas rigorosas, tinha sabido da ilha Terceira, talvez com mais precipitação do que devera, mas com a mesma honra com que ali tinha entrado. Parecia que neste intrépido salvador da ilha se devia tornar a confiar o comando, pondo-o superior às intrigas que o tinam forçado a deixar aquele posto, porém não pareceu o mesmo ao marquês de Palmela, que aproveitou a ocasião de escolher um homem de sua classe, o Conde de Vila Flor, o qual, com verdade, se havia briosamente comportado na guerra contra os rebeldes...”

25. Vali-me sobre este facto, da própria linguagem do autor já citado Sítio do Porto, a quem vou seguindo como texto o mais exacto.

26. Do número dos que não acreditaram o impostor, foi o autor destes Anais, e suposto assim o fizesse ver em público, como ali se achavam alguns partidistas em contrário, e que por motivos particulares lhe eram desafectos, denunciaram-no de suspeito contra o governo; e no dia 9 indo ele à cidade tratar de alguns negócios forenses, foi preso à ordem do intendente da polícia Canavarro e levado à cadeia pública, onde esteve 6 dias incomunicável, sem se lhe dar a culpa, nem constar da ordem por que foi solto. Tal era o estado e acção da justiça naquela época memorável.

27. O papel-moeda que andava em circulação até Março de 1828, eram 129$600 reis. — Emitido pela extinta junta de fazenda: 39.600$000 reis. — Apólices de 1$200 e de 2$400 reis criadas nesta ocasião pela Junta: 3:360$000 reis.

28. Passou-se ordem para esta operação já em 16 de Dezembro de 1829, e tratava por ora de sinos quebrados. Feita a experiência por estes, pouco depois mandaram-se apear os de bom uso, de forma que nem os das igrejas paroquiais somente, e os das ermidas filiais, se não ainda os de algumas câmaras foram levados para o castelo, e entregues na fundição que ali primeiro, e depois na alfândega, se preparou; e com tal rigor se procedeu a este respeito, que muitas igrejas ficaram com pequenas sinetas de que nenhum caso se fazia, sendo muitos anos depois (ainda hoje senão tem de todo reparado a falta) que algumas se proveram à custa de seus rendimentos, o que antes era obrigação do Grão Mestre da Ordem de Cristo. Entregou-se esta diligência ao corregedor Manuel José de Meireles Guerra, que dela foi um acérrimo executor, seguindo os impulsos do seu génio arrebatado, em consequências do qual não atendia ao decoro e respeito devido a estas corporações. Contaram-se naquele tempo várias anedotas, e ditos deste magistrado pelos quais se mostrava bem pouco exemplar no tocante ao culto religioso. Não se figurou na Eneida um igual Mesêncio!

29. Primeiro estiveram destacados na freguesia dos Biscoitos. Contudo já mais tarde, isto é, pela portaria de 19 de Junho de 1829, foi considerado o Batalhão de Voluntários como corpo militar operativo, e não de simples polícia, e por que se achava armado e municiado era sujeito ao regulamento que então se lhe estabeleceu. Notou-se desde esse tempo um melhor comportamento em muitos dos soldados (Veja-se a nota 2 do Cap. IX).