Anexo:Imprimir/A Relíquia
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[editar]A RELIQUIA
Decidi compôr, nos vagares d’este verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos condes de Landoso) as memorias da minha Vida — que n’este seculo, tão consumido pelas incertezas da Intelligencia e tão angustiado pelos tormentos do Dinheiro, encerra, penso eu e pensa meu cunhado Chrispim, uma lição lucida e forte.
Em 1875, nas vesperas de Santo Antonio, uma desillusão de incomparavel amargura abalou o meu sêr: por esse tempo minha tia D. Patrocinio das Neves mandou-me do Campo de Sant’Anna, onde moravamos, em romagem a Jerusalem: dentro d’essas santas muralhas, n’um dia abrazado do mez de Nizam, sendo Poncius Pilatus procurador da Judêa, Elius Lamma legado imperial da Syria e J. Kaiapha Summo Pontifice testemunhei, miraculosamente, escandalosos successos: depois voltei — e uma grande mudança se fez nos meus bens e na minha moral.
São estes casos — espaçados e altos n’uma existencia de bacharel como, em campo de herva ceifada, fortes e ramalhosos sobreiros cheios de sol e murmurio — que quero traçar, com sobriedade e com sinceridade, emquanto no meu telhado voam as andorinhas, e as moitas de cravos vermelhos perfumam o meu pomar.
Esta jornada á terra do Egypto e á Palestina permanecerá sempre como a gloria superior da minha carreira; e bem desejaria que d’ella ficasse nas Lettras, para a Posteridade, um monumento airoso e macisso. Mas hoje, escrevendo por motivos peculiarmente espirituaes, pretendi que as paginas intimas em que a relembro se não assemelhassem a um Guia Pittoresco do Oriente. Por isso (apesar das solicitações da vaidade) supprimi n’este manuscripto succulentas, resplandecentes narrativas de Ruinas e de Costumes...
De resto esse paiz do Evangelho, que tanto fascina a humanidade sensivel, é bem menos interessante que o meu sêcco e paterno Alemtejo: nem me parece que as terras favorecidas por uma presença Messianica ganhem jámais em graça ou esplendor. Nunca me foi dado percorrer os Lugares Santos da India em que o Budha viveu — arvoredos de Migadaia, outeiros de Veluvana, ou esse dôce valle de Rajagria por onde se alongavam os olhos adoraveis do Mestre perfeito quando um fogo rebentou nos juncaes, e Elle ensinou, em singela parabola, como a Ignorancia é uma fogueira que devora o homem — alimentada pelas enganosas sensações de Vida que os sentidos recebem das enganosas apparencias do Mundo. Tambem não visitei a caverna d’Hira, nem os devotos areaes entre Meca e Medina que tantas vezes trilhou Mahomet, o Propheta Excellente, lento e pensativo sobre o seu dromedario. Mas, desde as figueiras de Bethania até ás aguas caladas de Galilêa, conheço bem os sitios onde habitou esse outro Intermediario divino, cheio de enternecimento e de sonhos, a quem chamamos Jesus-Nosso-Senhor: — e só n’elles achei bruteza, seccura, sordidez, soledade e entulho.
Jerusalem é uma villa turca, com viellas andrajosas, acaçapada entre muralhas côr de lôdo, e fedendo ao sol sob o badalar de sinos tristes.
O Jordão, fio d’agua barrento e pêco que se arrasta entre areaes, nem póde ser comparado a esse claro e suave Lima que lá baixo, ao fundo do Mosteiro, banha as raizes dos meus amieiros: e todavia vêde! estas meigas aguas portuguezas não correram jámais entre os joelhos d’um Messias, nem jámais as roçaram as azas dos anjos, armados e rutilantes, trazendo do céo á terra as ameaças do Altissimo!
Entretanto como ha espiritos insaciaveis que, lendo d’uma jornada pelas terras da Escriptura, anhelam conhecer desde o tamanho das pedras até ao preço da cerveja — eu recommendo a obra copiosa e luminosa do meu companheiro de romagem, o allemão Topsius, doutor pela Universidade de Bonn e membro do Instituto Imperial de Excavações Historicas. São sete volumes in-quarto, atochados, impressos em Leipzig, com este titulo fino e profundo — Jerusalem Passeada e Commentada.
Em cada pagina d’esse solido Itinerario o douto Topsius falla de mim, com admiração e com saudade. Denomina-me sempre o illustre fidalgo lusitano; e a fidalguia do seu camarada, que elle faz remontar aos Barcas, enche manifestamente o erudito plebeu de delicioso orgulho. Além d’isso o esclarecido Topsius aproveita-me, através d’esses repletos volumes, para pendurar ficticiamente, nos meus labios e no meu craneo, dizeres e juizos ensopados de beata e babosa credulidade — que elle logo rebate e derroca com sagacidade e facundia! Diz, por exemplo: — «Diante de tal ruina, do tempo da Cruzada de Godofredo, o illustre fidalgo lusitano pretendia que Nosso Senhor, indo um dia com a Santa Veronica...» — E logo alastra a tremenda, turgida argumentação com que me deliu. Como porém as arengas que me attribue não são inferiores em sabio chorume e arrogancia theologica ás de Bossuet, eu não denunciei n’uma nota á Gazeta de Colonia— por que tortuoso artificio a afiada razão da Germania se enfeita assim de triumphos sobre a romba fé do Meio-Dia.
Ha porém um ponto de Jerusalem Passeada que não posso deixar sem energica contestação. É quando o doutissimo Topsius allude a dois embrulhos de papel, que me acompanharam e me occuparam, na minha peregrinação, desde as viellas de Alexandria até ás quebradas do Carmello. N’aquella fórma rotunda que caracterisa a sua eloquencia universitaria, o dr. Topsius diz: — «O illustre fidalgo lusitano transportava alli restos dos seus antepassados, recolhidos por elle, antes de deixar o sólo sacro da patria, no seu velho solar torreado!...» Maneira de dizer singularmente fallaz e censuravel! Porque faz suppôr á Allemanha erudita que eu viajava pelas terras do Evangelho — trazendo embrulhados n’um papel pardo os ossos dos meus avós!
Nenhuma outra imputação me poderia tanto desaprazer e desconvir. Não por me denunciar á Egreja como um profanador leviano de sepulturas domesticas: menos me pezam a mim, commendador e proprietario, as fulminações da Egreja — que as folhas sêccas que ás vezes cahem sobre o meu guardasol de cima d’um ramo morto: nem realmente a Egreja, depois de ter embolsado os seus emolumentos por enterrar um mólho d’ossos, se importa que elles para sempre jazam resguardados sob a rigida paz d’um marmore eterno, ou que andem chocalhados nas dobras molles d’um papel pardo. Mas a afirmação de Topsius desacredita-me perante a Burguezia Liberal: — e só da Burguezia Liberal, omnipresente e omnipotente, se alcançam, n’estes tempos de semitismo e de capitalismo, as coisas boas da vida, desde os empregos nos bancos até ás commendas da Conceição. Eu tenho filhos, tenho ambições. Ora a Burguezia Liberal aprecia, recolhe, assimila com alacridade um cavalheiro ornado de avoengos e solares: é o vinho precioso e velho que vai apurar o vinho novo e crú: mas com razão detesta o bacharel, filho d’algo, que passeie por diante d’ella, enfunado e têso, com as mãos carregadas de ossos de antepassados — como um sarcasmo mudo aos antepassados e aos ossos que a ella lhe faltam.
Por isso intímo o meu douto Topsius (que com seus penetrantes oculos viu formar os meus embrulhos, já na terra do Egypto, já na terra de Canaan) a que na edição segunda de Jerusalem Passeada, sacudindo pudicos escrupulos de Academico e estreitos desdens de Philosopho, divulgue á Allemanha scientifica e á Allemanha sentimental qual era o recheio que continham esses papeis pardos — tão francamente como eu o revelo aos meus concidadãos n’estas paginas de repouso e de ferias, onde a Realidade sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas roupagens da Historia, ora mais livre e saltando sob a caraça vistosa da Farça!
I
Meu avô foi o padre Rufino da Conceição, licenciado em theologia, author de uma devota Vida de Santa Philomena, e prior da Amendoeirinha. Meu pai, afilhado de Nossa Senhora da Assumpção, chamava-se Rufino da Assumpção Raposo — e vivia em Evora com a minha avó, Philomena Raposo, por alcunha a «Repolhuda,» doceira na rua do Lagar dos Dizimos. O papá tinha um emprego no correio, e escrevia por gosto no Pharol do Alemtejo.
Em 1853, um ecclesiastico illustre, D. Gaspar de Lorena, bispo de Chorazin (que é em Galilêa), veio passae o S. João a Evora, a casa do conego Pitta, onde o papá muitas vezes á noite costumava ir tocar violão. Por cortezia com os dois sacerdotes, o papá publicou no Pharol uma chronica, laboriosamente respigada no Peculio de Prégadores, felicitando Evora «pela dita d’abrigar em seus muros o insigne prelado D. Gaspar, lume fulgente da Igreja, e preclarissima torre de santidade.» O bispo de Chorazin recortou este pedaço do Pharol para o metter entre as folhas do seu Breviario; e tudo no papá lhe começou a agradar, até o aceio da sua roupa branca, até a graça chorosa com que elle cantava, acompanhando-se no violão, a xacara do conde Ordonho. Mas quando soube que este Rufino da Assumpção, tão moreno e sympathico, era o afilhado carnal do seu velho Rufino da Conceição, camarada de estudos no bom Seminario de S. José e nas veredas theologicas da Universidade, a sua affeição pelo papá tornou-se extremosa. Antes de partir de Evora deu-lhe um relogio de prata; e, por influencia d’elle, o papá, depois de arrastar alguns mezes a sua madraçaria pela alfandega do Porto, como aspirante, foi nomeado, escandalosamente, director da alfandega de Vianna.
As macieiras cobriam-se de flôr quando o papá chegou ás veigas suaves d’EntreMinho-e-Lima; e logo n’esse julho conheceu um cavalheiro de Lisboa, o commendador G. Godinho, que estava passando o verão com duas sobrinhas, junto ao rio, n’uma quinta chamada o Mosteiro, antigo solar dos condes de Lindoso. A mais velha d’estas senhoras, D. Maria do Patrocinio, usava oculos escuros, e vinha todas as manhãs da quinta á cidade, n’um burrinho, com o criado de farda, ouvir missa a Sant’Anna. A outra, D. Rosa, gordinha e trigueira, tocava harpa, sabia de cór os versos do Amor e Melancolia, e passava horas, á beira da agua, entre a sombra dos amieiros, rojando o vestido branco pelas relvas, a fazer raminhos silvestres.
O papá começou a frequentar o Mosteiro. Um guarda da alfandega levava-lhe o violão; e emquanto o commendador e outro amigo da casa, o Margaride, doutor delegado, se embebiam n’uma partida de gamão, e D. Maria do Patrocinio rezava em cima o terço — o papá, na varanda, ao lado de D. Rosa, defronte da lua, redonda e branca sobre o rio, fazia gemer no silencio os bordões e dizia as tristezas do conde Ordonho. Outras vezes jogava elle a partida de gamão: D. Rosa, sentava-se então ao pé do titi, com uma flôr nos cabellos, um livro cahido no regaço; e o papá, chocalhando os dados, sentia a caricia promettedora dos seus olhos pestanudos.
Casaram. Eu nasci n’uma tarde de sexta-feira de Paixão; e a mamã morreu, ao estalarem, na manhã alegre, os foguetes da Alleluia. Jaz, coberta de goivos, no cemiterio de Vianna, n’uma rua junto ao muro, humida da sombra dos chorões, onde ella gostava de ir passear nas tardes de verão, vestida de branco, com a sua cadellinha felpuda que se chamava Traviata.
O commendador e D. Maria não voltaram ao Mosteiro. Eu cresci, tive o sarampo; o papá engordava; e o seu violão dormia, esquecido ao canto da sala, dentro d’um sacco de baeta verde. N’um julho de grande calor, a minha criada Gervasia vestiu-me o fato pesado de velludilho preto; o papá poz um fumo no chapéo de palha; era o luto do commendador G. Godinho a quem o papá muitas vezes chamava, por entre dentes, «malandro.»
Depois, n’uma noite de entrudo, o papá morreu de repente, com uma apoplexia, ao descer a escadaria de pedra da nossa casa, mascarado d’urso, para ir ao baile das senhoras Macedos.
Eu fazia então sete annos; e lembrome de ter visto, ao outro dia, no nosso pateo, uma senhora alta e gorda, com uma mantilha rica de renda negra, a soluçar diante das manchas de sangue do papá, que ninguem lavára, e já tinham seccado nas lages. Á porta uma velha esperava, rezando, encolhida no seu mantéo de baetilha.
As janellas da frente da casa foram fechadas; no corredor escuro, sobre um banco, um candieiro de latão ficou dando a sua luzinha de capella, fumarenta e mortal. Ventava e chovia. Pela vidraça da cozinha, emquanto a Marianna, choramigando, abanava o fogareiro, eu vi passar no largo da Senhora da Agonia, o homem que trazia ás costas o caixão do papá. No alto frio do monte a capellinha da Senhora, com a sua cruz negra, parecia mais triste ainda, branca e nua, entre os pinheiros, quasi a sumir-se na nevoa; e adiante, onde estão as rochas, gemia e rolava, sem descontinuar, um grande mar d’inverno.
Á noite, no quarto de engommar, a minha criada Gervasia sentou-me no chão, embrulhado n’um saiote. De quando em quando, rangiam no corredor as botas do João, guarda da alfandega, que andava a defumar com alfazema. A cozinheira trouxe-me uma fatia de pão de ló. Adormeci: e logo achei-me a caminhar á beira d’um rio claro, onde os choupos, já muito velhos, pareciam, ter uma alma e suspiravam; e ao meu lado ia andando um homem nú, com duas chagas nos pés, e duas chagas nas mãos, que era Jesus, Nosso Senhor.
Passados dias, acordaram-me, n’uma madrugada em que a janella do meu quarto, batida do sol, resplandecia prodigiosamente como um prenuncio de coisa santa. Ao lado da cama, um sujeito risonho e gordo fazia-me cocegas nos pés com ternura e chamava-me bréjeirote. A Gervasia disse-me que era o snr. Mathias, que me ia levar para muito longe, para casa da tia Patrocinio: e o snr. Mathias, com a sua pitada suspensa, olhava espantado para as meias rôtas que me calçára a Gervasia. Embrulharam-me no chale-manta cinzento do papá; o João, guarda da alfandega, trouxe-me ao collo até á porta da rua, onde estava uma liteira com cortinas d’oleado.
Começámos então a caminhar por compridas estradas. Mesmo adormecido, eu sentia as lentas campainhas dos machos: e o snr. Mathias, defronte de mim, fazia-me de vez em quando uma festinha na cara, e dizia: «Ora cá vamos.» Uma tarde, ao escurecer, parámos de repente n’um sitio ermo, onde havia um lamaçal; o liteireiro, furioso, praguejava, sacudindo o archote acceso. Em redor, dolente e negro, rumorejava um pinheiral. O snr. Mathias, enfiado, tirou o relogio da algibeira e escondeu-o no cano da bota.
Uma noite, atravessámos uma cidade onde os candieiros da rua tinham uma luz jovial, rara e brilhante como eu nunca vira, da fórma d’uma tulipa aberta. Na estalagem em que apeámos, o criado, chamado Gonçalves, conhecia o snr. Mathias: e depois de nos trazer os bifes, ficou familiarmente encostado á mesa, de guardanapo ao hombro, contando coisas do snr. barão, e da ingleza do snr. barão. Quando recolhiamos ao quarto, alumiados pelo Gonçalves, passou por nós, bruscamente, no corredor, uma senhora, grande e branca, com um rumor forte de sêdas claras, espalhando um aroma d’almiscar. Era a ingleza do snr. barão. No meu leito de ferro, desperto pelo barulho das seges, eu pensava n’ella, rezando Ave-Marias. Nunca roçára corpo tão bello, d’um perfume tão penetrante: ella era cheia de graça, o Senhor estava com ella, e passava, bemdita entre as mulheres, com um rumor de sêdas claras...
Depois, partimos n’um grande coche que tinha as armas do rei, e rolava a direito por uma estrada lisa, ao trote forte e pesado de quatro cavallos gordos. O snr. Mathias, de chinelas nos pés e tomando a sua pitada, dizia-me, aqui e além, o nome d’uma povoação aninhada em torno d’uma velha igreja, na frescura d’um valle. Ao entardecer, por vezes, n’uma encosta, as janellas d’uma calma vivenda faiscavam com um fulgor d’ouro novo. O coche passava; a casa ficava adormecendo entre as arvores; através dos vidros embaciados eu via luzir a estrella de Venus. Alta noite tocava uma corneta; e entravamos, atroando as calçadas, n’uma villa adormecida. Defronte do portão da estalagem moviam-se silenciosamente lanternas mortiças. Em cima, n’uma sala aconchegada, com a mesa cheia de talheres, fumegavam as terrinas; os passageiros, arripiados, bocejavam, tirando as luvas grossas de lã; e eu comia o meu caldo de gallinha, estremunhado e sem vontade, ao lado do snr. Mathias, que conhecia sempre algum moço, perguntava pelo doutor delegado, ou queria saber como iam as obras da camara.
Emfim, n’um domingo de manhã, estando a choviscar, chegámos a um casarão, n’um largo cheio de lama. O snr. Mathias disse-me que era Lisboa; e, abafando-me no meu chale-manta, sentou-me n’um banco, ao fundo d’uma sala humida, onde havia bagagens e grandes balanças de ferro. Um sino lento tocava á missa; diante da porta passou uma companhia de soldados, com as armas sob as capas d’oleado. Um homem carregou os nossos bahús, entrámos n’uma sege, eu adormeci sobre o hombro do snr. Mathias. Quando elle me poz no chão, estavamos n’um pateo triste, lageado de pedrinha miuda, com assentos pintados de preto: e na escada uma moça gorda cochichava com um homem d’opa escarlate, que trazia ao collo o mealheiro das Almas.
Era a Vicencia, a criada da tia Patrocinio. O snr. Mathias subiu os degraus conversando com ella, e levando-me ternamente pela mão. N’uma sala forrada de papel escuro, encontrámos uma senhora muito alta, muito secca, vestida de preto, com um grilhão d’ouro no peito; um lenço rôxo, amarrado no queixo, cahia-lhe n’um bioco lugubre sobre a testa; e no fundo d’essa sombra negrejavam dois oculos defumados. Por traz d’ella, na parede, uma imagem de Nossa Senhora das Dôres olhava para mim, com o peito trespassado d’espadas.
— Esta é a titi, disse-me o snr. Mathias. É necessario gostar muito da titi... É necessario dizer sempre que sim á titi!
Lentamente, a custo, ella baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu senti um beijo vago, d’uma frialdade de pedra: e logo a titi recuou, enojada.
— Credo, Vicencia! Que horror! Acho que lhe puzeram azeite no cabello!
Assustado, com o beicinho já a tremer, ergui os olhos para ella, murmurei:
— Sim, titi.
Então o snr. Mathias gabou o meu genio, o meu proposito na liteira, a limpeza com que eu comia a minha sopa á mesa das estalagens.
— Está bem, rosnou a titi seccamente. Era o que faltava, portar-se mal, sabendo o que eu faço por elle... Vá, Vicencia, leve-o lá para dentro... Lave-lhe essa ramella, veja se elle sabe fazer o signal da cruz...
O snr. Mathias deu-me dois beijos repenicados. A Vicencia levou-me para a cozinha.
Á noite vestiram-me o meu fato de velludilho; e a Vicencia, séria, d’avental lavado, trouxe-me pela mão a uma sala em que pendiam cortinas de damasco escarlate, e os pés das mesas eram dourados como as columnas d’um altar. A titi estava sentada no meio do canapé, vestida de sêda preta, toucada de rendas pretas, com os dedos resplandecentes de anneis. Ao lado, em cadeiras tambem douradas, conversavam dois ecclesiasticos. Um, risonho e nedio, de cabellinho encaracolado e já branco, abriu os braços para mim, paternalmente. O outro, moreno e triste, rosnou só «boas noites.» E da mesa, onde folheava um grande livro de estampas, um homemzinho, de cara rapada e collarinhos enormes, comprimentou, atarantado, deixando escorregar a luneta do nariz.
Cada um d’elles vagarosamente me deu um beijo. O padre triste perguntou-me o meu nome, que eu pronunciava Tedrico. O outro, amoravel, mostrando os dentes frescos, aconselhou-me que separasse as syllabas e dissesse The-o-do-ri-co. Depois acharam-me parecido com a mamã, nos olhos. A titi suspirou, deu louvores a Nosso Senhor de que eu não tinha nada do Raposo. E o sujeito de grandes collarinhos fechou o livro, fechou a luneta, e timidamente quiz saber se eu trazia saudades de Vianna. Eu murmurei, atordoado:
— Sim, titi.
Então o padre mais idoso e nedio chegou-me para os joelhos, recommendou-me que fosse temente a Deus, quietinho em casa, sempre obediente á titi...
— O Theodorico não tem ninguem senão a titi... É necessario dizer sempre que sim á titi...
Eu repeti, encolhido:
— Sim, titi.
A titi, severamente, mandou-me tirar o dedo da bocca. Depois disse-me que voltasse para a cozinha, para a Vicencia, sempre a seguir pelo corredor...
— E quando passar pelo oratorio, onde está a luz e a cortina verde, ajoelhe, faça o seu signalzinho da cruz...
Não fiz o signal da cruz. Mas entreabri a cortina; e o oratorio da titi deslumbrou-me, prodigiosamente. Era todo revestido de sêda rôxa, com paineis enternecedores em caixilhos floridos, contando os trabalhos do Senhor; as rendas da toalha do altar roçavam o chão tapetado; os santos de marfim e de madeira, com aureolas lustrosas, viviam n’um bosque de violetas e de camelias vermelhas. A luz das velas de cera fazia brilhar duas salvas nobres de prata, encostadas á parede, em repouso, como broqueis de santidade; e erguido na sua cruz de pau preto, sob um docel, Nosso Senhor Jesus Christo era todo d’ouro, e reluzia.
Cheguei-me devagar até junto da almofada de velludo verde, pousada diante do altar, cavada pelos piedosos joelhos da titi. Ergui para Jesus crucificado os meus lindos olhos negros. E fiquei pensando que no céo os anjos, os santos, Nossa Senhora e o Pai de todos, deviam ser assim, de ouro, cravejados talvez de pedras: o seu brilho formava a luz do dia; e as estrellas eram os pontos mais vivos do metal precioso, transparecendo através dos véos negros, em que os embrulhava á noite, para dormirem, o carinho beato dos homens.
Depois do chá, a Vicencia foi-me deitar n’uma alcovinha pegada ao seu quarto. Fez-me ajoelhar em camisa, juntou-me as mãos, ergueu-me a face para o céo. E dictou os Padre-Nossos que me cumpria rezar pela saude da titi, pelo repouso da mamã, e por alma d’um commendador que fôra muito bom, muito santo, e muito rico, e que se chamava Godinho.
Apenas completei nove annos, a titi mandou-me fazer camisas, um fato de pano preto, e collocou-me, como interno, no collegio dos Isidoros, então em Santa Isabel.
Logo nas primeiras semanas liguei-me ternamente com um rapaz Chrispim, mais crescido que eu, filho da firma Telles, Chrispim & C.^a, donos da fabrica do fiação á Pampulha. O Chrispim ajudava á missa aos domingos; e, de joelhos, com os seus cabellos compridos e louros, lembrava a suavidade d’um anjo. Ás vezes agarrava-me no corredor e marcava-me a face, que eu tinha feminina e macia, com beijos devoradores; á noite, na sala, d’estudo, á mesa onde folheavamos os somnolentos diccionarios, passava-me bilhetinhos a lapis, chamando-me seu idolatrado o promettendo-me caixinhas de pennas d’aço...
Á quinta-feira era o desagradavel dia de lavarmos os pés. E tres vezes por semana o sebento padre Soares, vinha, de palito na bocca, interrogar-nos em doutrina e contar-nos a vida do Senhor.
— Ora depois pegaram, e levaram-no de rastos a casa de Caiphás... Olá, o da pontinha do banco, quem era Caiphás?... Emende! Emende adiante!... Tambem não! Irra, cabeçudos! Era um judeu o dos peores... Ora diz que, lá n’um sitio muito feio da Judêa, ha uma arvore toda d’espinhos, que é mesmo d’arripiar...
A sineta do recreio tocava; todos, a um tempo e d’estalo, fechavamos a cartilha.
O tristonho pateo de recreio, areado com saibro, cheirava mal por causa da visinhança das latrinas; e o regalo para os mais crescidos era tirar uma fumaça do cigarro, ás escondidas, n’uma sala terrea onde aos domingos o mestre de dansa, o velho Cavinetti, frisado e de sapatinhos decotados, nos ensinava mazurkas.
Cada mez a Vicencia, de capote e lenço, me vinha buscar depois da missa, para ir passar um domingo com a titi. Isidoro Junior, antes de eu sair, examinava-me sempre os ouvidos e as unhas; muitas vezes, mesmo na bacia d’elle, dava-me uma ensaboadella furiosa, chamando-me baixo sebento. Depois trazia-me até á porta, fazia-me uma caricia, tratava-me de seu querido amiguinho, e mandava pela Vicencia os seus respeitos á snr.ª D. Patrocinio das Neves.
Nós moravamos no Campo de Sant’Anna. Ao descer o Chiado, eu parava n’uma loja de estampas, diante do languido quadro d’uma mulher loura, com os peitos nús, recostada n’uma pelle de tigre, e sustentando na ponta dos dedos, mais finos que os do Chrispim, um pesado fio de perolas. A claridade d’aquella nudez fazia-me pensar na ingleza do snr. barão: e esse aroma, que tanto me perturbára no corredor da estalagem, respirava-o outra vez, finamente espalhado, na rua cheia de sol, pelas sêdas das senhoras que subiam para a missa do Loreto, espartilhadas e graves.
A titi, em casa, estendia-me a mão a beijar: e toda a manhã eu ficava folheando volumes do Panorama Universal, na saleta d’ella, onde havia um sofá de riscadinho, um armario rico de pau preto, e lithographias coloridas, com ternas passagens da vida purissima do seu favorito santo, o patriarcha S. José. A titi, de lenço rôxo carregado para a testa, sentada á janella por dentro dos vidros, com os pés embrulhados n’uma manta, examinava solicitamente um grande caderno de contas.
Ás tres horas enrolava o caderno; e de dentro da sombra do lenço começava a perguntar-me doutrina. Dizendo o Credo, desfiando os Mandamentos, com os olhos baixos, eu sentia o seu cheiro acre e adocicado a rapé e a formiga.
Aos domingos vinham jantar comnosco os dois ecclesiasticos. O de cabellinho encaracolado era o padre Casimiro, procurador da titi: dava-me abraços risonhos; convidava-me a declinar arbor arboris, currus curri; proclamava-me com affecto «talentaço.» E o outro ecclesiastico elogiava o collegio dos Isidoros, formosissimo estabelecimento de educação, como não havia nem na Belgica. Esse chamava-se padre Pinheiro. Cada vez me parecia mais moreno, mais triste. Sempre que passava por diante d’um espelho, deitava a lingua de fóra, e alli se esquecia a estical-a, a estudal-a, desconfiado e aterrado.
Ao jantar o padre Casimiro gostava de vêr o meu appetite.
— Vai mais um bocadinho da vitellinha guisada? Rapazes querem-se alegres e bem comidos!...
E padre Pinheiro, palpando o estomago:
— Felizes idades! Felizes idades em que se repete a vitella!
Elle e a titi fallavam então de doenças. Padre Casimiro, córadinho, com o guardanapo atado ao pescoço, o prato cheio, o copo cheio, sorria beatificamente.
Quando, na praça, entre as arvores, começavam a luzir os candieiros de gaz, a Vicencia punha o seu chale velho de xadrez e ia levar-me ao collegio. A essa hora, nos domingos, chegava o sujeitinho de cara rapada e vastos collarinhos, que era o snr. José Justino, secretario da confraria de S. José, e tabellião da titi, com cartorio a S. Paulo. No pateo, tirando já o seu paletot, fazia-me uma festa no queixo, e perguntava á Vicencia pela saude da snr.ª D. Patrocinio. Subia; nós fechavamos o pesado portão. E eu respirava consoladamente — porque me entristecia aquelle casarão com os seus damascos vermelhos, os santos innumeraveis, e o cheirinho a capella.
Pelo caminho a Vicencia fallava-me da titi, que a trouxera, havia seis annos, da Misericordia. Assim eu fui sabendo que ella padecia do figado; tinha sempre muito dinheiro em ouro n’uma bolsa de sêda verde; e o commendador Godinho, tio d’ella e da minha mamã, deixára-lhe duzentos contos em predios, em papeis, e a quinta do Mosteiro ao pé de Vianna, e pratas e louças da India... Que rica que era a titi! Era necessario ser bom, agradar sempre á titi!
Á porta do collegio a Vicencia dizia «Adeus, amorzinho,» e dava-me um grande beijo. Muitas vezes, de noite, abraçado ao travesseiro, eu pensava na Vicencia, e nos braços que lhe vira arregaçados, gordos e brancos como leite. E assim, foi nascendo no meu coração, pudicamente, uma paixão pela Vicencia.
Um dia, um rapaz já de buço chamou-me no recreio lambisgoia. Desafiei-o para as latrinas, ensanguentei-lhe lá a face toda, com um murro bestial. Fui temido. Fumei cigarros. O Chrispim sahira dos Isidoros; eu ambicionava saber jogar a espada. E o meu alto amor pela Vicencia desappareceu um dia, insensivelmente, como uma flôr que se perde na rua.
E os annos assim foram passando: pelas vesperas de Natal accendia-se um brazeiro no refeitorio, eu envergava o meu casacão forrado de baeta e ornado d’uma gola d’astrakan; depois chegavam as andorinhas aos beiraes do nosso telhado, e no oratorio da titi, em lugar de camelias, vinham braçadas dos primeiros cravos vermelhos perfumar os pés d’ouro de Jesus; depois era o tempo dos banhos de mar, e o padre Casimiro mandava á titi um gigo d’uvas da sua quinta de Torres... Eu comecei a estudar rhetorica.
Um dia o nosso bom procurador disse-me que eu não voltaria mais para os Isidoros, indo acabar os meus preparatorios em Coimbra, na casa do dr. Rôxo, lente de Theologia. Fizeram-me roupa branca. A titi deu-me n’um papel a oração que eu diariamente devia rezar a S. Luiz Gonzaga, padroeiro da mocidade estudiosa, para que elle conservasse em meu corpo a frescura da castidade, e na minha alma o medo do Senhor. O padre Casimiro foi-me levar á cidade graciosa onde dormita Minerva.
Detestei logo o dr. Rôxo. Em sua casa soffri vida dura e claustral; e foi um ineffavel gosto quando, no meu primeiro anno de Direito, o desagradavel ecclesiastico morreu miseravelmente d’um anthraz. Passei então para a divertida hospedagem das Pimentas — e conheci logo, sem moderação, todas as independencias, e as fortes delicias da vida. Nunca mais rosnei a delambida oração a S. Luiz Gonzaga, nem dobrei o meu joelho viril diante de imagem benta que usasse aureola na nuca; embebedei-me com alarido nas Camellas; affirmei a minha robustez esmurrando sanguinolentamente um marcador do Trony; fartei a carne com saborosos amores no Terreiro da Herva; vadiei ao luar, ganindo fados; usava moca; e como a barba me vinha, basta e negra, aceitei com orgulho a alcunha de Raposão. Todos os quinze dias porém escrevia á titi, na minha boa letra, uma carta humilde e piedosa, onde lhe contava a severidade dos meus estudos, o recato dos meus habitos, as copiosas rezas e os rigidos jejuns, os sermões de que me nutria, os dôces desaggravos ao Coração de Jesus á tarde, na Sé, e as novenas com que consolava a minha alma em Santa-Cruz no remanso dos dias feriados...
Os mezes de verão em Lisboa eram depois dolorosos. Não podia sahir, mesmo a espontar o cabello, sem implorar da titi uma licença servil. Não ousava fumar ao café. Devia recolher virginalmente á noitinha: e antes de me deitar tinha de rezar com a velha um longo terço no oratorio. Eu proprio me condemnára a esta detestavel devoção!
— Tu lá nos estudos costumas fazer o teu terço? perguntára-me, com seccura, a titi.
E eu, sorrindo abjectamente:
— Ora essa! É que nem posso adormecer sem ter rezado o meu rico terço!...
Aos domingos continuavam as partidas. O padre Pinheiro, mais triste, queixava-se agora do coração, e um pouco tambem da bexiga. E havia outro commensal, velho amigo do commendador Godinho, fiel visita das Neves, o Margaride, o que fôra delegado em Vianna, depois juiz em Mangualde. Rico por morte de seu mano Abel, secretario da Camara Patriarchal, o doutor aposentára-se, farto dos autos, e vivia em ocio, lendo os periodicos, n’um predio seu na Praça da Figueira. Como conhecêra o papá, e muitas vezes o acompanhará ao Mosteiro, tratou-me logo com authoridade e por você.
Era um homem corpulento e solemne, já calvo, com um carão livido, onde destacavam as sobrancelhas cerradas, densas e negras como carvão. Raras vezes penetrava na sala da titi sem atirar, logo da porta, uma noticia pavorosa. «Então, não sabem? Um incendio medonho, na Baixa!» Apenas uma fumaraça n’uma chaminé. Mas o bom Margaride, em novo, n’um sombrio accesso d’imaginação, compuzera duas tragedias; e d’ahi lhe ficára este gosto morbido d’exagerar e d’impressionar. «Ninguem como eu, dizia elle, saborêa o grandioso...»
E, sempre que aterrava a titi e os sacerdotes, sorvia gravemente uma pitada.
Eu gostava do dr. Margaride. Camarada do papá em Vianna, muitas vezes lhe ouvira cantar, ao violão, a xacara do conde Ordonho. Tardes inteiras vagueára com elle poeticamente, pela beira da agua, no Mosteiro, quando a mamã fazia raminhos silvestres á sombra dos amieiros. E mandou-me as amendoas mal eu nasci, á noitinha, em sexta-feira de Paixão. Além d’isso, mesmo na minha presença, elle gabava francamente á titi o meu intellecto, e a circumspecção dos meus modos.
— O nosso Theodorico, D. Patrocinio, é moço para deleitar uma tia... V. exc.^a, minha rica senhora, tem aqui um Telemaco!
Eu córava, modesto.
Ora foi justamente passeando com elle no Rocio, n’um dia d’agosto, que eu conheci um parente nosso, afastado, primo do commendador G. Godinho. O dr. Margaride apresentou-m’o, dizendo apenas: — «o Xavier, teu primo, moço de grandes dotes.» Era um homem enxovalhado, de bigode louro, que fôra galante e desbaratára furiosamente trinta contos, herdados de seu pai, dono d’uma cordoaria em Alcantara. O commendador G. Godinho, mezes antes de morrer da sua pneumonia, tinha-o recolhido por caridade á secretaria da Justiça, com vinte mil reis por mez. E o Xavier agora vivia com uma hespanhola chamada Carmen, e tres filhos d’ella, n’um casebre da rua da Fé.
Eu fui lá n’um domingo. Quasi não havia moveis; a bacia da cara, a unica, estava entalada no fundo rôto da palhinha d’uma cadeira. O Xavier toda a manhã deitára escarros de sangue pela bocca. E a Carmen, despenteada, em chinelas, arrastando uma bata de fustão manchada de vinho, embalava sorumbaticamente pelo quarto uma criança embrulhada n’um trapo e com a cabecinha coberta de feridas.
Immediatamente o Xavier, tratando-me por tu, fallou-me da tia Patrocinio... Era a sua esperança, n’aquella sombria miseria, a tia Patrocinio! Serva de Jesus, proprietaria de tantos predios, ella não podia deixar um parente, um Godinho, definhar-se alli n’aquelle casebre, sem lençoes, sem tabaco, com os filhos em redor, esfarrapados, a chorar por pão. Que custava á tia Patrocinio estabelecer-lhe, como já fizera o Estado, uma mesadinha de vinte mil reis?
— Tu é que lhe devias fallar, Theodorico! Tu é que lhe devias dizer... Olha essas crianças. Nem meias teem... Anda cá, Rodrigo, dize aqui ao tio Theodorico. Que comeste hoje ao almoço?... Um bocado de pão d’hontem! E sem manteiga, sem mais nada! E aqui está a nossa vida, Theodorico! Olha que é duro, menino!
Enternecido, prometti fallar á titi.
Fallar á titi! Eu nem ousaria contar á titi que conhecia o Xavier, e que entrava n’esse casebre impuro onde havia uma hespanhola, emmagrecida no peccado.
E para que elles não percebessem o meu ignobil terror da titi, não voltei á rua da Fé.
No meado de setembro, no dia da Natividade de Nossa Senhora, soube pelo dr. Barroso que o primo Xavier, quasi a morrer, me queria fallar em segredo.
Fui lá, de tarde, contrariado. Na escada cheirava a febre. A Concha, na cozinha, conversava por entre soluços com outra hespanhola, magrita, de mantilha preta e corpetesinho triste de setim côr de cereja. Os pequenos, no chão, rapavam um tacho d’açorda. E na alcova o Xavier, enrodilhado n’um cobertor, com a bacia da cara ao lado, cheia de escarros de sangue, tossia, despedaçadamente:
— És tu, rapaz?
— Então que é isso, Xavier?
Elle exprimiu, n’um termo obsceno, que estava perdido. E estirando-se de costas, com um brilho secco nos olhos, fallou-me logo da titi. Escrevera-lhe uma carta linda, de rachar o coração: a fera não respondera. E, agora, ia mandar para o Jornal de Noticias um annuncio, a pedir uma esmola, assignando «Xavier Godinho, primo do rico commendador G. Godinho.» Queria vêr se D. Patrocinio das Neves deixaria um parente, um Godinho, mendigar assim, publicamente, na pagina d’um jornal.
— Mas é necessario que tu me ajudes, rapaz, que a enterneças! Quando ella lêr o annuncio, conta-lhe esta miseria! Desperta-lhe o brio. Dize-lhe que é uma vergonha vêr morrer ao abandono um parente, um Godinho. Dize-lhe que já se rosna! Olha, se hoje pude tomar um caldo, é que essa rapariga, a Lolita, que está em casa da Benta Bexigosa, nos trouxe ahi quatro corôas... Vê tu a que eu cheguei!
Ergui-me, commovido.
— Conta commigo, Xavier.
— Olha, se tens ahi cinco tostões que te não façam falta, dá-os á Concha.
Dei-lh’os a elle: e sahi, jurando-lhe que ia fallar á titi, solemnemente, em nome dos Godinhos e em nome de Jesus!
Depois do almoço, ao outro dia, a titi, de palito na bocca, e vagarosa, desdobrou o Jornal de Noticias. E decerto achou logo o annuncio do Xavier, porque ficou longo tempo fitando o canto da terceira pagina onde elle negrejava, afflictivo, vergonhoso, medonho.
Então pareceu-me vêr, voltados para mim, lá do fundo nú do casebre, os olhos afflictos do Xavier; a face amarella da Concha, lavada de lagrimas; as pobres mãosinhas dos pequenos, magras, á espera da côdea de pão... E todos aquelles desgraçados anciavam pelas palavras que eu ia lançar á titi, fortes, tocantes, que os deviam salvar, e dar-lhes o primeiro pedaço de carne d’aquelle verão de miseria. Abri os labios. Mas já a titi, recostando-se na cadeira, rosnava com um sorrisinho feroz:
— Que se aguente... É o que succede a quem não tem temor de Deus e se mette com bebedas... Não tivesse comido tudo em relaxações... Cá para mim, homem perdido com saias, homem que anda atraz de saias, acabou... Não tem o perdão de Deus, nem tem o meu! Que padeça, que padeça, que tambem Nosso Senhor Jesus Christo padeceu!
Baixei a cabeça, murmurei:
— E ainda nós não padecemos bastante... Tem a titi razão. Que se não mettesse com saias!
Ella ergueu-se, deu as graças ao Senhor. Eu fui para o meu quarto, fechei-me lá, a tremer, sentindo ainda regeladas e ameaçadoras, as palavras da titi, para quem os homens «acabavam quando se mettiam com saias.» Tambem eu me mettera com saias, em Coimbra, no Terreiro da Herva! Alli, no meu bahú, tinha eu documentos do meu peccado, a photographia da Thereza dos Quinze, uma fita de sêda, e uma carta d’ella, a mais dôce, em que me chamava «unico affecto da sua alma» e me pedia dezoito tostões! Eu cosera essas reliquias dentro do fôrro d’um collete de pano, receando as incessantes rebuscas da titi, por entre a minha roupa intima. Mas lá estavam, no bahú de que ella guardava a chave, dentro do collete, fazendo uma dureza de cartão que qualquer dia poderiam palpar os seus dedos desconfiados... E eu acabava logo para a titi!
Abri devagarinho o bahú, descosi o fôrro, tirei a carta deliciosa da Thereza, a fita que conservára o aroma da sua pelle, e a sua photographia, de mantilha. Na pedra da varanda, sem piedade, queimei tudo, amabilidades e feições: e sacudi desesperadamente para o saguão as cinzas da minha ternura.
N’essa semana não ousei voltar á rua da Fé. Depois, um dia que choviscava, fui lá, ao escurecer, encolhido sob o meu guarda-chuva. Um visinho, vendo-me espreitar de longe as janellas negras e mortas do casebre, disse-me que o snr. Godinho, coitado, fôra para o hospital n’uma maca.
Desci, triste, ao comprido das grades do Passeio. E, no crepusculo humido, tendo roçado bruscamente por outro guarda-chuva, ouvi de repente o meu nome de Coimbra, lançado com alegria.
— Oh, Raposão!
Era o Silverio, por alcunha o Rinchão, meu condiscipulo, e companheiro de casa das Pimentas. Estivera passando esse mez no Alemtejo, com seu tio, ricaço illustre, o barão d’Alconchel. E agora, de volta, ia vêr uma Ernestina, rapariguita loura, que morava no Salitre, n’uma casa côr de rosa, com roseirinhas á varanda.
— Queres tu vir cá um bocado, ó Raposão? Está lá outra rapariga bonita, a Adelia... Tu não conheces a Adelia? Então que diabo, vem vêr a Adelia... É um mulherão!
Era, um domingo, noite de partida da titi; eu devia recolher religiosamente ás oito horas. Cocei a barba, indeciso. O Rinchão fallou da brancura dos braços da Adelia: e eu comecei a caminhar ao lado do Rinchão, enfiando as luvas pretas.
Munidos d’um cartucho de pasteis e de uma garrafa de Madeira, encontrámos a Ernestina a coser um elastico nas suas botinas de duraque. E a Adelia, estendida no sofá, de chambre e em saia branca, com os chinelos cahidos no tapete, fumava um cigarro languido. Eu sentei-me ao lado d’ella, commovido e mono, com o meu guarda-chuva entre os joelhos. Só quando o Silverio e Ernestina correram dentro á cozinha, abraçados, a buscar copos para o Madeira, ousei perguntar á Adelia, córando:
— Então a menina d’onde é?
Era de Lamego. E eu, novamente acanhado, só pude gaguejar que era tristonho aquelle tempo de chuva. Ella pediu-me outro cigarro, cortezmente, dizendo-me — o cavalheiro. Apreciei estes modos. As mangas largas do seu roupão, escorregando descobriam braços tão brancos e macios que entre elles a Morte mesma deveria ser deleitosa.
Fui eu que lhe offereci o prato onde a Ernestina collocára os pasteis. Ella quiz saber o meu nome. Tinha um sobrinho que tambem se chamava Theodorico; e isto foi como um fio subtil e forte que veio, do seu coração, enrodilhar-se no meu.
— Porque é que o cavalheiro não põe o guarda-chuva alli a um canto? disse-me ella, rindo.
O brilho picante dos seus dentinhos miudos fez desabrochar dentro em mim uma flôr de madrigal.
— É para não me tirar d’aqui d’ao pé da menina nem um instantinho que seja.
Ella fez-me uma cocega lenta no pescoço. Eu, aboborado de gôzo, bebi o resto do Madeira que ella deixára no calice.
A Ernestina, poetica, e cantando o fado, aninhou-se nos joelhos do Rinchão. Então a Adelia, revirando-se languidamente, puxou-me a face — e os meus labios encontraram os seus no beijo mais sério, mais sentido, mais profundo que até ahi abalára o meu sêr.
N’esse dôce instante, um relogio medonho, com o mostrador fingindo uma face de lua, e que parecia espreitar-me de sobre o marmore d’uma mesa do mogno, d’entre dois vasos sem flôres, começou a dar dez, horas, fanhoso, ironico, pachorrento.
Jesus! era a hora do chá em casa da titi! Com que terror eu trepei, esbaforido, sem mesmo abrir o guarda-chuva, as viellas escuras e infindaveis que levam ao Campo de Sant’Anna! Em casa, nem tirei as botas enlameadas. Enfiei pela sala; e vi logo, lá ao fundo, no sofá de damasco, os oculos da titi, mais negros, assanhados, esperando por mim e fuzilando. Ainda balbuciei:
— Titi...
Mas já ella gritava, esverdinhada de cólera, sacudindo os punhos.
— Relaxações em minha casa não admitto! Quem quizer viver aqui ha de estar ás horas que eu marco! Lá deboches e porcarias, não, emquanto eu fôr viva! E quem não lhe agradar, rua!
Sob a rajada estridente da indignação da snr.ª D. Patrocinio, padre Pinheiro e o tabellião Justino tinham dobrado a cabeça embaçados. O dr. Margaride, para apreciar conscienciosamente a minha culpa, puxou o seu pesado relogio d’ouro. E foi o bom Casimiro que interveio, como sacerdote, como procurador, influente e suave.
— D. Patrocinio tem razão, tem muita razão em querer ordem em casa... Mas talvez o nosso Theodorico se tivesse demorado um pouco mais no Martinho, a ouvir fallar d’estudos, de compendios...
Exclamei amargamente:
— Nem isso, padre Casimiro! Nem no Martinho estive! Sabe onde estive? No convento da Encarnação! É verdade, encontrei um condiscipulo meu, que ia lá buscar a irmã. Hoje era festa, a irmã tinha ido passar o dia com uma tia, uma commendadeira... Estivemos á espera, a passear no pateo... A irmã vai casar, elle andou a contar-me do noivo, e do enxoval, e do apaixonada que ella está... Eu morto por me safar, mas com ceremonia do rapaz, que é sobrinho do barão d’Alconchel... E elle zás, zás, a fallar da irmã, e do namoro, e das cartas...
A tia Patrocinio uivou de furor.
— Olha que conversa! Que porcaria de conversa! Que indecente conversa para o pateo d’uma casa de religião! Cala-te, alma perdida, que até devias ter vergonha!... E fique entendendo! Para outra vez que venha a estas horas, não me entra em casa! Fica na rua, como um cão...
Então o dr. Margaride estendeu a mão pacificadora e solemne:
— Está tudo explicado! O nosso Theodorico foi imprudente, mas o sitio onde esteve é respeitavel... E eu conheço o barão d’Alconchel. É um cavalheiro da maior circumspecção, e um dos mais abastados do Alemtejo... Talvez mesmo um dos mais ricos proprietarios de Portugal... O mais rico, direi!... Mesmo lá fóra não haverá fortuna territorial que lhe exceda. Nem que se lhe compare!... Só em porcos! Só em cortiça! Centenares de contos! milhões!
Erguera-se; o seu vozeirão empolado rolava serras d’ouro. E o bom Casimiro murmurava, ao meu lado, com brandura:
— Tome o seu chásinho, Theodorico, vá tomando o seu chásinho. E creia que a tia não deseja senão o seu bem...
Puxei, com a mão a tremer, a minha chavena de chá: e, remexendo desfallecidamente o fundo d’assucar, pensava em abandonar para sempre a casa d’aquella velha medonha que assim, me ultrajava diante da Magistratura e da Igreja, sem consideração pela barba que me começava a nascer, forte, respeitavel e negra.
Mas, aos domingos, o chá era servido nas pratas do commendador G. Godinho. Eu via-as, macissas e resplandecentes, diante de mim: o grande bule terminando em bico de pato; o assucareiro cuja aza tinha a fórma d’uma cobra assanhada; e o paliteiro gentil em figura de macho trotando sob os seus alforges. E tudo pertencia á titi. Que rica que era a titi! Era necessario ser bom, agradar sempre á titi!...
Por isso, mais tarde, quando ella penetrou no oratorio para cumprir o terço, já eu lá estava, de rojos, gemendo, martellando o peito, e supplicando ao Christo de ouro que me perdoasse ter offendido a titi.
Um dia emfim cheguei a Lisboa, com as minhas cartas de doutor mettidas n’um canudo de lata. A titi examinou-as reverente, achando um sabor ecclesiastico ás linhas em latim, ás paramentosas fitas vermelhas, e ao sêllo dentro do seu relicario.
— Está bom, disse ella, estás doutor. A Deus Nosso Senhor o deves, vê não lhe faltes...
Corri logo ao oratorio, com o canudo na mão, agradecer ao Christo de ouro o meu glorioso grau de bacharel.
Na manhã seguinte, estando ao espelho, a espontar a barba, que agora tinha cerrada e negra, o padre Casimiro entrou-me pelo quarto, risonho e a esfregar as mãos.
— Boa nova vos trago aqui, snr. doutor Theodorico!...
E depois de me acariciar, segundo o seu affectuoso costume, com palmadinhas dôces nos rins, o santo procurador revelou-me que a titi, satisfeita commigo, decidira comprar-me um cavallo para eu dar honestos passeios, e espairecer por Lisboa.
— Um cavallo! Oh, padre Casimiro!
Um cavallo. E além d’isso, não querendo que seu sobrinho, já barbado, já letrado, soffresse um vexame, por lhe faltar ás vezes um troco para deitar na salva de Nossa Senhora do Rosario, a titi estabelecia-me uma mezada de tres moedas.
Abracei com calor o padre Casimiro. E desejei saber se a amoravel intenção da titi era que eu não tivesse outra occupação além de cavalgar por Lisboa, e lançar pratinhas na salva de Nossa Senhora.
— Olhe, Theodorico, eu parece-me que a titi não quer que você tenha outro mister senão temer a Deus... O que lhe digo é que o amigo vai passal-a boa e regalada... E agora, ande, vá-lhe lá dentro agradecer, e diga-lhe uma coisinha mimosa.
Na saleta, onde brilhavam pelas paredes os feitos piedosos do patriarcha S. José, a titi, sentada a um canto do sofá de riscadinho, fazia meia, com um chale de Tonkin pelos hombros.
— Titi, murmurei eu encolhido, venho aqui agradecer...
— Está bom, vai com Deus.
Então, devotamente, beijei-lhe a franja do chale. A titi gostou. Eu fui com Deus.
Começou d’ahi, farta e regalada, a minha existencia de sobrinho da snr.ª D. Patrocinio das Neves. Ás oito horas, pontualmente, vestido de preto, ia com a titi á igreja de Sant’Anna, ouvir a missa do padre Pinheiro. Depois d’almoço, tendo pedido licença á titi, e rezadas no oratorio tres Gloria Patri contra as tentações, sahia a cavallo, de calça clara. Quasi sempre a titi me dava alguma incumbencia beata: passar em S. Domingos, e dizer a oração pelos tres santos martyres do Japão; entrar na Conceição Velha, e fazer o acto de desaggravo pelo Sagrado Coração de Jesus...
E eu receava tanto desagradar-lhe, que nunca deixava de dar estes ternos recados que ella mandava a casa do Senhor.
Mas era este o momento desagradavel do meu dia: ás vezes, ao sahir, surrateiro, do portão da igreja, topava com algum condiscipulo republicano, dos que me acompanhavam em Coimbra, nas tardes de procissão, chasqueando o Senhor da Cana Verde.
— Oh, Raposão! pois tu agora...
Eu negava, vexado:
— Ora essa! Não me faltava mais nada! Sou mesmo lá de carolices... Qual! entrei aqui por causa d’uma rapariga... Adeus, tenho a egua á espera.
Montava — e de luva preta, a perna bem collada á sella, um botãosinho de camelia no peito, ia caracolando, em ocio e luxo, até ao largo do Loreto. Outras vezes deixava a egua no Arco do Bandeira, e gozava uma manhã regalada no bilhar do Montanha.
Antes do jantar, em chinelas, no oratorio com a titi, eu fazia a jaculatoria a S. José, aio de Jesus, custodio de Maria e amorosissimo patriarcha. Á mesa, adornada apenas por compoteiras de doce de calda em torno d’uma travessa d’aletria, eu contava á titi o meu passeio, as igrejas em que me deleitára, e quaes os altares alumiados. A Vicencia escutava com devoção, perfilada no seu lugar costumado, entre as duas janellas, onde um retrato de nosso santo padre Pio IX enchia a tira de parede verde, tendo por baixo, pendente d’um cordão, um velho oculo d’alcance, reliquia do commendador G. Godinho. Depois do café a titi, lentamente, cruzava os braços; e o seu carão sumia-se, dormente e pesado, na sombra do lenço rôxo.
Eu ia enfiar as botas; e, authorisado agora por ella a recrear-me fóra de casa até ás nove e meia, corria ao fim da rua da Magdalena, ao pé do largo dos Caldas. Ahi, com resguardo, encolhido na gola do meu sobretudo, cosido com o muro, como se o candieiro de gaz que alli havia fosse o olho inexoravel da titi — penetrava sofregamente na escadinha da Adelia...
Sim, da Adelia! Porque nunca mais me esquecera, desde a noite em que o Rinchão me levou ao Salitre, o beijo que ella me dera, languida e branca, sobre o sofá. Em Coimbra procurára mesmo fazer-lhe versos: e esse amor dentro do meu peito foi no ultimo anno de Universidade, no anno de Direito ecclesiastico, como um maravilhoso lirio que ninguem via e que perfumava a minha vida... Apenas a titi me estabeleceu a mezada das tres moedas, corri em triumpho ao Salitre; lá havia as roseirinhas á janella, mas a Adelia já lá não estava. E foi ainda o prestante Rinchão que me mostrou esse primeiro andar, junto ao largo dos Caldas, onde ella agora vivia patrocinada por Eleuterio Serra, da firma Serra Brito & C.^a, com loja de fazendas e moelas na Conceição Velha. Mandei-lhe uma carta ardente e séria, pondo reverentemente no alto: «Minha senhora.» Ella respondeu, com dignidade: — «O cavalheiro póde vir aqui ao meio dia.» Levei-lhe uma caixinha de pastilhas de chocolate, atada com uma fita de sêda azul: pizando commovido a esteira nova da sala, eu antevia, pela engommada brancura das bambinellas, a frescura das suas saias; e o rigido alinho dos moveis revelava-me a rectidão dos seus sentimentos. Ella entrou, um pouco constipada, com um chale vermelho pelos hombros. Reconheceu logo o amigo do Rinchão; fallou da Ernestina, com severidade, chamando-lhe «porcalhona.» E a sua voz enrouquecida, o seu defluxo, davam-me o desejo de a curar nos meus braços, d’um longo dia d’agasalho e somnolencia, sob o peso dos cobertores, na penumbra molle da sua alcova. Depois ella quiz saber se eu era empregado ou estava no commercio... Eu contei-lhe com orgulho a riqueza da titi, os seus predios, as suas pratas. Disse-lhe, com as suas mãos grossas presas nas minhas:
— Se a titi agora rebentasse, eu é que lhe punha á menina uma casa chic!
Ella murmurou, banhando-me todo na negra doçura do seu olhar:
— Ora! o cavalheiro, se apanhasse o bago, não se importava mais commigo!
Ajoelhei sobre a esteira, tremulo, esmagando o peito contra os seus joelhos, offertando-me como uma rez; ella abriu o seu chale, aceitou-me misericordiosamente.
Agora, á noitinha (emquanto Eleuterio, no club da rua Nova do Carmo, jogava a manilha) eu tinha alli na alcova da Adelia a radiante festa da minha vida. Levára para lá um par de chinelas — era o eleito do seu seio. Ás nove e meia, despenteada, envolta á pressa n’um roupão de flanella, com os pés nús, acompanhava-me pela escadinha de traz, colhendo em cada degrau, nos meus labios, um beijo lento e saudoso.
— Adeus, Délinha!
— Agasalha-te, riquinho!
E eu recolhia devagar ao campo de Sant’Anna, ruminando o meu gozo!
O verão passou, languidamente. Os primeiros ventos d’outono levaram as andorinhas e as folhagens do campo de Sant’Anna: e logo n’esse outubro, de repente, a minha vida se tornou mais facil, mais larga. A titi mandára-me fazer uma casaca; e eu estreei-a, com permissão d’ella, indo ouvir a S. Carlos o Poliuto— opera que o dr. Margaride recommendára, como «repassada de sentimentos religiosos e cheia de elevada lição.» Fui com elle, de luvas brancas, frizado. Depois, no outro dia, ao almoço, contei á titi o devoto enredo, os idolos derrubados, os canticos, as fidalgas que estavam nos camarotes, e de que lindo velludo vestia a rainha.
— E sabe quem me veio fallar, titi? O barão d’Alconchel, o ricaço, tio d’aquelle rapaz que foi meu condiscipulo. Veio apertar-me a mão, esteve um bocado commigo no salão... Tratou-me com muita consideração.
A titi gostou d’esta consideração.
Depois, tristemente, como um moralista magoado, queixei-me do nedio decote d’uma senhora immodesta, núa nos braços, núa no peito, mostrando toda essa carne, esplendida e irreligiosa, que é a desolação do justo e a angustia da Igreja.
— Jesus, Senhor, que vexame! Acredite a titi, estava com nojo!
A titi gostou d’este nojo.
E passados dias, depois do café, quando eu me dirigia, ainda de chinelas, ao oratorio, a fazer uma curta petição ás chagas do nosso Christo d’ouro — a titi, já de braços cruzados e somnolenta, disse-me d’entre a sombra do lenço:
— Está bom, se queres, volta hoje a S. Carlos... E lá quando te appetecer, não te acanhes, tens licença, pódes ir gozar um bocado de musica... Agora que estás um homem, e que parece que tens proposito, não me importa que fiques fóra, até ás onze ou onze e meia... Em todo o caso a essa hora quero estar já de porta fechada, e tudo prompto, para começarmos o terço.
Ella não viu o triumphante lampejar dos meus olhos. Eu murmurei, requebrado, a babar-me de gosto devoto:
— Lá o terço, titi, lá o meu querido terço não perdia eu, nem pelo maior divertimento... Nem que el-rei me convidasse para um chásinho no paço!
Corri, delirante, a enfiar a casaca. E este foi o começo d’essa anhelada liberdade que eu conquistára laboriosamente, vergando o espinhaço diante da titi, macerando o peito diante de Jesus! Liberdade bem vinda, agora que Eleuterio Serra partira para Paris, fazer os seus fornecimentos, e deixára a Adelia só, solta, bella, mais jovial, mais fogosa!
Sim, decerto, eu ganhára a confiança da titi com os meus modos pontuaes, sisudos, servis e beatos! Mas o que a levára a alargar assim, com generosidade, as minhas horas de honesto recreio, fôra (como ella disse confidencialmente ao padre Casimiro) a certeza de que eu «me portava com religião e não andava atraz de saias.»
Porque para a tia Patrocinio todas as acções humanas, passadas por fóra dos portaes das igrejas, consistiam em andar atraz de calças ou andar atraz de saias: — e ambos estes dôces impulsos naturaes lhe eram igualmente odiosos!
Donzella, e velha, e resequida como um galho de sarmento; não tendo jámais provado na livida pelle senão os bigodes do commendador G. Godinho, paternaes e grisalhos; resmungando incessantemente, diante de Christo nú, essas jaculatorias das Horas de piedade, soluçantes de amor divino — a titi entranhára-se, pouco a pouco, d’um rancor invejoso e amargo a todas as fórmas e a todas as graças do amor humano.
E não lhe bastava reprovar o amor como coisa profana: a snr.ª D. Patrocinio das Neves fazia uma carantonha, e varria-o como coisa suja. Um moço grave, amando sériamente, era para ella «uma porcaria!» Quando sabia d’uma senhora que tivera um filho, cuspia para o lado, rosnava — «que nojo!» E quasi achava a Natureza obscena por ter creado dois sexos.
Rica, apreciando o conforto, nunca quizera em casa um escudeiro — para que não houvesse na cozinha, nos corredores, saias a roçar com calças. E apesar de irem embranquecendo os cabellos da Vicencia, de ser decrepita e gaga a cozinheira, de não ter dentes a outra criada chamada Eusebia, andava-lhes sempre remexendo desesperadamente nos bahús, e até na palha dos enxergões, a vêr se descobria photographia d’homem, carta d’homem, rasto d’homem, cheiro d’homem.
Todas as recreações moças; um passeio gentil com senhoras, em burrinhos; um botão de rosa orvalhado offerecido na ponta dos dedos; uma decorosa contradança em jucundo dia de Paschoa; outras alegrias, ainda mais candidas, pareciam á titi perversas, cheias de sujidade, e chamava-lhes relaxações. Diante d’ella já os sisudos amigos da casa não ousavam mencionar d’essas emoventes historias, lidas nas gazetas, e em que transparecem motivos d’amor — porque isso a escandalisava como o desbragamento de uma nudez.
— Padre Pinheiro! gritou ella um dia furiosa, com os oculos chammejantes para o desventuroso ecclesiastico, ao ouvil-o narrar d’uma criada que em França atirára o filho á sentina. Padre Pinheiro! Faça favor de me respeitar... Não é lá pela latrina! É pela outra porcaria!
Mas era ella propria que sem cessar alludia a desvarios e a peccados da Carne — para os vituperar, com odio: atirava então o novello de linha para cima da mesa, espetando-lhe raivosamente as agulhas de meia — como se trespassasse alli, tornando-o para sempre frio, o vasto e inquieto coração dos homens. E quasi todos os dias, com os dentes rilhados, repetia (referindo-se a mim) que se uma pessoa do seu sangue, e que comesse o seu pão, andasse atraz de saias, ou se désse a relaxações, havia d’ir para a rua, escorraçado a vassoura, como um cão.
Por isso agora as minhas precauções eram tão apuradas que, para evitar me ficasse na roupa ou na pelle o delicioso cheiro da Adelia, eu trazia na algibeira bocados soltos d’incenso. Antes de galgar a triste escadaria de casa, penetrava subtilmente na cavalhariça deserta, ao fundo do pateo; queimava no tampo d’uma barrica vazia um pedaço da devota resina; e alli me demorava, expondo ao aroma purificador as abas do jaquetão e as minhas barbas viris... Depois subia; e tinha a satisfação de vêr logo a titi farejar, regalada:
— Jesus, que rico cheirinho a igreja!
Modesto, e com um suspiro, eu murmurava:
— Sou eu, titi...
Além d’isso, para melhor a persuadir «da minha indifferença por saias,» colloquei um dia, no soalho do corredor, como perdida, uma carta com sêllo — certo que a religiosa D. Patrocinio, minha senhora e tia, a abriria logo, vorazmente. E abriu, e gostou. Era escripta por mim a um condiscipulo d’Arrayollos; e dizia, em letra nobre, estas cousas edificantes: «Saberás que fiquei de mal com o Simões, o de philosophia, por elle me ter convidado a ir a uma casa deshonesta. Não admitto d’estas offensas. Tu lembras-te bem como já em Coimbra eu detestava taes relaxações. E parece-me ser uma grandissima cavalgadura aquelle que, por causa d’uma distracção que é fogo-viste-linguiça, se arrisca a penar, por todos os seculos e seculos, amen, nas fogueiras de Satanaz, salvo seja! Ora n’uma d’essas refinadissimas asneiras não é capaz de cahir o teu do C. — Raposo.»
A titi leu, a titi gostou. E agora eu vestia a minha casaca, dizia-lhe que ia ouvir a Norma, beijava com unção os ossos dos seus dedos; — e corria, ao largo dos Caldas, á alcova da Adelia, a afundar-me perdidamente nas beatitudes do Peccado. Alli, á meia luz que dava através da porta envidraçada o candieiro de petroline da sala, os cortinados de cambraia e as saias dependuradas tomavam brancuras celestes de nuvem; o cheiro dos pós d’arroz excedia em doçura o olor dos junquilhos mysticos; eu estava no céo, eu era S. Theodorico; e sobre os hombros nús da minha amada desenrolavam-se as madeixas do seu cabello negro, forte e duro como a cauda d’um corcel de guerra.
N’uma d’essas noites, eu sahia d’uma confeitaria do Rocio, de comprar trouxas d’ovos para levar á minha Adelia — quando encontrei o dr. Margaride que me annunciou, depois do seu abraço paternal, que ia a S. Carlos vêr o Propheta.
— E você, vejo-o de casaca, naturalmente tambem vem...
Fiquei varado. Com effeito vestira a casaca, dissera á titi que ia gozar o Propheta, opera de tanta virtude como uma santa instrumental d’igreja... E agora tinha de soffrer o Propheta, deveras, entalado n’uma cadeira da Geral, roçando o joelho do douto magistrado — em vez de preguiçar n’um colchão amoroso, vendo a minha deusa, em camisa, comer o seu docinho d’ovos.
— Sim, com effeito, tambem eu ia d’aqui para o Propheta, murmurei aniquilado. Diz que é uma musicasinha de muita virtude... A titi gostou muito que eu viesse.
Com o meu inutil cartucho de trouxas d’ovos, lá fui subindo, melancolicamente, ao lado do dr. Margaride, a rua Nova do Carmo.
Occupamos as nossas cadeiras. E na sala resplandecente, branca e com tons d’ouro, eu pensava saudosamente na alcova sombria da Adelia, e no desalinho das suas saias — quando reparei que d’uma friza ao lado uma senhora loura e madura, uma Ceres outonal, vestida de sêda côr de palha, voltava para mim, a cada dôce arcada das rebecas, os seus olhos claros e sérios.
Perguntei logo ao dr. Margaride se conhecia aquella dama «que eu costumava encontrar ás sextas na igreja da Graça, visitando o Senhor dos Passos, com uma devoção, um fervor...»
— O sujeito que está por traz, a abrir a bocca, é o visconde de Souto Santos. E ella ou é a mulher, a viscondessa de Souto Santos, ou a cunhada, a viscondessa de Villar-o-Velho...
Á sahida, a viscondessa (de Souto Santos ou de Villar-o-Velho) ficou um momento á porta esperando a sua carruagem, embrulhada n’uma capa branca que uma pennugem orlava, delicadamente; a sua cabeça pareceu-me mais altiva, incapaz de rolar, tonta e pallida, n’um travesseiro d’amor; a cauda côr de palha alastrava-se sobre as lages; era esplendida, era viscondessa; e outra vez me procuraram, me trespassaram os seus olhos claros e sérios.
A noite estava estrellada. E, descendo o Chiado em silencio ao lado do dr. Margaride, eu pensava que, quando todo o ouro da titi fosse meu e dourasse a minha pessoa, eu poderia então conhecer uma viscondessa de Souto Santos ou de Villar-o-Velho, não na sua friza, mas na minha alcova, já cahida a grande capa branca, despidas já as sêdas côr de palha, alva só do brilho da sua nudez, e fazendo-se pequenina entre os meus braços... Ai, quando chegaria a hora, dôce entre todas, de morrer a titi?
— Quer você vir tomar o seu chá ao Martinho? perguntou-me o dr. Margaride ao desembocarmos no Rocio. Não sei se você conhece a torrada do Martinho... É a melhor torrada de Lisboa.
No Martinho, já silencioso, o gaz ia adormecendo entre os espelhos baços; e havia apenas n’uma mesa do fundo um moço triste, com a cabeça enterrada entre os punhos diante d’um capilé.
O Margaride encommendou o chá — e vendo-me olhar com inquietação os ponteiros do relogio, affirmou-me que eu chegaria a casa ainda a horas de fazer a minha tocante devoção com a titi.
— A titi agora, disse eu, não se importa que eu esteja até mais tarde... A titi agora louvado seja Deus, tem mais confiança em mim.
— E você merece-o... Faz-lhe a vontade, é sisudo... Ella pouco a pouco tem-lhe ganho amizade, segundo me diz o Casimiro...
Então lembrei-me da velha affeição que ligava o dr. Margaride ao padre Casimiro, procurador da tia Patrocinio e seu zeloso confessor. E, arrebatando a opportunidade, dei um leve suspiro, abri o meu coração ao magistrado, largamente, como a um pai.
— É verdade, a titi tem-me amizade... Mas acredite v. exc.^a, dr. Margaride, que o meu futuro inquieta-me ás vezes... Olhe que tenho pensado mesmo em ir a um concurso para delegado. Até já indaguei se seria difficil entrar como despachante na alfandega. Porque emfim a titi é rica, é muito rica; eu sou seu sobrinho, unico parente, unico herdeiro; mas...
E olhei anciosamente para o dr. Margaride, que, pelo loquaz padre Casimiro, conhecia talvez o testamento da titi... O silencio grave em que elle ficou, com as mãos cruzadas sobre a mesa, pareceu-me sinistro: e n’esse instante o criado trouxe a bandeja do chá, sorrindo, e felicitando o magistrado por o vêr melhor do seu catarrho.
— Deliciosa torrada! murmurou o doutor.
— Excellente torrada! suspirei eu cortezmente.
De vez em quando o dr. Margaride esfuracava um queixal; depois limpava a face, os dedos; e recomeçava a mastigar devagar, com delicadeza e com religião.
Eu arrisquei outra palavra timida.
— A titi, é verdade, tem-me amizade...
— A titi tem-lhe amizade, atalhou com a bocca cheia o magistrado, e você é o seu unico parente... Mas a questão é outra, Theodorico. É que você tem um rival.
— Rebento-o! gritei eu, irresistivelmente, com os olhos em chammas, esmurrando o marmore da mesa.
O moço triste, lá ao fundo, ergueu a face de cima do seu capilé. E o dr. Margaride reprovou com severidade a minha violencia.
— Essa expressão é impropria d’um cavalheiro, e d’um moço comedido. Em geral não se rebenta ninguem... E além d’isso o seu rival não é outro, Theodorico, senão Nosso Senhor Jesus Christo!
Nosso Senhor Jesus Christo? E só comprehendi, quando o esclarecido jurisconsulto, já mais calmo, me revelou que a titi, ainda no ultimo anno da minha formatura, tencionava deixar a sua fortuna, terras e predios, a Irmandades da sua sympathia e a padres da sua devoção.
— Estou perdido! murmurei.
Os meus olhos, casualmente, encontraram, lá ao fundo, o moço triste diante do seu capilé. E pareceu-me que elle se assemelhava a mim como um irmão, que era eu proprio, Theodorico, já desherdado, sordido, com as botas cambadas, vindo alli ruminar as dôres da minha vida, á noite, diante d’um capilé.
Mas o dr. Margaride acabára a torrada. E estendendo regaladamente as pernas, consolou-me, de palito na bocca, affavel e perspicaz.
— Nem tudo está perdido, Theodorico. Não me parece que esteja tudo perdido... É possivel que a senhora sua tia tenha mudado d’idéa... Você é bem comportado, amima-a, lê-lhe o jornal, reza o terço com ella... Tudo isto influe. Que é necessario dizel-o, o rival é forte!
Eu gemi:
— É d’arromba!
— É forte. E devo acrescentar, digno de todo o respeito... Jesus Christo padeceu por nós, é religião do Estado, não ha senão curvar a cabeça... Olhe, quer você a minha opinião? Pois ahi a tem, franca e sem rebuço, para lhe servir de guia... Você vem a herdar tudo, se D. Patrocinio, sua tia e minha senhora, se convencer que deixar-lhe a fortuna a você é como deixal-a á Santa Madre Igreja...
O magistrado pagou o chá, nobremente. Depois, na rua, já abafado no seu paletot, ainda me disse baixinho:
— Com franqueza, que tal, a torrada?
— Não ha melhor torrada em Lisboa, dr. Margaride.
Elle apertou-me a mão com affecto — e separamo-nos, quando estava dando a meia noite no velho relogio do Carmo.
Estugando o passo pela rua Nova da Palma, eu sentia agora bem claramente, bem, amargamente, o erro da minha vida... Sim, o erro! Porque até ahi, essa minha devoção complicada, com que eu procurára agradar á titi e ao seu ouro, fôra sempre regular, mas nunca fôra fervente. Que importava murmurar com correcção o terço diante de Nossa Senhora do Rosario? Diante de Nossa Senhora em todas as suas encarnações, e bem em evidencia para commover a titi, eu devia mostrar habilmente uma alma ardendo em labaredas de amor beato, e um corpo pisado, penitente, ferido pelos picos dos cilicios... Até ahi a titi podia dizer com approvação: «É exemplar.» Era-me preciso, para herdar, que ella exclamasse um dia, babada, de mãos postas: «É santo!»
Sim! eu devia identificar-me tanto com as coisas ecclesiasticas e submergir me n’ellas de tal sorte, que a titi, pouco a pouco, não podesse distinguir-me claramente d’esse conjunto rançoso de cruzes, imagens, ripanços, opas, tochas, bentinhos, palmitos, andores, que era para ella a Religião e o Céo; e tomasse a minha voz pelo santo ciciar dos latins de missa; e a minha sobrecasaca preta lhe parecesse já salpicada d’estrellas, e diaphana como a tunica de bem-aventurança. Então, evidentemente, ella testaria em meu favor — certa que testava em favor de Christo e da sua dôce Madre Igreja!
Porque agora, eu estava bem decidido a não deixar ir para Jesus, filho de Maria, a aprazivel fortuna do commendador G. Godinho. Pois quê! Não bastavam ao Senhor os seus thesouros incontaveis; as sombrias cathedraes de marmore que atulham a terra e a entristecem; as inscripções, os papeis de credito que a piedade humana constantemente averba em seu nome; as pás d’ouro que os Estados, reverentes, lhe depositam aos pés trespassados de pregos; as alfaias, os calices, e os botões de punho de diamantes que elle usa na camisa, na sua igreja da Graça? E ainda voltava, do alto do madeiro, os olhos vorazes para um bule de prata, e uns insipidos predios da Baixa! Pois bem! disputaremos esses mesquinhos, fugitivos haveres — tu, ó filho do Carpinteiro, mostrando á titi a chaga que por ella recebeste, uma tarde, n’uma cidade barbara da Asia, e eu adorando essa chaga, com tanto ruido e tanto fausto, que a titi não possa saber onde está o merito, se em ti que morreste por nos amar de mais, se em mim que quero morrer por não te saber amar bastante!... Assim pensava, olhando de través o céo, no silencio da rua de S. Lazaro.
Quando cheguei a casa, senti que a titi estava no oratorio, sósinha, a rezar. Enfiei para o meu quarto, surrateiramente; descalcei-me; despi a casaca; esguedelhei o cabello; atirei-me de joelhos para o soalho — e fui assim, de rastos, pelo corredor, gemendo, carpindo, esmurrando o peito, clamando desoladamente por Jesus, meu Senhor...
Ao ouvir, no silencio da casa, estas lugubres lamentações de arrastada penitencia, a titi veio á porta do oratorio, espavorida.
— Que é isso, Theodorico, filho, que tens tu?...
Abati-me sobre o soalho, aos soluços, desfallecido de paixão divina.
— Desculpe, titi... Estava no theatro com o dr. Margaride, estivemos ambos a tomar chá, a conversar da titi... E vai de repente, ao voltar para casa, alli na rua Nova da Palma, começo a pensar que havia de morrer, e na salvação da minha alma, e em tudo o que Nosso Senhor padeceu por nós, e dá-me uma vontade de chorar... Emfim, a titi faz favor, deixa-me aqui um bocadinho só, no oratorio, para alliviar...
Muda, impressionada, ella accendeu reverentemente, uma a uma, todas as velas do altar. Chegou mais para a borda uma imagem de S. José, favorito da sua alma, para que fosse elle o primeiro a receber a ardente rajada de preces que ia escapar-se, em tumulto, do meu coração cheio e ancioso. Deixou-me entrar, de rastos. Depois, em silencio, desappareceu, cerrando o reposteiro com recato. E eu alli fiquei, sentado na almofada da titi, coçando os joelhos, suspirando alto — e pensando na viscondessa de Souto Santos ou de Villar-o-Velho, e nos beijos vorazes que lhe atiraria por aquelles hombros maduros e succulentos, se a podesse ter só um instante, alli mesmo que fosse, no oratorio, aos pés de ouro de Jesus, meu Salvador!
Corrigi então a minha devoção e tornei-a perfeita. Pensando que o bacalhau das sextas-feiras não fosse uma sufficiente mortificação, n’esses dias, diante da titi, bebia asceticamente um copo d’agua e trincava uma côdea de pão: o bacalhau comia-o á noite, de cebolada, com bifes á ingleza, em casa da minha Adelia. No meu guarda-roupa, n’esse duro inverno, houve apenas um paletot velho, tão renunciado me quiz mostrar aos culpados regalos da carne; mas orgulhava-me de ter lá, purificando os cheviottes profanos, a minha opa rôxa de irmão do Senhor dos Passos, e o devoto habito cinzento da Ordem Terceira de S. Francisco. Sobre a commoda ardia uma lamparina perennal diante da lithographia colorida de Nossa Senhora do Patrocinio: eu punha todos os dias rosas dentro d’um copo, para lhe perfumar o ar em redor; e a titi, quando vinha remexer nas minhas gavetas, ficava a olhar a sua padroeira, desvanecida, sem saber se era á Virgem, ou se era a ella, indirectamente, que eu dedicava aquelle preito da luz e o louvor dos aromas. Nas paredes dependurei as imagens dos santos mais excelsos, como galeria d’antepassados espirituaes de quem tirava o constante exemplo das difficeis virtudes; mas não houve de resto no céo santo, por mais obscuro, a quem eu não offertasse um cheiroso ramalhete de Padre-Nossos em flôr. Fui eu que fiz conhecer á titi S. Telesforo, Santa Secundina, o beato Antonio Estronconio, Santa Restituta, Santa Umbulina, irmã do grão S. Bernardo, e a nossa dilecta e suavissima patricia Santa Basilissa, que é solemnisada juntamente com S. Hypacio, n’esse festivo dia d’agosto em que embarcam os cirios para a Atalaya.
Prodigiosa foi então a minha actividade devota! Ia a matinas, ia a vesperas. Jámais falhei igreja ou ermida onde se fizesse a adoração ao Sagrado Coração de Jesus. Em todas as exposições do Santissimo eu lá estava, de rojos. Partilhava sofregamente de todos os desaggravos ao Sacramento. Novenas em que eu rezei contam-se pelos lumes do céo. E o Septenario das Dôres era um dos meus dôces cuidados.
Havia dias em que, sem repousar, correndo pelas ruas, esbaforido, eu ia á missa das sete a Sant’Anna, e á missa das nove da igreja de S. José, e á missa do meio dia na ermida da Oliveirinha. Descansava um instante a uma esquina, de ripanço debaixo do braço, chupando á pressa o cigarro: depois voava ao Santissirno exposto na parochial de Santa Engracia, á devoção do Terço no convento de Santa Joanna, á benção do Sacramento na capella de Nossa Senhora ás Picôas, á novena das Chagas de Christo, na sua igreja, com musica. Tomava então a tipoia do Pingalho, e ainda visitava, ao acaso, de fugida, os Martyres e S. Domingos, a igreja do convento do Desagravo e a igreja da Visitação das Selesias, a capella de Monserrate ás Amoreiras e a Gloria ao Cardal da Graça, as Flamengas e as Albertas, a Pena, o Rato, a Sé!
Á noite, em casa da Adelia, estava tão derreado, mono e molle ao canto do sofá, — que ella atirava-me murros pelos hombros, e gritava, furiosa:
— Esperta, morcão!
Ai de mim! Um dia veio, porém, em que a Adelia, em vez de me chamar morcão, quando, esfalfado no serviço do Senhor, eu mal podia ajudal-a a desatacar o collete — passou, sempre que os meus labios insaciaveis se collavam de mais ao seu collo, a empurrar-me, a chamar-me carraça... Foi isto pelas alegres vesperas de Santo Antonio, ao apparecerem os primeiros manjaricões, no quinto mez da minha devoção perfeita.
A Adelia começára a andar pensativa e distrahida. Tinha ás vezes, quando eu lhe fallava, um modo de dizer «hein?», com o olhar incerto e disperso, que era um tormento para o meu coração. Depois um dia deixou de me fazer a caricia melhor, que eu mais appetecia — a penetrante e a regaladora beijoca na orelha.
Sim, decerto permanecia terna... Ainda dobrava maternalmente o meu paletot; ainda me chamava riquinho; ainda me acompanhava ao patamar em camisa, dando, ao descollar do nosso abraço, esse lento suspiro que era para mim a mais preciosa evidencia da sua paixão; — mas já me não favorecia com a beijoquinha na orelha.
Quando eu entrava abrazado — encontrava-a por vestir, por pentear, molle, estremunhada e com olheiras. Estendia-me a mãosinha desamoravel, bocejava, colhia preguiçosamente a viola: e emquanto eu, a um canto, chupando cigarros mudos, esperava que se abrisse a portinha envidraçada da alcova que dava para o céo — a deshumana Adelia, estirada no sofá, de chinelas cahidas, beliscava os bordões, murmurando, por entre longos ais, cantigas de estranha saudade...
N’um arranco de ternura, eu ia ajoelhar-me á beira do seu peito. E lá vinha logo a dura, a regelada palavra:
— Está quieto, carraça!
E recusava-me sempre o seu carinho. Dizia-me: «não posso, estou com azia.» Dizia-me: «adeus, tenho a dôr na ilharga.»
Eu sacudia os joelhos, recolhia ao Campo de Sant’Anna — espoliado, miserrimo, chorando na escuridão da minha alma pelos tempos ineffaveis em que ella me chamava morcão!
Uma noite de julho, macia como um velludo preto e pespontada d’estrellas, chegando mais cedo a casa d’ella, encontrei a portinha aberta. O candieiro de petroline, pousado no soalho do patamar, enchia a escada de luz; — e dei com a Adelia, em saia branca, fallando a um rapaz de bigodinho louro, embrulhado pelintramente n’uma capa á hespanhola. Ella empallideceu, elle encolheu — quando eu surgi, grande e barbudo, com a minha bengala na mão. Depois a Adelia, sorrindo, sem perturbação, vera e limpida, apresentou-me «seu sobrinho Adelino.» Era filho da mana Ricardina, a que vivia em Vizeu, e irmão do Theodoriquinho... Tirando o chapéo, apertei na palma larga e leal os dedos fugidios do snr. Adelino:
— Estimo muito conhecel-o, cavalheiro. Sua mamã, seu mano, bons?
N’essa noite a Adelia, resplandecente, tornou a chamar-me morcão, restituiu-me o beijinho na orelha. E toda essa semana foi deliciosa como a d’um noivado. O verão ardia; e começára na Conceição Velha a novena de S. Joaquim. Eu sahia de casa á hora repousante em que se regam as ruas, mais contente que os passaros chalrando nas arvores do campo de Sant’Anna. Na salinha clara, com todas as cadeiras cobertas de fustão branco, encontrava a minha Adelia de chambre, fresca de se ter lavado, cheirando a agua de colonia, e aos lindos cravos vermelhos que a toucavam; e depois das manhãs calorosas, nada havia mais idyllico, mais dôce que as nossas merendas de morangos na cozinha, ao ar da janella, contemplando bocadinhos verdes de quintaes e ceroulas humildes a seccar em cordas... Ora uma tarde que assim nos apraziamos, ella pediu-me oito libras.
Oito libras!... Descendo á noite a rua da Magdalena, eu ruminava quem m’as poderia emprestar sem juro e rasgadamente. O bom Casimiro estava em Torres, o prestante Rinchão estava em Paris... E pensava já no padre Pinheiro (cujas dôres de rins eu lamentava sempre com affecto) quando avistei a escapar-se, todo encolhido, todo surrateiro, d’uma d’essas viellas impuras onde Venus Mercenaria arrasta os seus chinelos — o José Justino, o nosso José Justino, o piedoso secretario da confraria de S. José, o virtuosissimo tabellião da titi!...
Gritei logo: «boas noites, Justininho!» E regressei ao Campo de Sant’Anna, tranquillo, gozando já a repenicada beijoca que me daria a Délinha, quando eu risonho lhe estendesse na mão as oito rodellas d’ouro. Ao outro dia cedo, corri ao cartorio do Justino, a S. Paulo, contei-lhe a pranteada historia d’um condiscipulo meu, tisico, miseravel, arquejando sobre uma enxerga, n’uma fetida casa d’hospedes, ao pé do largo dos Caldas.
— É uma desgraça, Justino! Nem dinheiro tem para um caldinho... Eu é que o ajudo: mas, que diabo, estou a tinir... Faço-lhe companhia, é o que posso; leio-lhe orações, e Exercicios da vida christã. Hontem á noite vinha eu de lá... E acredite você, Justino, que nem gósto d’andar por aquellas ruas, tão tarde... Jesus, que ruas que indecencia, que immoralidade!... Aquelles beccos d’escadinhas, hein?... Eu hontem bem percebi que você ia horrorisado: eu tambem... De sorte que esta manhã estava no oratorio da titi, a rezar pelo meu condiscipulo, a pedir a Nosso Senhor que o ajudasse e que lhe désse algum dinheiro, e vai pareceu-me ouvir uma voz lá de cima da cruz a dizer: «entende-te com o Justino, falla ao nosso Justininho, elle que te dê oito libras para o rapaz...» Fiquei tão agradecido a Nosso Senhor! De modo que aqui venho, Justino, por ordem d’Elle.
O Justino escutava-me, branco como os seus collarinhos, dando estalinhos tristes nos dedos; — depois, em silencio, estendeu-me uma a uma sobre a carteira as oito moedas d’ouro. Assim eu servi a minha Adelia.
Fugaz foi porém a minha gloria!
D’ahi a dias estando no Montanha, regalado, a gozar uma carapinhada — o criado veio avisar-me que uma mocinha trigueira e de chale, a snr.ª Marianna, esperava por mim á esquina... Santo Deus! A Marianna era a criada da Adelia. E corri, a tremer, certo de que a minha bem-amada ficára soffrendo da sua abominavel dôr na sua branca ilharga. Pensei mesmo em começar o Rosario das dezoito apparições de Nossa Senhora de Lourdes, que a titi considera efficacissimo em casos de pontada ou de touros tresmalhados...
— Ha novidade, Marianna?
Ella levou-me para dentro d’um pateo onde cheirava mal; e ahi, com os olhos vermelhos, destraçando furiosamente o chale, rouca ainda da bulha que tivera com a Adelia, rompeu a contar-me coisas torpes, execrandas, sordidas. A Adelia enganava-me! O snr. Adelino não era sobrinho: era o querido, o chulo. Apenas eu sahia, elle entrava: a Adelia dependurava-se-lhe do pescoço, n’um delirio; e chamavam-me então o carraça, o carola, o bode, vituperios mais negros, cuspindo sobre o meu retrato. As oito libras tinham sido para o Adelino comprar fato de verão; e ainda sobrára para irem á feira de Belem, em tipoia descoberta, e de guitarra... A Adelia adorava-o com pieguice e com furor: cortava-lhe os callos; e os suspiros da sua impaciencia, quando elle tardava, lembravam o bramar das cervas, nos mattos quentes, em maio!... Duvidava eu? Queria uma evidencia? Que fosse n’essa noite, tarde, depois da uma hora, bater á portinha da Adelia!
Livido, apoiado ao muro, eu mal sabia se o cheiro que me suffocava vinha do canto escuro do pateo — se das immundicies que borbulhavam da bocca da Marianna, como d’um cano d’esgoto rebentado. Limpei o suor, murmurei, a desfallecer:
— Está bom Marianna, obrigadinho, eu verei, vá com Deus...
Cheguei a casa tão sombrio, tão murcho, que a titi perguntou-me, com um risinho, se eu «malhára abaixo da egoa.»
— Da egoa?... Não, titi, credo! Estive na igreja da Graça...
— É que vens tão enfiado, assim com as pernas molles... E então o Senhor hoje estava bonito?
— Ai, titi, estava rico!... Mas não sei porquê, pareceu-me tão tristinho, tão tristinho... Até eu disse ao padre Eugenio: «Ó Eugeninho, o Senhor hoje tem desgosto!» E disse-me elle: «Que quer você, amigo? É que vê por esse mundo tanta patifaria!» E olhe que vê, titi! Vê muita ingratidão, muita falsidade, muita traição!
Rugia, enfurecido: e cerrára o punho como para o deixar cahir, punidor e terrivel, sobre a vasta perfidia humana. Mas contive-me, abotoei devagar a quinzena, recalquei um soluço.
— Pois é verdade, titi... Fez-me tanta impressão aquella tristeza do Senhor que fiquei assim um bocado amarfanhado... E de mais a mais tenho tido um desgosto: está um condiscipulo meu muito mal, coitadinho, a espichar...
E outra vez, como diante do Justino (aproveitando reminiscencias do Xavier e da rua da Fé), estirei a carcassa d’um condiscipulo sobre a podridão d’uma enxerga. Disse as bacias de sangue, disse a falta de caldos... Que miseria, titi, que miseria! E então um moço tão respeitador das coisas santas, que escrevia tão bem na Nação!...
— Desgraças, murmurou a tia Patrocinio, meneando as agulhas da meia.
— É verdade, desgraças, titi. Ora como elle não tem familia e a gente da casa é desleixada, nós os condiscipulos é que vamos por turnos servir-lhe d’enfermeiros. Hoje toca-me a mim. E queria então que a titi me désse licença para eu ficar fóra, até cerca das duas horas... Depois vem outro rapaz, muito instruido, que é deputado.
A tia Patrocinio permittiu: — e até se offereceu para pedir ao patriarcha S. José que fosse preparando ao meu condiscipulo uma morte somnolenta e ditosa...
— Isso é que era um grande favor, titi! Elle chama-se Macieira... O Macieira vesgo. É para S. José saber.
Toda a noite vagueei pela cidade, adormecida na molleza do luar de julho. E por cada rua me acompanharam sempre, fluctuantes e transparentes, duas figuras, uma em camisa, outra de capa á hespanhola, enroscadas, beijando-se furiosamente — e só desligando os beiços pisados para rirem alto de mim e para me chamarem carola.
Cheguei ao Rocio quando batia uma hora no relogio do Carmo. Ainda fumei um cigarro, indeciso, por debaixo das arvores. Depois voltei os passos para a casa da Adelia, vagaroso, e com medo. Na sua janella vi uma luz enlanguecida e dormente. Agarrei a grossa aldraba da porta, — mas hesitei com terror da certeza que vinha buscar, terminante e irreparavel... Meu Deus! Talvez a Marianna, por vingança, calumniasse a minha Adelia! Ainda na vespera ella me chamára riquinho, com tanto ardor! Não seria mais sensato e mais proveitoso acreditar n’ella, tolerar-lhe um fugitivo transporte pelo snr. Adelino, e continuar a receber egoistamente o meu beijinho na orelha?
Mas então á idéa lacerante de que ella tambem beijava na orelha o snr. Adelino, e que o snr. Adelino também dizia ai! ai! como eu — assaltou-me o desejo ferino de a matar, com desprezo e a murros, alli, n’esses degraus onde tantas vezes arrulhára a suavidade dos nossos adeuses. E bati na porta com um punho bestial como se fosse já sobre o seu fragil, ingrato peito.
Senti correr desabridamente o fecho da vidraça. Ella surgiu em camisa, com os seus bellos cabellos revoltos:
— Quem é o bruto?
— Sou eu, abre.
Reconheceu-me — a luz dentro desappareceu; e foi como se aquella torcida de candieiro, apagando-se, deixasse tambem a minha alma em escuridão, fria para sempre e vazia. Senti-me regeladamente só, viuvo, sem occupação e sem lar. Do meio da rua olhava as janellas negras, e murmurava: «ai, que eu rebento!»
Outra vez a camisa da Adelia alvejou na varanda.
— Não posso abrir, que ceei tarde e estou com somno!
— Abre! gritei erguendo os braços desesperados. Abre ou nunca mais cá volto!...
— Pois á fava, e recados á tia.
— Fica-te, bebeda!
Tendo-lhe atirado, como uma pedrada, este urro severo, desci a rua muito teso, muito digno. Mas á esquina aluí de dôr, para cima d’um portal, a soluçar, escoado em pranto, delido.
Pesada foi então ao meu coração a lenta melancolia dos dias d’estio... Tendo contado á titi que andava a escrever dois artigos, piamente destinados ao Almanach da Immaculada Conceição para 1878, encerrava-me no quarto, toda a manhã, emquanto faiscavam ao sol as pedras da minha varanda. Ahi, arrastando as chinelas sobre o soalho regado, remoía, entre suspiros, recordações da Adelia; ou diante do espelho contemplava o lugar macio da orelha em que ella costumava dar-me o beijo... Depois sentia um ruido de vidraça — e o seu perfido, o seu affrontoso brado «á fava!» Então, perdido, esguedelhado, machucava o travesseiro com os murros que não podia vibrar ao peito magro do snr. Adelino.
Á tardinha, quando refrescava, ia espalhar para a Baixa. Mas cada janella aberta ás aragens da tarde, cada cortina de cassa engommada me lembrava a intimidade da alcovinha da Adelia; n’um simples par de meias, esticado na vitrina de uma loja, eu revia com saudade a perfeição da sua perna; tudo o que era luminoso me suggeria o seu olhar; e até o sorvete de morango, no Martinho, me fazia repassar nos labios o adocicado e gostoso sabor dos seus beijos.
Á noite, depois do chá, refugiava-me no oratorio, como n’uma fortaleza de santidade, embebia os meus olhos no corpo de ouro de Jesus, pregado na sua linda cruz de pau preto. Mas então o brilho fulvo do metal precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva côr de carne, quente e tenra; a magreza de Messias triste, mostrando os ossos, arredondava-se em fórmas divinamente cheias e bellas; por entre a corôa d’espinhos, desenrolavam-se lascivos anneis de cabellos crespos e negros; no peito, sobre as duas chagas, levantavam-se, rijos, direitos, dois esplendidos seios de mulher, com um botãosinho de rosa na ponta; — e era ella, a minha Adelia, que assim estava no alto da cruz, núa, soberba, risonha, victoriosa, profanando o altar, com os braços abertos para mim!
Eu não via n’isto uma tentação do Demonio — antes me parecia uma graça do Senhor. Comecei mesmo a misturar aos textos das minhas rezas as queixas do meu amor. O céo é talvez grato: e esses innumeraveis santos, a quem eu prodigalisára Novenas e Coroinhas, desejariam talvez recompensar a minha amabilidade restituindo-me as caricias que me roubára o homem cruel da capa á hespanhola. Puz mais flôres sobre a commoda diante de Nossa Senhora do Patrocinio; contei-lhe as angustias do meu coração. Por traz do limpido vidro do seu caixilho, com os olhos baixos e magoados, ella foi a confidente do tormento da minha carne; e todas as noites, em ceroulas, antes de me deitar, eu lhe segredava, com ardor:
— Ó minha querida Senhora do Patrocinio, faze que a Adelinha goste outra vez de mim!
Depois utilisei o valimento da titi com os santos seus amigos — o amorosissimo e perdoador S. José, S. Luiz Gonzaga, tão benevolo para a juventude. Pedia-lhe que fizesse uma Petição por certa necessidade minha, secreta e toda pura. Ella accedia, com alacridade; e eu, espreitando pelo reposteiro do oratorio, regalava-me de vêr a rigida senhora, de joelhos, de contas na mão, em supplicas aos Patriarchas castissimos para que a Adelia me désse outra vez a beijoquinha na orelha.
Uma noite, cedo, foi experimentar se o céo escutára tão valiosas preces. Cheguei á porta da Adelia; e bati, tremendo todo, uma argoladinha humilde. O snr. Adelino assomou á janella, em mangas de camisa.
— Sou eu, snr. Adelino, murmurei abjectamente e tirando o chapéo. Queria fallar á Adeliasinha.
Elle rosnou para dentro, para a alcova, o meu nome. Creio mesmo que disse o carola. E lá do fundo, d’entre os cortinados, onde eu a presentia toda desalinhada e formosa, a minha Adelia gritou com furor:
— Atira-lhe para cima dos lombos o balde da agua suja!
Fugi.
No fim de setembro, o Rinchão chegou de Paris: e um domingo, á noitinha, á volta da Novena de S. Caetano, entrando no Martinho, encontrei-o, rodeado de rapazes, contando ruidosamente os seus feitos d’amor e de gentil audacia em Paris. Tristonho, puxei um banco e fiquei a ouvir o Rinchão. Com uma ferradura de rubis na gravata, o monoculo pendente d’uma fita larga, uma rosa amarella no peito, o Rinchão impressionava, quando por entre o fumo do charuto esboçava traços do seu prestigio: «Uma noite no Caffé de la Paix, estando eu a cear com a Cora, com a Valtesse, e com um rapaz muito chic, um principe...» O que o Rinchão tinha visto! o que o Rinchão tinha gozado! Uma condessa italiana, delirante, parenta do Papa, e chamada Popotte, amára-o, levára-o aos Campos-Elyseos na sua victoria — cujo velho brazão eram dois chavelhos encruzados. Jantára em restaurantes onde a luz vinha de serpentinas d’ouro, e os criados, macilentos e graves, lhe chamavam respeitosamente Mr. le Comte. E o Acazar, com festões de gaz entre as arvores, e a Paulina cantando, de braços nús, o Chouriço de Marselha— revelára-lhe a verdade, a grandeza da civilisação.
— Viste Victor Hugo? perguntou um rapaz de lunetas pretas, que roía as unhas.
— Não, nunca andava cá na roda chic!
Toda essa semana, então, a idéa de vêr Paris brilhou incessantemente no meu espirito, tentadora e cheia de suaves promessas... E era menos o appetite d’esses gozos do Orgulho e da Carne com que se abarrotára o Rinchão, que a anciedade de deixar Lisboa, onde igrejas e lojas, claro rio e claro céo, só me lembravam a Adelia, o homem amargo de capa á hespanhola, o beijo na orelha perdido para sempre... Ah! se a titi abrisse a sua bolsa de sêda verde, me deixasse mergulhar dentro as mãos, colher ouro, e partir para Paris!...
Mas, para a snr.ª D. Patrocinio, Paris era uma região ascorosa, cheia de mentira, cheia de gula — onde um povo sem santos, com as mãos maculadas do sangue dos seus arcebispos, está perpetuamente, ou brilhe o sol, ou luza o gaz, commettendo uma relaxação. Como ousaria eu mostrar á titi o desejo immodesto de visitar esse lugar de sujidade e de treva moral?...
Logo no domingo porém, jantando no Campo de Sant’Anna os amigos dilectos, aconteceu fallar-se, ao cozido, d’um sabio condiscipulo do padre Casimiro que recentemente deixára a quietação da sua cella no Varatojo, para ir esposar, entre foguetes, a trabalhosa Sé de Lamego. O nosso modesto Casimiro não comprehendia esta cubiça d’uma mitra, cravejada de pedras vãs: para elle a plenitude d’uma vida ecclesiastica era estar assim aos sessenta annos, são e sereno, sem saudades e sem temores, comendo o arrozinho do forno da snr.ª D. Patrocinio das Neves...
— Porque deixe-me dizer-lhe, minha respeitavel senhora, que este seu arroz está um primor!... E a ambição de ter sempre um arroz d’estes, e amigos que o apreciem, parece-me a mais legitima e a melhor para uma alma justa...
E assim se veio a discursar das acertadas ambições que, sem aggravo do Senhor, cada um podia nutrir no seu coração. A do tabellião Justino era uma quintasinha no Minho, com roseiras e com parreiras, onde elle pudesse acabar a velhice, em mangas de camisa, e quietinho.
— Olhe, Justino, disse a titi, uma coisa que lhe havia de fazer falta era a sua missa na Conceição Velha... Quando a gente se acostuma a uma missinha, não ha outra que console... A mim, se me tirassem a de Sant’Anna, parece-me que começava a definhar...
Era o padre Pinheiro que a celebrava; a titi, enternecida, collocou-lhe no prato outra aza de gallinha; — e padre Pinheiro revelou tambem a ambição que o pungia. Era elevada e santa. Queria vêr o Papa restaurado n’esse throno forte e fecundo em que resplandecera Leão X...
— Se ao menos houvesse mais caridade com elle! exclamou a titi. Mas o Santissimo Padre, o vigariosinho de Nosso Senhor, assim n’uma masmorra, em farrapos, sobre palha... É de Caipházes, é de judeus!
Bebeu um gole da sua agua morna, e recolheu-se ao retiro da sua alma — a rezar a Ave-Maria que sempre offertava pela saude do Pontifice e pelo termo do seu captiveiro.
O dr. Margaride consolou-a. Não acreditava que o Pontifice dormisse sobre palhas. Viajantes esclarecidos afiançavam-lhe até que o Santo Padre, querendo, podia ter carruagem.
— Não é tudo; está longe de ser tudo o que compete a quem usa a tiára; mas uma carruagem, minha senhora, é uma grandissima commodidade...
Então o nosso Casimiro, risonho, desejou saber (já que todos patenteavam as suas ambições) qual era a do douto, do eminente dr. Margaride.
— Diga lá a sua, dr. Margaride, diga lá a sua! clamaram todos, com affecto.
Elle sorria, grave.
— Deixe-me v. exc.ª primeiro, D. Patrocinio, minha senhora, servir-me d’essa lingua guizada, que marcha para nós e que me parece preciosa.
Depois de fornecido, o veneravel magistrado confessou que appetecia ser Par do Reino. Não por alarde de honras, nem pelo luxo da farda; mas para defender o principio sacro da authoridade...
— Só por isto, acrescentou com energia. Porque desejava tambem, antes de morrer, poder dar, se v. exc.^a, D. Patrocinio, me permitte a expressão, uma cacheirada mortal no atheismo e na anarchia. E dava-lh’a!
Todos declararam fervorosamente o dr. Margaride digno d’esses fastigios sociaes. Elle agradeceu, seriissimo. Depois volveu para mim a face magestosa e livida:
— E o nosso Theodorico? O nosso Theodorico ainda não nos disse qual era a sua ambição.
Córei: e Paris logo rebrilhou ao fundo do meu desejo, com as suas serpentinas de ouro, as suas condessas primas dos Papas, as espumas do seu champagne — fascinante, embriagante, e adormentando toda a dôr... Mas baixei os olhos; e affirmei que só aspirava a rezar as minhas corôas, ao lado da titi, com proveito e com descanso...
O dr. Margaride porém pousára o talher, insistia. Não lhe parecia um desapego de Deus, nem uma ingratidão com a titi, que eu, intelligente, saudavel, bom cavalleiro e bacharel, nutrisse uma honesta cubiça...
— Nutro! exclamei então decidido como aquelle que arremessa um dardo. Nutro, dr. Margaride. Gostava muito de vêr Paris.
— Cruzes! gritou a snr.ª D. Patrocinio, horrorisada. Ir a Paris!...
— Para vêr as igrejas, titi!
— Não é necessario ir tão longe para vêr bonitas igrejas, replicou ella, rispidamente. E lá em festas com orgão, e um Santissimo armado com luxo, e uma rica procissão na rua, e boas vozes, e respeito, e imagens de dar gosto, ninguem bate cá os nossos portuguezes!...
Calei-me, esmagado. E o esclarecido dr. Margaride applaudiu o patriotismo ecclesiastico da titi. Decerto, não era n’uma republica sem Deus, que se deviam procurar as magnificencias do culto...
— Não, minha senhora, lá para saborear coisas grandiosas da nossa santa religião, se eu tivesse vagares, não era a Paris que ia... Sabe v. exc.ª onde eu ia, snr.ª D. Maria do Patrocinio?
— O nosso doutor, lembrou o padre Pinheiro, corria direito a Roma...
— Upa, padre Pinheiro! Upa, minha cara senhora!
Upa? Nem o bom Pinheiro, nem a titi comprehendiam o que houvesse de superior a Roma pontifical! O dr. Margaride então ergueu solemnemente as sobrancelhas, densas e negras como ebano.
— Ia á Terra Santa, D. Patrocinio! Ia á Palestina, minha senhora! Ia vêr Jerusalem e o Jordão! Queria eu tambem estar um momento, de pé, sobre o Golgotha, como Chateaubriand, com o meu chapéo na mão, a meditar, a embeber-me, a dizer «salvè!» E havia de trazer apontamentos, minha senhora, havia de publicar impressões historicas. Ora ahi tem v. exc.ª onde eu ia... Ia a Sião!
Servira-se o lombo assado; e houve, por sobre os pratos, um recolhimento reverente a esta evocação da terra sagrada onde padeceu o Senhor. Eu parecia-me vêr lá muito longe, na Arabia, ao fim de arquejantes dias de jornada sobre o dorso d’um camêlo, um montão de ruinas em torno d’uma cruz; um rio sinistro corre ao lado entre oliveiras; o céo arqueia-se mudo e triste como a abobada d’um tumulo. Assim devia ser Jerusalem.
— Linda viagem! murmurou o nosso Casimiro, pensativo.
— Sem contar, rosnou padre Pinheiro, baixo e como ciciando uma oração, que Nosso Senhor Jesus Christo vê com grande apreço, e muito agradece, essas visitas ao seu Santo Sepulchro.
— Até quem lá vai, disse o Justino, tem perdão de peccados. Não é verdade, Pinheiro? Eu assim li no Panorama... Vem-se de lá limpinho de tudo!
Padre Pinheiro (tendo recusado, com mágoa, a couve-flôr, que considerava indigesta) deu esclarecimentos. Quem ia á Terra Santa, n’uma devota peregrinação, recebia sobre o marmore do Santo Sepulchro, das mãos do Patriarcha de Jerusalem, e pagando os rituaes emolumentos, as suas Indulgencias Plenarias...
— Não só para si, segundo tenho ouvido dizer, acrescentou o instruido ecclesiastico, mas para uma pessoa querida de familia, piedosa, e comprovadamente impedida de fazer a jornada... Pagando, já se vê, emolumentos dobrados.
— Por exemplo! exclamou o dr. Margaride inspirado, batendo-me com força nas costas. Assim para uma boa titi, uma titi adorada, uma titi que tem sido um anjo, toda virtude, toda generosidade!...
— Pagando, já se vê, insistiu padre Pinheiro, os emolumentos dobrados!
A titi não dizia nada; os seus oculos, girando do Sacerdote para o Magistrado, pareciam estranhamente dilatados, e brilhando mais com o clarão interior d’uma idéa: um pouco de sangue subira á sua face esverdinhada. A Vicencia offereceu o arroz dôce. Nós rezamos as graças.
Mais tarde no meu quarto, despindo-me, senti-me triste, infinitamente. Nunca a titi me deixaria visitar a terra immunda de França: e aqui ficaria enclausurado n’esta Lisboa onde tudo me era tortura, e as mais rumorosas ruas me aggravavam o ermo do meu coração, e até a pureza do fino céo de estio me recordava a torva perfidia d’essa que fôra para mim estrella e Rainha da Graça... Depois, n’esse dia, ao jantar, a titi parecera-me mais rija, solida ainda, duradoura, e por longos annos dona da bolsa de sêda verde, dos predios e dos contos do commendador G. Godinho... Ai de mim! Quanto tempo mais teria de rezar com a odiosa velha o fastiento terço, de beijar o pé do Senhor dos Passos, sujo de tanta bocca fidalga, de palmilhar novenas, e de magoar os joelhos diante do corpo d’um Deus, magro e cheio de feridas? Oh vida entre todas amargurosa! E já não tinha, para me consolar do enfadonho serviço de Jesus, os macios braços da Adelia...
De manhã, apparelhada a egoa, e já d’esporas, fui saber se minha titi tinha algum pio recado para S. Roque, por ser esse seu milagroso dia. Na saleta votada ás glorias de S. José, a titi, ao canto do sofá, com o chale de Tonkin cahido dos hombros, examinava o seu grande caderno de contas, aberto sobre os joelhos; e, defronte, calado, com as mãos cruzadas atraz das costas, o bom Casimiro sorria pensativamente ás flôres do tapete.
— Ora venha cá, venha cá! disse elle, mal eu assomei curvando o espinhaço. Ouça lá a novidade! Que você é uma joia, respeitador de velhos, e tudo merece de Deus e da senhora sua tia. Chegue-se cá, venha de lá esse abraço!
Sorri, inquieto. A titi enrolava o seu caderno.
— Theodorico! começou ella, cruzando os braços, impertigada. Theodorico! tenho estado aqui a consultar com o snr. padre Casimiro. E estou decidida a que alguem que me pertença, e que seja do meu sangue, vá fazer por minha intenção uma peregrinação á Terra Santa...
— Hein, felizão! murmurou Casimiro, resplandecendo.
— Assim, proseguiu a titi, está entendido e ficas sabendo que vaes a Jerusalem e a todos os divinos lugares. Escusas de me agradecer, é para meu gosto, e para honrar o tumulo de Jesus Christo, já que eu lá não posso ir... Como, louvado seja Nosso Senhor, não me faltam os meios, has de fazer a viagem com todas as commodidades; e para não estar com mais duvidas, e pela pressa d’agradar a Nosso Senhor, ainda has de partir n’este mez... Bem, agora vai, que eu preciso conversar com o snr. padre Casimiro. Obrigado, não quero nada para o snr. S. Roque: já me entendi com elle.
Balbuciei: «Muito agradecido, titi; adeusinho, padre Casimiro.» E segui pelo corredor, atordoado.
No meu quarto corri ao espelho a contemplar, pasmado, este rosto e estas barbas, onde em breve pousaria o pó do Jerusalem... Depois, cahi sobre o leito.
— Olha que tremenda espiga!
Ir a Jerusalem! E onde era Jerusalem? Recorri ao bahú que continha os meus compendios e a minha roupa velha; tirei o Atlas, e com elle aberto sobre a commoda, diante da Senhora do Patrocinio, comecei a procurar Jerusalem lá para o lado onde vivem os Infieis, ondulam as escuras caravanas, e uma pouca d’agua n’um poço é como um dom precioso do Senhor.
O meu dedo errante sentia já o cansaço d’uma longa jornada: e parei á beira tortuosa d’um rio que devia ser o devoto Jordão. Era o Danubio. E de repente o nome de Jerusalem surgiu, negro, n’uma vasta solidão branca, sem nomes, sem linhas, toda de arêas, nua, junto ao mar. Alli estava Jerusalem. Meu Deus! Que remoto, que ermo, que triste!
Mas então comecei a considerar que, para chegar a esse sólo de penitencia, tinha d’atravessar regiões amaveis, femininas e cheias de festa. Era primeiro essa bella Andaluzia, terra de Maria Santissima, perfumada de flôr de laranjeira, onde as mulheres só com metter dois cravos no cabello, e traçando um chale escarlate, amansam o coração mais rebelde, bendita sêa su gracia! Era adiante Napoles — e as suas ruas escuras, quentes, com retabulos da Virgem, e cheirando a mulher, como os corredores d’um lupanar. Era depois mais longe ainda a Grecia: desde a aula de Rhetorica ella apparecera-me sempre como um bosque sacro de loureiros onde alvejam frontões de templos, e, nos lugares de sombra em que arrulham as pombas, Venus de repente surge, côr de luz e côr de rosa, offerecendo a todo o labio, ou bestial ou divino, o mimo dos seus seios immortaes. Venus já não vivia na Grecia; mas as mulheres tinham conservado lá o esplendor da sua fórma e o encanto do seu impudor... Jesus! o que eu podia gozar! Um clarão sulcou-me a alma. E gritei, com um murro sobre o Atlas, que fez estremecer a castissima Senhora do Patrocinio e todas as estrellas da sua corôa:
— Caramba, vou fartar o bandulho!
Sim, fartal-o! E mesmo, receando que a titi, por avareza do seu ouro ou desconfiança da minha piedade, renunciasse á idéa d’esta peregrinação tão promettedora de gozos — resolvi ligal-a supernaturalmente por uma ordem divina. Fui ao oratorio; desmanchei o cabello, como se por entre elle tivesse passado um sopro celeste; e corri ao quarto da titi, esgazeado, com os braços a tremer no ar.
— Ó titi! pois não quer saber? Estava agora no oratorio, a rezar de satisfação, e vai de repente pareceu-me ouvir a voz de Nosso Senhor, de cima da cruz, a dizer-me baixinho, sem se mexer: «Fazes bem, Theodorico, fazes bem em ir visitar o meu Santo Sepulchro... E estou muito contente com tua tia... Tua tia é das minhas!...»
Ella juntou as mãos, n’um fogoso transporte d’amor:
— Louvado seja o seu santissimo nome!... Pois disse isso? Ai, era bem capaz, que Nosso Senhor sabe que é para o honrar que eu lá te mando... Louvado seja outra vez o seu santissimo nome! Louvado seja em Terra e Céo! Anda, filho, vai, reza-lhe... Não te fartes, não te fartes!
Eu ia, murmurando uma Ave-Maria. Ella correu ainda á porta, n’uma effusão de sympathia:
— E olha, Theodorico, vê lá a respeito de roupa branca... Talvez te sejam necessarias mais ceroulas... Encommenda, filho, encommenda, que graças a Nossa Senhora do Rosario tenho posses, e quero que vás com decencia e te apresentes bem lá na sepulturasinha de Deus!...
Encommendei: e, tendo comprado um Guia do Oriente e um capacete de cortiça, informei-me, sobre o modo mais deleitoso de chegar a Jerusalem, com Benjamim Sarrosa & C.^a, judeu sagaz, que ia todos os annos, de turbante, comprar bois a Marrocos. Benjamim marcou-me, miudamente, n’um papel, o meu grandioso itinerario. Embarcaria no Malaga, vapor da casa Jadley que, por Gibraltar, e depois por Malta, me levaria, n’um mar sempre azul, á velha terra do Egypto. Ahi um repouso sensual na festiva Alexandria. Depois no paquete do Levante, que sobe a costa religiosa da Syria, aportaria a Jaffa, a de verdejantes pomares; e de lá, seguindo uma estrada macadamisada, ao chouto d’uma egoa dôce, veria, ao fim d’um dia e ao fim d’uma noite, surgirem, negras entre collinas tristes, as muralhas de Jerusalem!
— Diabo, Benjamim... Parece-me muito mar, muito paquete. Então nem um bocadinho de Hespanha? Ó menino, olhe que eu quero refastelar-me.
— Refastela-se em Alexandria. Tem lá tudo. Tem o bilhar, tem a tipoia, tem a batota, tem a mulherinha... Tudo do bom. É lá que você se refastela!
No emtanto, já no Montanha e na tabacaria do Brito se fallava da minha santa empresa. Uma manhã, li, escarlate d’orgulho, no Jornal das Novidades estas linhas honorificas: «Parte brevemente a visitar Jerusalem, e todos os sacros lugares em que padeceu por nós o Redemptor, o nosso amigo Theodorico Raposo, sobrinho da exc.^{ma} D. Patrocinio das Neves, opulenla proprietaria, e modelo de virtudes christãs. Boa viagem!» A titi, desvanecida, guardou o jornal no oratorio, debaixo da peanha de S. José: e eu jubilei, por imaginar o despeito da Adelia (leitora fiel do Jornal) ao vêr-me assim abalar desprendido d’ella, atestado d’ouro, para essas terras musulmanas — onde a cada passo se topa um serralho, mudo e cheirando a rosa entre sycomoros...
A vespera da partida, na sala dos damascos, teve elevação e solemnidade. O Justino contemplava-me — como se contempla uma figura historica.
— O nosso Theodorico... Que viagem!... O que se vai fallar n’isto!
E padre Pinheiro murmurava com unção:
— Foi uma inspiração do Senhor! E que bem que lhe ha de fazer á saude!
Depois mostrei o meu capacete de cortiça. Todos o admiraram. O nosso Casimiro, todavia, depois de coçar pensativamente o queixo, observou que me daria talvez mais seriedade um chapéo alto...
A titi acudiu, afflicta:
— É o que eu lhe disse! Acho de pouca ceremonia, para a cidade em que morreu Nosso Senhor...
— Ó titi, mas já lhe expliquei! Isto é só para o deserto!... Em Jerusalem, está claro, e em todos aquelles santos lugares, ando de chapéo alto...
— Sempre é mais de cavalheiro, affirmou o dr. Margaride.
Padre Pinheiro quiz saber, solicitamente, se eu ia prevenido com remedios para o caso d’um contratempo intestinal n’esses descampados biblicos...
— Levo tudo. O Benjamim deu-me a lista... Até linhaça, até arnica!...
O pachorrento relogio do corredor começou a gemer as dez; eu devia madrugar; e o dr. Margaride, commovido, agasalhava já o pescoço no seu lenço de sêda. Então, antes dos abraços, perguntei aos meus leaes amigos que «lembrançasinha» desejavam d’essas terras remotas onde vivera o Senhor. Padre Pinheiro queria um frasquinho d’agua do Jordão. Justino (que já me pedira no vão da janella um pacote de tabaco turco) diante da titi só appetecia um raminho de oliveira, do monte Olivete. O dr. Margaride contentava-se com uma boa photographia do sepulchro de Jesus Christo, para encaxilhar...
Com a carteira aberta, depois de alistar estas piedosas imcumbencias — voltei-me para a titi, risonho, carinhoso, humilde...
— Cá por mim, disse ella do meio do sofá como d’um altar, tesa nos seus setins de domingo, o que desejo é que faças essa viagem com toda a devoção, sem deixar pedra por beijar, nem perder novena, nem ficar lugarzinho em que não rezes ou o terço ou a corôa... Além d’isso, tambem estimo que tenhas saude.
Eu ia depôr na sua mão, brilhante de anneis, um beijo gratissimo. Ella deteve-me — mais aprumada e secca:
— Até aqui tens sido apropositado, não tens faltado aos preceitos, nem te tens dado a relaxações... Por isso te vaes regalar de vêr as oliveiras onde Nosso Senhor suou sangue, e de beber no Jordãosinho... Mas se eu soubesse que n’esta passeata tinhas tido maus pensamentos, e praticado uma relaxação, ou andado atraz de saias, fica certo que, apesar de ser a unica pessoa do meu sangue, e teres visitado Jerusalem, e gozar indulgencias, havias de ir para a rua, sem uma côdea, como um cão!
Curvei a cabeça, apavorado. E a titi, depois de roçar o lenço de rendas pelos beiços sumidos, proseguiu com mais authoridade, e uma emoção crescente que lhe punha, sob o corpete raso, como o fugitivo arfar d’um peito humano:
— E agora quero dizer-te para teu governo uma só coisa!...
Todos de pé, e reverentes, logo percebemos que a titi se preparava a proferir uma palavra suprema. N’essa hora de separação, rodeada dos seus sacerdotes, rodeada dos seus magistrados, D. Patrocinio das Neves ia decerto revelar qual fôra o seu intimo motivo, em me mandar, como sobrinho e como romeiro, á cidade de Jerusalem. Eu ia saber emfim, e tão indubitavelmente como se ella m’o escrevesse n’um pergaminho, qual deveria ser o mais precioso dos meus cuidados, velando ou dormindo, nas terras do Evangelho!
— Aqui está! declarou a titi. Se entendes que mereço alguma coisa pelo que tenho feito por ti desde que morreu tua mãi, já educando-te, já vestindo-te, já dando-te egoa para passeares, já cuidando da tua alma, então traze-me d’esses santos lugares uma santa reliquia, uma reliquia milagrosa que eu guarde, com que me fique sempre apegando nas minhas afflicções e que cure as minhas doenças.
E pela vez primeira, depois de cincoenta annos de aridez, uma lagrima breve escorregou no carão da titi, por sob os seus oculos sombrios.
O dr. Margaride rompeu para mim, arrebatadamente:
— Theodorico, que amor que lhe tem a titi! Rebusque essas ruinas, esquadrinhe esses sepulcros! Traga uma reliquia á titi!
Eu bradei, exaltado:
— Titi, palavra de Raposão que lhe hei de trazer uma tremenda reliquia!
Pela severa sala de damascos transbordou, ruidosa e tocante, a commoção dos nossos corações. Eu achei me com os beiços do Justino, ainda molles da torrada, collados á minha barba...
Cedo, na manhã de domingo, 6 de setembro e dia de Santa Libania, fui bater, devagar, ao quarto da titi, ainda adormecida no seu leito castissimo. Senti, por sobre o tapete, aproximar-se o som molle dos seus chinelos. Entreabriu pudicamente a porta; e, decerto em camisa, estendeu-me, através da fenda, a sua mão escarnada, livida, cheirando a rapé. Appeteceu-me mordel-a; depuz n’ella um beijo baboso; a titi murmurou:
— Adeus, menino... Dá muitas saudades ao Senhor!
Desci a escadaria, já de capacete, sobraçando o meu Guia do Oriente. Atraz a Vicencia soluçava.
A minha mala nova de couro, o meu repleto sacco de lona enchiam o coupé do Pingalho. Ainda as andorinhas retardadas cantavam no beiral dos telhados; na capella de Sant’Anna tocava para a missa. E um raio de sol, vindo do Oriente, vindo lá da Palestina ao meu encontro, banhou-me a face, acolhedor e risonho, como uma caricia do Senhor.
Fechei a tipoia, estirei-me, gritei: «Larga, Pingalho!»
E, romeiro abastado, soprando á brisa o fumo do meu cigarro — assim deixei o portão de minha tia, em caminho para Jerusalem!
II
Foi n’um domingo e dia de S. Jeronymo que meus pés latinos pisaram emfim, no caes de Alexandria, a terra do Oriente, sensual e religiosa. Agradeci ao Senhor da Boa Viagem. E o meu companheiro, o illustre Topsius, Doutor allemão pela Universidade de Bonn, socio do Instituto imperial de Excavações historicas, murmurou, grave como n’uma invocação, desdobrando o seu vastissimo guardasol verde:
— Egypto! Egypto! Eu te saúdo, negro Egypto! E que me seja em ti propicio o teu Deus Phtah, Deus das Letras, Deus da Historia, inspirador da obra de Arte e da obra de Verdade!...
Através d’este zumbido scientifico eu sentia-me envolvido n’um bafo morno como o d’uma estufa, amollecedormente tocado d’aromas de sandalo e rosa. No caes faiscante, entre fardos de lã, estirava-se, banal e sujo, o barracão da Alfandega. Mas além as pombas brancas voavam em torno aos minaretes brancos; o ceu deslumbrava. Cercado de severas palmeiras, um languido palacio dormia á beira d’agua; e ao longe perdiam-se os areaes da antiga Lybia, esbatidos n’uma poeirada quente, livre, e da côr d’um leão.
Amei logo esta terra de indolencia, de sonho e de luz. E saltando para a caleche forrada de chita, que nos ia levar ao Hotel das Pyramides, invoquei as Divindades, como o illustrado Doutor de Bonn:
— Egypto, Egypto! Eu te saúdo, negro Egypto! E que me seja propicio...
— Não! que vos seja propicia, D. Raposo, Isis, a vacca amorosa! acudiu o eruditissimo homem, risonho, e abraçado á minha chapeleira.
Não comprehendi, mas venerei. Eu conhecêra Topsius em Malta, uma fresca manhã, estando a comprar violetas a uma ramalheteira que tinha já nos olhos grandes um langor musulmano: elle andava medindo consideradamente com o seu guardasol as paredes marciaes e monasticas do palacio do Grão-Mestre.
Persuadido que era um dever espiritual e doutoral, n’estas terras do Levante, cheias de historia, medir os monumentos da antiguidade, tirei o meu lenço e fui-o gravemente passeando, esticado como um covado, sobre as austeras cantarias. Topsius dardejou-me logo, por cima dos oculos d’ouro, um olhar desconfiado e ciumento. Mas tranquillisado, de certo, pela minha face jucunda e material, pelas minhas luvas almiscaradas, pelo meu futil raminho de violetas — ergueu cortezmente de sobre o longo cabello, corredio e côr de milho, o seu bonésinho de sêda preta. Eu saudei com o meu capacete de cortiça; e communicamos. Disse-lhe o meu nome, a minha patria, os santos motivos que me levavam a Jerusalem. Elle contou-me que nascêra na gloriosa Allemanha; e ia tambem á Judêa, depois á Galilêa, n’uma peregrinação scientifica, colhêr notas para a sua formidavel obra, a Historia dos Herodes. Mas demorava-se em Alexandria a amontoar os pesados materiaes de outro livro monumental, a Historia dos Lagidas... Porque estas duas turbulentas familias, os Herodes e os Lagidas, eram propriedade historica do doutissimo Topsius.
— Então, ambos com o mesmo roteiro, podiamos acamaradar, Doutor Topsius!
Elle espigado, magrissimo e pernudo, com uma rabona curta de lustrina enchumaçada de manuscriptos, cortejou gostosamente:
— Pois acamarademos, D. Raposo! Será uma deleitosa economia!
Encovado na gola, de guedelha cahida, o nariz agudo e pensativo, a calça esguia, — o meu erudito amigo parecia-me uma cegonha, risivel e cheia de letras, com oculos d’ouro na ponta do bico. Mas já a minha animalidade reverenciava a sua intellectualidade: e fômos beber cerveja.
A sabedoria n’este moço era dom hereditario. Seu avô materno, o naturalista Shlock, escreveu um famoso tratado em oito volumes sobre a Expressão physionomica dos Lagartos, que assombrou a Allemanha. E seu tio, o decrepito Topsius, o memoravel egyptologo, aos setenta e sete annos dictou da poltrona, onde o prendia a gota, esse livro genial e facil — a Synthese monotheista da Theogonia egypcia, considerada nas relações do Deus Phtah e do Deus Imhotep com as Triadas dos Nómos.
O pai de Topsius, desgraçadamente, através d’esta alta sciencia domestica, permanecia figle n’um a charanga, em Munich: mas o meu camarada, reatando a tradição, logo aos vinte e dois annos tinha esclarecido, radiantemente, em dezenove artigos publicados no Boletim hebdomadario de Excavações historicas, a questão, vital para a Civilisação, d’uma parede de tijolo erguida pelo rei Pi-Sibkmé, da vigesima primeira dynastia, em torno do templo de Ramèses II, na lendaria cidade de Tanis. Em toda a Allemanha scientifica, hoje, a opinião de Topsius ácerca d’esta parede brilha com a irrefutabilidade do sol.
Só conservo de Topsius recordações suaves ou elevadas. Já sobre as aguas bravias do mar de Tyro; já nas ruas fuscas de Jerusalem; já dormindo lado a lado, sob a tenda, junto aos destroços de Jerichó; já pelas estradas verdes de Galilêa — encontrei-o sempre instructivo, serviçal, paciente e discreto. Raramente comprehendia as suas sentenças, sonoras e bem cunhadas, tendo a preciosidade de medalhas d’ouro; mas, como diante da porta impenetravel d’um santuario, eu reverenciava, por saber que lá dentro, na sombra, refulgia a essencia pura da Idéa. Por vezes tambem o Doutor Topsius rosnava uma praga immunda; e então uma grata communhão se estabelecia entre elle e o meu singelo intellecto de bacharel em leis. Ficou-me a dever seis moedas; — mas esta diminuta migalha de pecunia desapparece na copiosa onda de saber historico com que fecundou o meu espirito. Uma coisa apenas, além do seu pigarro d’erudito, me desagradava n’elle — o habito de se servir da minha escova de dentes.
Era tambem intoleravelmente vaidoso da sua patria. Sem cessar, erguendo o bico, sublimava a Allemanha, mãi espiritual dos povos; depois ameaçava-me com a irresistibilidade das suas armas. A omnisciencia da Allemanha! A omnipotencia da Allemanha! Ella imperava, vasto acampamento entrincheirado d’in-folios, onde ronda e falla d’alto a Metaphysica armada! Eu, brioso, não gostava d’estas jactancias. Assim, quando no Hotel das Pyramides nos apresentaram um livro para n’elle registarmos nossos nomes e nossas terras, o meu douto amigo traçou o seu «Topsius», ajuntando por baixo, altivamente, em letras tesas e disciplinadas como galuchos: — «Da Imperial Allemanha.» Arrebatei a penna; e recordando o barbudo João de Castro, Ormuz em chammas, Adamastor, a capella de S. Roque, o Tejo e outras glorias, escrevi largamente em curvas mais enfunadas que velas de galeões: — «Raposo, Portuguez, d’Áquem e d’Álém-mar.» E logo, do canto, um moço magro e murcho, murmurou, suspirando e a desfallecer:
— Em o cavalheiro necessitando alguma coisa, chame pelo Alpedrinha.
Um patricio! Elle contou-me a sua sombria historia, desafivelando a minha maleta. Era de Trancoso e desgraçado. Tivera estudos, compuzera um negrologio, sabia ainda mesmo de cór os versos mais doloridos «do nosso Soares de Passos.» Mas apenas sua mamãsinha morrêra, tendo herdado terras, correra á fatal Lisboa, a gozar; conheceu logo na travessa da Conceição uma hespanhola deleitosissima, do adocicado nome de Dulce; e largou com ella para Madrid, n’um idyllio. Ahi o jogo empobreceu-o, a Dulce trahiu-o, um chulo esfaqueou-o. Curado e macilento passou a Marselha; e durante annos arrastou como um frangalho social, através de miserias inenarraveis. Foi sacristão em Roma. Foi barbeiro em Athenas. Na Morêa, habitando uma choça junto a um pantano, empregára-se na pavorosa pesca das sanguesugas; e de turbante, com ôdres negros ao hombro, apregoou agua pelas viellas de Smyrna. O fecundo Egypto attrahira-o sempre, irresistivelmente... E alli estava no Hotel das Pyramides, moço de bagagens e triste.
— E se o cavalheiro trouxesse por ahi algum jornal da nossa Lisboa, eu gostava de saber como vai a Politica.
Concedi-lhe generosamente todos os Jornaes de Noticias que embrulhavam os meus botins.
O dono do hotel era um grego de Lacedemonia, de bigodes ferozes, e que hablaba un poquitito el castellano. Respeitosamente elle proprio, têso na sua sobrecasaca preta ornada d’uma condecoração, nos conduziu á sala do almoço — la más preciosa, sin duda, de todo el Oriente, caballeros!
Sobre a mesa murchava um ramo grosso de flôres escarlates: no frasco do azeite fluctuavam familiarmente cadaveres de moscas; as chinelas do criado topavam a cada instante um velho Jornal dos Debates, manchado de vinho, rojando alli desde a vespera, pisado por outras chinelas indolentes: e no tecto, a fumaraça fetida dos candieiros de latão juntára nuvens pretas ás nuvens côr de rosa onde esvoaçavam anjos e andorinhas. Por baixo da varanda uma rebeca e uma harpa tocavam a Mandolinata. E emquanto Topsius se alagava de cerveja, eu sentia estranhamente crescer o meu amor por esta terra de preguiça e de luz.
Depois do café, o meu sapientissimo amigo, com o lapis dos apontamentos na algibeira da rabona, abalou a rebuscar antigualhas e pedras do tempo dos Ptolomeus. Eu, accendendo um charuto, reclamei Alpedrinha; e confiei-lhe que desejava, sem tardança, ir rezar e ir amar. Rezar era por intenção da tia Patrocinio, que me recommendára uma jaculatoria a S. José, apenas pisasse esse sólo do Egypto, tornado, desde a fuga da Santa Familia em cima do seu burrinho, chão devoto como o d’uma Sé. Amar era por necessidade do meu coração, ancioso e ardido. Alpedrinha, em silencio, ergueu as persianas, e mostrou-me uma clara praça, ornamentada ao centro por um heroe de bronze, cavalgando um corcel de bronze: uma aragem quente levantava poeiradas lentas por sobre dois tanques seccos; e em redor perfilavam-se no azul altos predios, hasteando cada um a bandeira da sua patria como cidadellas rivaes sobre um sólo vencido. Depois o triste Alpedrinha indicou-me, a uma esquina, onde uma velha vendia canas d’assucar, a tranquilla rua das Duas Irmãs. Ahi (murmurou elle) eu veria, pendurada sobre a porta d’uma lojinha discreta, uma pesada mão de pau, tosca e rôxa — e por cima, em taboleta negra, estes dizeres convidativos a ouro: «Miss Mary, Luvas e Flores de Cera.» Era esse o refugio que elle aconselhava ao meu coração. Ao fundo da rua, junto d’uma fonte chorando entre arvores, havia uma capella nova onde a minha alma acharia consolação e frescura.
— E diga o cavalheiro a miss Mary que vai de mandado do Hotel das Pyramides.
Puz uma rosa ao peito — e sahi, ovante. Logo da entrada das Duas Irmãs avistei a ermidinha virginal, dormindo castamente sob os platanos, ao rumor meigo da agua. Mas o amantissimo patriarcha S. José estava certamente, a essa hora, occupado em receber jaculatorias mais instantes, e evoladas de labios mais nobres: não quiz importunar o bondosissimo santo; — e parei diante da mão de pau, pintada de rôxo, que parecia estar alli esperando, alongada e aberta, para empolgar o meu coração.
Entrei, commovido. Por traz do balcão envernizado, junto a um vaso de rosas e magnolias, ella estava lendo o seu Times, com um gato branco no collo. O que me prendeu logo foram os seus olhos azues-claros, d’um azul que só ha nas porcelanas, simples, celestes, como eu nunca vira na morena Lisboa. Mas encanto maior ainda tinham os seus cabellos, crespos, frisadinhos como uma carapinha d’ouro, tão dôces e finos que appetecia ficar eternamente e devotamente a mexer-lhes com os dedos tremulos; e era irresistivel o profano nimbo luminoso que elles punham em torno da sua face gordinha, d’uma brancura de leite onde se desfez carmezim, toda tenra e succulenta. Sorrindo, e baixando com sentimento as pestanas escuras, perguntou-me se eu queria pellica ou Suecia.
Eu murmurei, roçando-me sôfregamente pelo balcão:
— Trago-lhe recadinhos do Alpedrinha.
Ella escolheu entre o ramo um timido botão de rosa, e deu-m’o na ponta dos dedos. Eu trinquei-o, com furor. E a voracidade d’esta caricia pareceu agradar-lhe, porque um sangue mais quente veio afoguear-lhe a face — e chamou-me baixo «mausinho!» Esqueci S. José e a sua jaculatoria — e as nossas mãos, um momento unidas para ella me calçar a luva clara, não se desenlaçaram mais, n’essas semanas que passei, na cidade dos Lagidas, em festivas delicias musulmanas!
Ella era d’York, esse heroico condado da velha Inglaterra, onde as mulheres crescem fortes e bem desabrochadas, como as rosas dos seus jardins reaes. Por causa da sua meiguice e do seu riso d’ouro quando lhe fazia cocegas, eu puzera-lhe o nome galante e cacarejante de Maricoquinhas. Topsius, que a apreciava, chamava-lhe «a nossa symbolica Cleopatra.» Ella amava a minha barba negra e potente: e, só para não me afastar do calor das suas saias, eu renunciei a vêr o Cairo, o Nilo, e a eterna Esphinge, deitada á porta do deserto, sorrindo da Humanidade vã...
Vestido de branco como um lirio, eu gozava manhãs ineffaveis, encostado ao balcão da Mary, amaciando respeitosamente a espinha do gato. Ella era silenciosa: mas o seu simples sorrir com os braços cruzados, ou o seu modo gentil de dobrar o Times, saturava o meu coração de luminosa alegria. Nem precisava chamar-me «seu portuguezinho valente, seu bibichinho.» Bastava que o seu peito arfasse: — só para vêr aquella dôce onda languida, e saber que a levantava assim a saudade dos meus beijos, eu teria vindo de tão longe a Alexandria, iria mais longe, a pé, sem repouso, até onde as aguas do Nilo são brancas!
De tarde, na caleche de chita com o nosso doutissimo Topsius, davamos lentos, amorosos passeios á beira do canal Mamoudieh. Sob as frondosas arvores, rente aos muros de jardins de serralho, eu sentia o aroma perturbador de magnolias, e outros calidos perfumes que não conhecia. Por vezes uma leve flôr rôxa ou branca cahia-me sobre o regaço: com um suspiro eu roçava a barba pelo rosto macio da minha Maricoquinhas; ella, sensivel, estremecia. Na agua jaziam as barcas pesadas que sobem o Nilo, sagrado e bemfazejo, ancorando junto ás ruinas dos templos, costeando as ilhas verdes onde dormem os crocodilos. Pouco a pouco a tarde cahia. Vagarosamente rolavamos na sombra olorosa. Topsius murmurava versos de Goethe. E as palmeiras da margem fronteira recortavam-se no poente amarello — como feitas em relevo de bronze sobre uma lamina d’ouro.
Maricocas jantava sempre comnosco no Hotel das Pyramides; e diante d’ella Topsius desabrochava todo em flôres d’erudição amavel. Contava-nos as tardes de festa da velha Alexandria dos Ptolomeus, no canal que levava a Canopia: ambas as margens resplandeciam de palacios e de jardins; as barcas, com toldos de sêda, vogavam ao som dos alaúdes; os sacerdotes d’Osiris, cobertos de pelles de leopardo, dançavam sob os laranjaes; e nos terraços abrindo os véos, as damas d’Alexandria bebiam á Venus Assyria, pelo calice da flôr do lotus. Uma voluptuosidade esparsa amollecia as almas. Os philosophos mesmo eram frascarios.
— E, dizia Topsius requebrando o olho, em toda a Alexandria só havia uma dama honesta que commentava Homero e era tia de Seneca. Só uma!
Maricoquinhas suspirava. Que encanto, viver n’essa Alexandria, e navegar para Canopia, n’uma barca toldada de sêda!
— Sem mim? gritava eu, ciumento.
Ella jurava que sem o seu portuguezinho valente não queria habitar nem o céo!
Eu, regalado, pagava o champagne.
E os dias assim foram passando, leves, flaccidos, gostosos, repicados de beijos — até que chegou a vespera sombria de partirmos para Jerusalem.
— O cavalheiro, dizia-me n’essa manhã Alpedrinha engraxando os meus botins, o que devia era ficar aqui na Alexandriasinha, a refocilar...
Ah! se pudesse! Mas irrecusaveis eram os mandados da titi! E, por amor do seu ouro, lá tinha d’ir á negra Jerusalem, ajoelhar diante de oliveiras seccas, desfiar rosarios piedosos ao pé de frios sepulchros...
— Tu já estiveste em Jerusalem, Alpedrinha? perguntei, enfiando desconsoladamente as ceroulas.
— Não senhor, mas sei... Peor que Braga!
— Irra!
A nossa cêa com Maricocas, á noite, no meu quarto, foi cortada de silencios, de suspiros: as velas tinham a melancolia de tochas: o vinho anuviava-nos como aquelle que se bebe nos funeraes. Topsius offertava consolações generosas.
— Bella dama, bella dama, o nosso Raposo ha de voltar... Estou mesmo certo que trará da ardente terra da Syria, da terra da Venus e da Esposa dos Cantares, uma chamma no seu coração mais fogosa e mais moça...
Eu mordia o beiço, suffocado:
— Pois está visto! Ainda havemos d’andar de caleche pelo Mamoudieh... Isto é só ir rezar uns padre-nossos ao Calvario... Até me faz bem... Volto como um touro.
Depois do café fomos encostar-nos á varanda a olhar, calados, aquella sumptuosa noite do Egypto. As estrellas eram como uma grossa poeirada de luz que o bom Deus levantava lá em cima, passeando sósinho pelas estradas do céo. O silencio tinha uma solemnidade de sacrario. Nos escuros terraços, em baixo, uma fórma branca movendo-se por vezes, de leve, mostrava que outras creaturas estavam alli, como nós, deixando a alma embeber-se mudamente no esplendor sideral: e n’esta diffusa religiosidade, igual á d’uma multidão pasmando para os lumes d’um altar-mór, eu sentia subir aos labios irresistivelmente a doçura d’uma Ave-Maria...
Ao longe o mar dormia. E, á quente irradiação dos astros, eu podia distinguir, n’um pontal de arêa, mergulhando quasi n’agua, uma casa deserta, pequenina, toda branca e poetica entre duas palmeiras... Então comecei a pensar que, mal a titi morresse e fosse meu o seu ouro, eu poderia comprar esse dôce retiro, forral-o de lindas sêdas, e viver ao lado da minha luveira, vestido de turco, fresco, sereno, livre de todas as inquietações da civilisação. Desaggravos ao Sagrado Coração de Jesus ser-me-hiam tão indifferentes como as guerras que entre si travassem os Reis. Do céo só me importaria a luz anilada que banhasse a minha vidraça; da terra só me importariam as flôres abertas no meu jardim para aromatisar a minha alegria. E passaria os dias n’uma fôfa preguiça oriental, fumando o puro Latakié, tocando viola franceza, e recebendo perpetuamente essa impressão de felicidade perfeita que a Mary me dava só com deixar arfar o seio e chamar-me «seu portuguezinho valente.»
Apertei-a contra mim n’um desejo de a sorver. Junto á sua orelha, d’uma brancura de concha branca, balbuciei nomes ineffaveis: disse-lhe rechonchudinha, disse-lhe riquiquitinha. Ella estremeceu, ergueu os olhos magoados para a poeirada d’ouro.
— Que d’estrellas! Deus queira que ámanhã o mar esteja manso!
Então, á idéa d’essas longas ondas que me iam levar á rispida terra do Evangelho, tão longe da minha Mary, um pezar infinito afogou-me o peito — e irrepressivelmente se me escapou dos labios, em gemidos entoados, queixosos e requebrados... Cantei. Por sobre os terraços adormecidos da musulmana Alexandria soltei a voz dolorida, voltado para as estrellas; e roçando os dedos pelo peito do jaquetão onde deviam estar os bordões da viola, fazendo os meus ais bem chorosos — suspirei o fado mais sentido da saudade portugueza:
Co’a minh’alma aqui te ficas, Eu parto só com os meus ais, E tudo me diz, Maricas, Que não te verei nunca mais.
Parei, abafado de paixão. O erudito Topsius quiz saber se estes dôces versos eram de Luiz de Camões. Eu, choramigando, disse-lhe que estes — ouvira-os no Dáfundo ao Calcinhas.
Topsius recolheu a tomar uma nota do grande poeta Calcinhas. Eu fechei a vidraça: e depois d’ir ao corredor fazer ás escondidas um rapido signal da cruz, vim desapertar sôfregamente, e pela vez derradeira, os atacadores do collete da minha saborosa bem-amada.
Breve, avaramente breve, foi essa noite estrellada do Egypto!
Cedo, amargamente cedo, veio o grego de Lacedemonia avisar-me que já fumegava na bahia, aspera e cheia de vento, el paquete, ferozmente chamado o Caimão, que me devia levar para as tristezas d’Israel.
El señor D. Topsius, madrugador, já estava em baixo a almoçar pachorrentamente os seus ovos com presunto, a sua vasta caneca de cerveja. Eu tomei apenas um gole de café, no quarto, a um canto da commoda, em mangas de camisa, com os olhos vermelhos sob a nevoa das lagrimas. A minha solida mala de couro atravancava o corredor, fechada e afivelada; mas Alpedrinha estava ainda accommodando, á pressa, a roupa suja dentro do sacco de lona. E Maricoquinhas, sentada desoladamente á borda do leito, com o seu gentil chapéo enfeitado de papoulas e as olheirinhas pisadas — contemplava aquelle enfardelar de flanellas, como se fossem bocados do seu coração atirados para o fundo do sacco, para partirem e não voltarem mais!
— Levas tanta roupa suja, Theodorico!
Balbuciei, dilacerado:
— Manda-se lavar em Jerusalem com a ajuda de Nosso Senhor!
Deitei os meus bentinhos ao pescoço. N’esse instante Topsius assomava á porta, cachimbando, com a barraca do seu guardasol fechada sob o braço, de galochas anchas para a humidade do tombadilho — e um volume da Biblia enchumaçando-lhe a rabona d’alpaca. Ao vêr-me sem collete, reprehendeu a minha amorosa preguiça.
— Mas comprehendo, bella dama, comprehendo! acudiu elle, ás cortezias a Mary, esgrouviado e onduloso, d’oculos na ponta do bico. É doloroso deixar os braços de Cleopatra... Já Antonio por elles perdeu Roma e o mundo... Eu mesmo, todo absorvido na minha missão, com recantos crepusculares da Historia a alumiar, levo gratas memorias d’estes dias de Alexandria... Deliciosissimos os nossos passeios pelo Mamoudieh!... Permitta-me que apanhe a sua luva, bella dama!... E se voltar jámais a esta terra dos Ptolomeus, não me esquecerá a rua das Duas irmãs... «Miss Mary, luvas e flôres de cêra.» Perfeitamente. Consentirá que lhe mande, quando completa, a minha Historia dos Lagidas... Ha detalhes muito picantes... Quando Cleopatra se apaixonou por Herodes, o rei da Judêa...
Mas Alpedrinha, da beira do leito, gritava, alvoroçado:
— Cavalheiro! Ainda ha aqui roupa suja!
Rebuscando, entre os cobertores revoltos, descobrira uma longa camisa de rendas, com laços de sêda clara. Sacudia-a; e espalhava-se um aroma saudoso de violeta e d’amor... Ai! era a camisa de dormir da Mary, quente ainda dos meus abraços!
— Pertence á snr.ª D. Mary! É a tua camisinha, amor! gemi eu, cruzando os suspensorios.
A minha luveirinha ergueu-se, tremula, descórada — e teve um poetico rasgo de paixão. Enrolou a sua camisinha, atirou-m’a para os braços, tão ardentemente, como se entre as dobras viesse tambem o seu coração.
— Dou-t’a, Theodorico! Leva-a, Theodorico! Ainda está amarrotada da nossa ternura!... Leva-a para dormires com ella ao teu lado, como se fosse commigo... Espera, espera ainda, amor! Quero pôr-lhe uma palavra, uma dedicatoria!
Correu á mesa, onde jaziam restos do papel sisudo em que eu escrevia á titi a historia edificativa dos meus jejuns em Alexandria, das noites consumidas a embeber-me do Evangelho... E eu, com a camisinha perfumada nos braços, sentindo duas bagas de pranto rolarem-me pelas barbas, procurava angustiosamente em redor onde guardar aquella preciosa reliquia d’amor. As malas estavam fechadas. O sacco de lona estalava, repleto.
Topsius, impaciente, tirára das profundezas do seio o seu relogio de prata. O nosso Lacedemonio, á porta, rosnava:
— D. Theodorico, es tarde, es mui tarde...
Mas a minha bem-amada já sacudia o papel, coberto das letras que ella traçára, largas, impetuosas e francas como o seu amor: «Ao meu Theodorico, meu portuguezinho possante, em lembrança do muito que gozámos!»
— Oh, riquinha! E onde hei de eu metter isto? Eu não hei de levar a camisa nos braços, assim núa e ao léo!
Já Alpedrinha, de joelhos, desafivelava desesperadamente o sacco. Então Maricoquinhas, com uma inspiração delicada, agarrou uma folha de papel pardo, apanhou do chão um nastro vermelho; e as suas habilidosas mãos de luveira fizeram da camisinha um embrulho redondo, commodo e gracioso — que eu metti debaixo do braço, apertando-o com avara, inflammada paixão.
Depois foi um murmurio arrebatado de soluços, de beijos, de doçuras...
— Mary, anjo querido!
— Theodorico, amor!...
— Escreve-me para Jerusalem...
— Lembra-te da tua bichaninha bonita...
Rolei pela escada, tonto. E a caleche que tantas vezes me passeára, enlaçado com Mary, por sob os arvoredos aromaticos do Mamoudieh — lá partiu, ao trote da parelha branca, arrancando-me a uma felicidade onde o meu coração deitára raizes, agora despedaçadas e gottejando sangue no silencio do meu peito. O douto Topsius, abarracado sob o seu guardasol verde, recomeçára, impassivel, a murmurar coisas de velha erudição. Sabia eu por onde iamos rodando? Por sobre a nobre calçada dos Sete-Stados, que o primeiro dos Lagidas construira para communicar com a ilha de Pharos, louvada nos versos de Homero! Nem o escutava, debruçado para traz, na caleche, agitando o lenço molhado da minha saudade. A dôce Maricoquinhas, á porta do Hotel, ao lado d’Alpedrinha, linda sob o chapéo florido de papoulas, fazia esvoaçar tambem o seu lenço amoroso e acariciador: e um momento estas duas cambraias brancas sacudiram uma para a outra, no ar quente, o ardor dos nossos corações. Depois eu cahi sobre a almofada de chita como cae um corpo morto...
Apenas embarcado no Caimão, corri a esconder no beliche a minha dôr. Topsius ainda me agarrou pela manga para me mostrar sitios das grandezas dos Ptolomeus, o porto do Eunotos, a enseada de marmore onde ancoravam as galeras de Cleopatra. Fugi; na escada esbarrei, quasi rolei sobre uma Irmã da Caridade, que subia timidamente com as suas contas na mão. Rosnei um «desculpe, minha santinha.» E tombando emfim no catre, deixei escapar o pranto á larga, por cima do embrulho de papel pardo: elle era tudo que me restava d’essa paixão de incomparavel esplendor, passada na terra do Egypto.
Dois dias e duas noites o Caimão arquejou e rolou nos vagalhões do mar de Tyro. Enrodilhado n’um cobertor, sem largar do peito o embrulhinho da Mary, eu recusava com odio as bolachas que de vez em quando me trazia o humanissimo Topsius; e desattento ás coisas eruditas que elle imperturbavelmente me contava d’estas aguas chamadas pelos egypcios o Grande Verde, rebuscava debalde na memoria bocados soltos de uma oração que ouvira á titi para amansar as vagas iradas.
Mas uma tarde, ao escurecer, tendo cerrado os olhos, pareceu-me sentir sob as chinelas um chão firme, chão de rocha, onde cheirava a rosmaninho: e achei-me incomprehensivelmente a subir uma collina agreste de companhia com a Adelia, e com a minha loura Mary — que sahira de dentro do embrulho, fresca, nitida, sem ter sequer amarrotado as papoulas do seu chapéo! Depois, por traz d’um penedo, surgiu-nos um homem nú, colossal, tisnado, de cornos; os seus olhos reluziam, vermelhos como vidros redondos de lanternas; e com o rabo infindavel ia fazendo no chão o rumor de uma cobra irritada que roja por folhas seccas. Sem nos cortejar, impudentemente, poz-se a marchar ao nosso lado. Eu percebi bem que era o Diabo; mas não senti escrupulo, nem terror. A insaciavel Adelia atirava olhadellas obliquas á potencia dos seus musculos. Eu dizia-lhe, indignado: «Porca, até te serve o Diabo?»
Assim marchando, chegámos ao alto do monte — onde uma palmeira se desgrenhava sobre um abysmo cheio de mudez e de treva. Defronte de nós, muito longe, o céo desdobrava-se como um vasto estofo amarello: e sobre esse fundo vivo, côr de gema d’ovo, destacava um negrissimo outeiro, tendo cravadas no alto tres cruzinhas em linha, finas e d’um só traço. O Diabo, depois de escarrar, murmurou, travando-me da manga: «A do meio é a de Jesus, filho de José, a quem tambem chamam o Christo; e chegamos a tempo para saborear a Ascensão.» Com effeito! A cruz do meio, a do Christo, desairragada do outeiro, como um arbusto que o vento arranca, começou a elevar-se, lentamente, engrossando, atravancando o céo. E logo de todo o espaço voaram bandos de anjos, a sustel-a, apressados como as pombas quando acodem ao grão; uns puxavamna de cima, tendo-lhe amarrado ao meio longas cordas de sêda; outros, de baixo, empurravam-na — e nós viamos o esforço entumecido dos seus braços azulados. Por vezes do madeiro desprendia-se, como uma cereja muito madura, uma grossa gotta de sangue: um seraphim recolhia-a nas mãos e ia collocal-a sobre a parte mais alta do céo, onde ella ficava suspensa e brilhando com o resplendor d’uma estrella. Um ancião enorme de tunica branca, a que mal distinguiamos as feições, entre a abundancia da coma revolta e os flocos de barbas nevadas, commandava, estirado entre nuvens, estas manobras da Ascensão, n’uma lingua semelhante ao latim e forte como o rolar de cem carros de guerra. Subitamente tudo desappareceu. E o Diabo, olhando para mim, pensativo: «Consummatum est, amigo! Mais outro Deus! Mais outra Religião! E esta vai espalhar em terra e céo um inenarravel tedio.»
E logo, levando-me pela collina abaixo, o Diabo rompeu a contar-me animadamente os Cultos, as Festas, as Religiões que floreciam na sua mocidade. Toda esta costa do Grande Verde, então, desde Byblos até Carthago, desde Eleusis até Memphis, estava atulhada de deuses. Uns deslumbravam pela perfeição da sua belleza, outros pela complicação da sua ferocidade. Mas todos se misturavam á vida humana, divinisando-a: viajavam em carros triumphaes, respiravam as flôres, bebiam os vinhos, defloravam as virgens adormecidas. Por isso eram amados com um amor que não mais voltará: e os povos, emigrando, podiam abandonar os seus gados ou esquecer os rios onde tinham bebido — mas levavam carinhosamente os seus deuses ao collo. «O amigo, perguntou elle, nunca esteve em Babylonia?» Ahi todas as mulheres, matronas ou donzellas, se vinham um dia prostituir nos bosques sagrados, em honra da deusa Mylitta. As mais ricas chegavam em carros marchetados de prata, puxados a búfalos, e escoltadas d’escravas; as mais pobres traziam uma corda ao pescoço. Umas, estendendo um tapete na herva, agachavam-se como rezes pacientes; outras, erguidas, núas, brancas, com a cabeça escondida n’um véo preto, eram como esplendidos marmores entre os troncos dos alamos. E todas assim esperavam que qualquer, atirando-lhe uma moeda de prata, lhes dissesse: «Em nome de Venus!» Seguiam-no então, fosse um principe vindo de Suza com tiara de perolas, ou o mercador que desce o Euphrates no seu barco de couro: e toda a noite rugia na escuridão das ramagens o delirio da Luxuria ritual. Depois o Diabo disse-me as fogueiras humanas de Molok, os Mysterios da Boa-Deusa em que os lirios se regavam com sangue, e os ardentes funeraes d’Adonis...
E parando, risonhamente: «o amigo nunca esteve no Egypto?» Eu disse-lhe que estivera e conhecera lá Maricocas. E o Diabo, cortez: «Não era Maricocas, era Isis!» Quando a inundação chegava até Memphis, as aguas cobriam-se de barcas sagradas, Uma alegria heroica, subindo para o sol, fazia os homens iguaes aos deuses. Osiris, com os seus cornos de boi, montava Isis; e, entre o estridor das harpas de bronze, ouvia-se por todo o Nilo o rugido amoroso da Vacca divina.
Depois o Diabo contava-me como brilhavam, dôces e bellas, na Grecia as religiões da Natureza. Ahi tudo era branco, polido, puro, luminoso e sereno: uma harmonia sahia das fórmas dos marmores, da constituição das cidades, da eloquencia das academias e das destrezas dos athletas: por entre as ilhas da Ionia, fluctuando na molleza do mar mudo como cestas de flôres, as Nereidas dependuravam-se da borda dos navios, para ouvir as historias dos viajantes; as Musas, de pé, cantavam pelos valles: e a belleza de Venus era como uma condensação da belleza da Hellenia.
Mas apparecera este carpinteiro de Galilêa — e logo tudo acabára! A face humana tornava-se para sempre pallida, cheia de mortificação: uma cruz escura, esmagando a terra, seccava o esplendor das rosas, tirava o sabor aos beijos: — e era grata ao deus novo a fealdade das fórmas.
Julgando Lucifer entristecido, eu procurava consolal-o: «Deixe estar, ainda ha de haver no mundo muito orgulho, muita prostituição, muito sangue, muito furor! Não lamente as fogueiras de Molok. Ha de ter fogueiras de judeus.» E elle, espantado: «Eu? Uns ou outros, que me importa, Raposo? Elles passam, eu fico!»
Assim, despercebido, a conversar com Satanaz, achei-me no campo de Sant’Anna. E tendo parado, emquanto elle desenvencilhava os cornos dos ramos d’uma das arvores — ouvi de repente ao meu lado um berro: «Olha o Theodorico com o Porco-sujo!» Voltei-me. Era a titi! A titi, livida, terrivel, erguendo, para me espancar, o seu livro de missa! Coberto de suor — acordei.
Topsius gritava, á porta do beliche, alegremente:
— Levante-se, Raposo! Estamos á vista da Palestina!
O Caimão parára; e no silencio eu sentia a agua roçando-lhe o costado, de leve, n’um murmurio de mansa caricia. Porque sonhára eu assim, ao avisinhar-me de Jerusalem, com os Deuses falsos, Jesus seu vencedor, e o Demonio a todos rebelde? Que suprema revelação me preparava o Senhor?...
Desenrodilhei-me da manta; atordoado, sujo, sem largar o precioso embrulho da Mary, subi ao tombadilho, encolhido no meu jaquetão. Um ar fino e forte banhou-me deliciosamente, trazendo um aroma de serra e de flôr de laranjeira. O mar emmudecera, todo azul, na frescura da manhã. E ante meus olhos peccadores estendia-se a terra da Palestina, arenosa e baixa — com uma cidade escura, rodeada de pomares, toucada no alto de flechas de sol irradiando como os raios d’um resplendor de santo.
— Jaffa! gritou-me Topsius, sacudindo o seu cachimbo de louça. Ahi tem o D. Raposo a mais antiga cidade da Asia, a velhissima Jeppo, anterior ao Diluvio! Tire o barrete, saúde essa anciã dos tempos, cheia de lenda e d’historia... Foi aqui que o borrachissimo Noé construiu a sua Arca!
Cortejei, assombrado.
— Caramba! Ainda agora a gente chega, já lhe começam a apparecer coisas de religião!
E conservei-me descoberto — porque o Caimão, ao ancorar diante da Terra Santa, tomára o recolhimento d’uma capella, cheia de piedosas occupações e d’unção. Um lazarista, de longa sotaina, passeava, com os olhos baixos, meditando o seu Breviario. Sumidas dentro dos capuzes negros de lustrina, duas Religiosas corriam os dedos pallidos pelas contas dos seus rosarios. Ao longo da amurada humida, peregrinos da Abyssinia, hirsutos padres gregos de Alexandria, pasmavam para o casario de Jaffa, aureolado de sol, como para a illuminação d’um sacrario. E a sineta á pôpa tilintava, na brisa salgada, com uma doçura devota de toque de missa...
Mas, vendo uma barcaça escura remar para o Caimão, — baixei depressa ao beliche a pôr o meu capacete de cortiça, calçar luvas pretas, para pisar decorosamente a terra do meu Salvador. Ao voltar, bem escovado, bem perfumado, achei a lancha atulhada. E descia, com alvoroço, atraz d’um franciscano barbudo — quando o amado embrulhinho da Mary escapou dos meus braços carinhosos, rolou em saltos pela escada como uma pella, raspou a borda do bote... Ia sumir-se nas aguas amargas! Dei um berro! Uma das Religiosas apanhou-o, ligeira e cheia de misericordia.
— Agradecido, minha senhora! gritei, enfiado. É um pacotesinho de roupa! Seja pelo sagrado amor de Maria!
Ella refugiou-se modestamente na sombra do seu capuz; e como eu me accommodára, mais longe, entre Topsius e o franciscano barbudo que cheirava a alho — a santa creatura guardou o embrulho sobre o seu puro regaço, deitou-lhe mesmo por cima as contas do seu rosario.
O arraes, empunhando o leme, bradou: «Allah é grande, larga!» Os arabes remaram cantando. O sol surgiu por traz de Jaffa. E eu, encostado ao meu guardachuva, contemplava a pudica religiosa que assim levava, ao collo, para a terra de castidade, a camisinha da Mary.
Era nova: e entre o bioco triste de lustrina preta parecia de marfim o seu rosto oval, onde as pestanas longas punham a sombra d’uma dolente melancolia. Os beiços tinham perdido toda a côr e todo o calor, para sempre inuteis, destinados sómente a beijar os pés arroxeados do cadaver d’um Deus. Comparada com Mary, rosa d’York aberta e sensual, perfumando Alexandria — esta pendia como um lirio ainda fechado e já murcho na humidade d’uma capella. Ia certamente para algum hospicio da Terra Santa. A vida para ella devia ser uma successão de chagas a cobrir de fios e de lençoes a estender por cima de faces mortas. E era decerto o medo do Senhor que a tornava assim tão pallida.
— Bem tola! murmurei eu.
Pobre e esteril creatura! Percebeu ella por acaso o que continha aquelle embrulho pardo? Sentiu ella subir de lá, e espalhar-se no escuro do seu capuz, um perfume estranho e enlanguecedor de baunilha e de pelle amorosa? A quentura do leito revolto, que ficára nas rendas da camisa, atravessou por acaso o papel e veio aquecer-lhe brandamente os joelhos? Quem sabe! Durante um momento pareceu-me que uma gota de sangue novo lhe roseou a face desmaiada, e que debaixo do habito, onde brilhava uma cruz, o seu seio arfou, perturbado: mesmo julguei vêr lampejar, por entre as suas pestanas, um raio fugitivo e assustado procurando as minhas barbas cerradas e pretas... Mas foi só um relance. Outra vez, sob o capuz, o rosto recahiu na sua frialdade de marmore santo; e sobre o seio submettido a cruz pesou, ciumenta e de ferro. Ao seu lado, a outra religiosa, rochonchuda e de lunetas, sorria para o verde mar, sorria para o sabio Topsius — com um sorriso claro que sahia da paz do seu coração e lhe punha uma covinha no queixo.
Apenas saltámos na arêa da Palestina, corri a agradecer, de capacete na mão, garboso e palaciano.
— Minha irmã, estou muito penhorado... Grande desgosto se se perdesse o pacotesinho!... É de minha tia, uma encommenda para Jerusalem... Lá lhe contarei... A titi é muito respeitadora de coisas santas, pella-se pela caridade...
Muda, no refolho do seu capuz, ella estendeu-me o embrulhinho com a ponta dos dedos, debeis e mais transparentes que os d’uma Senhora da Agonia. E os dois habitos negros sumiram-se, entre muros faiscantes de cal nova, n’uma viella em escadas onde apodrecia o cadaver d’um cão sob o vôo dos moscardos. Eu murmurei ainda: «Bem tola!»
Quando me voltei, Topsius, á sombra do seu guardasol, conversava com o homem prestante — que foi nosso Guia através das terras da Escriptura. Era moço, moreno, espigado, com longos bigodes esvoaçando ao vento; usava jaqueta de velludilho e botas brancas de montar; as coronhas prateadas de duas pistolas, emergindo d’uma facha de lã negra, armavam-lhe heroicamente o peito forte: e trazia amarrado na cabeça, com as pontas e as franjas atiradas para traz, um lenço rutilante de sêda amarella. O seu nome era Paulo Potte, a sua patria o Montenegro: e toda a costa da Syria o conhecia pelo alegre Potte. Jesus, que alegre matalote! A alegria faiscava-lhe na pupilla azul-clara; a alegria cantava-lhe nos dentes incomparaveis; a alegria estremecia-lhe nas mãos buliçosas; a alegria resoava-lhe no bater dos tacões. Desde Ascalon até aos bazares de Damasco, desde o Carmelo até aos pomares d’Engadi — elle era o alegre Potte. Estendeu-me rasgadamente a bolsa de tabaco perfumado. Topsius maravilhou-se do seu saber biblico. Eu, com palmadas pelo ventre, gritei-lhe logo — meu gajo! E, depois de valentes apertos de mão, fomos para o Hotel de Josaphat firmar o nosso contracto, bebendo vasta cerveja.
O alegrissimo Potte depressa organisou a nossa caravana para a cidade do Senhor. Um macho levava as bagagens; o arrieiro arabe, embrulhado n’um farrapo azul, era tão airoso e lindo que eu, irresistivelmente e sem cessar, procurava o negro afago do seu olhar de velludo; e, por luxo oriental, como escolta, seguia-nos um beduino, velho, catarrhoso, com o albornós de lã de camêlo listrado de cinzento, e uma forte lança ferrugenta toda enfeitada de borlas.
Guardei n’um alforge, desveladamente, o embrulhinho mimoso da camisinha da Mary: depois, já na sella, alongados os lóros do pernudo Topsius, o festivo Potte, floreando o chicote, lançou o antigo grito das Cruzadas e de Ricardo-Coração-de-Leão — Avante, a Jerusalem, Deus o quer! E a trote, com os charutos em brasa, sahimos de Jaffa pela porta do Mercado — á hora em que suavemente tocava a vesperas no Hospicio dos Padres Latinos.
Na luminosa meiguice da tarde, a estrada alongava-se através de jardins, hortas, pomares, laranjaes, palmeiraes, terra de Promissão, resplandecente e amavel. Por entre as sebes de myrtos perdia-se o fugidio cantar das aguas. O ar todo, d’uma doçura ineffavel, como para n’elle respirar melhor o povo eleito de Deus, era um derramado perfume de jasmins e limoeiros. O grave e pacifico chiar das noras ia adormecendo, ao fim do dia de rega, entre as romanzeiras em flôr. Alta e serena no azul, voava uma grande aguia.
Consolados, parámos n’uma fonte de marmore vermelho e negro, abrigada á sombra de sycomoros onde arrulhavam rôlas: ao lado erguia-se uma tenda, com um tapete na relva coberto d’uvas e de malgas de leite; e o velho de barbas brancas que a occupava saudou-nos em nome de Allah, com a nobreza de um patriarcha. A cerveja tinha-me feito sêde: foi uma rapariga bella como a antiga Rachel, que me deu a beber do seu cantaro de fórma biblica, sorrindo, com o seio descoberto, duas longas argolas d’ouro batendo-lhe a face morena — e um cordeirinho branco e familiar preso da ponta da tunica.
A tarde descia, muda e dourada, quando penetrámos na planicie de Saron, que a Biblia outr’ora encheu de rosas. No silencio tilintavam os chocalhos d’um rebanho de cabras negras, que um arabe ia pastoreando, nú como um S. João. Lá ao fundo, os montes sinistros da Judêa, tocados pelo sol obliquo que se afundava sobre o mar de Tyro, pareciam ainda formosos, azues e cheios de doçura de longe, como as illusões do peccado. Depois tudo escureceu. Duas estrellas de um resplendor infinito appareceram: — e começaram a caminhar adiante de nós para os lados de Jerusalem.
O nosso quarto, no Hotel do Mediterraneo, em Jerusalem, com a sua abobada caiada de branco, o chão de tijolo, semelhava uma rigida cella de rude mosteiro. Mas, fronteiro á janella, um tabique delgado, revestido de papel de ramagens azues, dividia-o d’outro quarto, onde nós sentiamos uma voz fresca cantarolar a Ballada do rei de Thule: e ahi, exhalando conforto e civilisação, brilhava um guarda-roupa de mogno, que eu abri, como se abre um relicario, para encerrar o meu embrulhinho bemdito.
Os dois leitosinhos de ferro desappareciam sob as pregas virginaes dos cortinados de cambraia branca; e ao meio havia uma mesa de pinho, onde Topsius estudava o mappa da Palestina, emquanto eu, de chinelos, passeava, limando as unhas. Era a devota sexta-feira em que a christandade commemora, enternecida, os SS. Martyres d’Evora. Nós tinhamos chegado n’essa tarde, sob uma chuva triste e miuda, á cidade do Senhor: e de vez em quando Topsius, erguendo os oculos de cima das estradas de Galilêa, contemplava-me de braços cruzados e murmurava com amizade:
— Ora está o amigo Raposo em Jerusalem!
Eu, parando ao espelho, dava um olhar ás barbas crescidas, á face crestada, e murmurava tambem, agradado:
— É verdade, cá está o bello Raposo em Jerusalem!
E voltava, insaciado, a admirar através dos vidros baços a divina Sião. Sob a chuva melancolica erguiam-se defronte as paredes brancas d’um convento silencioso, com as persianas verdes corridas, e duas enormes goteiras de zinco a cada esquina, uma escoando-se ruidosamente sobre uma viella deserta — a outra cahindo no chão molle d’uma horta plantada de couves, onde orneava um jumento. D’esse lado, era uma vastidão infindavel de telhados em terraço, lugubres e côr de lodo, com uma cupulasinha de tijolo em fórma de forno, e longas varas para seccar farrapos; e quasi todos decrepitos, desmantelados, miserrimos, pareciam desfazer-se na agua lenta que os alagava. Do outro elevava-se uma encosta atulhada de casebres sordidos, com verduras de quintal, esfumadas, arripiadas na nevoa humida: por entre elles, torcia-se uma viella esgalgada, em escadinhas, onde constantemente se cruzavam frades de alpercatas sob os seus guardachuvas, sombrios judeus de melenas cahidas, ou algum vagoroso beduino arregaçando o seu albornós... Por cima pesava o céo pardacento. E assim da minha janella me apparecia a velha Sião, a bem-edificada, brilhante de claridade, alegria da terra, e formosa entre as cidades.
— Isto é um horror, Topsius! Bem dizia o Alpedrinha! Isto é peor que Braga, Topsius! E nem um passeio, nem um bilhar, nem um theatro! nada! Olha que cidade para viver Nosso Senhor!
— Sim! No tempo d’elle era mais divertida, resmungou o meu sapiente amigo.
E logo me propôz que no domingo partissemos para as margens do Jordão — onde o reclamavam os seus estudos sobre os Herodes. Ahi eu poderia ter deleites campestres — banhando-me nas aguas santas, atirando ás perdizes, entre as palmeiras de Jerichó. Accedi com gosto. E descemos a comer, chamados por uma sineta de convento, funeraria e badalando na sombra do corredor.
O refeitorio era tambem abobadado, com uma esteira d’esparto sobre o chão de ladrilho: e estavamos sós, o erudito investigador dos Herodes e eu, na mesa tristonha, adornada com flôres de papel em vasinhos rachados. Remexendo o macarrão de uma sopa dissaborida, murmurei, succumbido: «Jesus, Topsius, que grande massada!» Mas uma porta de vidraça ao fundo abriu-se de leve; e logo exclamei, arrebatado: «Caramba, Topsius, que grande mulher!»
Grande, em verdade! Solida e saudavel como eu; branca, da alvura do linho muito lavado, e picada de sardas; coroada por uma massa ardente de cabello ondeado e castanho; presa n’um vestido de sarja azul que os seios rijos quasi faziam estalar — ella entrou, derramando um fresco cheiro de sabão Windsor e d’agua de Colonia, e logo alumiou todo o refeitorio com o esplendor da sua carne e da sua mocidade... O fecundo Topsius comparou-a á fortissima deusa Cybele.
Cybele sentou-se no topo da mesa, serena e soberba. Ao lado, fazendo ranger a cadeira com o peso dos seus amplos membros, accommodou-se um Hercules tranquillo, calvo, de espessas barbas grisalhas — que, no mero gesto de desdobrar o guardanapo, revelou a omnipotencia do dinheiro e o envelhecido habito de mandar. Por um yes que ella murmurou comprehendi que era da terra de Maricocas. E lembrava-me a ingleza do senhor barão.
Ella collocára junto ao prato um livro aberto que me pareceu ser de versos: o barbaças, mastigando com o vagar magestoso d’um leão, folheava tambem, em silencio o seu Guia do Oriente. E eu esquecia o meu carneiro guisado, para contemplar devoradoramente cada uma das suas perfeições. De vez em quando ella erguia a franja cerrada das suas pestanas: eu esperava com ancia o dom d’esse claro e suave olhar; mas ella derramava-o pelos muros caiados, pelas flôres de papel, e deixava-o recahir, desinteressado e frio, sobre as paginas do seu poema.
Depois do café beijou a mão cabelluda do barbaças; e desappareceu pela porta envidraçada, levando comsigo o aroma, a luz, e a alegria de Jerusalem. O Hercules accendeu morosamente o cachimbo; disse ao moço «que lhe mandasse o Ibrahim, o guia»; levantou-se, pesado e membrudo. Junto á porta derrubou o guardachuva de Topsius, do venerabilissimo Topsius, gloria da Allemanha, membro do Instituto imperial de Excavações historicas; e passou — sem o erguer, nem sequer baixar o olho altivo.
— Irra, bruto! rosnei, a borbulhar de furor.
O meu douto amigo, com a sua cobardia social d’allemão disciplinado, apanhou o seu guardachuva e escovou-lhe o paninho, murmurando, já tremulo, que talvez «o barbaças fosse um duque...»
— Qual duque! Para mim não ha duques! Eu sou Raposo, dos Raposos do Alemtejo... Rachava-o!
Mas a tarde descia — e deviamos fazer a nossa visita reverente ao sepulchro do nosso Deus. Corri ao quarto, a ornar-me com o meu chapéo alto, como promettera á titi; e penetrava no corredor quando vi Cybele abrir a porta, junto da nossa porta, e sahir envolta n’uma capa cinzenta, com uma gorra onde alvejavam duas pennas de gaivota. O coração bateu-me no delirio de uma grande esperança. Assim, era ella que cantarolava a Ballada do rei de Thule! Assim, os nossos leitos estavam apenas separados pelo fino, fragil tabique coberto de ramarias azues! Nem procurei as luvas pretas: desci n’um alvoroço, certo de que a ia encontrar no sepulchro de Jesus: e planeava já verrumar no tabique um buraco, por onde o meu olho namorado pudesse ir saciar-se nas bellezas do seu desalinho.
Ainda chovia, lugubremente. Apenas começámos a atolar-nos no enxurro da Via-Dolorosa, entalada entre muros côr de lodo — chamei Potte para debaixo do meu guardachuva, perguntei-lhe se vira no hotel a minha forte e sardenta Cybele. O jucundo Potte já a admirára. E pelo Ibrahim, seu compadre dilecto, sabia que o barbaças era um escossez, negociante de cortumes...
— Ahi está, Topsius! gritei eu. Negociante de cortumes... Qual duque! É uma besta! Eu rachava-o! Em coisas de dignidade sou uma fera. Rachava-o!
A filha, a das bastas tranças, dizia Potte, tinha um nome radiante de pedra preciosa: chamava-se Ruby, rubim. Amava os cavallos, era arrojada; na Alta Galilêa, d’onde vinham, matára uma aguia negra...
— Ora aqui têm os cavalheiros a casa de Pilatos...
— Deixa lá a casa de Pilatos, homem! Importa-me bem com Pilatos! E então que diz mais o Ibrahim? Desembucha, Potte!
Alli a Via-Dolorosa estreitava-se, abobadada, como um corredor de Catacumba. Dois mendigos chaguentos roíam cascas de melões, assapados na lama e grunhindo. Um cão uivava. E o risonho Potte contava-me que o Ibrahim vira muitas vezes Miss Ruby enlevada na belleza dos homens da Syria: de noite, á porta da tenda, emquanto o papá cervejava, ella dizia versos baixinho, olhando para a palpitação das estrellas. Eu pensava: «Caramba! tenho mulher!»
— Ora aqui estão os cavalheiros diante do Santo Sepulchro...
Fechei o meu guardachuva. Ao fundo de um adro, de lages descolladas, erguia-se a fachada d’uma igreja, caduca, triste, abatida, com duas portas em arco: uma tapada já a pedregulho e cal, como superflua; a outra timidamente, medrosamente entreaberta. E aos flancos debeis d’este templo soturno manchado de tons de ruina, collavam-se duas construcções desmanteladas, do rito latino e do rito grego — como filhas apavoradas que a Morte alcançou, e que se refugiam ao seio da mãi, meia morta tambem e já fria.
Calcei então as minhas luvas pretas. E immediatamente, um bando voraz d’homens sordidos envolveu-nos com alarido, offerecendo reliquias, rosarios, cruzes, escapularios, bocadinhos de taboas aplainadas por S. José, medalhas, bentinhos, frasquinhos de agua do Jordão, cirios, agnus-dei, lithographias da Paixão, flôres de papel feitas em Nazareth, pedras benzidas, caroços d’azeitona do Monte Olivete, e tunicas «como usava a Virgem Maria!» E á porta do Sepulchro de Christo, onde a titi me recommendára que entrasse de rastos, gemendo e rezando a corôa — tive de esmurrar um malandrão de barbas de ermita, que se dependurára da minha rabona, faminto, rabido, ganindo que lhe comprassemos boquilhas feitas de um pedaço da arca de Noé!
— Irra, caramba, larga-me, animal!
E foi assim, praguejando, que me precipitei, com o guardachuva a pingar, dentro do santuario sublime onde a Christandade guarda o tumulo do seu Christo. Mas logo estaquei, surprehendido, sentindo um delicioso e grato aroma de tabaco da Syria. N’um amplo estrado, afofado em divan, com tapetes da Caramania e velhas almofadas de sêda, reclinavam-se tres turcos, barbudos e graves, fumando longos cachimbos de cerejeira. Tinham dependurado na parede as suas armas. O chão estava negro dos seus escarros. E, diante, um servo em farrapos esperava, com uma taça fumegante de café, na palma de cada mão.
Pensei que o Catholicismo, previdente, estabelecera á porta do lugar divino uma Loja de bebidas e aguas-ardentes, para conforto dos seus romeiros. Disse baixo a Potte:
— Grande idéa! Parece-me que tambem vou tomar um cafésinho!
Mas logo o festivo Potte me explicou que esses homens sérios, de cachimbo, eram soldados musulmanos policiando os altares christãos, para impedir que em torno ao mausoleu de Jesus se dilacerem por superstição, por fanatismo, por inveja de alfaias, os Sacerdocios rivaes que alli celebram os seus Ritos rivaes — Catholicos como o padre Pinheiro, Gregos orthodoxos para quem a cruz tem quatro braços, Abissynios e Armenios, Coptas que descendem dos que outr’ora em Memphis adoravam o boi Apis, Nestorianos que veem da Chaldêa, Georgianos que veem do mar Caspio, Maronitas que veem do Libano, — todos christãos, todos intolerantes, todos ferozes!... Então saudei com gratidão esses soldados de Mahomet que, para manter o recolhimento piedoso em torno do Christo Morto, serenos e armados velam á porta, fumando.
Logo á entrada parámos diante d’uma lapide quadrada, incrustada nas lages escuras, tão polida e reluzindo com um tão dôce brilho de nacar que parecia a agua quieta d’um tanque onde se reflectiam as luzes das lampadas. Potte puxou-me a manga, lembrou-me que era costume beijar aquelle pedaço de rocha, santa entre todas, que outr’ora, no jardim de José d’Arimathêa...
— Bem sei, bem sei... Beijo, Topsius?
— Vá beijando sempre, disse-me o prudente historiographo dos Herodes. Não se lhe péga nada; e agrada á senhora sua tia.
Não beijei. Em fila e calados, penetrámos n’uma vasta cupula, tão esfumada no crepusculo que o circulo de frestas redondas na cimalha brilhava apenas, pallidamente, como um aro de perolas em torno de uma tiara: as columnas que a sustentavam, finas e juntas como as lanças d’uma grade, riscavam a sombra em redor — cada uma picada pela mancha vermelha e mortal d’uma lampada de bronze. Ao centro do lagedo sonoro elevava-se, espelhado e branco, um Mausoleu de marmore — com lavores e com florões: um velho, pano de damasco cobria-o como um toldo, recamado de bordados d’ouro esvaído: e duas alas de tocheiros faziam-lhe uma avenida de lumes funerarios até á porta, estreita como uma fenda, tapada por um trapo côr de sangue. Um padre armenio que desapparecia sob o seu amplo manto negro, sob o capuz descido, incensava-o, dormente e mudamente.
Potte puxou-me outra vez pela manga:
— O tumulo!
Oh minha alma piedosa! Oh titi! Ahi estava pois, ao alcance dos meus labios, o tumulo do meu Senhor! — E immediatamente rompi como um rafeiro, por entre a turba ruidosa de frades e peregrinos, a buscar um rosto gordinho e sardento e uma gorra com pennas de gaivota! Longamente, errei estonteado... Ora esbarrava n’um franciscano cingido na sua corda d’esparto; ora me arredava diante d’um padre copta, deslisando como uma sombra tenue, precedido por serventes que tangiam as pandeiretas sagradas do tempo d’Osiris. Aqui topava n’um montão de roupagens brancas, cahido nas lages como um fardo, d’onde se escapavam gemidos de contrição; adiante tropeçava n’um negro, todo nú, estirado ao pé d’uma columna, dormindo placidamente. Por vezes o clamor sacro d’um orgão resoava, rolava pelos marmores da nave, morria com um susurro de vaga espraiada: e logo mais longe um canto armenio, tremulo e ancioso, batia os muros austeros como a palpitação das azas d’uma ave presa que quer fugir para a luz. Junto d’um altar apartei dois gordos sacristães, um grego, outro latino, que se tratavam furiosamente de birbantes, esbrazeados, cheirando a cebola: e fui d’encontro a um bando de romeiros russos de grenhas hirsutas, vindos decerto do Caspio, com os pés doloridos embrulhados em trapos, que não ousavam mover-se, enleados de terror divino, torcendo o barrete de feltro entre as mãos, d’onde lhes pendiam grossos rosarios de vidro. Crianças, em farrapos, brincavam na escuridão das arcarias; outras pediam esmola. O aroma do incenso suffocava; e padres de cultos rivaes puxavam-me pela rabona para me mostrarem reliquias rivaes, heroicas ou divinas — uns as esporas de Godofredo, outros um pedaço da Cana Verde.
Atordoado, enfileirei-me n’uma procissão penitente — onde eu julgára entrevêr, brancas, altivas, entre véos pretos d’arrependimento, as duas pennas de gaivota. Uma carmelita, á frente, resmungava a ladainha, detendo-nos a cada passo, arrebanhados n’um assombro devoto, á porta de capellas cavernosas, dedicadas á Paixão — a do Improperio onde o Senhor foi flagellado, a da Tunica onde o Senhor foi despido. Depois subimos, de tochas na mão, uma escadaria tenebrosa, escavada na rocha... — E subitamente todo o tropel devoto se atirou de rojo, ululando, carpindo, gemendo, flagellando os peitos, clamando pelo Senhor, lugubre e delirante. Estavamos sobre a Pedra do Calvario.
Em torno a capella que a abriga resplandecia com um luxo sensual e pagão. No tecto azul-ferrete brilhavam soes de prata, signos do Zodiaco, estrellas, azas d’anjos, flôres de purpura: e, d’entre este fausto sideral, pendiam de correntes de perolas os velhos symbolos da Fecundidade, os ovos de avestruz, ovos sacros d’Astarté e de Baccho d’ouro. Sobre o altar elevava-se uma cruz vermelha com um Christo tosco pintado a ouro — que parecia vibrar, viver através do fulgor diffuso dos mólhos de lumes, da faiscação das alfaias, do fumo dos aromaticos ardendo em taças de bronze. Globos espelhados, pousando sobre peanhas d’ebano, reflectiam as joias dos retabulos, a refulgencia das paredes revestidas de jaspe, de nacar e de agatha. E no chão, em meio d’este clarão precioso de pedraria e luz, emergindo d’entre as lages de marmore branco — destacava um bocado de rocha bruta e brava com uma fenda alargada e polida por longos seculos de beijos e de afagos beatos. Um archidiacono grego, de barbas esqualidas, gritou: «N’esta rocha foi cravada a cruz! A cruz! A cruz! Miserere! Kirie Eleison! Christo! Christo!» As rezas precipitaram-se, mais ardentes, entre soluços. Um cantico dolente balançava-se, ao ranger dos incensadores. Kirie Eleison! Kirie Eleison! E os diaconos perpassavam rapidamente, sôfregamente, com vastos saccos de velludo, onde tilintavam, se afundavam, se sumiam as offrendas dos simples.
Fugi, aturdido e confuso. O sabio historiador dos Herodes passeava no adro, sob o seu guardachuva, respirando o ar humido. De novo nos accommetteu o bando esfaimado dos vendilhões de reliquias. Repelli-os rudemente: e sahi do Santo Lugar como entrára — em peccado e praguejando.
No hotel, Topsius recolheu logo ao quarto a registrar as suas impressões do Sepulchro de Jesus; eu fiquei no pateo cervejando e cachimbando com o aprazivel Potte. Quando subi, tarde, o meu esclarecido amigo já resonava, com a vela accesa — e com um livro aberto sobre o leito, um livro meu, trazido de Lisboa para me recrear no paiz do Evangelho, o Homem dos tres calções. Descalçando os botins, sujos da lama veneravel da Via-Dolorosa — eu pensava na minha Cybele. Em que sacratissimas ruinas, sob que arvores divinisadas por terem dado sombra ao Senhor, passára ella essa tarde nevoenta de Jerusalem? Fôra ao valle do Cedron? Fôra ao branco tumulo de Rachel?...
Suspirei, amoroso e moído: e abria os lençoes bocejando — quando distinctamente, através do tabique fino, senti um ruido d’agua despejada n’uma banheira. Escutei, alvoroçado: e logo n’esse silencio negro e magoado que sempre envolve Jerusalem, me chegou, perceptivel, o som leve d’uma esponja arremessada na agua. Corri, collei a face contra o papel de ramagens azues. Passos brandos e nús pisavam a esteira que recobria o ladrilho de tijolo; e a agua rumorejou, como agitada por um dôce braço despido que lhe experimentava o calor. Então, abrazado, fui ouvindo todos os rumores intimos de um longo, lento, languido banho: o espremer da esponja; o fôfo esfregar da mão cheia de espuma de sabão; o suspiro lasso e consolado do corpo que se estira sob a caricia da agua tepida, tocada d’uma gotta de perfume... A testa, tumida de sangue, latejava-me: e percorria desesperadamente o tabique, procurando um buraco, uma fenda. Tentei verrumal-o com a tesoura; as pontas finas quebraram-se na espessura da caliça... Outra vez a agua cantou, escoando da esponja: — e eu, tremendo todo, julgava vêr as gottas vagarosas a escorrer entre o rego d’esses seios duros e brancos que faziam estalar o vestido de sarja...
Não resisti: descalço, em ceroulas, sahi ao corredor adormecido; e cravei á fechadura, da sua porta um olho tão esbugalhado, tão ardente — que quasi receava feril-a com a devorante chamma do seu raio sanguineo... Enxerguei n’um circulo de claridade uma toalha cahida na esteira, um roupão vermelho, uma nesga do alvo cortinado do seu leito. E assim agachado, com bagas de suor no pescoço, esperava que ella atravessasse, núa e esplendida, n’esse disco escasso de luz — quando senti de repente, por traz, uma porta ranger, um clarão banhar a parede. Era o barbaças, em mangas de camisa, com o seu castiçal na mão! E eu, miserrimo Raposo, não podia escapar. D’um lado estava elle, enorme. Do outro o topo do corredor, maciço.
Vagarosamente, calado, com methodo, o Hercules pousou a vela no chão, ergueu a sua rude bota de duas solas, e desmantelou-me as ilhargas... Eu rugi: «bruto!» Elle ciciou: «silencio!» E outra vez, tendo-me alli acercado contra o muro, a sua bota bestial e de bronze me malhou tremendamente quadris, nadegas, canellas, a minha carne toda, bem cuidada e preciosa! Depois, tranquillamente, apanhou o seu castiçal. Então eu, livido, em ceroulas, disse-lhe com immensa dignidade:
— Sabe o que lhe vale, seu bife? É estarmos aqui ao pé do tumulo do Senhor, e eu não querer dar escandalos por causa de minha tia... Mas se estivessemos em Lisboa, fóra de portas, n’um sitio que eu cá sei, comia-lhe os figados! Nem você sabe de que se livrou. Vá com esta, comia-lhe os figados!
E muito digno, coxeando, voltei ao quarto a fazer pacientes fricções d’arnica. Assim eu passei a minha primeira noite em Sião.
Ao outro dia cedo o profundo Topsius foi peregrinar ao monte das Oliveiras, á fonte clara de Siloé. Eu, dorido, não podendo montar a cavallo, fiquei no sofá de riscadinho com o Homem dos tres calções. E até para evitar o affrontoso barbaças não desci ao refeitorio, pretextando tristeza e langor. Mas ao mergulhar o sol no mar de Tyro — estava restabelecido e vivaz: Potte preparára para essa noite uma festividade sensual em casa da Fatmé, matrona bem acolhedoura, que tinha no Bairro dos Armenios um dôce pombal de pombas: e nós iamos lá contemplar a gloriosa bailadeira da Palestina, a Flôr de Jerichó, a saracotear essa dansa da Abelha, que esbrazêa os mais frios e deprava os mais puros...
A recatada portinha da Fatmé, ornada d’um pé de vinha secca, abria-se ao canto d’um muro negro junto á Torre de David. Fatmé esperava-nos, magestosa e obesa, envolta em véos brancos, com fios de coraes entre as tranças, os braços nús — tendo cada um a cicatriz escura de um bubão de peste. Tomou-me submissamente a mão, levou-a á testa oleosa, levou-a aos labios empastados d’escarlate, e conduziu-me em ceremonia defronte d’uma cortina preta, franjada d’ouro como o pano d’um esquife. E eu estremeci, ao penetrar emfim nos segredos deslumbradores d’um serralho mudo e cheirando a rosa.
Era uma sala caiada de fresco, com sanefas de algodão vermelho encimando a gelosia; e ao longo das paredes corria um divan amassado, revestido de sêda amarella, com remendos de sêda mais clara. N’um bocado de tapete da Persia pousava um brazeiro de latão, apagado, sob o montão de cinzas; ahi ficára esquecido um pantufo de velludo, estrellado de lentejoulas. Do tecto de madeira alvadia, onde se alastrava uma nodoa de humidade, pendia de duas correntes enfeitadas de borlas um candieiro de petroline. Um bandolim dormia a um canto, entre almofadas. No ar morno errava um cheiro adocicado e molle a mofo e a benjoim. Pelos ladrilhos, por baixo dos poaiaes da gelosia, corriam carochas.
Sentei-me sisudamente ao lado do historiador dos Herodes. Uma negra de Dongola, encamisada de escarlate, com braceletes de prata a tilintar nos braços, veio offerecer-nos um café aromatico: e quasi immediatamente Topsius appareceu, descorçoado, dizendo que não podiamos saborear a famosa dansa da Abelha! A Rosa de Jerichó fôra bailar diante de um principe de Allemanha, chegado n’essa manhã a Sião, a adorar o tumulo do Senhor. E Fatmé apertava com humildade o coração, invocava Allah, dizia-se nossa escrava! Mas era uma fatalidade! A Rosa de Jerichó fôra para o principe louro que viera, com cavallos e com plumas, do paiz dos Germanos!...
Eu, despeitado, observei que não era um principe: mas minha tia tinha luzidas riquezas: os Raposos primavam pelo sangue no fidalgo Alemtejo. Se Flôr de Jerichó estava ajustada para regosijar meus olhos catholicos, era uma desconsideração tel-a cedido ao romeiro couraçado que viera da hereje Allemanha...
O erudito Topsius resmungou, alçando o bico com petulancia, que a Allemanha era a mãi espiritual dos povos...
— O brilho que sae do capacete allemão, D. Raposo, é a luz que guia a humanidade!
— Sebo para o capacete! A mim ninguem me guia! Eu sou Raposo, dos Raposos do Alemtejo!... Ninguem me guia senão Nosso Senhor Jesus Christo... E em Portugal ha grandes homens! Ha Affonso Henriques, ha o Herculano... Sebo!
Ergui-me, medonho. O sapientissimo Topsius tremia, encolhido. Potte acudiu:
— Paz, christãos e amigos, paz!
Topsius e eu reencruzámo-nos logo no divan — tendo apertado as mãos, galhardamente e com honra.
Fatmé, no emtanto, jurava que Allah era grande e que ella era a nossa escrava. E, se nós a quizessemos mimosear com sete piastras d’ouro, ella em compensação da Rosa de Jerichó offerecia-nos uma joia inapreciavel, uma Circassiana, mais branca que a lua cheia, mais airosa que os lirios que nascem em Galgalá.
— Venha a Circassiana! gritei, excitado. Caramba, eu vim aos Santos Lugares para me refocilar... Venha a Circassiana! Larga as piastras, Potte! Irra! Quero regalar a carne!
Fatmé sahiu, recuando: o festivo Potte reclinou-se entre nós, abrindo a sua bolsa perfumada de tabaco de Alepo. Então, uma portinha branca, sumida no muro caiado, rangeu a um canto, de leve: e uma figura entrou, velada, vaga, vaporosa. Amplos calções turcos de sêda carmesim tufavam com languidez, desde a sua cinta ondeante até aos tornozêlos, onde franziam, fixos por uma liga d’ouro; os seus pésinhos mal pousavam, alvos e alados, nos chinelos de marroquim amarello; e através do véo de gaze que lhe enrodilhava a cabeça, o peito e os braços — brilhavam recamos d’ouro, scentelhas de joias, e as duas estrellas negras dos seus olhos. Espreguicei-me, tumido de desejo.
Por traz d’ella Fatmé, com a ponta dos dedos, ergueu-lhe o véo devagar, devagar — e d’entre a nuvem de gaze surgiu um carão côr de gesso, escaveirado e narigudo, com um olho vesgo, e dentes podres que negrejavam no langor nescio do sorriso... Potte pulou do divan, injuriando Fatmé: ella gritava por Allah, batendo nos seios, que soavam mollemente como odres mal cheios.
E desappareceram, assanhados, levados n’uma rajada de ira. A Circassiana, requebrando-se, com o seu sorriso putrido, veio estender-nos a mão suja, a pedir «presentinhos» n’um tom rouco d’aguardente. Repelli-a com nojo. Ella coçou um braço, depois a ilharga; apanhou tranquillamente o seu véo, e sahiu arrastando as chinelas.
— Oh Topsius! rosnei eu. Isto parece-me uma grande infamia!
O sabio fez considerações sobre a voluptuosidade. Ella é sempre enganadora. Debaixo do sorriso luminoso está o dente cariado. Dos beijos humanos só resta o amargor. Quando o corpo se extasia, a alma entristece...
— Qual alma! não ha alma! O que ha é um eminentissimo desaforo! Na rua do Arco do Bandeira, esta Fatmé tinha já dois murros na bochecha... Irra!
Sentia-me feroz, com desejos de escavacar o bandolim... Mas Potte reappareceu, cofiando os bigodões, dizendo que por mais nove piastras d’ouro Fatmé consentia em mostrar a sua secreta maravilha, uma virgem das margens do Nilo, da alta Nubia, bella como a noite mais bella do Oriente. E elle vira-a, afiançava-a, valia o tributo d’uma fertil provincia.
Fragil e liberal, cedi. Uma a uma, as nove piastras d’ouro tiniram na mão gordufa de Fatmé.
De novo a porta caiada rangeu, ficou, cerrada — e, sobre o tom alvaiado, destacou, na sua nudez côr de bronze, uma esplendida femea, feita como uma Venus. Durante um momento parou, muda, assustada pela luz o pelos homens, roçando os joelhos lentamente. Uma tanga branca cobria-lhe os flancos possantes e ageis: os cabellos hirsutos, lustrosos d’oleo, com sequins d’ouro entreleçados, cahiam-lhe sobre o dorso, como uma juba selvagem; um fio solto de contas de vidro azul enroscava-se-lhe em torno do pescoço e vinha escorregar por entre o rego dos seios rijos, perfeitos e de ebano. De repente soltou convulsamente, repicando a lingua, uma ululação desolada: Lu! lu! lu! lu! lu! Atirou-se de bruços para o divan: e estirada, na attitude d’uma Esphinge, ficou dardejando sobre nós, séria e immovel, os seus grandes olhos tenebrosos.
— Hein? dizia Potte, acotovelando-me. Veja-lhe o corpo... Olhe, os braços! Olhe a espinha como arqueia! É uma panthera!
E Fatmé, de olhos em alvo, chilreava beijos na ponta dos dedos — exprimindo os deleites transcendentes que devia dar o amor d’aquella Nubia... Certo, pela persistencia do seu olhar, que as minhas barbas fortes a tinham captivado, desenrosquei-me do divan, fui-me acercando, devagar, como para uma preza certa. Os seus olhos alargavam-se, inquietos e faiscantes. Gentilmente, chamando-lhe «minha lindinha», acariciei-lhe o hombro frio: e logo ao contacto da minha pelle branca a Nubia recuou, arripiada, com um grito abafado de gazella ferida. Não gostei. Mas quiz ser amavel. Disse-lhe paternalmente:
— Ah! se tu conhecesses a minha patria!... E olha que sou capaz de te levar! Em Lisboa é que é! Vai-se ao Dáfundo, cêa-se no Silva... Isto aqui é uma choldra! E as raparigas como tu são bem tratadas, dá-se-lhes consideração, os jornaes fallam d’ellas, casam com proprietarios...
Murmurava-lhe ainda outras coisas profundas e dôces. Ella não comprehendia o meu fallar: e nos seus olhos esgazeados fluctuava a longa saudade da sua aldêa da Nubia, dos rebanhos de bufalos que dormem á sombra das tamareiras, do grande rio que corre eterno e sereno entre as ruinas das Religiões e os tumulos das Dynastias...
Imaginando então despertar o seu coração com a chamma do meu, puxei-a para mim lascivamente. Ella fugiu; encolheu-se toda a um canto, a tremer; e deixando cahir a cabeça entre as mãos começou a chorar, longamente.
— Olha que massada! gritei, embaçado.
E agarrei o capacete, abalei, esgaçando quasi no meu furor o pano preto franjado d’ouro. Parámos n’uma cella ladrilhada onde cheirava mal. E ahi bruscamente foi entre Potte e a nedia matrona uma bulha ferina sobre a paga d’aquella radiante festa do Oriente: ella reclamava mais sete piastras d’ouro: Potte, de bigode erriçado, cuspia-lhe injurias em arabe, rudes e chocando-se como calhaus que se despenham n’um valle. E sahimos d’aquelle lugar de deleite perseguidos pelos gritos de Fatmé, que se babava de furor, agitava os braços marcados da peste e nos amaldiçoava, e a nossos paes, e aos ossos de nossos avós, e a terra que nos gerára, e o pão que comiamos, e as sombras que nos cobrissem! Depois na rua negra dois cães seguiram-nos muito tempo, ladrando lugubremente.
Entrei no Hotel do Mediterraneo, afogado em saudades da minha terra risonha: os gozos de que me via privado n’esta lobrega, inimiga Sião, faziam-me anciar mais inflammadamente pelos que me daria a facil, amoravel Lisboa, quando, morta a titi, eu herdasse a bolsa sonora de sêda verde!... Lá não encontraria, nos corredores adormecidos, uma bota severa e bestial! Lá nenhum corpo barbaro fugiria, com lagrimas, á caricia dos meus dedos. Dourado pelo ouro da titi, o meu amor não seria jámais ultrajado, nem a minha concupiscencia jámais repellida. Ah! meu Deus! Assim eu lograsse pela minha santidade captivar a titi!... — E logo, abancando, escrevi á hedionda senhora esta carta ternissima:
«Querida titi do meu coração! Cada vez me sinto com mais virtude. E attribuo-a ao agrado com que o Senhor está vendo esta minha visita ao seu santo tumulo. De dia e de noite passo o tempo a meditar a sua divina Paixão e a pensar na titi. Agora mesmo venho da Via-Dolorosa. Ai, que enternecedora que estava! É uma rua tão benta, tão benta, que até tenho escrupulo de a pisar com os botins; e n’outro dia não me contive, agachei-me, beijei-lhe as ricas pedrinhas! Esta noite passei-a quasi toda a rezar á Senhora do Patrocinio que todo o mundo aqui em Jerusalem respeita muitissimo. Tem um altar muito lindo; ainda que a este respeito bem razão tinha a minha boa tia (como tem razão em tudo) quando dizia que lá para festas e procissões não ha como os nossos portuguezes. Pois esta noite, assim que ajoelhei deante da capella da Senhora, depois de seis Salve-Rainhas, voltei-me para a bella imagem e disse-lhe: — Ai, quem me dera saber como está minha tia Patrocinio! — E quer a titi acreditar? Pois olhe, a Senhora com a sua divina bocca disse-me, palavras textuaes, que até, para não me esquecerem, as escrevi no punho da camisa: — A minha querida afilhada vai bem, Raposo, e espera fazer-te feliz! — E isto não é milagre extraordinario, porque me contam aqui todas as familias respeitaveis com quem vou tomar chá que a Senhora e seu divino Filho dirigem sempre algumas palavras bonitas a quem os vem visitar. Saberá que já lhe obtive certas reliquias, uma palhinha do presepio, e uma taboinha aplainada por S. José. O meu companheiro allemão, que, como mencionei á titi na minha carta de Alexandria, é de muita religião e muito sabio, consultou os livros que traz e affirmou-me que a taboinha era das mesmas que, segundo está provado, S. José costumava aplainar nas horas vagas. Emquanto á grande reliquia, aquella que lhe quero levar para a curar de todos os seus males e dar a salvação á sua alma e pagar-lhe assim tudo o que lhe devo, essa espero em breve obtel-a. Mas por ora não posso dizer nada... Recados aos nossos amigos em quem penso muito e por quem tenho rezado constantemente; sobretudo ao nosso virtuoso Casimiro. E a titi deite a sua benção ao seu sobrinho fiel e que muito a venera e está chupadinho de saudades e deseja a sua saude — Theodorico. — P.S. Ai, titi, que asco que me fez hoje a casa de Pilatos! Até lhe escarrei! E cá disse á Santa Veronica que a titi tinha muita devoção com ella. Pareceu-me que a senhora santa ficou muito regalada... É o que eu digo aqui a todos estes ecclesiasticos e aos patriarchas: — É necessario conhecer-se a titi para se saber o que é virtude!»
Antes de me despir, fui escutar, collada a orelha ao tabique de ramagens. A ingleza dormia serena, insensivel: eu resmunguei brandindo para lá o punho fechado:
— Besta!
Depois abri o guarda-roupa, tirei o dilecto embrulho da camisinha da Mary, depuz n’elle o meu beijo repenicado e grato.
Cedo, ao alvorar do outro dia, partimos para o devoto Jordão.
Fastidiosa, modorrenta, foi a nossa marcha entre as collinas de Judá! Ellas succedem-se, lividas, redondas como craneos, resequidas, escalvadas por um vento de maldição: só a espaços n’alguma encosta rasteja um tojo escasso, que na vibração inexoravel da luz parece de longe um bolor de velhice e de abandono. O chão faisca, côr de cal. O silencio radiante entristece como o que cae da aboboda de um jazigo. No fulgor duro do céo rondava em torno a nós, lento e negro, um abutre... Ao declinar do sol erguemos as nossas tendas nas ruinas de Jericó.
Saboroso foi então descançar sobre macios tapetes, bebendo devagar limonada, na doçura da tarde. A frescura de um riacho alegre, que chalrava junto ao nosso acampamento por entre arbustos silvestres, misturava-se ao aroma da flôr que elles davam, amarella como a da giesta; adiante verdejava um prado de hervas altas, avivado pela brancura de vaidosos, languidos lirios; junto d’agua passeavam aos pares pensativas cegonhas. Do lado de Judá erguia-se o monte da Quarentena, torvo, fusco na sua tristeza de eterna penitencia; e para as bandas de Moab os meus olhos perdiam-se na velha, sagrada terra de Canaan, areal cinzento e desolado que se estende, como a alva mortalha d’uma raça esquecida, até ás solidões do Mar Morto.
Fomos, ao alvorecer, com os alforges fornidos, fazer essa votiva romaria. Era então em dezembro; esse inverno da Syria ia transparentemente dôce; e trotando pela areia fina ao meu lado, o erudito Topsius contava-me como esta planicie de Canaan fôra outr’ora toda coberta de rumorosas cidades, de brancos caminhos entre vinhedos, e d’aguas de rega refrescando os muros das eiras; as mulheres, toucadas d’anemonas, pisavam a uva cantando; o perfume dos jardins era mais grato ao céo que o incenso: e as caravanas que entravam no valle pelo lado de Segor achavam aqui a abundancia do rico Egypto — e diziam que era este em verdade o vergel do Senhor.
— Depois, acrescentava Topsius sorrindo com infinito sarcasmo, um dia o Altissimo aborreceu-se e arrazou tudo!
— Mas porquê? porquê?
— Birra; mau humor; ferocidade...
Os cavallos relincharam sentindo a visinhança das aguas malditas: — e bem depressa ellas appareceram, estendidas até ás montanhas de Moab, immoveis, mudas, faiscando solitarias sob o céo solitario. Oh tristeza incomparavel! E comprehende-se que pesa ainda sobre ellas a colera do Senhor, quando se considera que alli jazem, ha tantos seculos — sem uma recreavel villa como Cascaes; sem claras barracas de lona alinhadas á sua beira; sem regatas, sem pescas; sem que senhoras, meigas e de galochas, lhe recolham poeticamente as conchinas na areia; sem que as alegrem, á hora das estrellas, as rebecas de uma Assembléa toda festiva e com gaz — alli mortas, enterradas entre duras serras como entre as cantarias de um tumulo.
— Além era a cidadella de Makeros, disse gravemente o erudito Topsius, alçado sobre os estribos, alongando o guardasol para a costa azulada do mar. Alli viveu um dos meus Herodes, Antipas, o tetrarcha da Galilêa, filho de Herodes o Grande: alli, D. Raposo, foi degolado o Baptista.
E seguindo a passo para o Jordão (emquanto o alegre Potte nos fazia cigarros do bom tabaco de Aleppo) Topsius contou-me essa lamentavel historia. Makeros, a mais altiva fortaleza da Asia, erguia-se sobre pavorosos rochedos de basalto. As suas muralhas tinham cento e cincoenta covados d’altura; as aguias mal podiam chegar até onde subiam as suas torres. Por fóra era toda negra e soturna: mas dentro resplandecia de marfins, de jaspes, d’alabastros; e nos profundos tectos de cedro os largos broqueis d’ouro suspensos faziam como as constellações d’um céo de verão. No centro da montanha, n’um subterraneo, viviam as duzentas egoas de Herodes, as mais bellas da terta, brancas como o leite, com clinas negras como o ebano, alimentadas a bolos de mel, e tão ligeiras que podiam, correr, sem lhes macular a pureza, por sobre um prado de acuçenas. Depois, mais fundo ainda, n’um carcere, jazia Iokanan — que a Igreja chama o Baptista.
— Mas então, esclarecido amigo, como foi essa desgraça?
— Pois foi assim, D. Raposo... O meu Herodes conhecera em Roma Herodiade, sua sobrinha, esposa de seu irmão Filippe, que vivia na Italia, indolente e esquecido da Judêa, gozando o luxo latino. Era esplendidamente, sombriamente bella. Herodiade!... Antipas Herodes arrebata-a n’uma galera para a Syria; repudia sua mulher, uma moabita nobre, filha do rei Aretas, que governava o deserto e as caravanas; e fecha-se incestuosamente com Herodiade n’essa cidadella de Makeros. Colera em toda a devota Judêa contra este ultraje á lei do Senhor! E então Antipas Herodes, arteiro, manda buscar o Baptista que prégava no vão do Jordão...
— Mas para quê, Topsius?
— Pois para isto, D. Raposo... A vêr se o rude propheta, acariciado, amimado, amollecido pelo louvor e pelo bom vinho de Sichem, approvava estes negros amores, e pela persuasão da sua voz, dominante em Judêa e Galilêa, os tornava aos olhos dos fieis brancos como a neve do Carmello. Mas, desgraçadamente, D. Raposo, o Baptista não tinha originalidade. Santo respeitavel, sim; mas nenhuma originalidade... O Baptista imitava em tudo servilmente o grande propheta Elias; vivia n’um buraco como Elias; cobria-se de pelles de feras como Elias; nutria-se do gafanhotos como Elias; repetia as imprecações classicas de Elias: — e como Elias clamára contra o incesto d’Achab, logo o Baptista trovejou contra o incesto de Herodiade. Por imitação, D. Raposo!
— E emmudeceram-no com a masmorra!
— Qual! Rugiu peor, mais terrivelmente! E Herodiade escondia a cabeça no manto para não ouvir esse clamor de maldição, sahido do fundo da montanha.
Eu balbuciei, com uma lagrima a amollentar-me a palpebra:
— E Herodes mandou então degolar o nosso bom S. João!
— Não! Antipas Herodes era um frouxo, um tibio... Muito lubrico, D. Raposo, infinitamente lubrico, D. Raposo! Mas que indecisão!... Além d’isso, como todos os galileus, tinha uma secreta fraqueza, uma irremediavel sympathia por prophetas. E depois arreceava a vingança de Elias, o patrono, o amigo d’Iokanan... Porque Elias não morreu, D. Raposo. Habita o céo, vivo, em carne, ainda coberto de farrapos, implacavel, vociferador e medonho...
— Safa! murmurei, arripiado.
— Pois ahi está... Iokanan ia vivendo, ia rugindo. Mas sinuoso e subtil é o odio da mulher, D. Raposo. Chega, no mez de Schebat, o dia dos annos de Herodes. Ha um vasto festim em Makeros, a que assistia Vitellius, então viajando na Syria. D. Raposo lembra-se do crasso Vitellius que depois foi senhor do mundo... Pois á hora em que pelo ceremonial das Provincias Tributarias se bebia á saude de Cesar e de Roma, entra subitamente na sala, ao som dos tamborinos e dançando á maneira de Babylonia, uma virgem maravilhosa. Era Salomé, a filha de Herodiade e de seu marido Filippe, que ella educára secretamente em Cesarea, n’um bosque, junto do Templo d’Hercules. Salomé dançou, núa e deslumbrante. Antipas Herodes, inflammado, estonteado de desejo, promette dar tudo o que ella pedisse pelo beijo dos seus labios... Ella toma um prato d’ouro, e tendo olhado a mãi, pede a cabeça do Baptista. Antipas, aterrado, offerece-lhe a cidade de Tiberiade, thesouros, as cem aldeias de Genesareth... Ella sorriu, olhou a mãi: e outra vez, incerta e gaguejando pediu a cabeça de Iokanan... Então todos os convivas, Saducceus, Escribas, homens ricos da Decapola, mesmo Vitellius e os romanos, gritaram alegremente: «Tu prometteste, tetrarca, tu juraste, tetrarca!» Momentos depois, D. Raposo, um negro da Idumea entrou, trazendo n’uma das mãos um alfange, na outra presa pelos cabellos a cabeça do propheta. E assim acabou S. João, por quem se canta e se queimam fogueiras n’uma dôce noite de junho...
Escutando, embevecidos e a passo, estas coisas tão antigas — avistámos ao longe, na areia fulva, uma sebe de verdura triste e da côr do bronze. Potte gritou: «o Jordão! o Jordão!» E arrebatadamente galopámos para o rio da Escriptura.
O festivo Potte conhecia, á beira da corrente baptismal, um sitio deleitosissimo para uma sesta christã: e ahi passamos as horas quentes, recostados n’um tapete, languidos, e bebendo cerveja, depois de bem esfriada nas aguas do rio santo. Elle faz alli um claro, suave remanso, a repousar da lenta, abrazada jornada que traz, através do deserto, desde o lago de Galilêa: e antes de mergulhar para sempre no amargor do Mar Morto — alli preguiça, espraiado sobre a areia fina; canta baixo e cheio de transparencia, rolando os seixos lustrosos do seu leito; e dorme nos sitios mais frescos, immovel e verde, á sombra dos tamarindos... Por sobre nós rumorejavam as folhas dos altos choupos da Persia: entre as hervas balançavam-se flôres desconhecidas, das que toucavam outr’ora as tranças das virgens de Canaan em manhãs de vindima; e na escuridão fofa das ramagens, onde já as não vinha assustar a voz terrivel de Jehovah, gorgeavam pacificamente as toutinegras. Defronte elevavam-se azues e sem mancha, como feitas d’um só bloco de pedra preciosa, as montanhas de Moab. O céo branco, mudo, recolhido, parecia descançar deliciosamente do duro tumulto que o agitou quando alli vivia, entre preces e mortandades, o sombrio Povo de Deus: e onde constantemente batiam as azas dos Seraphins, e fluctuavam as roupagens dos prophetas arrebatados pelo Altissimo, era calmante vêr agora passar apenas uma revoada de pombos bravos, voando para os pomares d’Engaddi.
Obedecendo á recommendação da titi, despime, e banhei-me nas aguas do Baptista. Ao principio, enleado de emoção beata, pisei a areia reverentemente como se fosse o tapete d’um altar-mór: e de braços cruzados, nú, com a corrente lenta a bater-me os joelhos, pensei em S. Joãosinho, susurrei um padre-nosso. Depois ri, aproveitei aquella bucolica banheira entre arvores; Potte atirou-me a minha esponja; e ensaboei-me nas aguas sagradas, trauteando o fado da Adelia.
Ao refrescar, quando montavamos a cavallo, uma tribu de beduinos, descendo das collinas de Galgalá, trouxe os seus rebanhos de camêlos a beber ao Jordão; as crias brancas e felpudas corriam, balando; os pastores, de lança alta, soltando gritos de batalha, galopavam, n’um amplo esvoaçar d’albornozes; e era como se resurgisse em todo o valle, no esplendor da tarde, uma pastoral da idade biblica, quando Agar era moça! Teso na sella, com as redeas bem colhidas, eu senti um curto arrepio de heroismo; ambicionava uma espada, uma Lei, um Deus por quem combater... Lentamente alargara-se pela planicie sacra um silencio enlevado. E o mais alto cerro de Moab cobriu-se de um fulgor raro, côr de rosa e côr d’ouro, como se n’elle de novo, fugitivamente, ao passar, se reflectisse a face do Senhor! Topsius alçou a mão sapiente:
— Aquelle cimo illuminado, D. Raposo, é o Moriah, onde morreu Moysés!
Estremeci. E penetrado pelas emanações divinas d’essas aguas, d’esses montes, sentia-me forte — e igual aos homens fortes do Exodo. Pareceu-me ser um d’elles, familiar de Jehovah, e tendo chegado do negro Egypto com as minhas sandalias na mão... Esse alliviado suspiro que trazia a briza vinha das tribus d’Israel, emergindo emfim do deserto! Pelas encostas além, seguida d’uma escolta d’anjos, a Arca dourada descia balançada sobre os hombros dos levitas vestidos de linho e cantando. Outra vez nas seccas areias reverdecia a terra da Promissão. Jericó branquejava entre as seáras: e através dos palmares cerrados já resoavam em marcha os clarins de Josué!
Não me contive, arranquei o capacete, soltei por sobre Canaan este urro piedoso:
— Viva Nosso Senhor Jesus Christo! Viva toda a Côrte do Céo!
Cedo, ao outro dia, domingo, o incansavel Topsius partiu, bem enlapisado e bem enguardasolado, a estudar as ruinas de Jericó, essa velha Cidade das Palmeiras que Herodes cobrira de thermas, de templos, de jardins, d’estatuas, e onde passaram os seus tortuosos amores com Cleopatra... E eu, á porta da tenda, escarranchado n’um caixote, fiquei a tomar o meu café, olhando os pacificos aspectos do nosso acampamento. O cozinheiro depennava frangos; o beduino triste areava á beira d’agua o seu pacato alfange; o nosso lindo arrieiro esquecia a ração ás egoas para seguir no céo, d’um brilho de saphira, a branca passagem das cegonhas voando aos pares para a Samaria.
Depois puz o capacete, fui vadiar na doçura da manhã, de mãos nos bolsos, cantarolando um fado meigo. E ia pensando na Adelia e no snr. Adelino... Enroscados na alcova, beijando-se furiosamente, estavam-me talvez chamando carola, emquanto eu passeava alli, nos retiros da Escriptura! Áquella hora a titi, de mantelete preto, com o seu ripanço, sahia para a missa de Sant’Anna: os creados do Montanha, esguedelhados, assobiando, escovavam o pano dos bilhares: e o dr. Margaride, á janella, na praça da Figueira, pondo os oculos, abria o Diario de Noticias. Ó minha dôce Lisboa!... Mas ainda mais perto, para além do deserto de Gaza, no verde Egypto, a minha Maricoquinhas n’esse instante estava enchendo o vaso do balcão com magnolias e rosas; o seu gato dormia no velludo da cadeira; ella suspirava pelo «seu portuguezinho valente...» Suspirei tambem: mais triste nos labios se me fez o fado triste.
E de repente, olhando, achei-me, como perdido, n’um sitio de grande solidão e de grande melancolia. Era longe do regato e dos aromaticos arbustos de flôr amarella; já não via as nossas tendas brancas; e diante de mim arredondava-se um ermo árido, livido, de areia, fechado todo por penedos lisos, direitos como os muros d’um poço — tão lugubres que a luz loura da quente manhã do Oriente desmaiava alli, mortalmente, desbotada e magoada. Eu lembrava-me de gravuras, assim desoladas, onde um eremita de longas barbas medita um in-folio junto de uma caveira. Mas nenhum solitario aniquilava alli a carne em heroica penitencia. Sómente, ao meio do fero recinto, isolada, orgulhosa, com um ar de raridade e de reliquia, como se as penedias se tivessem amontoado para lhe arranjarem um resguardo de Sacrario — erguia-se uma arvore tão repellente, que logo me fez morrer nos labios o resto do fado triste...
Era um tronco grosso, curto, atochado e sem nós de raizes, semelhante a uma enorme moca bruscamente cravada na areia: a casca corredia tinha o lustre oleoso de uma pelle negra: e da sua cabeça entumecida, de um tom de tição apagado — rompiam, como longas pernas d’aranha, oito galhos que contei, pretos, molles, lanugentos, viscosos, e armados de espinhos... Depois de olhar em silencio para aquelle monstro, tirei devagar o meu capacete e murmurei:
— Para que viva!
É que me encontrava certamente diante d’uma arvore illustre! Fôra um galho igual (o nono talvez) que, arranjado outr’ora em fórma de corôa por um centurião romano da guarnição de Jerusalem, ornára sarcastimente, no dia do suplicio, a cabeça de um carpinteiro de Galilêa, condemnado... Sim, condemnado por andar, entre quietas aldeias e nos santos pateos do Templo, dizendo-se filho de David e dizendo-se filho de Deus, a prégar contra a velha Religião, contra as velhas Instituições, contra a velha Ordem, contra as velhas Fórmas! E eis que esse galho por ter tocado os cabellos incultos do rebelde torna-se divino, sobe aos altares, e do alto enfeitado dos andores faz prostrar no lagedo, á sua passagem, as multidões enternecidas...
No collegio dos Isidoros, ás terças e sabbados, o sebento padre Soares dizia esfuracando os dentes — «que havia, meninos, lá n’um sitio da Judêa...» Era alli! «...uma arvore que segundo dizem os authores é mesmo d’arripiar...» Era aquella! Eu tinha ante meus frivolos olhos de Bacharel a sacratissima Arvore d’Espinhos!
E logo uma idéa sulcou-me o espirito com um brilho de visitação celeste... Levar á titi um d’esses galhos, o mais pennugento, o mais espinhoso, como sendo a reliquia fecunda em milagres a que ella poderia consagrar seus ardores de devota e confiadamente pedir as mercês celestiaes! «Se entendes que mereço alguma coisa pelo que tenho feito por ti, traze-me então d’esses santos lugares uma santa reliquia...» Assim dissera a snr.ª D. Patrocinio das Neves na vespera da minha jornada piedosa, enthronada nos seus damascos vermelhos, diante da Magistratura e da Igreja, deixando escapar uma baga de pranto sob seus oculos austeros. Que lhe podia eu offerecer mais sagrado, mais enternecedor, mais efficaz, que um ramo da Arvore d’Espinhos, colhido no valle do Jordão, n’uma clara, rosada manhã de missa?
Mas de repente assaltou-me uma aspera inquietação... E se realmente uma virtude transcendente circulasse nas fibras d’aquelle tronco? E se a titi começasse a melhorar do figado, a reverdecer, mal eu installasse no seu oratorio, entre lumes e flôres, um d’esses galhos erriçados de espinhos? Ó miserrimo logro! Era eu pois que lhe levava nesciamente o principio milagroso da Saude, e a tornava rija, indestructivel, ininterravel, com os contos de G. Godinho firmes na mão avara! Eu! Eu que só começaria a viver — quando ella começasse a morrer!
Rondando então em torno á Arvore d’Espinhos, interroguei-a, sombrio e rouco: «Anda, monstro, dize! És tu uma reliquia divina com poderes sobrenaturaes? ou és apenas um arbusto grutesco com um nome latino nas classificações de Linneu? Falla! Tens tu, como aquelle cuja cabeça coroaste por escarneo, o dom de sarar? Vê lá... Se te levo commigo para um lindo Oratorio portuguez, livrando-te do tormento da solidão e das melancolias da obscuridade, e dando-te lá os regalos de um altar, o incenso vivo das rosas, a chamma louvadora das velas, o respeito das mãos postas, todas as caricias da oração — não é para que tu, prolongando indulgentemente uma existencia estorvadora, me prives da rapida herança e dos gozos a que a minha carne moça tem direito! Vê lá! Se, por teres atravessado o Evangelho, te embebeste de idéas pueris de Caridade e Misericordia, e vaes com tenção de curar a titi — então fica-te ahi, entre essas penedias, fustigado pelo pó do deserto, recebendo o excremento das aves de rapina, enfastiado no silencio eterno!... Mas se promettes permanecer surdo ás preces da titi, comportar-te como um pobre galho secco e sem influencia, e não interromperes a appetecida decomposição dos seus tecidos — então vaes ter em Lisboa o macio agasalho d’uma capella afofada de damascos, o calor dos beijos devotos, todas as satisfações de um idolo, e eu hei de cercar-te de tanta adoração que não has de invejar o Deus que os teus espinhos feriram... Falla, monstro!»
O monstro não fallou. Mas logo senti perpassar-me na alma, aquietadoramente, com uma consolante fresquidão de brisa d’estio, o presentimento de que breve a titi ia morrer e apodrecer na sua cova. A Arvore d’Espinhos mandava, pela communicação esparsa da Natureza, da sua seiva ao meu sangue, aquelle palpite suave da morte da snr.ª D. Patrocinio — como uma promessa sufficiente de que, transportado para o oratorio, nenhum dos seus galhos impediria que o figado d’essa hedionda senhora inchasse e se desfizesse... E isto foi, entre nós, n’esse ermo, como um pacto taciturno, profundo e mortal.
Mas era esta realmente a Arvore d’Espinhos? A rapidez da sua condescendencia fazia-me suspeitar a excellencia da sua divindade. Resolvi consultar o solido, sapientissimo Topsius.
Corri á fonte de Elyseo, onde elle rebuscava pedras, lascas, lixos, restos da orgulhosa Cidade das Palmeiras. Avistei logo o luminoso historiographo acocorado junto a uma poça d’agua, com os oculos sôfregos, esgarafunhando um pedaço de pilastra negra, meia enterrada no lodo. Ao lado um burro, esquecido da herva tenra, contemplava philosophicamente e com melancolia o afan, a paixão d’aquelle sabio, de rastos no chão, á procura das Thermas de Herodes.
Contei a Topsius o meu achado, a minha incerteza... Elle ergueu-se logo, serviçal, zeloso, presto ás lides do Saber.
— Um arbusto d’espinhos? murmurava, estancando o suor. Ha de ser o Nabka... Banalissimo em toda a Syria! Hasselquist, o botanico, pretende que d’ahi se fez a Corôa d’Espinhos... Tem umas folhinhas verdes, muito tocantes, em fórma de coração, como as da hera... Ah, não tem? Perfeitamente, então é o Lycium Spinosum. Foi o que serviu, segundo a tradição latina, para a Corôa d’Injuria... Que quanto a mim a tradição é futil; e Hasselquist ignaro, infinitamente ignaro... Mas eu vou já aclarar isso, D. Raposo. Aclarar irrefutavelmente e para sempre!
Abalámos. No ermo, ante a arvore medonha, Topsius, alçando cathedraticamente o bico, recolheu um momento aos depositos interiores do seu saber — e depois declarou que eu não podia levar a minha tia devotissima nada mais precioso. E a sua demonstração foi faiscante. Todos os instrumentos da Crucificação (disse elle, floreando o guardasol), os Pregos, a Esponja, a Cana Verde, um momento divinisados como materiaes da Divina Tragedia, reentraram pouco a pouco, pelas urgencias da civilisação, nos usos grosseiros da vida... Assim, o Prego não ficou per eternum na ociosidade dos altares, memorando as Chagas Sacratissimas: a humanidade, catholica e commerciante, foi gradualmente levada a utilisar o prego como uma valiosa ferragem: e tendo trespassado as mãos do Messias, elle hoje segura, laborioso e modesto, as tampas de caixões impurissimos... Os mais reverentes irmãos do Senhor dos Passos empregam a Cana para pescar; ella entra na folgante composição do foguete; e o Estado mesmo (tão escrupuloso em materia religiosa) assim a usa em noites alegres de nova Constituição ou em festivos delirios pelas bodas de Principes... A Esponja, outr’ora embebida no vinagre de sarcasmo e offerecida n’uma lança, é hoje aproveitada n’esses irreligiosos ceremoniaes da limpeza — que a Igreja sempre reprovou com odio... Até a Cruz, a Fórma suprema, tem perdido entre os homens a sua divina significação. A christandade, depois de a ter usado como lábaro, usa-a como enfeite. A cruz é broche, a cruz é breloque; pende nos collares, tilinta nas pulseiras; é gravada em sinetes de lacre, é incrustada em botões de punho; — e a Cruz realmente n’este soberbo seculo pertence mais á Ourivesaria do que pertence á Religião...
— Mas a Corôa d’Espinhos, D. Raposo, essa não tornou a servir para mais nada!
Sim, para mais nada! A Igreja recebeu-a das mãos de um proconsul romano — e ella ficou isoladamente e para toda a eternidade na Igreja, commemorando o Grande Ultraje. Em todo este vario Universo ella só encontra um lugar congenere na penumbra das capellas; o seu unico prestimo é persuadir á contrição. Nenhum joalheiro jámais a imitou em ouro, cravejada de rubis, para ornar um penteado loiro; ella é só Instrumento de Martyrio; e com salpicos de sangue, sobre os caracoes frisados das imagens, inspira infinitamente as lagrimas... O mais astuto Industrial, depois de a retorcer pensativamente nas mãos, restituil-a-hia aos altares como coisa inutil na Vida, no Commercio, na Civilisação; ella é só attributo da Paixão, recurso de tristes, enternecedora de fracos. Só ella, entre os accessorios da Escriptura, provoca sinceramente a oração. Quem, por mais adorabundo, se prostraria, a borbulhar de Padre-Nossos, diante d’uma esponja cahida n’uma tina, ou d’uma cana á beira d’um regato?... Mas para a Corôa d’Espinhos erguem-se sempre as mãos crentes; e a sensação da sua deshumanidade passa ainda na melancolia dos Misereres!
Que maior maravilha podia eu levar á titi?...
— Sim, Topsius, meu catita... Os teus dizeres são d’oiro puro... Mas a outra, a verdadeira, a que serviu, teria sido tirada d’aqui, d’este tronco? Hein, amiguinho?
O erudito Topsius desdobrou lentamente o seu lenço de quadrados: e declarou (contra a futil tradição latina e contra o ignarissimo Hasselquist) que a Corôa d’Espinhos fôra arranjada d’uma silva, fina e flexivel, que abunda nos valles de Jerusalem, com que se accende o lume, com que se erriçam as sebes, e que dá uma flôrzinha rôxa, triste e sem cheiro...
Eu murmurei, succumbido:
— Que pena! A titi fazia tanto gosto que fosse d’aqui, Topsius! A titi é tão rica!...
Então este sagaz philosopho comprehendeu que ha Razões de Familia como ha Razões d’Estado — e foi sublime. Estendeu a mão por cima da arvore, cobrindo-a assim largamente com a garantia da sua sciencia — e disse estas palavras memoraveis:
— D. Raposo, nós temos sido bons amigos... Póde pois afiançar á senhora sua tia da parte d’um homem que a Allemanha escuta em questões de critica archeologica, que o galho que lhe levar d’aqui, arranjado em corôa, foi...
— Foi? — berrei ancioso.
— Foi o mesmo que ensanguentou a fronte do rabbi Jeschoua Natzarieh, a quem os latinos chamam Jesus do Nazareth, e outros tambem chamam o Christo!...
Fallára o alto saber germanico! Puxei o meu navalhão sevilhano, decepei um dos galhos. E emquanto Topsius voltava a procurar pelas hervas humidas a cidadella de Cypron e outras pedras de Herodes — eu recolhi ás tendas, em triumpho, com a minha preciosidade. O prazenteiro Potte, sentado n’um sellim, estava moendo café.
— Soberbo galho! gritou elle. Quer-se arranjadinho em corôa... Fica d’uma devoção!
E logo, com a sua rara destreza de mãos, o jocundo homem entrelaçou o galho rude em forma de corôa santa. E tão parecida! tão tocante!...
— Só lhe faltam as pinguinhas de sangue! murmurava eu, enternecido. Jesus! o que a titi se vai babar!
Mas como levariamos para Jerusalem, através dos cerros de Judá, aquelles incommodos espinhos — que, apenas armados na sua fórma Passional, pareciam já avidos de rasgar carne innocente? Para o alegre Potte não havia difficuldades; tirou do fundo do seu provido alforge uma fofa nuvem de algodão em rama; envolveu n’ella delicadamente a Corôa d’Aggravo, como uma joia fragil; depois com uma folha de papel pardo e um nastro escarlate — fez um embrulho redondo, sólido, ligeiro e nitido... E eu, sorrindo, enrolando o cigarro, pensava n’esse outro embrulho de rendas e laços de sêda, cheirando a violeta e a amor, que ficára em Jerusalem, esperando por mim e pelo favor dos meus beijos.
— Potte, Potte! gritei, radiante. Nem tu sabes que grossa moeda me vai render esse galhinho, dentro d’esse pacotinho!
Apenas Topsius voltou da sacra fonte d’Elyseo — eu offereci, para celebrar o encontro providencial da Grande Reliquia, uma das garrafas de Champagne, que Potte trazia nos alforges, encarapuçadas d’ouro. Topsius bebeu «á Sciencia!» Eu bebi «á Religião!» E largamente a espuma de Moet et Chandon regou a terra de Canaan.
Á noite, para maior festividade, accendemos uma fogueira: e as mulheres arabes de Jericó vieram dançar diante das nossas tendas. Recolhemos tarde, quando por sobre Moab, para os lados de Makéros, a lua apparecia, fina e recurva, como esse alfange d’ouro que decepou a cabeça ardente d’Iokanan.
O embrulho da Corôa d’Espinhos estava á beira do meu catre. O lume apagára-se, o nosso acampamento dormia no infinito silencio do Valle da Escriptura... Tranquillo, regalado, adormeci tambem.
III
Havia certamente duas horas que assim dormia, denso e estirado no catre, quando me pareceu que uma claridade trémula, como a d’uma tocha fumegante, penetrava na tenda — e através d’ella uma voz me chamava, lamentosa e dolente:
— Theodorico, Theodorico, ergue-te, e parte para Jerusalem!
Arrojei a manta, assustado: — e vi o doutissimo Topsius, que, á luz mortal de uma vela, bruxoleando sobre a mesa onde jaziam as garrafas de Champagne, afivelava no pé rapidamente uma velha espora de ferro. Era elle que me despertava, açodado, fervoroso:
— A pé, Theodorico, a pé! As egoas estão selladas! Amanhã é Paschoa! Ao alvorecer devemos chegar ás portas de Jerusalem!
Arredando os cabellos, considerei com pasmo o sisudo, ponderado Doutor:
— Oh Topsius! Pois nós partimos assim, bruscamente, sem os nossos alforges, e deixando as tendas adormecidas, como quem foge espavorido?
O erudito homem alçou os seus oculos d’ouro que resplandeciam com uma desusada, irresistivel intellectualidade. Uma capa branca, que eu nunca lhe vira, envolvia-lhe a douta magreza em prégas graves e puras de toga latina: e lento, esguio, abrindo os braços, disse, com labios que pareciam classicos e de marmore:
— D. Raposo! Esta aurora que vae nascer, e em pouco tocar os cimos do Hebron, é a de 15 do mez de Nizam; e não houve em toda a historia d’Israel, desde que as tribus voltaram de Babylonia, nem haverá, até que Tito venha pôr o ultimo cêrco ao Templo, um dia mais interessante! Eu preciso estar em Jerusalem para vêr, viva e rumorejando, esta pagina do Evangelho! Vamos pois fazer a santa Paschoa a casa de Gamaliel, que é um amigo d’Hillel, e um amigo meu, um conhecedor das letras gregas, patriota forte e membro do Sanhedrin. Foi elle que disse: «para te livrares do tormento da duvida, impõe-te uma auctoridade.» Portanto, a pé, D. Raposo!
Assim murmurou o meu amigo, erecto e lento. E eu, submissamente, como perante um mandamento celeste, comecei a enfiar em silencio as minhas grossas botas de montar. Depois, apenas me agasalhei no albornoz, elle empurrou-me com impaciencia para fóra da tenda — sem mesmo me deixar recolher o relogio e a faca sevilhana, que todas as noites, cauteloso, eu guardava debaixo do travesseiro. A luz da vela esmorecia, fumarenta e vermelha...
Devia ser meia noite. Dois cães ladravam ao longe, surdamente, como entre frondosos muros de quintas. O ar macio e ermo cheirava a rosas de vergel e á flôr da laranjeira. O ceu d’Israel faiscava com desacostumado esplendor: e em cima do monte Nebo, um bello astro mais branco, d’uma refulgencia divina, olhava para mim, palpitando anciosamente, como se procurasse, captivo na sua mudez, dizer um segredo á minha alma!
As egoas esperavam, immoveis sob as longas clinas. Montei. E então, emquanto Topsius arranjava laboriosamente os loros, avistei para os lados da fonte d’Elyseo — uma fórma maravilhosa que me arripiou de terror transcendente.
Era, ao clarão diamantino das estrellas da Syria, como a branca muralha d’uma cidade nova! Frontões de templos alvejavam pallidamente entre a espessura de bosques sagrados; para as collinas distantes fugiam esbatidos os arcos ligeiros d’um aqueducto. Uma chamma fumegava no alto d’uma torre; mais baixo, movendo-se, faiscavam pontas de lanças; um som longo de bozina morria na sombra... E abrigada junto aos bastiões uma aldêa dormia entre palmeiras.
Topsius, na sella, prompto a marchar, embrulhára a mão nas clinas da egoa.
— Aquillo, branco, além? murmurei, suffocado.
Elle disse simplesmente:
— Jericó.
Rompeu, galopando. Não sei quanto tempo segui, emmudecido, o nobre historiador dos Herodos: era por uma estrada direita, feita de lages negras de basalto. Ah! que differente do aspero caminho por onde tinhamos descido a Canaan, faiscante e côr de cal, através de collinas onde o tojo escasso semelhava, na irradiação da luz, um bolor de velhice e de abandono! E tudo em redor me parecia differente tambem, a fórma das rochas, o cheiro da terra quente, até a palpitação das estrellas... Que mudança se fizera em mim, que mudança se fizera no Universo? Por vezes uma faisca dura saltava das ferraduras das egoas. E sem descontinuar Topsius galopava, agarrado ás clinas, com as duas bandas da capa branca batendo como os dois panos de uma bandeira...
Mas subitamente parou. Era junto d’uma casa quadrada, entre arvores, toda apagada e muda, tendo no tôpo uma haste sobre que pousava estranhamente, como recortada n’uma lamina de ferro, a figura d’uma cegonha. Á entrada esmorecia uma fogueira: remexi as achas: e á curta chamma que resaltou comprehendi que era uma antiga estalagem á beira d’uma antiga estrada. Por baixo da cegonha, encimando a porta estreita e erriçada de pregos, brilhava em negro, n’uma lapide branca, a taboleta latina — Ad Gruem Majorem: e ao lado, enchendo parte da fachada, desenrolava-se uma inscripção rudemente entalhada na pedra, que eu decifrei a custo, e em que Apollo promettia a saude ao hospede, e Septimanus, o hospedeiro, lhe garantia risonha acolhida, o banho reparador, vinho forte da Campania, frescos palhetes d’Engaddi, e «todas as commodidades á maneira de Roma.»
Murmurei, desconfiado:
— Á maneira de Roma!
Que estranhos caminhos ia eu então trilhando? Que outros homens, dissemelhantes de mim, no fallar e no traje, bebiam alli, sob a protecção d’outros deuses, o vinho em amphoras do tempo de Horacio?...
Mas de novo Topsius marchou, esguio e vago na noite. Agora findára a estrada de basalto sonoro: e subiamos a passo um brusco caminho, cavado entre rochas, onde grossos pedregulhos resoavam, rolavam sob as patas das egoas, como no leito d’uma torrente que um lento Agosto seccou. O erudito Doutor, sacudido na sella, praguejava roucamente contra o Sanhedrin, contra a hirta Lei judaica, opposta indobravelmente a toda a obra culta que quer fazer o Proconsul... Sempre o Phariseu via com rancor o aqueducto romano que lhe trazia a agua, a estrada romana que o levava ás cidades, a therma romana que lhe curava as pustulas...
— Maldito seja o Phariseu!
Somnolento, rememorando velhas imprecações do Evangelho, eu rosnava, encolhido no meu albornoz:
— Phariseu, sepulchro caiado... Maldito seja!
Era a hora calada em que os lobos dos montes vão beber. Cerrei os olhos; as estrellas desmaiavam.
Breves faz o Senhor as noites macias do mez de Nizam, quando se come em Jerusalem o anho branco de Paschoa: e bem cedo o céo se vestiu d’alvo do lado do paiz de Moab.
Despertei. Já os gados balavam nos cerros. O ar fresco cheirava a rosmaninho.
E então avistei, errando por cima dos penedos sobranceiros ao caminho, um homem estranho, bravio, coberto com uma pelle de carneiro, que me recordou Elias e todas as cóleras da Escriptura; o peito, as pernas pareciam de granito vermelho; por entre a grenha e a barba, rudes, emmaranhadas, fazendo-lhe como uma juba feroz, os olhos refulgiam-lhe desvairadamente... Descobriu-nos; e logo, sacudindo os braços como quem arremessa pedras, despediu sobre nós todas as maldições do Senhor! Chamou-nos «pagãos», chamou-nos «cães»: gritava «malditas sejam as vossas mães, sêccos sejam os peitos que vos crearam!» Crueis e cheios de presagios cahiam os seus brados do alto das rochas: e, retardado pelos passos lentos da egoa, Topsius encolhia-se na capa como sob uma saraiva inclemente. Até que me enfureci; voltei-me na anca da cavalgadura, chamei-lhe bebedo, atirei-lhe obscenidades; e via no emtanto, sob a chamma selvagem dos seus olhos, a bocca clamorosa e negra torcer-se-lhe, babar-se de furor devoto...
Mas, desembocando da ravina, encontrámos, larga e lageada, a estrada romana que vai a Sichem: e trotando por ella, sentiamos o allivio de penetrar emfim n’uma região culta, piedosa, humana e legal. A agua abundava: sobre as collinas erguiam-se fortalezas novas: pedras sagradas delimitavam os campos. Nas eiras brancas, os bois enfeitados d’anemonas pisavam o trigo da colheita de Paschoa; e em vergeis onde a figueira já tinha enfolhado, o servo na sua torre caiada, cantando com uma vara na mão, afugentava os pombos bravos. Por vezes avistavamos um homem, de pé, junto da sua vinha, ou á beira dos canaes de rega, direito, com a ponta do manto atirada por cima da cabeça, e os olhos baixos, dizendo a santa oração do Schema. Um oleiro, que espicaçava o seu burro, carregado de cantaros de barro amarello, gritou-nos: «Bemditas sejam as vossas mães, boa vos seja a Paschoa!» E um leproso, que descançava á sombra, nos olivedos, perguntou-nos, gemendo e mostrando as chagas, qual era em Jerusalem o Rabbi que curava, e aonde se apanhava a raiz do baraz.
Já nos aproximavamos de Bethania. Para dar de beber ás egoas parámos n’uma linda fonte que um cedro assombreava. E o douto Topsius, arranjando um loro, admirava-se de não termos encontrado a caravana que vem de Galilêa celebrar a Paschoa a Jerusalem — quando soou, adiante, na estrada, um rumor lento d’armas em marcha... E eu vi, assombrado, apparecerem soldados romanos, d’esses que tantas vezes amaldiçoára em estampas da Paixão!
Barbudos, tostados pelo sol da Syria, marchavam solidamente, em cadencia, com um passo bovino, fazendo resoar sobre as lages as sandalias ferradas: todos traziam ás costas os escudos envoltos em saccos de lona: e cada um erguia ao hombro uma alta forquilha, d’onde pendiam trouxas encordelada, pratos de bronze, ferramentas e cachos de tamaras. Algumas filas, descobertas, seguravam o capacete como um balde: outras, nas mãos cabelludas balançavam um dardo curto. O Decurião gordo e loiro, seguido de uma gazella familiar, enfeitada com coraes, dormitava, ao passo miudo da egoa, embrulhado n’um manto escarlate. E atraz, ao lado das mulas carregadas de saccos de trigo e mólhos de lenha, os arrieiros cantavam ao som d’uma flauta de barro, tocada por um negro quasi nú que tinha no peito, em traços vermelhos, o numero da Legião.
Eu recuára para o escuro do cedro. Mas Topsius, logo, como um Germano servil, desmontára, ajoelhando quasi no pó, ante as Armas de Roma: e não se conteve, berrou, agitando os braços e a capa:
— Longa vida a Caio Tiberio, tres vezes Consul, Illyrico, Panonico, Germanico, Imperador, Pacificador e Augusto!...
Alguns legionarios riram, crassamente. E passaram, cerrados, com um rumor do ferro — emquanto um pegureiro, ao longe, arrebanhando as cabras aos brados, fugia para o cimo dos cêrros.
De novo galopámos. A estrada de basalto findou; e penetrámos entre arvoredos, n’um aroma de pomares, através de abundancia e frescura.
Oh, que differentes se mostravam estes caminhos, estas collinas, que eu vira dias antes, em torno á Cidade Santa, deseccadas por um vento d’abstracção, e brancas, da côr das ossadas... Agora tudo era verde, regado, murmuroso, e com sombras. A mesma luz perdêra o tom magoado, a côr dorida, com que eu sempre a vira, cobrindo Jerusalem: as folhas dos ramos d’abril desabrochavam n’um azul, moço, tenro, cheio de esperança como ellas. E a cada instante se me iam os olhos longamente n’esses vergeis da Escriptura, que são feitos da oliveira, da figueira e da vinha, e onde crescem silvestres, e mais esplendidos que o rei Salomão, os lirios vermelhos dos campos!
Enlevado e cantarolando, eu trotava ao comprido d’uma sebe toda entrelaçada de rosas. Mas Topsius deteve-me, mostrou-me no alto d’um outeiro, sobre um fundo sombrio de cyprestes e cedros, uma casa abrindo para o lado do oriente e da luz o seu portico branco. Pertencia, disse elle, a um romano, parente de Valerius Gratus, antigo Legado imperial da Syria: e tudo alli parecia penetrado de paz amavel e de graça latina. Um tapete viçoso de relva bem lisa estendia-se em declive até a uma alea de alfazema, tendo ao meio, sobre o verde, desenhadas com linhas de flôres escarlates, as iniciaes de Valerius Gratus: em redor, entre canteiros de rosas, de açucenas, orlados de myrto, resplandeciam nobres vasos de marmore carynthico, onde se enrolavam folhas de acantho: um servo, de capuz cinzento, talhava um teixo em fórma d’urna, ao lado d’um buxo alto já talhado sabiamente em feitio de lyra; aves domesticas picavam o chão, coberto d’arêa escarlate, n’uma rua de platanos onde os braços d’hera faziam de tronco a tronco festões como os que ornam um templo: a rama dos loureiros velava de sombras a nudez das estatuas. E sob um caramanchão de vinha, ao rumor d’agua lenta cantando n’uma bacia de bronze, um velho de toga, sereno, risonho, ditoso, lia junto a uma imagem d’Esculapio um longo rôlo de papyro — emquanto uma rapariga, com uma flecha d’ouro nas tranças, toda vestida de linho alvo, fazia uma grinalda com as flôres que lhe enchiam o regaço... Ao passo dos nossos cavallos ella ergueu os olhos claros. Topsius gritou — O, salvè, pulcherrima! Eu gritei — Viva la gracia! Os melros cantavam nas romanzeiras em flôr.
Mas adiante o facundo Topsius deteve-me ainda, apontando-me outra vivenda de campo, escura e severa entre cyprestes: e disse-me baixo que era d’Osanias, um rico sadduceu de Jerusalem, da familia pontifical de Boethos, e membro do Sanhedrin. Nenhum ornato pagão lhe profanava os muros. Quadrada, fechada, hirta, ella reproduzia a austeridade da Lei. Mas os largos celleiros, cobertos de colmo, os lagares, os vinhedos, diziam as riquezas feitas de duros tributos: no pateo dez escravos não bastavam a guardar os saccos de trigo, ôdres, carneiros marcados de vermelho, recolhidos em pagamento do dizimo n’esse dia de Paschoa. Junto á estrada, com uma piedade ostentosa, caiada de fresco, reluzia, ao sol, entre roseiras, a sepultura domestica.
Assim caminhando chegámos aos palmares onde se aninha Betphagé. E por um atalho virente que Topsius conhecia, começámos a subir o Monte das Oliveiras, até o Lagar da Moabita — que é uma paragem de caravanas n’essa infinita, vetusta Via Real que vem do Egypto, seguindo até Damasco a bem-regada.
E foi como um deslumbramento, ao encontrarmos sobre todo o Monte, por entre os olivedos da encosta até ao Cedron, por entre os pomares do valle até Siloeh, em meio dos tumulos novos dos Sacrificadores, e mesmo para os lados onde se empoeira a estrada de Hebron — o despertar rumoroso de todo um povo acampado! Tendas negras do deserto, feitas de pelles de carneiro e rodeadas de pedras: barracas de lona, da gente da Idumêa, alvejando ao sol entre as verduras; cabanas armadas com ramos, onde se abrigam os pastores d’Ascalon; toldos de tapetes que os peregrinos de Nephtali suspendem em varas de cedro; — era toda a Judêa, ás portas de Jerusalem, a celebrar a Paschoa Sagrada! E havia ainda, em volta ao casal onde velava um posto de Legionarios, os mercadores gregos da Decapola, tecelões phenicios de Tiberiade, e a gente pagã que, através da Samaria, vem dos lados de Cesarêa e do mar.
Fomos marchando, lentos e cautelosos. Á sombra das oliveiras os camêlos descarregados ruminavam placidamente; e as egoas da Perea, com as patas entravadas, pendiam a cabeça sob a espessura das longas clinas. Junto ás tendas, cujos panos meio levantados nos deixavam entrevêr brilhos d’armas penduradas ou o esmalte d’um grande prato, raparigas, com os braços reluzindo de braceletes, pisavam entre duas pedras o grão do centeio; outras, mugiam as cabras; por toda a parte se accendiam fogos claros; e com os filhos pela mão, o cantaro esguio ao hombro, uma fila de mulheres descia cantando para a fonte de Siloeh.
As patas dos nossos cavallos prendiam-se nas cordas retesadas das barracas dos Idumeus. Depois estacavamos diante de tapetes alastrados, onde um mercador de Cesarêa, com um manto á carthagineza, vistoso e bordado de flôres, expunha peças de linho do Egypto, estendia sêdas de Cós, fazia reluzir armas marchetadas; ou com um frasco na palma de cada mão, celebrava as perfeições do nardo da Assyria e dos oleos dôces da Parthia... Os homens em redor, arredando-se, demoravam em nós os seus olhos languidos e altivos; por vezes murmuravam uma injuria surda; ou por causa dos oculos do douto Topsius, um riso d’escarneo mostrava dentes agudos de fera, entre rudes barbas negras.
Sob as arvores, encostados aos muros, filas de mendidos ganiam, mostrando o caco com que rapavam as chagas. Diante d’uma cabana feita de ramos de loureiro, um velho obeso, rubro como um Sileno, apregoava o vinho fresco de Sichem, as favas novas de abril. Os homens fuscos do deserto apinhavam-se em torno dos gigos de fruta. Um pastor d’Ascalon, em andas, no meio d’um rebanho de cordeiros brancos, tocava bozina, chamando os devotos a comprar o anho puro da Paschoa. E por entre a multidão onde constantemente se erguiam paus, em rixas bruscas, soldados romanos rondavam aos pares com um ramo d’oliveira no capacete, benignos e paternaes.
Assim chegámos junto de dois altos, frondosos cedros, — tão cobertos de pombas brancas voando, que eram como duas grandes macieiras, na primavera, que um vento estivesse destoucando das flôres. Subitamente, Topsius parára, abria os braços; eu tambem: e com o coração suspenso alli ficámos immoveis, deslumbrados, vendo lá em baixo, na luz, resplandecer Jerusalem.
O sol banhava-a, sumptuosamente! Uma severa, altiva muralha, guarnecida de torres novas, com portas onde as cantarias se entremeavam de lavores d’ouro, erguia-se sobre a ribanceira escarpada do Cedron, já sêcco pelos calores de Nizam, e ia correndo, cingindo Sião, para o lado do Hinnon e até aos cerros de Gareb. E, dentro, em face aos cedros que nos assombreavam, o Templo, sobre os seus alicerces eternos, parecia dominar toda a Judêa, soberbo em esplendor, murado de granitos polidos, armado de bastiões de marmore, como a refulgente cidadella d’um Deus!...
Debruçado sobre as clinas, o sapiente Topsius apontava-me o adro primordial, chamado «o Pateo dos Gentilicos», vasto bastante para receber todas as multidões de Israel, todas as da terra pagã: o chão liso rebrilhava como a agua limpida d’uma piscina: e as columnas de marmore de Paros que o ladeavam, formando os Porticos de Salomão, profundos e cheios de frescura, eram mais bastas que os troncos nos cerrados palmares de Jerichó. Em meio d’esta área, cheia de ar e de luz, elevava-se, em escadarias lustrosas como se fossem d’alabastro, com portas chapeadas de prata, arcarias, torreões d’onde voavam pombas, um nobre terraço, só accessivel aos fieis da Lei, ao Povo eleito de Deus, o orgulhoso «Adro de Israel». D’ahi erguia-se ainda, com outras claras escadarias, outro branco terraço, o «Atrio dos Sacerdotes»: no brilho diffuso que o enchia negrejava um enorme altar de pedras brutas, enristando a cada angulo um sombrio corno de bronze: aos lados dois longos fumos direitos, subiam devagar, mergulhavam no azul com a serenidade d’uma prece perennal. E ao fundo, mais alto, offuscante, com os seus recamos d’ouro sobre a alvura dos marmores, niveo e fulvo, como feito de ouro puro e neve pura, refulgia maravilhosamente, lançando o seu clarão aos montes em redor, o Hieron, o Santuario dos Santuarios, a morada de Jehovah: sobre a porta pendia o Véo Mystico, tecido em Babylonia, côr do Fogo e côr dos Mares: pelas paredes trepava a folhagem d’uma vinha d’esmeralda com cachos d’outras pedrarias: da cupula irradiavam longas lanças de ouro que o aureolavam de raios como um sol: e assim, resplandecente, triumphante, augusto, precioso, elle elevava-se para aquelle céo de festa Paschal, offertando-se todo, como o dom mais bello, o dom mais raro da Terra!
Mas ao lado do Templo, mais alto que elle, dominando-o com a severidade d’um amo orgulhoso, Topsius mostrou-me a Torre Antonia, negra, macissa, impenetravel, cidadella de forças romanas... Na plataforma, entre as ameias, movia-se gente armada: sobre um bastião, uma figura forte, envolta n’um manto vermelho de Centurião, estendia o braço; e toques lentos de bozina pareciam fallar, dar ordens, para outras torres que ao longe se azulavam no ar limpido, algemando a Cidade Santa. Cesar pareceu-me mais forte que Jehovah!
E mostrou-me ainda, para além da Antonia, o velho burgo de David. Era um tropel de casas cerradas, caiadas de fresco sobre o azul, descendo como um rebanho de cabras brancas para um valle ainda em sombra, onde uma praça monumental se abria entre arcarias: depois trepava, fendido em ruas tortuosas, a espalhar-se sobre a collina fronteira d’Acra, rica, com palacios, e cisternas redondas que luziam á luz semelhantes a broqueis d’aço. Mais longe ainda, para além de velhos muros derrocados era o bairro novo de Bezetha, em construcção; o Circo de Herodes arredondava ahi as suas arcarias; e os jardins d’Antipas estiravam-se por um ultimo outeiro, até junto ao tumulo de Helena, assoalhados, frescos, regados pelas aguas dôces de Enrogel.
— Ah Topsius, que cidade! murmurei maravilhado.
— Rabbi Eliezer diz que não viu jámais cidade bella quem não viu Jerusalem!
Mas ao nosso lado passava gente alegre, correndo, para os lados da verde estrada que sobe de Bethania: e um velho que puxava á pressa a arreata do seu burro, carregado de mólhos de palmas, gritou-nos que se avistára e vinha chegando a caravana da Galilêa! Então, curiosos, trotámos até um comoro, junto a uma sebe de cactos, onde já se apinhavam mulheres com os filhos ao collo, sacudindo véos claros, soltando palavras de benção e de boa acolhida: — e logo vimos, n’uma poeirada lenta que o sol dourava, a densa fila dos peregrinos que são os derradeiros a chegar a Jerusalem, vindos de longe, da alta Galilêa, desde Gescala e dos montes. Um rumor de canticos enchia a estrada festiva: em torno a um estandarte verde agitavam-se palmas e ramos floridos de amendoeira; e os grandes fardos, carregando o dorso dos camêlos, balanceavam em cadencia por entre os turbantes brancos cerrados e movendo-se em marcha.
Seis cavalleiros da guarda Babylonica d’Antipas Herodes, tetrarca de Galilêa, escoltavam a caravana desde Tiberiade: traziam mitras de felpo, as longas barbas separadas em tranças, as pernas ligadas em tiras de couro amarello: e caracolavam á frente, fazendo estalar n’uma das mãos açoites de corda, com a outra atirando ao ar e aparando alfanges que faiscavam. Logo atraz era uma collegiada de Levitas, em côro, a passos largos, apoiados a bordões enfeitados de flôres, com os rôlos da Lei apertados sobre o peito, psalmodiando rijo os louvores de Sião. E em torno moços robustos, com as faces infladas e rubras, sopravam para o céo furiosamente em trompas recurvas de bronze.
Mas, d’entre a gente apertada á beira da estrada, rompeu uma acclamação. Era um velho, sem turbante, de cabellos soltos, recuando e dançando freneticamente: das mãos cabelludas que elle agitava no ar sahia um repique de castanholas: ora arremessava uma perna, ora outra: e toda a sua face barbuda de Rei David ardia com um fulgôr inspirado. Atraz d’elle, raparigas, pulando compassadamente sobre a ponta ligeira das sandalias, feriam com dolencia harpas leves; outras, rodando sobre si, batiam d’alto os tamborinos — e as suas manilhas de prata brilhavam no pó que os seus pés levantavam, sob a roda das tunicas enfunadas... Então, arrebatada, a turba entoou o velho canto das jornadas rituaes e os psalmos de Peregrinação.
— Meus passos vão todos para ti, ó Jerusalem! Tu és perfeita! Quem te ama conhece a abundancia!
E eu bradava tambem, transportado:
— Tu és o palacio do Senhor, ó Jerusalem, e o repouso do meu coração!
Lenta e rumorosa a caravana passava. As mulheres dos levitas, em burros, veladas e rebuçadas, semelhavam grandes saccos molles: as mais pobres, a pé, traziam nas pontas dobradas do manto frutas e o grão da aveia. Os previdentes, já com a sua offrenda ao Senhor, arrastavam preso do cinto um cordeiro branco; os mais fortes seguravam ás costas, presos pelos braços, os doentes — cujos olhos dilatados, nas faces maceradas, procuravam anciosamente as muralhas da Cidade Santa, onde todo o mal se cura.
Entre os peregrinos e a alegre multidão que os acolhia, as bençãos cruzavam-se, ruidosas e ardentes; alguns perguntavam pelos visinhos, pelas searas ou pelos avós que tinham ficado na aldêa á sombra da sua vinha: e ouvindo que lhe fôra roubada a pedra do seu moinho, um velho, ao meu lado, com as barbas d’um Abrahão, arremessou-se a terra a arrepellar-se e a esfarrapar a tunica. Mas já, fechando a marcha, passavam as mulas com guisos carregadas de lenha e de ôdres d’azeite: e atraz uma turba de fanaticos que nos arredores, em Betphagé e em Rephrain, se tinham juntado á caravana, appareceu, atirando para os lados cabaças de vinho já vazias, brandindo facas, pedindo a morte dos Samaritanos e ameaçando a gente pagã...
Então seguindo Topsius trotei de novo através do monte para junto dos cedros cobertos do vôo alvo das pombas: e n’esse instante tambem os peregrinos, emergindo da estrada, avistavam emfim Jerusalem que resplandecia lá em baixo formosa, toda branca na luz... Então foi um santo, tumultuoso, inflammado delirio! Prostrada, a turba batia as faces na terra dura: um clamor de orações subia ao céo puro por entre o estridor das tubas: as mulheres erguiam os filhos nos braços offertando-os arrebatadamente ao Senhor! Alguns permaneciam immoveis, como assombrados, ante os esplendores de Sião: e quentes lagrimas de fé, de amor piedoso, rolavam sobre barbas incultas e feras. Os velhos mostravam com o dedo os terraços do Templo, as ruas antigas, os sacros lugares da historia de Israel: «alli é a porta d’Ephrain, acolá era a torre das Fornalhas; aquellas pedras brancas, além, são do tumulo de Rachel...» E os que escutavam em redor, apinhados, batiam as mãos, gritavam: «Bemdita sejas, Sião!» Outros, estonteados, com o cinto desapertado, corriam tropeçando nas cordas das tendas, nos gigos de fruta, a trocar a moeda romana, a comprar o anho da offerta. Por vezes, d’entre as arvores, um canto subia, claro, fino, candido, e que ficava tremendo no ar: a terra um momento parecia escutar, como o céo: serenamente, Sião rebrilhava, do Templo os dois fumos lentos ascendiam, com uma continuidade de prece eterna... Depois o canto morria: de novo as bençãos rompiam, clamorosas: a alma inteira de Judá abysmava-se no resplendor do santuario: e braços magros erguiam-se phreneticamente para estreitar Jehovah.
De repente Topsius colheu-me as redeas da egoa: e quasi ao meu lado um homem com uma tunica côr d’açafrão, surgindo esgazeado de traz de uma oliveira e brandindo uma espada, saltou para cima d’uma pedra e gritou desesperadamente:
— Homens de Galilêa, acudi, e vós, homens de Nephtali!...
Peregrinos correram, erguendo os bastões: e as mulheres sahiam das tendas, pallidas, apertando os filhos ao collo. O homem fazia tremer a espada no ar, todo elle tremia tambem: e outra vez bradou, desoladamente:
— Homens de Galilêa, Rabbi Jeschoua foi preso! Rabbi Jeschoua foi levado a casa de Hannan, homens de Nephtali!
— D. Raposo, disse Topsius então, com os olhos faiscantes, o Homem foi preso, e compareceu já diante do Sanhedrin!... Depressa, depressa, amigo, a Jerusalem, a casa de Gamaliel!
E á hora em que no Templo se fazia a offerta do Perfume, quando o sol já ia alto sobre o Hebron, Topsius e eu penetrámos, pela porta do Pescado, a passo, n’uma rua da antiga Jerusalem. Era ingreme, tortuosa, poeirenta, com casas baixas e pobres de tijolo; sobre as portas, fechadas por uma corrêa, sobre as janellas esguias como fendas gradeadas, havia verduras e palmas entretecidas, fazendo ornatos de Paschoa. Nos terraços, rodeados de balaustradas, mulheres diligentes sacudiam os tapetes, joeiravam o trigo; outras, chalrando, penduravam lampadas de barro em festões para as illuminações rituaes.
Ao nosso lado ia marchando fatigado um harpista egypcio, com uma pluma escarlate presa na peruca frisada, um pano branco envolvendo-lhe a cinta fina, os braços pesados de braceletes, e a harpa ás costas, recurva como uma foice e lavrada em flôres de lotus. Topsius perguntou-lhe se elle vinha d’Alexandria. E ainda se cantavam nas tabernas do Eunotos as cantigas da batalha d’Accio? O homem logo, mostrando n’um riso triste os dentes longos, pousou a harpa, ia ferir os bordões... Picámos as egoas: e assustámos duas mulheres cobertas de véos amarellos, com casaes de pombas enroladas na ponta do manto, que se apressavam decerto para o Templo, airosas, ligeiras, fazendo retinir os guisos das suas sandalias.
Aqui e além um lume caseiro ardia no meio da rua, com trempes, caçarolas, d’onde sahia um cheiro acre d’alho: crianças de ventre enorme que rolavam núas pela poeira, roendo vorazmente cascas d’abobora crua, ficavam pasmadas para nós, com grandes olhos ramellosos onde fervilhavam moscas. Diante d’uma forja um bando hirsuto de pastores de Moab esperavam emquanto dentro, martellando n’um nimbo de chispas, os ferreiros lhes batiam ferros novos para as lanças. Um negro, com um pente em fórma de sol toucando-lhe a carapinha, apregoava, n’um grito lugubre, bolos de centeio de feitios obscenos.
Calados, atravessámos uma praça, clara e lageada, que andava em obras. Ao fundo uma casa de banhos, moderna, uma Therma romana, estendia com ar de luxo e de ociosidade a longa arcada do seu portico de granito: no pateo interior, por entre os platanos que o refrescavam, cujos ramos suspendiam velarios de linho alvo, corriam escravos nús, reluzentes de suor, levando vasos d’essencias e braçadas de flôres; das aberturas gradeadas, ao rez das lages, sahia um bafo molle d’estufa que cheirava a rosa. E sob uma das columnas vestibulares, onde uma lapide d’onyx indicava a entrada das mulheres, estava de pé, immovel, offertando-se aos votos como um idolo, uma creatura maravilhosa: sobre a sua face redonda, d’uma brancura de lua cheia, com labios grossos, rubros de sangue, erguia-se a mitra amarella das prostitutas de Babylonia; dos hombros fortes, por cima da tumida rijeza dos seios direitos, cahia em pregas duras de brocado uma dalmatica negra radiantemente recamada de ramagens côr de ouro. Na mão tinha uma flôr de cactus; e as suas palpebras pesadas, as pestanas densas, abriam-se e fechavam-se em rythmo, ao mover onduloso d’um leque que uma escrava preta, agachada a seus pés, balançava cantando. Quando os seus olhos se cerravam, tudo em redor parecia escurecer; e quando se levantava a negra cortina das suas pestanas, vinha d’essa larga pupilla um clarão, uma influencia, como a do sol do meio dia no deserto que abraza e vagamente entristece. E assim se offertava, magnifica, com os seus grandes membros de marmore, a sua mitra fulva, lembrando os ritos de Astarté e d’Adonis, lasciva e pontifical...
Toquei no braço de Topsius, murmurei, pallido:
— Caramba! Vou aos banhos!
Sêcco, impertigado na sua capa branca, elle volveu asperamente:
— Espera-nos Gamaliel, filho de Simeon. E a sabedoria dos Rabbis lá disse que a mulher é o caminho da iniquidade!
E bruscamente penetrou n’uma lobrega viella, toda abobadada: as patas das egoas, ferindo as lages, acirraram contra nós uivos de cães, maldições de mendigos, amontoados juntos no escuro. Depois saltámos por uma brecha da antiga muralha de Ezekiah, passámos uma velha cisterna sêcca onde os lagartos dormiam: e trotando pela poeira solta d’uma longa rua, entre muros caiados que reluziam e portas besuntadas de alcatrão, parámos no alto diante d’uma entrada mais nobre, em arco, com uma grade baixa d’arame que a defendia dos escorpiões. Era a casa de Gamaliel.
No meio d’um vasto pateo ladrilhado, escaldando ao sol, um limoeiro toldava a agua clara d’um tanque. Em volta, sobre pilastras de marmore verde, corria uma varanda, silenciosa e fresca, d’onde pendia aqui e além um tapete da Assyria com flôres bordadas. Um puro azul brilhava no alto; — e ao canto, sob um alpendre, um negro atrellado por cordas como uma alimaria a uma barra de pau, calçado de ferraduras, vincado de cicatrizes, ia fazendo gemer e girar lentamente a grande mó de pedra do moinho domestico.
No escuro d’uma porta appareceu um homem obeso, sem barba, quasi tão amarello como a tunica lassa que o envolvia todo: tinha na mão uma vara de marfim e mal podia erguer as palpebras molles.
— Teu amo? gritou-lhe Topsius, desmontando.
— Entra, disse o homem n’uma voz fugidia e fina como um silvo de cobra.
Por uma escadaria rica de granito negro chegámos a um patamar — onde pousavam dois candelabros, espigados como os arbustos de que reproduziam, em bronze, o tronco sem folhas: e entre elles estava de pé, diante de nós, Gamaliel, filho de Simeon. Era muito alto, muito magro; e a barba solta, lustrosa, perfumada, enchia-lhe o peito, onde brilhava um sinete de coral pendurado d’uma fita escarlate. O seu turbante branco, entremeado de fios de perolas, descobria uma tira de pergaminho collada sobre a testa e cheia de textos sagrados: sob aquella alvura, os seus olhos encovados tinham um fulgor frio e duro. Uma longa tunica azul cobria-o até ás sandalias, orlada de compridas franjas que arrastavam: e cosidas ás mangas, enroladas nos pulsos, tinha ainda outras tiras de pergaminho onde negrejavam outras escripturas rituaes.
Topsius saudou-o á moda do Egypto, deixando cahir lentamente a mão até á joelheira da sua calça de lustrina. Gamaliel alargou os braços e murmurou, como psalmodiando:
— Entrai, sêde bem vindos, comei e regosijai-vos...
E atraz de Gamaliel, pisando um chão sonoro de mosaico, penetrámos n’uma sala onde se achavam tres homens. Um, que se afastou da janella para nos acolher, era magnificamente bello, com longos cabellos castanhos, pendendo em anneis dôces em torno d’um pescoço forte, macio e branco como um marmore corinthio: na faxa negra que lhe apertava a tunica brilhava, com pedrarias, o punho d’ouro d’uma espada curta. O outro, calvo, gordo, com uma face balofa sem sobrancelhas, e tão livida que parecia coberta de farinha, ficára encruzado, embrulhado no seu manto côr de vinho, sobre um divan feito de correias — tendo uma almofada de purpura debaixo de cada braço; e o seu gesto d’acolhida foi mais distrahido e desdenhoso, do que a esmola que se atira ao estrangeiro. Mas Topsius quasi se prostrára, a beijar os seus sapatos redondos de couro amarello, atados por fios de ouro — porque aquelle era o venerando Osanias, da familia pontifical de Beothos, ainda do sangue real de Aristobolus! O outro homem não o saudámos, nem elle tambem nos viu; estava agachado a um canto, com a face sumida no capuz d’uma tunica de linho mais alvo que a neve fresca, como mergulhado n’uma oração: e só de vez em quando se movia, para limpar as mãos lentamente a uma toalha da fina brancura da tunica, que lhe pendia d’uma corda, apertada á cintura, grossa e cheia de nós, como as que cingem os monges.
No emtanto, descalçando as luvas, eu examinava o tecto da sala, todo de cedro, com lavores retocados d’escarlate. O azul liso e lustroso das paredes era como a continuação d’aquelle céo d’Oriente, quente e puro, que resplandecia através da janella, onde se destacava, pendido do muro, na plena luz, um ramo solitario de madresilva. Sobre uma tripeça, incrustada de nacar, n’um incensador de bronze, fumegava uma resina aromatica.
Mas Gamaliel aproximára-se — e depois de ter olhado duramente as minhas botas de montar disse com lentidão:
— A jornada do Jordão é longa, deveis vir esfomeados...
Murmurei polidamente uma recusa... E elle, grave como se recitasse um texto:
— A hora do meio dia é a mais grata ao Senhor. Joseph disse a Benjamim: «tu comerás commigo ao meio dia.» Mas a alegria do hospede é tambem doce ao Muito-Alto, ao Muito-Forte... Estaes fracos, ides comer, para que a vossa alma me abençôe.
Bateu as palmas — um servo, com os cabellos apertados n’um diadema de metal, entrou trazendo um jarro cheio d’agua tepida que cheirava a rosa, onde eu purifiquei as mãos; outro offereceu bolos de mel sobre viçosas folhas de parra; outro verteu em taças de louça brilhante um vinho forte e negro d’Emaús. E para que o hospede não comesse só, Gamaliel partiu um gomo de romã, e com as palpebras cerradas levou á beira dos labios uma malga, onde boiavam pedaços de gêlo entre flôres de laranjeira.
— Pois agora, disse eu lambendo os dedos, tenho lastro até ao meio dia...
— Que a tua alma se regosije!
Accendi um cigarro, debrucei-me na janella. A casa de Gamaliel ficava n’um alto, decerto por traz do Templo, sobre a collina d’Ophel: alli o ar era tão dôce e macio, que só o sentir a sua caricia enchia de paz o coração. Por baixo corria a muralha nova erguida por Herodes o Grande; e para além floriam jardins e pomares dando sombra ao Valle da Fonte, e subindo até á collina, em que branquejava, calada e fresca, a aldeia de Siloé. Por uma fenda, entre o monte do Escandalo e a collina dos Tumulos, eu via resplandecer o mar Morto como uma chapa de prata: as montanhas de Moab ondulavam depois, suaves, d’um azul apenas mais denso que o do céo: e uma fórma branca, que parecia tremer na vibração da luz, devia ser a cidadella de Makeros sobre o seu rochedo, nos confins da Idumêa. No terraço relvoso d’uma casa, ao pé das muralhas, uma figura immovel, abrigada sob um alto guarda-sol franjado de guisos, olhava como eu para esses longes da Arabia: e ao lado uma rapariga, ligeira e delgada, com os braços nús erguidos, chamava um bando de pombas que esvoaçavam em redor. A tunica aberta descobria-lhe o seiosinho cheio de seiva: e era tão linda, morena e dourada pelo sol, que eu ia, no silencio do ar, atirar-lhe um beijo... Mas recolhi, ouvindo Gamaliel que dizia, como o homem do manto côr d’açafrão no Monte das Oliveiras: «Sim, esta noite, em Bethania, Rabbi Jeschoua foi preso...»
Depois ajuntou, lento, com os olhos semi-cerrados, erguendo por entre os dedos os longos fios da barba:
— Mas Poncius teve um escrupulo... Não quiz julgar um homem de Galilêa que é subdito de Antipas Herodes... E como o Tetrarcha veio á Paschoa a Jerusalem, Poncius mandou o Rabbi á sua morada, a Bezetha...
Os doutos oculos de Topsius rebrilharam d’espanto.
— Coisa estranha! exclamou, abrindo os braços magros. Poncius escrupuloso, Poncius formalista! E desde quando respeita Poncius a judicatura do Tetrarcha? Quantos pobres galileus não fez elle matar sem licença do Tetrarcha, quando foi da revolta do aqueducto, quando espadas romanas, por ordem de Poncius, misturaram nos pateos do Templo o sangue dos homens de Nephtali ao sangue dos bois do Sacrificio!
Gamaliel murmurou sombriamente:
— O Romano é cruel, mas escravo da legalidade.
Então Osanias, filho de Beothos, disse com um sorriso molle e sem dentes, agitando de leve, sobre a purpura das almofadas, as mãos resplandecentes de anneis:
— Ou talvez seja que a mulher de Poncius proteja o Rabbi.
Gamaliel, surdamente, amaldiçoou o impudor da Romana. E como os oculos de Topsius interrogavam o venerando Osanias elle admirou-se que o Doutor ignorasse coisas tão conversadas no Templo, até pelos pastores que vem da Idumêa vender os cordeiros da Offrenda. Sempre que o Rabbi prégava no Portico de Salomão, do lado da porta de Suza, Claudia vinha vêl-o do alto do terraço da Torre Antonia, só, envolta n’um véo negro... Menahem, que guardava no mez de Tebeth a escadaria dos Gentis, vira a mulher de Poncius acenar com o véo ao Rabbi. E talvez Claudia, saciada de Capreia, de todos os cocheiros do Circo, de todos os histriões de Suburra, e dos brinquedos d’Atalanta que fizeram perder a voz ao cantor Accius, quizesse provar, vindo á Syria, a que sabiam os beijos d’um propheta de Galilêa...
O homem vestido de linho alvo ergueu bruscamente a face, sacudindo o capuz de sobre os cabellos revoltos: o seu largo olhar azul fulgurou por toda a sala, n’um relampago, e apagou-se logo, sob a humildade grave das pestanas que se baixaram... Depois murmurou, lento e severo:
— Osanias, o Rabbi é casto!
O velho riu, pesadamente. Casto, o Rabbi! E então essa galilêa de Magdala, que vivera no bairro de Bezetha, e nas festas do Prurim se misturava com as prostitutas gregas ás portas do theatro d’Herodes?... E Joanna, a mulher de Khosna, um dos cozinheiros d’Antipas? E outra d’Ephrain, Suzanna, que uma noite, a um gesto do Rabbi, a um aceno do seu desejo, deixára o tear, deixára os filhos, e com o peculio domestico, escondido na ponta do manto, o seguira até Cesarêa...?
— Oh Osanias! gritou, batendo palmas folgazãs, o homem formoso que tinha uma espada com pedrarias. Oh filho de Beothos, como tu conheces, uma a uma, as incontinencias d’um Rabbi galileu, filho das hervas do chão e mais miseravel que ellas! Nem que se tratasse d’Elius Lamma, nosso Legado Imperial, que o Senhor cubra de males!
Os olhos d’Osanias, miudinhos como duas contas de vidro negro, reluziram d’agudeza e malicia.
— Oh Manassés! É para que vós outros, os patriotas, os puros herdeiros de Judas de Galaunitida, não nos accuseis sempre, a nós sadduceus, de saber só o que se passa no Atrio dos Sacerdotes e nos eirados da casa d’Hannan...
Uma tosse rouca reteve-o um espaço, suffocando, sob a ponta do manto em que vivamente se embuçára. Depois, mais quebrado, com laivos rôxos na face farinhenta:
— Que em verdade foi justamente na casa d’Hannan que ouvimos isto a Menahem, passeando todos debaixo da vinha... E mesmo nos contou elle que esse Rabbi de Galilêa chegava, no seu impudor, a tocar fêmeas pagãs, e outras mais impuras que o porco... Um levita viu-o, na estrada de Sichem, erguer-se afogueado, de traz da borda d’um poço, com uma mulher da Samaria!
O homem coberto d’alvo linho ergueu-se d’um salto, todo direito e tremulo; e no grito que lhe escapou havia o horror de quem surprehende a profanação d’um altar!
Mas Gamaliel, com uma sêcca authoridade, cravou n’elle os olhos duros:
— Oh Gad, aos trinta annos o Rabbi não é casado! Qual é o seu trabalho? Onde está o campo que lavra? Alguem jámais conheceu a sua vinha? Vagabundeia pelos caminhos, e vive do que lhe offertam essas mulheres dissolutas! E que outra coisa fazem esses moços sem barba de Sybaris e de Lesbos, que passeiam todo o dia na via Judiciaria, e que vós outros, Essenios, abominaes de tal sorte, que correis a lavar as vestes n’uma cisterna se um d’elles roça por vós?... Tu ouviste Osanias, filho de Beothos... Só Jehovah é grande! e em verdade te digo que quando Rabbi Jeschoua, desprezando a Lei, dá á mulher adultera um perdão que tanto captiva os simples, cede á frouxidão da sua moral e não á abundancia da sua misericordia!
Com a face abrazada, e atirando os braços ao ar, Gad bradou:
— Mas o Rabbi faz milagres!
E foi o formoso Manassés, com um sereno desdem, que respondeu ao Essenio:
— Socega, Gad, outros têm feito milagres! Simão de Samaria fez milagres. Fêl-os Apollonius, e fêl-os Gabienus... E que são os prodigios do teu galileu comparados aos das filhas do Grão Sacerdote Anius, e aos do sabio Rabbi Chekiná?
E Osanias escarnecia a simplez de Gad:
— Em verdade, que aprendeis vós outros, Essenios, no vosso oasis d’Engaddi? Milagres! Milagres até os pagãos os fazem! Vai a Alexandria, ao porto do Eunotos, para a direita, onde estão as fabricas de papyros, e vês lá Magos fazendo milagres por um drachma, que é o preço d’um dia de trabalho. Se o milagre prova a divindade, então é divino o peixe Oannes, que tem barbatanas de nacar e préga nas margens do Euphrates, em noites de lua cheia!
Gad sorria com altivez e doçura. A sua indignação expirára sob a immensidão do seu desdem. Deu um passo vagaroso, depois outro, — e considerando, apiedadamente, aquelles homens enfatuados, endurecidos e cheios d’irrisão:
— Vós dizeis, vós dizeis, vãos á maneira de moscardos que zumbem! Vós dizeis, e vós não o ouvistes! Em Galilêa, que é bem fertil, bem verde, quando elle fallava era como se corresse uma fonte de leite em terra de fome e seccura: até a luz parecia um bem maior! As aguas, no lago de Tiberiade, amansavam para o escutar; e aos olhos das crianças que o rodeavam subia a gravidade d’uma fé já madura... Elle fallava: e como pombas que desdobram as azas e vôam da porta d’um santuario, nós viamos desprender-se dos seus labios, irem voar por sobre as nações do mundo toda a sorte de cousas nobres e santas, a Caridade, a Fraternidade, a Justiça, a Misericordia, e as fórmas novas, bellas, divinamente bellas, do Amor!
A sua face resplandecia, enlevada para os céos, como seguindo o vôo d’essas novas divinas. Mas já do lado, Gamaliel, Doutor da Lei, o rebatia com uma dura auctoridade:
— Que ha d’original e d’individual em todas essas idéas, homem? Pensas que o Rabbi as tirou da abundancia do seu coração? Está cheia d’ellas a nossa doutrina!... Queres ouvir fallar de Amor, de Caridade, de Igualdade? Lê o livro de Jesus, filho de Sidrah... Tudo isso o prégou Hillel, tudo isso o disse Schemaia! Cousas tão justas se encontram nos livros pagãos, que são, ao pé dos nossos, como o lôdo ao pé da agua pura de Siloeh!... Vós mesmos os Essenios tendes preceitos melhores!... Os Rabbis de Babylonia, d’Alexandria, ensinaram sempre leis puras de Justiça e de Igualdade! E ensinou-as o teu amigo Iokanan, a quem chamaes o Baptista, que lá acabou tão miseravelmente n’um ergastulo de Makeros...
— Iokanan! exclamou Gad, estremecendo, como rudemente acordado da suavidade d’um sonho.
Os seus olhos brilhantes humedeceram. Tres vezes, curvado para o chão, com os braços abertos, repetiu o nome de Iokanan, como chamando alguem d’entre os mortos. Depois, com duas lagrimas rolando pela barba, murmurou muito baixo, n’uma confidencia que o enchia de terror e de fé:
— Fui eu que subi a Makeros a buscar a cabeça do Baptista! E quando descia o caminho, com ella embrulhada no meu manto, ainda a outra, Herodiade, estirada por sobre a muralha como a femea lasciva do tigre, rugia e me gritava injurias!... Tres dias e tres noites segui pelas estradas de Galilêa, levando a cabeça do justo pendurada pelos cabellos... Ás vezes, detraz d’um rochedo, um anjo surgia todo coberto de negro, abria as azas e punha-se a caminhar ao meu lado...
De novo a cabeça lhe pendeu, os seus duros joelhos resoaram nas lages: e ficou prostrado, orando anciosamente, com os braços estendidos em cruz.
Então Gamaliel adiantou-se para o sabio Topsius; e, mais direito que uma columna do Templo, com os cotovêlos collados á cinta, as mãos magras espalmadas para fóra:
— Nós temos uma Lei, a nossa Lei é clara. Ella é a palavra do Senhor; e o Senhor disse: «Eu sou Jehovah, o eterno, o primeiro e o ultimo, o que não transmitte a outros nem o seu nome, nem a sua gloria: antes de mim não houve Deus algum, não existe Deus algum ao meu lado, não haverá Deus algum depois de mim...» Esta é a voz do Senhor. E o Senhor disse ainda: «Se pois entre vós apparecer um propheta, um visionario que faça milagres e queira introdizir outro Deus e chame os simples ao culto d’esse Deus, — esse propheta e visionario morrerá!» Esta é a Lei, esta é a voz do Senhor. Ora o Rabbi de Nazareth proclamou-se Deus em Galilêa, nas synagogas, nas ruas de Jerusalem, nos pateos santos do Templo... O Rabbi deve morrer.
Mas o formoso Manassés, cujo languido olhar entenebrecia como um céo onde vai trovejar, interpoz-se entre o Doutor da Lei e o historiador dos Herodes. E nobremente repelliu a letra cruel da Doutrina:
— Não, não! Que importa que a lampada d’um sepulchro diga que é o sol? Que importa que um homem abra os braços e grite que é um Deus? As nossas leis são suaves: por tão pouco não se vai buscar o carrasco ao seu covil a Gareb...
Eu, caridosso, ia louvar Manassés. Mas já elle bradava com violencia e fervor:
— Todavia esse Rabbi de Galilêa deve decerto morrer, porque é um mau cidadão e um mau judeu! Não o ouvimos nós aconselhar que se pague o tributo a Cesar? O Rabbi estende a mão a Roma, o romano não é o seu inimigo. Ha tres annos que préga, e ninguem jámais lhe ouviu proclamar a necessidade santa de expulsar o Estrangeiro. Nós esperamos um Messias que traga uma espada e liberte Israel, e este, nescio e verboso, declara que traz só o pão da verdade! Quando ha um pretor romano em Jerusalem, quando são lanças romanas que velam ás portas do nosso Deus, a que vem esse visionario fallar do pão do céo e do vinho da verdade? A unica verdade util é que não deve haver romanos em Jerusalem!...
Osanias, inquieto, olhou a janella cheia de luz, por onde as ameaças de Manassés se evolavam, vibrantes e livres. Gamaliel sorria friamente. E o discipulo ardente de Judas de Gamala clamava, arrebatado na sua paixão:
— Oh! Em verdade vos digo, embalar as almas na esperança do reino do céo é fazerlhes esquecer o dever forte para com o reino da terra, para esta terra d’Israel que está em ferros, e chora e não quer ser consolada! O Rabbi é traidor á patria! O Rabbi deve morrer!
Tremulo, agarrára a espada: e o seu olhar alargava-se, com uma fulguração de revolta, como chamando avidamente os combates e a gloria dos supplicios.
Então Osanias ergueu-se apoiado a um bastão que rematava n’uma pinha d’ouro. Um penoso cuidado parecia agora anuvear a sua velhice leviana. E começou a dizer, de manso e tristemente, como quem através do Enthusiasmo e da Doutrina aponta o mandado inilludivel da Necessidade:
— Decerto, decerto, pouco importa que um visionario se diga Messias e filho de Deus, ameace destruir a Lei e destruir o Templo. O Templo e a Lei podem bem sorrir e perdoar, certos da sua eternidade... Mas, oh Manassés, as nossas leis são suaves; e não creio que se deva ir acordar o carrasco a Gareb, porque um Rabbi de Galilêa, que se lembra dos filhos de Judas de Gamala pregados na cruz, aconselha prudencia e malicia nas relações com o romano! Ó Manassés, robustas são as tuas mãos: mas pódes tu com ellas desviar a corrente do Jordão da terra de Canaan para a terra da Trakaunitida? Não. Nem pódes tambem impedir que as legiões de Cesar, que cobriram as cidades da Grecia, venham cobrir o paiz de Judá! Sabio e forte era Judas Macchabeo, e fez amizade com Roma... Porque Roma é sobre a terra como um grande vento da natureza; quando elle vem, o insensato offerece-lhe o peito e é derrubado; mas o homem prudente recolhe á sua morada e está quieto. Indomavel era a Galacia; Filippe e Perseu tinham exercitos na planicie; Antiochus o Grande commandava cento e vinte elephantes e carros de guerra innumeraveis... Roma passou; d’elles que resta? Escravos, pagando tributos...
Curvára-se, pesadamente, como um boi sob o jugo. Depois, fixando sobre nós os olhos miudos que dardejavam um brilho inexoravel e frio, proseguiu, sempre de manso e subtil:
— Mas em verdade vos digo, que esse Rabbi de Galilêa deve morrer! Porque é o dever do homem que tem bens na terra e searas apagar depressa com a sandalia, sobre as lages da eira, a fagulha que ameaça inflammar-lhe a mêda... Com o romano em Jerusalem, todo aquelle que venha e se proclame Messias, como o de Galilêa, é nocivo e perigoso para Israel. O romano não comprehende o Reino do céo que elle promette: mas vê que essas prédicas, essas exaltações divinas agitam sombriamente o povo dentro dos porticos do Templo... E então diz: «na verdade este Templo, com o seu ouro, as suas multidões, e tanto zelo, é um perigo para a auctoridade de Cesar na Judêa...» E logo, lentamente, annulla a força do Templo diminuindo a riqueza, os privilegios do seu sacerdocio. Já para nossa humilhação, as vestes pontificaes são guardadas no erario da Torre Antonia: ámanhã será o Candelabro d’ouro! Já o Pretor usou, para nos empobrecer, o dinheiro do Corban! Ámanhã os dizimos da colheita, o dos gados, o dinheiro da offrenda, o óbolo das trombetas, os tributos rituaes, todos os haveres do sacerdocio, até as viandas dos sacrificios, nada será nosso, tudo será do romano! E só nos ficará o bordão para irmos mendigar nas estradas de Samaria, á espera dos mercadores ricos da Decapola... Em verdade vos digo, se quizermos conservar as honras e os thesouros, que são nossos pela antiga Lei, e que fazem o esplendor d’Israel, devemos mostrar ao romano, que nos vigia, um Templo quieto, policiado, submisso, contente, sem fervores e sem Messias!... O Rabbi deve morrer!
Assim diante de mim fallou Osanias, filho de Beothos, e membro do Sanhedrin.
Então o magro historiador dos Herodes, cruzando com reverencia as mãos sobre o peito, saudou tres vezes aquelles homens facundos. Gad, immovel, orava. No azul da janella uma abelha côr d’ouro zumbia em torno da flôr de madresilva. E Topsius dizia com pompa:
— Homens que me haveis acolhido, a verdade abunda nos vossos espiritos como a uva abunda nas videiras! Vós sois tres torres que guardaes Israel entre as nações: uma defende a unidade da Religião, outra mantem o enthusiasmo da Patria: e a terceira, que és tu, venerando filho de Beothos, cauto e ondeante como a serpente que amava Salomão, protege uma cousa mais preciosa que é a Ordem!... Vós sois tres torres: e contra cada uma o Rabbi de Galilêa ergue o braço e lança a primeira pedrada! Mas vós guardaes Israel e o seu Deus e os seus bens, e não vos deveis deixar derrocar!... Em verdade, agora o reconheço, Jesus e o Judaismo nunca poderiam viver juntos.
E Gamaliel, com o gesto de quem quebra uma vara fragil, disse, mostrando os dentes brancos:
— Por isso o crucificamos!
Foi como uma faca acerada que, lampejando e silvando, se viesse cravar no meu peito! Arrebatei, suffocado, a manga do douto historiador:
— Topsius! Thopsius! quem é esse Rabbi que prégava em Galilêa, e faz milagres e vai ser crucificado?
O sabio doutor arregalou os olhos com tanto pasmo, como se eu lhe perguntasse qual era o astro que d’além dos montes traz a luz da manhã. Depois, seccamente:
— Rabbi Jeschoua bar Joseph, que veio de Nazareth em Galilêa, a quem alguns chamam Jesus e outros tambem chamam o Christo.
— O nosso! gritei, vacillando, como um homem atordoado.
E os meus joelhos catholicos quasi bateram as lages, n’um impulso de ficar alli cahido, enrodilhado no meu pavor, rezando desesperadamente e para sempre. Mas logo como uma labareda chammejou por todo o meu sêr o desejo de correr ao seu encontro e pôr os meus olhos mortaes no corpo do meu Senhor, no seu corpo humano e real, vestido do linho de que os homens se vestem, coberto com o pó que levantam os caminhos humanos!... E ao mesmo tempo, mais do que treme a folha n’um aspero vento, tremia a minha alma n’um terror sombrio: — o terror do servo negligente diante do amo justo! Estava eu bastante purificado com jejuns e terços para affrontar a face fulgurante do meu Deus? Não! Oh mesquinha e amarga deficiencia da minha devoção! Eu não beijára jámais, com sufficiente amor, o seu pé dorido e rôxo na sua igreja da Graça! Ai de mim! Quantos domingos, n’esses tempos carnaes em que a Adelia, sol da minha vida, me esperava na travessa dos Caldas, fumando e em camisa — não maldissera eu a lentidão das Missas e a monotonia dos Septenarios! E sendo assim do craneo á sola dos pés uma crosta de peccado, como poderia meu corpo não tombar, já reprobo, já tisnado, quando os dois globos dos olhos do Senhor, como duas metades do céo, se voltassem vagarosamente para mim?
Mas vêr Jesus! Vêr como eram os seus cabellos, que pregas fazia a sua tunica, e o que acontecia na terra quando os seus labios se abriam!... Para além d’esses eirados onde as mulheres atiravam grão ás pombas; n’uma d’essas ruas d’onde me chegava claro e cantado o pregão dos vendedores de pães azymos — ia passando talvez n’esse temeroso instante, entre barbudos, graves soldados romanos, Jesus, meu Salvador, com uma corda amarrada nas mãos. A lenta aragem que balançava na janella o ramo de madresilva, e lhe avivava o aroma, acabava talvez de roçar a fronte do meu Deus, já ensanguentada d’espinhos! Era só empurrar aquella porta de cedro, atravessar o pateo onde gemia a mó do moinho domestico, — e logo, na rua, eu poderia vêr presente e corporeo o meu Senhor Jesus tão realmente e tão bem como o viram S. João e S. Matheus. Seguiria a sua sacra sombra no muro branco — onde cahiria tambem a minha sombra. Na mesma poeira que as minhas solas pisassem — beijaria a pégada ainda quente dos seus pés! E abafando com ambas as mãos o barulho do meu coração, — eu poderia surprehender, sahido da sua bocca ineffavel, um ai, um soluço, um queixume, uma promessa! Eu saberia então uma palavra nova do Christo, não escripta no Evangelho; — e só eu teria o direito pontifical de a repetir ás multidões prostradas. A minha auctoridade surgia, na Igreja, como a d’um Testamento novissimo. Eu era uma testemunha inedita da Paixão. Tornava-me S. Theodorico Evangelista!
Então, com uma desesperada anciedade que espantou aquelles Orientaes de maneiras mesuradas, eu gritei:
— Onde o posso vêr? Onde está Jesus de Nazareth, meu Senhor?
N’esse momento um escravo, correndo na ponta leve das sandalias, veio cahir de bruços nas lages, diante de Gamaliel; beijava-lhe as franjas da tunica, as suas costellas magras arquejavam; por fim murmurou, exhausto:
— Amo, o Rabbi está no Pretorio!
Gad emergiu da sua oração com um salto de fera, apertou em tôrno dos rins a corda de nós, e correu arrebatadamente, com o capuz solto, espalhando em redor o sulco louro dos seus cabellos revoltos. Topsius traçára a sua capa branca, com essas pregas de toga latina que lhe davam a solemnidade d’um marmore; e tendo comparado a hospitalidade de Gamaliel á d’Abrahão, bradou-me triumphantemente:
— Ao Pretorio!
Muito tempo segui Topsius através da antiga Jerusalem, n’uma caminhada offegante, todo perdido no tumulto dos meus pensamentos. Passámos junto a um jardim de rosas, do tempo dos Prophetas, esplendido e silencioso, que dois levitas guardavam com lanças douradas. Depois foi uma rua fresca, toda aromatisada pelas lojas dos perfumistas, ornadas de taboletas em fórma de flôres e d’almofarizes: um toldo de esteiras finas assombreava as portas, o chão estava regado e juncado d’herva dôce e de folhas d’anemonas: e pela sombra preguiçavam moços languidos, de cabellos frisados em cachos, de olheiras pintadas, mal podendo erguer, nas mãos pesadas d’anneis, as sêdas roçagantes das tunicas côr de cereja e côr d’ouro. Além d’essa rua indolente abria-se uma praça, que escaldava ao sol, com uma poeira grossa e branca, onde os pés se enterravam: solitaria, no meio, uma vetusta palmeira arqueava o seu penacho, immovel e como de bronze: e ao fundo, negrejavam na luz as columnatas de granito do velho palacio de Herodes. Ahi era o Pretorio.
Defronte do arco d’entrada, onde rondavam, com plumas pretas no elmo reluzente, dois legionarios da Syria — um bando de raparigas, tendo detraz da orelha uma rosa e no regaço coifas d’esparto, apregoavam os pães azymos. Sob um enorme guardasol de pennas, cravado no chão, homens de mitra de feltro, com taboas sobre os joelhos e balanças trocavam a moeda romana. E os vendedores d’agua, com os seus ôdres felpudos, lançavam um grito tremulo. Entrámos: e logo um terror me envolveu.
Era um claro pateo, aberto sob o azul, ladeado de marmore, tendo de cada lado uma arcada, elevada em terraço, com parapeito, fresca e sonora como um claustro de mosteiro. Da arcaria ao fundo, encimada pela frontaria austera do Palacio, estendia-se um velario, d’um estofo escarlate franjado d’ouro, fazendo uma sombra quadrada e dura: dois mastros de pau de sycomoro sustentavam-n’o, rematados por uma flôr de lotus.
Ahi apertava-se um magote de gente — onde se confundiam as tunicas dos Phariseus orladas d’azul, o rude saião d’estamenha dos obreiros apertado com um cinto de couro, os vastos albornozes listrados de cinzento e branco dos homens de Galilêa, e a capa carmezim de grande capuz dos mercadores de Tiberiade; algumas mulheres já fóra do abrigo do velario, alçavam-se na ponta das chinelas amarellas, estendendo por cima do rosto contra o sol, uma dobra do manto ligeiro: e d’aquella multidão sahia um cheiro morno de suor e de myrrha. Para além, por cima dos turbantes alvos apinhados, brilhavam pontas de lança. E ao fundo, sobre um sólio, um homem, um magistrado, envolto nas pregas nobres d’uma toga pretexta, e mais immovel que um marmore, apoiava sobre o punho forte a barba densa e grisalha: os seus olhos encovados pareciam indolentemente adormecidos: uma fita escarlate prendia-lhe os cabellos: e por traz, sobre um pedestal que fazia espaldar á sua cadeira curul, a figura de bronze da Loba Romana abria de travez a guela voraz. Perguntei a Topsius quem era aquelle magistrado melancolico.
— Um certo Poncius, chamado Pilatus, que foi Prefeito em Batavia.
Lentamente caminhei pelo pateo, procurando, como n’um templo, fazer mais subtil e respeitoso o ruido das minhas solas. Um grave silencio cahia do céo rutilante: só, por vezes, rompia do lado dos jardins, aspero e triste, o gritar dos pavões. Estendidos no chão, junto á balaustrada do claustro, negros dormitavam com a barriga ao sol. Uma velha contava moedas de cobre, acocorada diante do seu gigo de fruta. Em andaimes, postos contra uma columna, havia trabalhadores compondo o telhado. E crianças, a um canto, jogavam com discos de ferro que tiniam de leve nas lages.
Subitamente, alguem familiar tocou no hombro do historiador dos Herodes. Era o formoso Manassés; e com elle vinha um velho magnifico, d’uma nobreza de Pontifice, a quem Topsius beijou filialmente a manga da simarra branca, bordada de verdes folhas de parra. Uma barba de neve, lustrosa d’oleo, cahia-lhe até á faxa que o cingia; e os hombros largos desappareciam sob a esparsa abundancia dos cabellos alvos, sahindo do turbante como uma pura romeira de arminhos reaes. Uma das mãos, cheia de anneis, apoiava-se a um forte bastão de marfim; e a outra conduzia uma criança pallida, que tinha os olhos mais bellos que estrellas, e semelhava junto ao ancião um lirio á sombra d’um cedro.
— Subi á galeria, disse-nos Manassés. Tereis lá repouso e frescura...
Seguimos o Patriota; e eu perguntei cautelosamente a Topsius quem era o outro tão velho, tão augusto.
— Rabbi Robam, murmurou com veneração o meu douto amigo. Uma luz do Sanhedrin, facundo e subtil entre todos, e confidente de Kaipha...
Reverente, saudei tres vezes Rabbi Robam — que se sentára n’um banco de marmore, pensativo, aconchegando sobre o seu vasto peito ancestral a cabeça da criança mais loura que os milhos de Joppé. Depois continuámos devagar pela galeria sonora e clara: na sua extremidade brilhava uma porta sumptuosa de cedro com chapas de prata lavradas: um Pretoriano de Cesarêa guardava-a, somnolento, encostado ao seu alto escudo de vime. Ahi, commovido, caminhei para o parapeito: e logo meus olhos mortaes encontraram lá em baixo — a fórma encarnada do meu Deus!
Mas, oh rara surpreza da alma variavel, não senti extasis nem terror! Era como se de repente me tivessem fugido da memoria longos, laboriosos seculos de Historia e de Religião. Nem pensei que aquelle homem sêcco e moreno fosse o Remidor da Humanidade... Achei-me inexplicavelmente anterior nos tempos. Eu já não era Theodorico Raposo, christão e bacharel: a minha individualidade como que a perdera, á maneira d’um manto que escorrega, n’essa carreira anciosa desde a casa de Gamaliel. Toda a antiguidade das coisas ambientes me penetrára, me refizera um sêr; eu era tambem um antigo. Era Theodoricus, um Lusitano, que viera n’uma galera das praias resoantes do Promontorio Magno, e viajava, sendo Tiberio imperador, em terras tributarias de Roma. E aquelle homem não era Jesus, nem Christo, nem Messias, — mas apenas um moço de Galilêa que, cheio d’um grande sonho, desce da sua verde aldeia para transfigurar todo um mundo e renovar todo um céo, e encontra a uma esquina um Nethenim do Templo que o amarra e o traz ao Pretor, n’uma manhã d’audiencia, entre um ladrão que roubára na estrada de Sichem e outro que atirára facadas n’uma rixa em Emath!
N’um espaço ladrilhado de mosaico, em face do sólio onde se erguia o assento curul do Pretor sob a Loba Romana — Jesus estava de pé, com as mãos cruzadas e frouxamente ligadas por uma corda que rojava no chão. Um largo albornoz de lã grossa, em riscas pardas, orlado de franjas azues, cobria-o até aos pés, calçados de sandalias já gastas pelos caminhos do deserto e atadas com correias. Não lhe ensanguentava a cabeça essa corôa inhumana de espinhos, de que eu lêra nos Evangelhos; tinha um turbante branco, feito d’uma longa faxa de linho enrolada, cujas pontas lhe pendiam de cada lado sobre os hombros; um cordel amarrava-lh’o por baixo da barba encaracolada e aguda. Os cabellos sêccos, passados por traz das orelhas, cahiam-lhe em anneis pelas costas; e no rosto magro, requeimado, sob sobrancelhas densas, unidas n’um só traço, negrejava com uma profundidade infinita o resplendor dos seus olhos. Não se movia, forte e sereno diante do Pretor. Só algum estremecimento das mãos presas trahia o tumulto do seu coração; e ás vezes respirava longamente, como se o seu peito, acostumado aos livres e claros ares dos montes e dos lagos de Galilêa, suffocasse entre aquelles marmores, sob o pesado velario romano, na estreiteza formalista da Lei.
A um lado, Sarêas, o vogal do Sanhedrin, tendo deposto no chão o seu manto e o seu baculo dourado, ia desenrolando e lendo uma tira escura de pergaminho, n’um murmurio cantado e dormente. Sentado n’um escabello, o Assessor romano, suffocado pelo calor já aspero do mez de Nizam, refrescava com um leque de folhas d’heras sêccas a face rapada e branca como um gesso: um escriba, velho e nedio, n’uma mesa de pedra cheia de tabularios e de regras de chumbo, aguçava miudamente os seus calamos: e entre ambos o interprete, um phenicio imberbe, sorria com a face no ar, com as mãos na cinta, arqueando o peito onde trazia pintado sobre a jaqueta de linho um papagaio vermelho. Em torno ao velario, constantemente voavam pombas. E foi assim que eu vi Jesus de Galilêa preso, diante do Pretor de Roma...
No emtanto Sarêas, tendo enrolado em torno á haste de ferro o pergaminho escuro, saudou Pilatos, beijou um sinete sobre o dedo para marcar nos seus labios o sêllo da verdade, — e immediatamente encetou uma arenga em grego, com textos, verbosa e aduladora. Fallava do Tetrarca de Galilêa, o nobre Antipas; louvava a sua prudencia; celebrava seu pai Herodes o Grande, restaurador do Templo... A gloria d’Herodes enchia a terra; fôra terrivel, sempre fiel aos Cesares; seu filho Antipas era engenhoso e forte!... Mas reconhecendo a sua sabedoria elle estranhava que o Tetrarca se recusasse a confirmar a sentença do Sanhedrin que condemnava Jesus á morte... Não fôra essa sentença fundada nas Leis que dera o Senhor? O justo Hanan interrogára o Rabbi, que emmudecera, n’um silencio ultrajante. Era essa a maneira de responder ao sabio, ao puro, ao piedoso Hanan? Por isso um zeloso, sem se conter, atirára a mão violenta á face do Rabbi... Onde estava o respeito dos antigos tempos, e a veneração do Pontificado?
A sua voz cava e larga rolava, infindavelmente. Eu, cansado, bocejava. Por baixo de nós dois homens encruzados nas lages comiam tamaras de Bethabara que traziam no saião, bebendo d’uma cabaça. Pilatos, com o punho sob a barba, olhava somnolentamente os seus borzeguins escarlates picados de estrellas d’ouro.
E Sarêas agora proclamava os direitos do Templo. Elle era o orgulho da nação, a morada eleita do Senhor! Cesar Augusto offertára-lhe escudos e vasos de ouro... E esse Templo, como o respeitára o Rabbi? Ameaçando destruil-o! «Eu derrocarei o templo de Jehovah e edifical-o-hei em tres dias!» Testemunhas puras ouvindo esta rude impiedade tinham coberto a cabeça de cinza para afastar a cólera do Senhor... Ora a blasphemia atirada ao santuario resaltava até ao seio de Deus!...
Sob o velario, os Phariseus, os Escribas, os Nethenins do Templo, escravos sordidos, susurravam como arbustos agrestes que um vento começa a agitar. E Jesus permanecia immovel, abstrahidamente indifferente, com os olhos cerrados, como para isolar melhor o seu sonho contínuo e formoso, longe das coisas duras e vãs que o maculavam. Então o Assessor romano ergueu-se, depôz no escabello o seu leque de folhas, traçou com arte o manto forense, orlado de azul, saudou tres vezes o Pretor, — e a sua mão delicada começou a ondear no ar, fazendo scintillar uma joia.
— Que diz elle?...
— Coisas infinitamente habeis, murmurou Topsius. É um pedante, mas tem razão. Diz que o Pretor não é um judeu; que nada sabe de Jehovah, nem lhe importam os prophetas que se erguem contra Jehovah; e que a espada de Cesar não vinga deuses que não protegem Cesar!... O romano é engenhoso!
Offegando, o Assessor recahiu languidamente no escabello. E logo Sarêas volveu a arengar, sacudindo os braços para a multidão dos Phariseus, como a evocar os seus protestos, e refugiando-se na sua força. Agora, mais retumbante, accusava Jesus, não da sua revolta contra Jehovah e o Templo, mas das suas pretenções como principe da casa de David! Toda a gente em Jerusalem o tinha visto, havia quatro dias, entrar pela Porta d’Ouro, n’um falso triumpho, entre palmas verdes, cercado d’uma multidão de galileus, que gritavam — «Hossana ao filho de David, Hossana ao rei d’Israel!...»
— Elle é o filho de David, que vem para nos tornar melhores! gritou ao longe a voz de Gad, cheia de persuasão e d’amor.
Mas de repente Sarêas collou ao corpo as mangas franjadas, mudo e mais teso que um conto de lança: o escriba romano, de pé, com os punhos fincados na mesa, vergava o cachaço reverente e nedio: o Assessor sorria, attento. Era o Pretor que ia interrogar o Rabbi: e eu, tremendo, vi um Legionario empurrar Jesus que ergueu a face...
Debruçado de leve para o Rabbi, com as mãos abertas que pareciam soltar, deixar cahir todo o interesse por esse pleito ritual de sectarios arguciosos, Poncius murmurou, enfastiado e incerto:
— És tu então o rei dos judeus?... Os da tua nação trazem-te aqui!... Que fizeste tu?... Onde é o teu reino?
O interprete, enfatuado, perfilado junto ao sólio de marmore, repetiu muito alto estas coisas na antiga lingua hebraica dos Livros Santos: e, como o Rabbi permanecia silencioso, gritou-as na falla chaldaica que se usa em Galilêa.
Então Jesus deu um passo. Eu ouvi a sua voz. Era clara, segura, dominadora e serena:
— O meu reino não é d’aqui! Se por vontade de meu Pai eu fosse rei de Israel, não estaria diante de ti com esta corda nas mãos... Mas o meu reino não é d’este mundo!
Um grito estrugiu, desesperado:
— Tirai-o então d’este mundo!
E logo, como lenha preparada que uma faisca inflamma, o furor dos Phariseus e dos serventes do Templo irrompeu, crepitando, em clamores impacientes:
— Crucificai-o! crucificai-o!
Pomposamente o interprete redizia em grego ao Pretor os brados tumultuosos, lançados na lingua syriaca que falla o povo em Judêa... Poncius bateu o borzeguim sobre o marmore. Os dois lictores ergueram ao ar as varas rematadas n’uma figura d’aguia: o escriba gritou o nome de Caio Tiberio: e logo os braços frementes se abaixaram, e foi como um terror diante da magestade do Povo Romano.
De novo Poncius fallou, lento e vago:
— Dizes então que és rei... E que vens tu fazer aqui?
Jesus deu outro passo para o Pretor. A sua sandalia pousou fortemente sobre as lages como se tomasse posse suprema da terra. E o que sahiu dos seus labios tremulos pareceu-me fulgurar, vivo no ar, como o resplendor que dos seus olhos negros sahiu.
— Eu vim a este mundo testemunhar a verdade! Quem desejar a verdade, quem quizer pertencer á verdade tem de escutar a minha voz!
Pilatos considerou-o um momento, pensativo; depois encolhendo os hombros:
— Mas, homem, o que é a verdade?
Jesus de Nazareth emmudeceu — e no Pretorio espalhou-se um silencio como se todos os corações tivessem parado, cheios subitamente de incerteza...
Então, apanhando devagar a sua vasta toga, Pilatos desceu os quatro degraus de bronze; — e precedido dos lictores, seguido do Assessor, penetrou no Palacio, por entre, o rumor d’armas dos legionarios que o saudavam batendo o ferro das lanças sobre o bronze dos escudos.
Immediatamente elevou-se por todo o pateo um aspero e ardente susurro como de abelhas irritadas. Sarêas perorava, brandindo o baculo, entre os Phariseus que apertavam as mãos n’um terror. Outros, afastados, cochichavam sombriamente. Um grande velho, com um manto negro que esvoaçava, corria n’uma ancia o Pretorio, por entre os que dormiam, ao sol, por entre os vendedores de pães azymos, gritando: «Israel está perdido!» E eu vi Levitas fanaticos arrancarem as borlas das tunicas, como n’uma calamidade publica.
Gad surgiu diante de nós, erguendo os braços triumphantes:
— O Pretor é justo e liberta o Rabbi!...
E, com a face cheia de brilho, revelava-nos a doçura da sua esperança! O Rabbi, apenas solto, deixaria Jerusalem — onde as pedras eram menos duras que os corações. Os seus amigos armados esperavam-no em Bethania: e partiriam ao romper da lua para o oasis d’Engaddi! Lá estavam aquelles que o amavam. Não era Jesus o irmão dos Essenios? Como elles o Rabbi prégava o desprezo dos bens terrestres, a ternura pelos que são pobres, a incomparavel belleza do reino de Deus...
Eu, credulo, regosijava-me — quando um tumulto invadiu a galeria que um escravo viera regar. Era o bando escuro dos Phariseus, em marcha para o banco de pedra, onde Rabbi Robam conversava com Manassés, enrolando dôcemente nos dedos os cabellos da criança, mais louros que os minhos. Topsius e eu corremos para a turba intolerante. Já Sarêas, no meio, curvado, mas com a firmeza de quem intíma, dizia:
— Rabbi Robam, é necessário que vás fallar ao Pretor e salvar a nossa lei!
E logo, de todos os lados, foi um supplicar ancioso:
— Rabbi, falla ao Pretor! Rabbi, salva Israel!
Lentamente o velho erguia-se, magestoso como um grande Moysés. E diante d’elle um Levita, muito pallido, vergava os joelhos, murmurava a tremer:
— Rabbi, tu és justo, sabio, perfeito e forte diante do Senhor!
Rabbi Robam levantou as duas mãos abertas para o céo: e todos se curvaram como se o espirito de Jehovah, obedecendo á muda invocação, tivesse descido para encher aquelle coração justo. Depois, com a mão da criança na sua, poz-se a caminhar em silencio; atraz a turba fazia um rumor de sandalias lassas sobre as lages de marmore.
Parámos, amontoados, diante da porta de cedro — onde o pretoriano cruzára a lança, depois de bater as argolas de prata. Os pesados gonzos rangeram; um tribuno do Palacio acudiu tendo na mão um longo galho de vide. Dentro era uma fria sala, mal alumiada, severa, com os muros forrados de estuques escuros. Ao centro erguia-se pallidamente uma estatua de Augusto, com o pedestal juncado de corôas de louro e de ramos votivos: dois grandes tocheiros de bronze dourado reluziam aos cantos, na sombra.
Nenhum dos judeus entrou — porque pisar em dia paschal um sólo pagão era coisa impura diante do Senhor. Sarêas annunciou altivamente ao Tribuno que «alguns da nação d’Israel, á porta do Palacio de seus paes, estavam esperando o Pretor.» Depois pesou um silencio, cheio d’anciedade...
Mas dois lictores avançaram: e logo atraz, caminhando a passos largos, com a vasta toga apanhada contra o peito, Pilatos appareceu.
Todos os turbantes se curvaram, saudando o Procurador da Judêa. Elle parára junto á estatua de Augusto. E, como repetindo o gesto nobre da figura de marmore, estendeu a mão que segurava um pergaminho enrolado, e disse:
— Que a paz seja comvosco e com as vossas palavras... Fallai!
Sarêas, vogal do Sanhedrin, adiantando-se, declarou que os seus corações vinham em verdade cheios de paz... Mas, tendo o Pretor deixado o Pretorio sem confirmar nem annullar a sentença do Sanhedrin que condemnava Jesus-ben-José — elles se achavam como o homem que vê a uva na vinha, suspensa, sem seccar e sem amadurecer!
Poncius pareceu-me penetrado d’equidade e clemencia.
— Eu interroguei o vosso preso, disse elle; e não lhe achei culpa que deva punir o Procurador da Judêa... Antipas Herodes, que é prudente e forte, que pratíca a vossa Lei e ora no vosso Templo, interrogou-o tambem e nenhuma culpa n’elle encontrou... Esse homem diz apenas coisas incoherentes como os que fallam em sonhos... Mas as suas mãos estão puras de sangue; nem ouvi que elle escalasse o muro do seu visinho... Cesar não é um amo inexoravel... Esse homem é apenas um visionario.
Então, com um sombrio murmurio, todos recuaram, deixando Rabbi Robam só no limiar da sala romana. Um brilho de joia tremia na ponta da sua tiára: as suas cans cahindo sobre os vastos hombros coroavam-no de magestade como a neve faz aos montes: as franjas azues do seu manto solto rojavam nas lages, em redor. Devagar, sereno, como se explicasse a Lei aos seus discipulos, ergueu a mão e disse:
— Official de Cesar, Poncius, muito justo e muito sabio! O homem que tu chamas visionario, ha annos que offende todas as nossas leis e blasphema o nosso Deus. Mas quando o prendemos nós, quando t’o trouxemos nós? Sómente quando o vimos entrar em triumpho pela Porta d’Ouro, acclamado como rei da Judêa. Porque a Judêa não tem outro rei senão Tiberio: e apenas um sedicioso se proclama em revolta contra Cesar, apressamo-nos a castigal-o. Assim fazemos nós, que não temos mandado de Cesar, nem cobramos do seu erario: e tu, official de Cesar, não queres que seja castigado o rebelde a teu amo?...
A face larga de Poncius, que uma somnolencia amollecia, relampeou, raiada vivamente de sangue. Aquella tortuosidade de judeus que, execrando Roma, apregoavam agora um zêlo ruidoso por Cesar para poderem, em nome da sua auctoridade, saciar um odio sacerdotal — revoltou a rectidão do Romano: e a audaciosa admoestação foi intoleravel ao seu orgulho. Desabridamente exclamou, com um gesto que os sacudia:
— Cessai! Os procuradores de Cesar não vêm aprender a uma colonia barbara da Asia os seus deveres para com Cesar!
Manassés que ao meu lado, já impaciente, puxava a barba, afastou-se com indignação. Eu tremi. Mas o soberbo Rabbi proseguiu, mais indifferente á ira de Poncius do que ao balar d’um anho que arrastasse ás aras:
— Que faria o procurador de Cesar em Alexandria se um visionario descesse de Bubastes proclamando-se rei do Egypto? O que tu não queres fazer n’esta terra barbara da Asia! Teu amo dá-te a guardar uma vinha, e tu deixas que entrem n’ella e que a vindimem? Para que estás então na Judêa, para que está a sexta legião na torre Antonia? Mas o nosso espirito é claro, e a nossa voz é clara e alta bastante, Poncius, para que Cesar a ouça!...
Poncius deu um passo lento para a porta. E com os olhos faiscantes, cravados n’aquelles judeus que astutamente o iam enlaçando na trama subtil dos seus rancores religiosos:
— Eu não receio as vossas intrigas! murmurou surdamente. Elius Lamma é meu amigo!... E Cesar conhece-me bem!
— Tu vês o que não está nos nossos corações! disse Rabbi Robam, calmo como se conversasse á sombra do seu vergel. Mas nós vemos bem o que está no teu, Poncius! Que te importa a ti a vida ou a morte de um vagabundo de Galilêa?... Se tu não queres, como dizes, vingar deuses cuja divindade não respeitas, como pódes querer salvar um propheta cujas prophecias não crês?... A tua malicia é outra, romano! Tu queres a destruição de Judá!
Um estremecimento de cólera, de paixão devota, passou entre os Phariseus: alguns palpavam o seio da tunica como procurando uma arma. E Rabbi Robam continuava, denunciando o Pretor, com serenidade e lentidão:
— Tu queres deixar impune o homem que prégou a insurreição, declarando-se rei n’uma provincia de Cesar, para tentar, pela impunidade, outras ambições mais fortes e levar outro Judas de Gamala a atacar as guarnições de Samaria! Assim preparas um pretexto para abater sobre nós a espada imperial, e inteiramente apagar a vida nacional da Judêa. Tu queres uma revolta para a afogares em sangue, e apresentar-te depois a Cesar como soldado victorioso, administrador sabio, digno d’um proconsulado ou d’um governo na Italia! É a isso que chamaes a fé romana? Eu não estive em Roma, mas sei que a isso se chama lá a fé punica... Não nos supponhas porém tão simples como um pastor d’Idumêa! Nós estamos em paz com Cesar, e cumprimos o nosso dever condemnando o homem que se revoltou contra Cesar... Tu não queres cumprir o teu, confirmando essa condemnação? Bem! Mandaremos emissarios a Roma, levando a nossa sentença e a tua recusa, e tendo salvaguardado perante Cesar a nossa responsabilidade, mostraremos a Cesar como procede na Judêa aquelle que representa a lei do Imperio!... E agora, Pretor, pódes voltar ao Pretorio.
— E lembra-te dos Escudos Votivos, gritou Sarêas. Talvez novamente vejas a quem Cesar dá razão!
Poncius baixára a face, perturbado. Decerto imaginava já vêr além, n’um claro terraço junto ao mar de Capreia, Sejanus, Cesonius, todos os seus inimigos, fallando ao ouvido de Tiberio e mostrando-lhe os emissarios do Templo... Cesar, desconfiado e sempre inquieto, suspeitaria logo um pacto d’elle com esse «rei dos Judeus» para sublevarem uma rica provincia imperial... E assim a sua justiça e o orgulho em a manter podiam custar-lhe o proconsulado da Judêa! Orgulho e justiça foram então na sua alma frouxa como ondas um momento altas que uma sobre outra se abatem, se desfazem. Veio até ao limiar da porta, devagar, abrindo os braços, como trazido por um impulso magnanimo de conciliação — e começou a dizer, mais branco que a sua toga:
— Ha sete annos que governo a Judêa. Encontrastes-me jámais injusto, ou infiel ás promessas juradas?... Decerto as vossas ameaças não me movem... Cesar conhece-me bem... Mas entre nós, para proveito de Cesar, não deve haver desaccordo. Sempre vos fiz concessões! Mais que nenhum outro Procurador desde Coponius tenho respeitado as vossas leis... Quando vieram os dois homens de Samaria polluir o vosso Templo, não os fiz eu suppliciar? Entre nós não deve haver dissenções, nem palavras amargas...
Um momento hesitou; depois, esfregando lentamente as mãos, e sacudindo-as, como molhadas n’uma agua impura:
— Quereis a vida d’esse visionario? Que me importa? Tomai-a... Não vos basta a flagellação? Quereis a cruz? Crucificai-o... Mas não sou eu que derramo esse sangue!
O levita macilento bradou com paixão:
— Somos nós, e que esse sangue cáia sobre as nossas cabeças!
E alguns estremeceram — crentes de que todas as palavras têm um poder sobrenatural e tornam vivas as coisas pensadas.
Poncius deixára a sala: o Decurião, saudando, cerrou a porta de cedro. Então Rabbi Robam voltou-se, sereno, resplandecente como um justo: e adiantando-se por entre os Phariseus, que se baixavam a beijar-lhe as franjas da tunica — murmurava com uma grave doçura:
— Antes soffra um só homem do que soffra um povo inteiro!
Limpando as bagas de suor de que a emoção me alagára a testa, cahi, tremulo, sobre um banco. E, através da minha lassidão, confusamente distinguia no Pretorio dois legionarios, de cinturão desapertado, bebendo n’uma grande malga de ferro que um negro ia enchendo com o ôdre suspenso aos hombros; adiante uma mulher bella e forte, sentada ao sol, com os filhos pendurados dos dois peitos nús; mais longe um pegureiro envolto em pelles, rindo e mostrando o braço manchado de sangue. Depois cerrei os olhos; um momento pensei na vela que deixára na tenda, ardendo junto ao meu catre, fumarenta e vermelha; por fim roçou-me um somno ligeiro... Quando despertei a cadeira curul permanecia vazia — com a almofada de purpura em frente, sobre o marmore, gasta, cavada pelos pés do Pretor; e uma multidão mais densa enchia, n’um longo rumor de arraial, o velho atrio de Herodes. Eram homens rudes, com capas curtas d’estamenha, sujas de pó, como se tivessem servido de tapetes sobre as lages d’uma praça. Alguns traziam balanças na mão, gaiolas de rolas; e as mulheres que os seguiam, sordidas e macilentas, atiravam de longe com o braço fremente maldições ao Rabbi. Outros no emtanto, caminhando na ponta das sandalias, apregoavam baixo coisas infimas e ricas, mettidas no seio entre as dobras dos saiões — grãos d’aveia torrada, potes de unguentos, coraes, braceletes de filigrana de Sidon. Interroguei Topsius: e o meu douto amigo, limpando os oculos, explicou-me que eram decerto os mercadores contra quem Jesus, na vespera de Paschoa, erguendo um bastão, reclamára a estreita applicação da Lei que interdiz traficos profanos no Templo, fóra dos porticos de Salomão...
— Outra imprudencia do Rabbi, D. Raposo! murmurou com ironia o fino historiador.
Entretanto, como cahira a sexta hora judaica e findára o trabalho, vinham entrando obreiros das tinturarias visinhas, ennodoados de escarlate ou azul; escribas das synagogas apertando debaixo dos braços os seus tabularios; jardineiros com a fouce a tiracollo, o ramo de murta no turbante; alfaiates com uma longa agulha de ferro pendendo da orelha... Tocadores phenicios a um canto afinavam as harpas, tiravam suspiros das flautas de barro: e diante de nós rondavam duas prostitutas gregas de Tiberiade, com perucas amarellas, mostrando a ponta da lingua e sacudindo a roda da tunica d’onde voava um cheiro de mangerona. Os legionarios, com as lanças atravessadas no peito, apertavam uma cercadura de ferro em torno de Jesus: e eu, agora, mal podia distinguir o Rabbi através d’essa multidão susurrante, em que as consoantes asperas de Moab e do deserto se chocavam por sobre a molleza grave da falla chaldaica...
Por baixo da galeria veio tilintando uma sineta triste. Era um hortelão que offerecia n’um cabaz d’esparto, acamados sobre folhas de parra, figos rachados de Bephtagé. Debilitado pelas emoções, perguntei-lhe, debruçado no parapeito, o preço d’aquelle mimo dos vergeis que os Evangelhos tanto louvam. E o homem, rindo, alargou os braços como se encontrasse o esperado do seu coração:
— Entre mim e ti, ó creatura d’abundancia que vens d’além do mar, que são estes poucos figos? Jehovah manda que os irmãos troquem presentes e bençãos! Estes fructos colhi-os no horto, um a um, á hora em que o dia nasce no Hebron; são succulentos e consoladores; poderiam ser postos na mesa de Hannan!... Mas que valem vãs palavras entre mim e ti se os nossos peitos se entendem? Toma estes figos, os melhores da Syria, e que o Senhor cubra de bens aquella que te creou!
Eu sabia que esta offerta era uma cortezia consagrada, em compras e vendas, desde o tempo dos Patriarchas. Cumpri tambem o ceremonial: declarei que Jehovah, o muito forte, me ordenava que com o dinheiro cunhado pelos Principes eu pagasse os fructos da Terra... Então o hortelão abaixou a cabeça, cedeu ao mandamento divino; e pousando o cesto nas lages, tomando um figo em cada uma das mãos negras e cheias de terra:
— Em verdade, exclamou, Jehovah é o mais forte! Se elle o manda, eu devo pôr um preço a estes fructos da sua bondade, mais dôces que os labios da esposa! Justo é pois, ó homem abundante, que por estes dois que me enchem as palmas, tão perfumados e frescos, tu me dês um bom traphik.
Oh Deus magnifico de Judá! O facundo hebreu reclamava por cada figo um tostão da moeda real da minha patria! Bradei-lhe: — «Irra, ladrão!» Depois, guloso e tentado, offereci-lhe um drachma por todos os figos que coubessem no forro largo d’um turbante. O homem levou as mãos ao seio da tunica, para a despedaçar na immensidade da sua humilhação. E ia invocar Jehovah, Elias, todos os Prophetas seus patronos — quando o sapiente Topsius, enojado, interveio seccamente, mostrando-lhe uma miuda rodella de ferro que tinha por cunho um lirio aberto:
— Na verdade Jehovah é grande! E tu és ruidoso e vazio como o ôdre cheio de vento! Pois pelos figos do cesto inteiro te dou eu este meah. E se não queres, conheço o caminho dos hortos tão bem como o do Templo, e sei onde as aguas dôces de Enrogel banham os melhores pomares... Vai-te!
O homem logo, trepando anciosamente até ao parapeito de marmore, atulhou de figos a ponta do albornoz que eu lhe estendera, carrancudo e digno. Depois, descobrindo os dentes brancos, murmurou risonhamente que nós eramos mais beneficos que o orvalho do Carmello!
Saborosa e rara me parecia aquella merenda de figos de Bephtagé, no palacio de Herodes. Mas apenas nos accommodáramos com a fruta no regaço, reparei em baixo n’um velhito magro, que cravava em nós humildemente uns olhos ennevoados, queixosos, cheios de cansaço. Compadecido ia arremessar-lhe figos e uma moeda de prata dos Ptolomeus — quando elle, mergulhando a mão tremula nos farrapos que mal lhe velavam o peito cabelludo, estendeu-me, com um sorriso macerado, uma pedra que reluzia. Era uma placa oval d’alabastro tendo gravada uma imagem do Templo. E emquanto Topsius doutamente a examinava, o velho foi tirando do seio outras pedras de marmore, d’onyx, de jaspe, com representações do Tabernaculo no deserto, os nomes das tribus entalhados, e figuras confusas em relevo simulando as batalhas dos Machabeus... Depois ficou com os braços cruzados; e no seu pobre rosto escavado pelos cuidados luzia uma anciedade, como se de nós sómente esperasse misericordia e descanso.
Topsius deduziu que elle era um d’esses Guebros, adoradores do fogo e habeis nas artes, que vão descalços até ao Egypto, com fachos accesos, salpicar sobre a Esphinge o sangue d’um gallo negro. Mas o velho negou, horrorisado — e tristemente murmurou a sua historia. Era um pedreiro de Naim, que trabalhára no Templo e nas construcções que Antipas Herodes erguia em Bezetha. O açoite dos intendentes rasgára-lhe a carne; depois a doença levára-lhe a força como a geada sécca a macieira. E agora, sem trabalho, com os filhos de sua filha a alimentar, procurava pedras raras nos montes — e gravava n’ellas nomes santos, sitios santos, para as vender no Templo aos fieis. Em vespera de Paschoa, porém, viera um Rabbi de Galilêa cheio de cólera que lhe arrancára o seu pão!...
— Aquelle! balbuciou suffocado, sacudindo a mão para o lado de Jesus.
Eu protestei. Como lhe poderia ter vindo a injustiça e a dôr d’esse Rabbi, de coração divino, que era o melhor amigo dos pobres?
— Então vendias no Templo? perguntou o terso historiador dos Herodes.
— Sim, suspirou o velho, era lá, pelas festas, que eu ganhava o pão do longo anno! N’esses dias subia ao Templo, offertava a minha prece ao Senhor, e junto á porta de Suza, diante do Portico do Rei, estendia a minha esteira e dispunha as minhas pedras que brilhavam ao sol... Decerto, eu não tinha direito de pôr alli tenda: mas como poderia eu pagar ao Templo o aluguer de um covado de lagedo para vender o trabalho das minhas mãos! Todos os que apregôam á sombra, debaixo do portico, sobre taboleiros de cedro, são mercadores ricos que podem satisfazer a licença: alguns pagam um siclo d’ouro. Eu não podia com crianças em casa sem pão... Por isso ficava a um canto, fóra do portico, no peor sitio. Alli estava bem encolhido, bem calado; nem mesmo me queixava quando homens duros me empurravam ou me davam com os bastões na cabeça. E ao pé de mim havia outros, pobres como eu: Eboim, de Joppé, que offerecia um oleo para fazer crescer os cabellos, e Osêas, de Ramah, que vendia flautas de barro... Os soldados da Torre Antonia que fazem a ronda passavam por nós e desviavam os olhos. Até Menahem, que estava quasi sempre de guarda pela Paschoa, nos dizia: — «está bem, ficai, comtanto que não apregoeis alto.» Porque todos sabiam que eramos pobres, não podiamos pagar o covado de lage, e tinhamos nas nossas moradas crianças com fome... Na Paschoa e nos Tabernaculos vêm da terra distante peregrinos a Jerusalem; e todos me compravam uma imagem do Templo para mostrar na sua aldeia, ou uma das pedras da lua que afugentam o demonio... Ás vezes, ao fim do dia, tinha feito tres drachmas; enchia o saião de lentilha e descia ao meu casebre, alegre, cantando os louvores do Senhor!...
Eu, d’enternecido, esquecera a merenda. E o velho desafogava o seu longo queixume:
— Mas eis que ha dias esse Rabbi de Galilêa apparece no Templo, cheio de palavras de cólera, ergue o bastão e arremessa-se sobre nós, bradando que aquella «era a casa de seu pai, e que nós a polluiamos!...» E dispersou todas as minhas pedras, que nunca mais vi, que eram o meu pão! Quebrou nas lages os vasos d’oleo d’Eboim, de Joppé, que nem gritava, espantado. Acudiram os guardas do Templo. Menahem acudiu tambem; até, indignado, disse ao Rabbi: — «És bem duro com os pobres. Que auctoridade tens tu?» E o Rabbi fallou «de seu pai», e reclamou contra nós a lei severa do Templo. Menahem baixou a cabeça... E nós tivemos de fugir, apupados pelos mercadores ricos, que bem encruzados nos seus tapetes de Babylonia, e com o seu lagedo bem pago, batiam palmas ao Rabbi... Ah! contra esses o Rabbi nada podia dizer: eram ricos, tinham pago!... E agora aqui ando! Minha filha, viuva e doente, não póde trabalhar, embrulhada a um canto nos seus trapos: e os filhos de minha filha, pequeninos, têm fome, olham para mim, vêem-me tão triste e nem choram. E que fiz eu? Sempre fui humilde, cumpro o Sabbat, vou á synagoga de Naim que é a minha, e as raras migalhas que sobravam do meu pão juntava-as para aquelles que nem migalhas têm na terra... Que mal fazia eu vendendo? Em que offendia o Senhor? Sempre, antes de estender a esteira, beijava as lages do Templo: cada pedra era purificada pelas aguas lustraes... Em verdade Jehovah é grande, e sabe... Mas eu fui expulso pelo Rabbi, sómente porque sou pobre!
Calou-se — e as suas mãos magras, tatuadas de linhas magicas, tremiam, limpando as longas lagrimas que o alagavam.
Bati no peito, desesperado. E a minha angustia toda era por Jesus ignorar esta desgraça, que, na violencia do seu espiritualismo, suas mãos misericordiosas tinham involuntariamente creado, como a chuva benefica por vezes, fazendo nascer a sementeira, quebra e mata uma flôr isolada. Então para que não houvesse nada imperfeito na sua vida, nem d’ella ficasse uma queixa na terra — paguei a divida de Jesus (assim seu Pai perdôe a minha!) atirando para o saião do velho moedas consideraveis, drachmas, crysos gregos de Philippe, aureos romanos d’Augusto, até uma grossa peça da Cyrenaica que eu estimava por ter uma cabeça de Zeus Amnon que parecia a minha imagem. Topsius juntou a este thesouro um lepta de cobre — que tem em Judêa o valor d’um grão de milho...
O velho pedreiro de Naim empallidecia, suffocado. Depois, com o dinheiro n’uma dobra do saião, bem apertado contra o peito, murmurou timida e religiosamente, erguendo os olhos ainda molhados para as alturas:
— Pai, que estás nos céos, lembra-te da face d’este homem, que me deu o pão de longos dias!...
E soluçando sumiu-se entre a turba — que agora de todo o atrio rumorosamente affluia, se apinhava em torno aos mastros altos do velario. O escriba apparecera, mais vermelho e limpando os beiços. Ao lado do Rabbi e dos guardas do Templo, Sarêas viera perfilar-se encostado ao seu baculo. Depois, entre um brilho d’armas, surgiram as varas brancas dos lictores: e novamente Poncius, pallido e pesado, na sua vasta toga, subiu os degraus de bronze, retomou o o Assento Curul.
Um silencio cahiu, tão attento, que se ouviam as bozinas tocando ao longe na Torre Marianna. Sarêas desenrolou o seu escuro pergaminho, estendeu-o sobre a mesa de pedra entre os tabularios: e eu vi as mãos gordas e morosas do escriba traçarem uma rubrica, estamparem um sêllo sob as linhas vermelhas que condemnavam á morte Jesus de Galilêa, meu Senhor... Depois Poncius Pilatus, com uma dignidade indolente, erguendo apenas de leve o braço nú, confirmou em nome de Cesar a «sentença do Sanhedrin, que julga em Jerusalem...»
Immediatamente Sarêas atirou sobre o turbante uma ponta do manto, ficou orando, com as mãos abertas para o céo. E os Phariseus triumphavam: junto a nós, dois muito velhos beijavam-se em silencio nas barbas brancas: outros sacudiam no ar os bastões, ou lançavam sarcasticamente a acclamação forense dos romanos: «Bene et belle! Non potest melius!»
Mas de subito o Interprete appareceu em cima d’um escabello, alteando sobre o peito o seu papagaio flammante. A turba emmudecera, surprehendida. E o phenicio, depois de ter consultado com o escriba, sorriu, gritou em chaldaico, alargando os braços cercados de manilhas de coral:
— Escutai! N’esta vossa festa de Paschoa, o Pretor de Jerusalem costuma, desde que Valerius Gratus assim o determinou, e com assenso de Cesar, perdoar a um criminoso... O Pretor propõe-vos o perdão d’este... Escutai ainda! Vós tendes tambem o direito de escolher, vós mesmos, entre os condemnados... O Pretor tem em seu poder, nos ergastulos de Herodes, outro sentenciado á morte...
Hesitou, — e debruçado do escabello interrogava de novo o escriba que remexia n’uma atarantação os papyros e os tabularios. Sarêas, sacudindo a ponta do manto que escondia a sua oração, ficára assombrado para o Pretor, com as mãos abertas no ar. Mas já o Interprete bradava, erguendo mais a face risonha:
— Um dos condemnados é Rabbi Jeschoua, que ahi tendes, e que se disse filho de David... É esse que propõe o Pretor. O outro, endurecido no mal, foi preso por ter morto um legionario traiçoeiramente, n’uma rixa, ao pé do Xistus. O seu nome é Bar-Abbás... Escolhei!
Um grito brusco e roufenho partiu d’entre os Phariseus:
— Bar-Abbás!
Aqui e além, pelo atrio, confusamente resoou o nome de Bar-Abbás. E um escravo do Templo, de saião amarello, pulando até aos degraus do sólio, rompeu a berrar, em face de Poncius, com palmadas furiosas nas côxas:
— Bar-Abbás! Ouve bem! Bar-Abbás! O povo só quer Bar-Abbás!
A haste d’um legionario fel-o rolar nas lages. Mas já toda a multidão, mais leve e facil d’inflammar do que a palha na meda, clamava por Bar-Abbás: uns com furor, batendo as sandalias e os cajados ferrados como para aluir o Pretorio; outros de longe, encruzados ao sol, indolentes e erguendo um dedo. Os vendilhões do Templo, rancorosos, sacudindo as balanças de ferro e repicando sinetas, berravam, por entre maldições ao Rabbi: «Bar-Abbás é o melhor!» E até as prostitutas de Tiberiade, pintadas de vermelhão como idolos, feriam o ar de gritos silvantes:
— Bar-Abbás! Bar-Abbás!
Raros alli conheciam Bar-Abbás; muitos, de certo, não odiavam o Rabbi — mas todos engrossavam o tumulto promptamente, sentindo, n’essa reclamação do preso que atacára Legionarios, um ultraje ao Pretor romano, togado e augusto no seu tribunal. Poncius no entanto, indifferente, traçava letras n’uma vasta lauda de pergaminho pousada sobre os joelhos. E em torno os clamores disciplinados retumbavam em cadencia, como malhos n’uma eira:
— Bar-Abbás! Bar-Abbás! Bar-Abbás!
Então Jesus, vagarosamente, voltou-se para aquelle mundo duro e revoltoso que o condemnava: e nos seus refulgentes olhos humedecidos, no fugitivo tremor dos seus labios, só transpareceu n’esse instante uma mágua misericordiosa pela opaca inconsciencia dos homens, que assim empurravam para a morte o melhor amigo dos homens... Com os pulsos presos, limpou uma gotta de suor: depois ficou diante do Pretor, tão imperturbado e quêdo, como se já não pertencesse á terra.
O escriba, batendo com uma regra de ferro na pedra da mesa, tres vezes bradára o nome de Cesar. O tumulto ardente esmorecia. Poncius ergueu-se: e grave, sem trahir impaciencia ou cólera, lançou, sacudindo a mão, o mandado final:
— Ide e crucificai-o!
Desceu o estrado; a turba batia ferozmente as palmas.
Oito soldados da cohorte Syriaca appareceram, apetrechados em marcha, com os escudos revestidos de lona, as ferramentas entrouxadas, e o largo cantil da posca. Sarêas, vogal do Sanhedrin, tocando no hombro de Jesus, entregou-o ao decurião: um soldado desapertou-lhe as cordas, outro tirou-lhe o albornoz de lã: e eu vi o dôce Rabbi de Galilêa dar o seu primeiro passo para a morte.
Apressados, enrolando o cigarro, deixámos logo o palacio de Herodes por uma passagem que o douto Topsius conhecia, lobrega e humida, com fendas gradeadas d’onde vinha um canto triste de escravos encarcerados... Sahimos a um terreiro, abrigado pelo muro d’um jardim todo plantado de cyprestes. Dois dromedarios deitados no pó ruminavam, junto d’um montão d’hervas cortadas. E o alto historiador tomava já o caminho do Templo, quando, sob as ruinas d’um arco que a hera cobria, vimos povo apinhado em torno d’um Essenio, cujas mangas d’alvo linho batiam o ar como as azas d’um passaro irritado.
Era Gad, rouco d’indignação, clamando contra um homem esgrouviado, de barba rala e ruiva, com grossas argolas de ouro nas orelhas, que tremia e balbuciava:
— Não fui eu, não fui eu...
— Foste tu! bradava o Essenio, estampando a sandalia na terra. Conheço-te bem. Tua mãi é cardadeira em Capárnaum, e maldita seja pelo leite que te deu!...
O homem recuava, baixando a cabeça, como um animal encurralado á força:
— Não fui eu! Eu sou Rephrahim, filho de Eliesar, de Ramah! Sempre todos me conheceram são e forte como a palmeira nova!
— Torto e inutil eras tu como um sarmento velho de vide, cão e filho d’um cão! gritou Gad. Vi-te bem... Foi em Capárnaum, na viella onde está a fonte, ao pé da Synagoga, que tu appareceste a Jesus, Rabbi de Nazareth! Beijavas-lhe as sandalias, dizias «Rabbi, cura-me! Rabbi, vê esta mão que não póde trabalhar!» E mostravas-lhe a mão, essa, a direita, secca, mirrada e negra, como o ramo que definhou sobre o tronco! Era no Sabbath: estavam os tres chefes da Synagoga, e Elzear, e Simeon. E todos olhavam Jesus para vêr se elle ousaria curar no dia do Senhor... Tu choravas, de rojo no chão. E por acaso o Rabbi repelliu-te? Mandou-te procurar a raiz do baraz? Ah cão, filho d’um cão! O Rabbi, indifferente ás accusações da Synagoga, e só escutando a sua misericordia, disse-te: «estende a mão!» Tocou-a, e ella reverdeceu logo como a planta regada pelo orvalho do céo! Estava sã, forte, firme; e tu movias ora um dedo, ora outro, espantado e tremendo.
Um murmurio d’enlevo correu entre a multidão, maravilhada pelo dôce milagre. E o Essenio exclamava, com os braços tremulos no ar:
— Assim foi a caridade do Rabbi! E estendeu-te elle a ponta do manto, como fazem os Rabbis de Jerusalem, para que lhe deitasses dentro um siclo de prata? Não. Disse aos seus amigos que te dessem da provisão de lentilha... E tu largaste a correr pelo caminho, refeito e agil, gritando para o lado da tua casa: «Oh mãi, oh mãi, estou curado!...» E foste tu, porco e filho de porco, que ha pouco no Pretorio pedias a cruz para o Rabbi e gritavas por Bar-Abbás! Não negues, bocca immunda; eu ouvi-te; estava por traz de ti, e via incharem-te as cordoveias do pescoço com o furor da tua ingratidão!
Alguns, escandalisados, gritavam: «maldito! maldito!» Um velho, com justiceira gravidade, apanhára duas grossas pedras. E o homem de Capárnaum, encolhido, esmagado, ainda rosnou surdamente:
— Não fui eu, não fui eu... Eu sou de Ramah!
Gad, furioso, agarrou-o pelas barbas:
— N’esse braço, quando o arregaçaste diante do Rabbi, todos te viram duas cicatrizes curvas como de dois golpes de foice!... E tu vaes mostral-as agora, cão e filho d’um cão!
Despedaçou-lhe a manga da tunica nova; arrastou-o em redor, apertado nas suas mãos de bronze, como um bode teimoso; mostrou bem as duas cicatrizes, lividas no pêllo ruivo; e assim o arremessou desprezivelmente para entre o povo — que, levantando o pó do caminho, perseguiu o homem de Capárnaum com apupos e com pedradas...
Acercamo-nos de Gad sorrindo, louvando a sua fidelidade a Jesus. Elle, acalmado, estendera as mãos a um vendedor d’agua, que lh’as purificava com um largo jorro do seu ôdre felpudo: depois limpando-as á toalha de linho que lhe pendia do cinto:
— Escutai! José de Ramatha reclamou o corpo do Rabbi, o Pretor concedeu-lh’o... Esperai-me á nona hora romana no pateo de Gamaliel... Onde ides?
Topsius confessou que iamos ao Templo, por motivos intellectuaes d’arte, d’archeologia...
— Vão é aquelle que admira pedras! rosnou o altivo idealista.
E afastou-se puxando o capuz sobre a face, por entre as bençãos do povo que crê e ama os Essenios.
Para poupar, até ao Templo, a rude caminhada pelo Tyropêo e pela ponte do Xistus, tomámos duas liteiras — das que um liberto de Poncius ultimamente alugava, junto ao Pretorio, «á moda de Roma».
Cançado, estirei-me, com as mãos sob a nuca, no colchão de folhas seccas que cheirava a murta: e lentamente começou a invadir-me a alma uma inquietação estranha, temerosa, que já no Pretorio me roçára de leve como a aza arripiada d’uma ave agourenta... Ia eu ficar para sempre n’esta cidade forte dos Judeus? Perdera eu irremediavelmente a minha individualidade de Raposo, de catholico, de bacharel, contemporaneo do Times e do Gaz — para me tornar um homem da Antiguidade classica, coevo de Tiberio? E, dado este mirifico retrogresso nos tempos, se voltasse á minha patria, que iria eu encontrar á beira do rio claro?...
Decerto encontraria uma colonia romana: na encosta da collina mais fresca uma edificação de pedra onde vive o proconsul; ao lado um templo pequeno de Apollo ou de Marte coberto de lousa; nos altos um campo entrincheirado onde estão os legionarios; e em redor a villa lusitana, esparsa, com os seus caminhos agrestes, cabanas de pedra solta, alpendres para recolher o gado, e estacadas no lodo onde se amarram jangadas... Assim encontraria a minha patria. E que faria lá, pobre, solitario? Seria pastor nos montes? Varreria as escadarias do Templo, racharia a lenha das cohortes para ganhar um salario romano?... Miseria incomparavel!
Mas se ficasse em Jerusalem? Que carreira tomaria n’esta sombria, devota cidade da Asia? Tornar-me-hia um Judeu, resando o Schema, cumprindo o Sabbath, perfumando a barba de nardo, indo preguiçar nos atrios do Templo, seguindo as lições d’um Rabbi, e passeando ás tardes, com um bastão dourado, nos jardins de Gareb entre os tumulos?... E esta existencia igualmente me parecia pavorosa!... Não! a ficar encarcerado no mundo antigo com o doutissimo Topsius, então deveriamos galopar n’essa mesma noite, ao erguer da lua, para Joppé; de lá embarcar em qualquer trirema phenicia que partisse para Italia; e ir habitar Roma, ainda que fosse n’uma das escuras viellas do Velabro, n’uma d’essas altas, fumarentas trapeiras, com duzentas escadas a subir, empestadas pelos guisados d’alho e tripa, que escassamente atravessam duas calendas sem desabar ou arder.
Assim me inquietava quando a liteira parou; descerrei as cortinas; vi ante mim os vastos granitos da muralha do Templo. Penetrámos sob a abobada da porta de Huldah; e fômos logo detidos emquanto os guardas do Templo arrancavam a um pegureiro, teimoso e rude, a clava armada de prégos com que elle queria atravessar o Santuario. O rolante rumor que vinha de longe, dos Atrios, já me atemorisava, semelhante ao d’uma selva ou d’um grande mar irritado...
E ao emergir emfim da abobada estreita agarrei o braço magro do Historiador dos Herodes, no deslumbramento que me tornou, intenso e repassado de terror! Um brilho de neve e ouro vibrava profusamente no ar molle, irradiado dos claros marmores, dos granitos brunidos, dos recamos preciosos banhados pelo divino sol de Nizam. Os lisos pateos que eu de manhã vira desertos, alvejando como a agua quieta d’um lago, desappareciam agora sob o povo que os atulhava, adornado e festivo. Os cheiros estonteavam, acres, emanados dos estofos tingidos, das resinas aromaticas, da gordura frigindo em brazas. Sobre o denso ruido passavam roucos mugidos de bois. E perennemente os fumos votivos se sumiam na refulgencia do céo...
— Caramba! murmurei, enfiado. Isto são magnificencias de entupir!
Fômos penetrando sob os Porticos de Salomão, onde resoava o profano tumulto d’um mercado. Por traz de grossas caixas gradeadas encruzavam-se os Cambistas, com uma moeda d’ouro pendente da orelha entre as melenas sordidas, trocando o dinheiro sacerdotal do Templo pelas moedas pagãs de todas as regiões, de todas as idades, desde as macissas rodellas do velho Lacio mais pesadas que broqueis, até aos tijolos gravados que circulam, como «notas» nas feiras da Assyria. Adiante, brilhava a frescura e abundancia d’um pomar: as romãs, estaladas de maduras, trasbordavam dos gigos: hortelões com um ramo d’amendoeira preso ao carapuço apregoavam grinaldas d’anemonas ou hervas amargas de Paschoa: jarras de leite puro pousavam sobre saccos de lentilha; e os cordeiros, deitados nas lages, amarrados pelas patas ás columnas, balavam tristemente de sêde.
Mas a multidão sobretudo apinhava-se, com suspiros de cubiça, em torno aos tecidos e ás joias. Mercadores das colonias phenicias, das Ilhas gregas, de Tardis, da Mesopotamia, de Tadmor, uns com soberbas simarras de lã bordada, outros com toscos tabardos de couro pintado, desdobravam os panos azues de Tyro que reproduzem o brilho ardente dos céos do Oriente, as sêdas impudicas de Sheba d’uma transparencia verde que vôa na aragem, e esses estofos solemnes de Babylonia que sempre me extasiavam, negros com largas flôres côr de sangue... Dentro de cofres de cedro, espalhados sobre tapetes da Galacia, reluziam espelhos de prata simulando a lua e os seus raios, sinetes de turmalina que os hebreus usam ao peito, manilhas de pedrarias enfiadas em cornos d’antilopes, diademas de sal-gema com que se enfeitam os noivos; e, resguardadas mais preciosamente, talismans e amuletos que me pareciam pueris, pedaços de raizes, pedregulhos negros, couros tisnados e ossos com letras.
Topsius ainda parou entre as tendas dos perfumistas apreçando um esplendido bastão de Tylos, d’uma rara madeira mosqueada como a pelle do tigre, mas logo fugimos ao ardente cheiro que alli suffocava, vindo das resinas, das gommas dos paizes dos Negros, dos mólhos de plumas de abestruz, da mirrha d’Oronte, das ceras de Cirenaica, dos oleos rosados de Cysico, e das grandes coifas de pelle d’hyppopotamo cheias de violetas seccas e de folhas de baccaris...
Entrámos então na galeria chamada Real, toda votada á Doutrina e á Lei. Ahi, cada dia, tumultuam rancorosamente as controversias entre Sadduceus, Escribas, Sophorins, Phariseus, sectarios de Schemaia, sectarios de Hillel, Juristas, Grammaticos, fanaticos de toda a terra judaica. Junto ás columnas de marmore installavam-se os Mestres da Lei, sobre altos escabellos, tendo ao lado um prato de metal onde cahiam os óbolos dos fieis: e em torno, encruzados no chão, com as sandalias ao pescoço, as pellicas cobertas de letras vermelhas desdobradas nos joelhos, os discipulos, imberbes ou decrepitos, resmoneavam os dictames balançando os hombros lentos. Aqui e além, no meio de devotos embebidos, dois doutores disputavam, com as faces assanhadas, sobre temerosos pontos da Doutrina. «Póde-se comer um ovo de gallinha posto no dia de Sabbath? Por que osso da espinha dorsal começa a Resurreição?» O philosophico Topsius ria, disfarçado n’uma préga da capa: mas eu tremia quando os doutores, escaveirados e barbudos, se ameaçavam, gritavam racca! racca! mergulhando a mão no seio da tunica á procura d’um ferro escondido.
A cada momento cruzavamos esses Phariseus, resoantes e vazios como tambores, que vêm ao Templo assoalhar a sua piedade — uns com as costas vergadas, esmagadas pela vastidão do peccado humano; outros, tropeçando e apalpando o ar, d’olhos fechados, para não vêr as fórmas impuras das mulheres; alguns mascarrados de cinza, gemendo, com as mãos apertadas sobre o estomago — em testemunho dos seus duros jejuns! Depois Topsius mostrou-me um Rabbi, interpretador de sonhos: n’um carão livido e chupado os seus olhos fundos luziam com a tristeza de lampadas de sepulchro: e, sentado sobre saccos de lã, estendia por cima de cada devoto, que vinha ajoelhar aos seus pés nús, a ponta d’um vasto manto negro com signos brancos pintados. Eu, curioso, pensava em o consultar — quando de repente gritos afflictos resoaram no atrio. Corremos. Eram levitas, com cordas e vergas, chibatando furiosamente um leproso que, em estado de impureza, penetrára no pateo de Israel. O sangue salpicava as lages. Em torno crianças riam.
Ia cahindo a sexta hora judaica, a mais grata ao Senhor, quando o sol, na sua marcha para o mar, pára sobre Jerusalem a contemplal-a com paixão: e, para nos acercarmos do «atrio d’Israel», fomos penosamente fendendo a multidão que alli remoinhava vinda de toda a terra culta e barbara... O rude saião de pelles dos pegureiros das Idumêas roçava a chlamyde curta dos gregos de face rapada e mais brancos que marmores. Havia homens solemnes da planicie de Babylonia, com as barbas mettidas dentro de saccos azues que uma corrente de prata lhes prendia ás mitras de couro pintado: e havia gaulezes ruivos, de bigodes pendentes como as hervas das suas lagôas, que riam e parolavam, devorando com a casca os limões dôces da Syria. Por vezes um romano togado passava, tão grave como se descesse d’um pedestal. Gente da Dacia e da Mysia, com as pernas enfeixadas em ligaduras de feltro, tropeçava deslumbrada pelo claro esplendor dos marmores. E não era menos estranho ir eu, Theodorico Raposo, arrastando alli as minhas botas de montar, atraz d’um Sacerdote de Moloch, enorme e sensual na sua simarra de purpura, que, em meio d’um bando de mercadores de Serepta, desdenhava d’aquelle templo sem imagens, sem bosques, e mais ruidoso que uma feira phenicia.
Assim lentamente nos fomos chegando á porta chamada «A Bella», que dava accesso para o Atrio sagrado d’Israel. Bella em verdade, preciosa e triumphal, sobre os quatorze degraus de marmore verde de Numidia, mosqueado de amarello: os seus largos batentes, revestidos de chapas de prata, faiscavam como os d’um reliquario: e os dois humbraes, semelhantes a grossos mólhos de palmas, sustentavam uma torre, redonda e branca, guarnecida de escudos tomados aos inimigos de Judá, brilhantes no sol como um collar de gloria sobre o pescoço forte d’um heroe! Mas diante d’este adito maravilhoso erguia-se severamente um pilar, encimado por uma placa negra com letras d’ouro, onde se desenrolava esta ameaça em grego, em latim, em aramaico, em chaldaico: que nenhum Estrangeiro aqui penetre sob pena de morrer!
Fortunadamente avistámos o magro Gamaliel que se encaminhava ao Santo Pateo, descalço, apertando ao peito um mólho d’espigas votivas: com elle vinha um homem nedio e risonho, de face côr de papoula, coroado por uma enorme mitra de lã negra enfeitada de fios de coral... Curvados até ás lages, saudámos o austero Doutor da Lei. Elle psalmodiou logo, de palpebras cerradas:
— Sêde bemvindos... Esta é a hora melhor para receber a benção do Senhor. O Senhor disse: «sahi das vossas habitações, vinde a mim com as primicias dos vossos fructos, eu vos abençoarei em todas as obras das vossas mãos...» Vós hoje pertenceis miraculosamente a Israel. Subi á morada do Eterno! Este que vem a meu lado é Eliezer de Silo, benefico e sabio entre todos nas coisas da natureza.
Deu-nos duas espigas de milho: e atraz d’elle pisámos com as nossas solas gentilicas o Adro interdicto de Judá.
Caminhando ao meu lado, Eliezer de Silo, cortez e suave, perguntou-me se era remota a minha patria e perigosos os seus caminhos...
Eu rosnei, vaga e recatadamente:
— Sim... Chegamos de Jerichó.
— Boa, por lá, a colheita do balsamo?
— Rica! afiancei, com calor. Louvado seja o Eterno, que n’este seu anno de graça estamos lá abarrotadinhos de balsamo!
Elle pareceu regosijado. E revelou-me então que era um dos Medicos que residem no Templo — onde os Sacerdotes e os Sacrificadores soffrem perennemente «dissabores intestinaes», por pisarem suados e descalços as lages frias dos Adros.
— Por isso, murmurou elle com uma faisca alegre no olho benigno, o povo em Sião nos chama Doutores da Tripa!
Torci-me de riso, de gozo, com aquella jocosidade assim susurrada na austera morada do Eterno... Depois, recordando os meus dissabores intestinaes em Jerichó, por muito amar os divinos e perfidos melões da Syria — perguntei ao amavel Physico se n’essas occorrencias elle preconisava o bismutho...
O homem magistral abanou cautamente a sua mitra bojuda. Depois, espetando um dedo no ar, segredou-me esta receita incomparavel:
— Tomai gomma de Alexandria, açafrão de jardim, uma cebola da Persia e vinho negro de Emmaus... Misturai, cozei... Deixai esfriar n’um vaso de prata... Collocai-vos n’uma encruzilhada, ao nascer do sol...
Mas emmudeceu subitamente, com os braços abertos e a face pendida para as lages. Penetráramos no soberbo adro, chamado «Pateo das Mulheres»: e n’esse instante terminavam as Bençãos que á sexta hora um sacerdote vem alli derramar do alto da porta de Nicanor.
Severa, toda de bronze — ella deixava entrevêr, lá ao fundo, os ouros, a neve, as pedrarias do Santuario refulgindo com serenidade... Nos largos degraus, mais lustrosos que alabastro, desenrolavam-se duas collegiadas de levitas, ajoelhados e vestidos de branco — uns com uma trompa recurva, outros pousando os dedos sobre as cordas mudas de lyras. E, por entre estas alas de homens prostrados, um grande velho emmaciado vinha descendo devagar os degraus, com um incensador de ouro na mão...
A sua tunica justa de byssus tinha a fimbria orlada de pinhas d’esmeralda, alternando com guizos que tiniam finamente; os pés sem sandalias e tingidos d’heneh pareciam de coral; e ao meio da facha que lhe cingia as costellas magras brilhava, bordado a ouro, um grande sol. Os fieis ajoelhados, quedos, sem um murmurio, quasi pousavam nas lages a cabeça escondida sob os mantos e sob os véos: e com as côres festivas, onde dominava o vermelho da anemona e o verde da figueira, era como se o adro estivesse juncado de flôres e folhagens, n’uma manhã de triumpho, para passar Salomão!
Com a barba aguda e dura levantada aos céos — o velho incensou o lado do Oriente e das areias, depois o lado do Occidente e dos mares; e o recolhimento era tão enlevado que se ouviam no fundo do Santuario os mugidos lentos dos bois. Desceu ainda, alçou mais a mitra salpicada de joias, atirou o incensador que rangeu faiscando ao sol — e com o fumo branco veio rolando tenue e cheirosa, sobre Israel, a benção do Muito-Forte. Então os levitas, unisonamente, feriram as cordas das lyras: das trombetas curvas subiu um grito de bronze: e todo o povo erguido, com os braços ao céo, entoou um psalmo celebrando a eternidade de Judá... E subitamente tudo cessou: os Levitas recolhiam pela escadaria de marmore sem um rumor dos pés nús: Eliezer de Silo e o rigido Gamaliel tinham desapparecido sob os Porticos: e o claro pateo em redor resplandecia sumptuoso e cheio de mulheres.
Os revestimentos de alabastro eram tão lustrosos que Topsius mirava n’elles como n’um espelho as pregas nobres da sua capa: todos os fructos da Asia e as flôres dos vergeis se entrelaçavam, em copiosos lavores de prata, nas portas das camaras rituaes onde se perfuma o oleo, se consagra a lenha, se purifica a lepra: entre as columnas pendiam em festões fios grossos de perolas e de contas d’onyx, mais numerosos que no peito de uma noiva: e nos mealheiros de bronze, semelhantes a trombetas de guerra colossaes, pousadas nas lages, enrolavam-se, scintillando e reclamando as dadivas, inscripções em relevo de ouro, graciosas como versos de canticos — Queimai Incensos e Nardos, Offertai Pombas e Rôlas...
Mas o santo adro resplandecia de mulheres: e meus olhos bem depressa deixaram metaes e marmores, para captivadamente se prenderem áquellas filhas de Jerusalem, cheias de graça e morenas como as tendas do Cedar! Todas traziam no Templo o rosto descoberto: ou apenas um fôfo véo, d’uma musselina leve como o ar, á moda romana, enrodilhado finamente no turbante, punha em torno das faces uma alvura d’espuma, onde os olhos negros tomavam um quebranto mais humido, enlanguecidos pelas densas pestanas, alongados pela tintura de cypro. A abundancia barbara dos ouros, das pedrarias, envolvia-as n’uma radiancia tremula desde os peitos fortes até aos cabellos mais crespos que a lã das cabras de Galaad. As sandalias, ornadas de guizos e de correntes, arrastavam sobre as lages uma melodia argentina, tanta era a graça concertada dos seus movimentos ondulados e graves: e os tecidos bordados, os algodões de Galacia, os finos linhos de côres que as cingiam, ensopados nas escencias ardentes d’ambar, de malobathro e de baccaris, enchiam o ar de fragancia e de molleza a alma dos homens. As mais ricas caminhavam solemnemente entre escravas vestidas de panos amarellos, que lhes traziam o párasol de pennas de pavão, os rolos devotos em que está escripta a Lei, saccos de tamaras dôces, espelhos ligeiros de prata. As mais pobres, com uma simples camisa de algodão de riscadinho multicôr, e sem mais joias que um rude talisman de coral, corriam, chalravam, mostrando nús os braços e o collo côr de medronho mal maduro... E sobre todas o meu desejo zumbia — como uma abelha que hesita entre flôres de igual doçura!
— Ai Topsius, Topsius! rosnava eu. Que mulheres! Que mulheres! Eu estoiro, esclarecido amigo!
O sabio affirmava com desdem que ellas não tinham mais intellectualidade que os pavões dos jardins d’Antipas; e que nenhuma decerto alli lêra Aristoteles ou Sophocles!... Eu encolhia os hombros. Oh esplendor dos céos! por qual d’estas mulheres que não lêra Sophocles não daria eu, se fosse Cesar, uma cidade de Italia e toda a Iberia! Umas entonteciam-me pela sua graça dolente e macerada de virgens de devoção, vivendo na penumbra constante dos quartos de cedro, com o corpo saturado de perfumes, a alma esmagada de orações. Outras deslumbravam-me pela sumptuosidade solida e succulenta da sua belleza. Que largos, escuros olhos d’idolos! Que claros, macios membros de marmore! Que sombria molleza! Que nudezes magnificas, quando á beira do leito baixo se lhes desenrolassem os cabellos pesados, e fossem dôcemente escorregando os véos e os linhos de Galacia!...
Foi necessario que Topsius me arrastasse pelo albornoz para a escadaria de Nicanor. E ainda estacava a cada degrau, alongando para traz os olhos esbrazeados, resfolgando como um touro em maio nas lezirias.
— Ai, filhinhas de Sião! Que sois de vos deixar aqui os miolos!
Ao voltar-me, puxado pelo douto Historiador, bati no focinho d’um cordeiro branco que um velho conduzia ás costas, amarrado pelas patas e enfeitado de rosas. Em frente corria uma longa balaustrada de cédro lavrado — onde uma cancella toda de prata, aberta e lassa nos seus gonzos, se movia em silencio, faiscando.
— É aqui, disse o erudito Topsius, que se dão a beber as aguas amargas ás mulheres adulteras... E agora, D. Raposo, ahi tem Israel adorando o seu Deus.
Era emfim o Adro Sacerdotal! E eu estremeci diante d’aquelle Santuario entre todos monstruoso e deslumbrante. Ao meio do vasto e claro terrado erguia-se, feito de enormes pedras negras, o altar dos Holocaustos: aos seus cantos enristavam-se quatro cornos de bronze; d’um pendiam grinaldas de lirios; d’outros fios de coraes; o outro pingava sangue. Da immensa grelha do altar subia uma fumaça avermelhada e lenta: e em redor apinhavam-se os Sacrificadores, descalços, todos de branco — com forquilhas de bronze nas mãos pallidas, espetos de prata, facas passadas nos cintos côr de céo... No afanoso, severo rumôr do ceremonial sacrosanto confundia-se o balar de cordeiros, o som argentino de pratos, o crepitar das lenhas, as pancadas surdas de malho, o cantar lento da agua em bacias de marmore, e o estridor das bozinas. Apesar dos aromaticos que ardiam em caçoulas, das longas ventarolas de folhas de palmeira com que os serventes agitavam o ar, eu puz o lenço na face, enjoado com esse cheiro molle de carne crua, de sangue, de gordura frita e de açafrão, que o Senhor reclamou a Moysés como o dom melhor a receber da Terra...
Ao fundo, bois enfeitados de flôres, vitellas brancas com os cornos dourados, sacudiam, mugindo e marrando, as cordas que os prendiam a fortes argolas de bronze: mais longe, sobre mesas de marmore, entre pedaços de gêlo, pousavam, vermelhas e sangrentas, grossas peças de carne, sobre que os levitas balançavam leques de pennas para afugentar os moscardos. De columnas rematadas por faiscantes globos de crystal, pendiam cordeiros mortos, que os Netenins, resguardados por aventaes de couro cobertos de textos sagrados, esfolavam com cutelos de prata: emquanto os victimarios de saião azul, retesando os braços, conduziam baldes d’onde trasbordavam e iam arrastando entranhas. Coroados por uma mitra redonda de metal, escravos idumeos constantemente limpavam as lages com esponjas: alguns vergavam sob mólhos de lenha; outros, agachados, sopravam fogareiros de pedra.
A cada momento algum velho Sacrificador, descalço, marchava para o altar, trazendo ao collo um anho tenro que não balava, contente e quente entre os dois braços nús: um tocador de lyra precedia-o: levitas atraz transportavam os jarros d’oleos aromaticos. Em frente á ara, rodeado de Acolytos, o Sacrificador lançava sobre o cordeiro um punhado de sal; depois, psalmodiando, cortava-lhe uma pouca de lã entre os cornos. As bozinas resoavam; um grito d’animal ferido perdia-se no tumulto sacro; por cima das tiáras brancas duas mãos vermelhas erguiam-se ao ar sacudindo sangue; da grelha do altar resaltava, avivada pelos oleos e pela gordura, uma chamma d’alegria e de offerta; e o fumo avermelhado e lento ascendia serenamente ao azul, levando nos seus rolos o cheiro que deleita o Eterno.
— É um talho! murmurei eu, aturdido. É um talho! Topsius, doutor, vamos outra vez lá baixo ás mulherinhas...
O sabio olhou para o sol. Depois, gravemente, pousando-me no hombro a mão amiga:
— É quasi a nona hora, D. Raposo!... E temos de ir fóra da Porta Judiciaria, para além do Gareb, a um sitio agreste que se chama o Calvario.
Empallideci. E pareceu-me que nenhuma vantagem espiritual obteria minha alma, nenhuma inesperada acquisição enriqueceria o saber de Topsius — por irmos contemplar no alto d’um morro, entre urzes, Jesus atado a um madeiro e soffrendo: era apenas um tormento para a nossa sensibilidade! Mas, submisso, segui o meu sapiente amigo pela escadaria das Aguas, que leva ao largo lageado de basalto onde começam as primeiras casas d’Acra. Visinhas do Santuario, habitadas por Sacerdotes, ellas ostentavam uma profusa devoção Paschal, em palmas, lampadas, alcatifas penduradas dos eirados: e algumas tinham os hombraes salpicados com o sangue fresco d’um anho.
Antes de penetrar n’uma sordida, andrajosa rua que se ia torcendo sob velhos toldes de esparto, voltei-me para o Templo: agora só via a immensa muralha de granito, com bastiões no alto, sombria e inderrubavel: e a arrogancia da sua força e da sua eternidade encheu de cólera o meu coração. Emquanto sobre uma collina de morte, destinada aos escravos, o homem de Galilêa, incomparavel amigo dos homens, arrefecia na sua cruz, e para sempre se apagava aquella pura voz de amor e d’espiritualidade — alli ficava o Templo que o matava, rutilante e triumphal, com o balar dos seus gados, o estridor dos seus sophismas, a usura sob os Porticos, o sangue sobre as Aras, a iniquidade do seu duro orgulho, a importunidade do seu perenne incenso... Então, com os dentes cerrados, mostrei o punho a Jehovah e á sua cidadella, e bradei:
— Arrasados sejaes!
Não descerrei mais os labios sêccos até chegarmos á estreita porta nas muralhas de Ezekiah, que os Romanos denominavam a Judiciaria. E logo ahi estremeci, vendo collado n’um pilar de pedra um pergaminho com três sentenças transcriptas — «a d’um ladrão de Bettebara, a d’um assassino de Emath, e a de Jesus de Galilêa!» O escriba do Sanhedrin, que conforme á Lei alli vigiára para recolher, até que os condemnados passassem, algum inesperado testemunho d’inculpabilidade, ia partir, com os seus tabularios debaixo do braço, depois de traçar sobre cada sentença um grosso risco vermelho. E aquelle córte final, côr de sangue, passado á pressa por um escripturario que recolhia contente á sua morada, a comer o seu anho, commoveu-me mais que a melancolia dos Livros Santos.
Sebes de cactos em flôr bordavam a estrada; e para além eram verdes outeiros onde os muros baixos de pedra solta, vestidos de rosas bravas, delimitavam os hortos. Tudo alli resplandecia, festivo e pacifico. Á sombra das figueiras, debaixo dos pilares das parreiras, as mulheres, encruzadas em tapetes, fiavam o linho ou atavam os ramos d’alfazema e manjerona que se offerecem na Paschoa: e crianças em redor, com o pescoço carregado d’amuletos de coral, balouçavam-se em cordas, atiravam á setta... Pela estrada descia uma fila de lentos dromedarios levando mercadorias para Joppé: dois homens robustos recolhiam da caça, com altos coturnos vermelhos cobertos de pó, a aljava batendo-lhe a côxa, uma rede atirada para as costas, e os braços carregados de perdizes e d’abutres amarrados pelas patas: e diante de nós caminhava devagar, apoiado ao hombro d’uma criança que o conduzia, um velho pobre, de longas barbas, trazendo presa ao cinto como um bardo a lyra grega de cinco cordas, e sobre a fronte uma corôa de louro...
Ao fundo d’um muro, coberto de ramos de amendoeiras, diante d’uma cancella pintada de vermelho, dois servos esperavam, sentados n’um tronco cahido, com os olhos baixos e as mãos sobre os joelhos. Topsius parou, puxou-me o albornoz:
— É este o horto de José de Ramatha, um amigo de Jesus, membro do Sanhedrin, homem d’espirito inquieto, que se inclina para os Essenios... E justamente, ahi vem Gad!
Do fundo do horto, com effeito, por uma rua de murta e rosas, Gad descia correndo com uma trouxa de linho e um cabaz de vime enfiados n’um pau. Parámos.
— O Rabbi? gritou-lhe o alto Historiador, transpondo a cancella.
O Essenio entregou a um dos escravos a trouxa, e o cesto que estava cheio de myrrha e d’hervas aromaticas; e ficou diante de nós um momento, tremulo, suffocado, com a mão fortemente pousada sobre o coração para lhe serenar a anciedade.
— Soffreu muito! murmurou, por fim. Soffreu quando lhe trespassaram as mãos... Mais ainda ao erguer da cruz... E repelliu primeiro o vinho de Misericordia, que lhe daria a inconsciencia... O Rabbi queria entrar com a alma clara na morte por que chamára!... Mas José de Ramatha, Nicodemus, estavam lá vigiando. Ambos lhe lembraram as coisas promettidas uma noite em Bethania... O Rabbi então tomou a malga das mãos da mulher de Rosmophin, e bebeu.
E o Essenio, pregados em Topsius os olhos reluzentes, como para cravar bem seguramente na sua alma uma recommendação suprema, recuou um passo e disse com uma grave lentidão:
— Á noite, depois da ceia, no eirado de Gamaliel...
E outra vez desappareceu na rua fresca do horto, entre a murta e as roseiras. Topsius deixou logo a estrada de Joppé: e estugando o passo por um atalho agreste, onde o meu largo albornoz se prendia aos espinhos das piteiras, explicava-me que a bebida de Misericordia — era um vinho forte de Tharses, com succo de papoulas e especiarias, fornecido por uma confraria de mulheres devotas para insensibilizar os suppliciados... Mas eu mal escutava aquelle copioso espirito. No alto d’um aspero outeiro, todo de rocha e urze, avistára, destacando duramente no claro azul do céo liso, um montão de gente parada: e em meio d’ella sobrelevavam-se tres pontas grossas de madeiros e moviam-se, faiscando ao sol, elmos polidos de Legionarios. Turbado, encostei-me á beira do caminho, n’um penedo branco que escaldava. Mas vendo Topsius marchar, com a sabia serenidade de quem considera a Morte uma purificadora libertação das fórmas imperfeitas — não quiz ser menos forte, nem menos espiritual: arranquei o albornoz que me abafava, galguei intrepidamente a collina temerosa.
D’um lado cavava-se o Valle de Hinom, abrazado e livido, sem uma herva, sem uma sombra, juncado d’ossos, de carcassas, de cinzas. E diante de nós o môrro ascendia, com manchas leprosas de tojo negro, e a espaços furado por uma ponta de rocha polida e branca como um osso. O corrego, onde os nossos passos espantavam os lagartos, ia perder-se entre as ruinas d’um casebre de adobe: duas amendoeiras, mais tristes que plantas crescidas na fenda d’um sepulchro, erguiam ao lado a sua rama rala e sem flôr, onde cantavam asperamente cigarras. E na sombra tenue, quatro mulheres descalças, desgrenhadas, com rasgões de luto nas tunicas pobres, choravam como n’um funeral.
Uma, sem se mover, hirta contra um tronco, gemia surdamente sob a ponta do manto negro: outra, exhausta de lagrimas, jazia n’uma pedra, com a cabeça cahida nos joelhos, e os esplendidos cabellos louros desmanchados, alastrados até ao chão. Mas as outras duas deliravam, arranhadas, ensanguentadas, batendo desesperadamente nos peitos, cobrindo a face de terra; depois, lançando ao céo os braços nús, abalavam o môrro com gritos — «oh meu encanto, oh meu thesouro, oh meu sol!» E um cão, que farejava entre as ruinas, abria a guela, uivava tambem, sinistramente.
Espavorido, puxei a capa do douto Topsius — e cortámos pelas urzes até ao alto, onde se apinhavam, olhando e galrando, obreiros das officinas de Gareb, serventes do Templo, vendilhões, e alguns d’esses sacerdotes miseraveis e em farrapos, que vivem de negromancia e d’esmolas. Diante da branca capa em que Topsius se togava, dois cambistas, com moedas d’ouro pendentes das orelhas, arredaram-se, murmurando bençãos servis. Uma corda d’esparto deteve-nos, presa a postes cravados no chão para isolar o alto do môrro, e, no sitio em que ficáramos, enrolada a uma velha oliveira que tinha pendurados dos ramos escudos de Legionarios e um manto vermelho.
Então, ancioso, ergui os olhos... Ergui os olhos para a cruz mais alta, cravada com cunhas n’uma fenda de rocha. O Rabbi agonisava. E aquelle corpo que não era de marfim nem de prata, e que arquejava, vivo, quente, atado e pregado a um madeiro, com um pano velho na cinta, um travessão passado entre as pernas — encheu-me de terror e d’espanto... O sangue que manchára a madeira nova, ennegrecia-lhe as mãos, coalhado em torno aos cravos: os pés quasi tocavam o chão, amarrados n’uma grossa corda, rôxos e torcidos de dôr. A cabeça, ora escurecida por uma onda de sangue, ora mais livida que um marmore, rolava d’um hombro a outro dôcemente; e por entre os cabellos emmaranhados, que o suor empastára, os olhos esmoreciam, sumidos, apagados — parecendo levar com a sua luz para sempre toda a luz e toda a esperança da terra...
O centurião, sem manto, com os braços cruzados sobre a couraça de escamas, rondava gravemente junto á cruz do Rabbi, cravando por vezes os olhos duros na gente do Templo, cheia de rumores e de risos. E Topsius mostrou-me defronte, rente á corda, um homem cuja face amarella e triste quasi desapparecia entre as duas longas mechas negras de cabello que lhe desciam sobre o peito — e que abria e enrolava com impaciencia um pergaminho, ora espiando a marcha lenta do sol, ora fallando baixo a um escravo ao seu lado.
— É Joseph de Ramatha, segredou-me o douto Historiador. Vamos ter com elle, ouvir as coisas que convém saber...
Mas n’esse instante, d’entre o bando sordido dos servos do Templo e dos sacerdotes miseraveis que são nutridos pelos sobejos dos holocaustos, rompeu um ruido mais forte como o grasnar de corvos n’um alto. E um d’elles, colossal, esqualido, com costuras de facadas através da barba rala, atirou os braços para a cruz do Rabbi, e gritou n’uma baforada de vinho:
— Tu que és forte, e querias destruir o Templo e as suas muralhas, porque não quebras ao menos o pau d’essa cruz?
Em torno estalaram risadas alvares. E outro, espalmando as mãos sobre o peito, curvado com infinito escarneo, saudava o Rabbi:
— Herdeiro de David, oh meu principe, que te parece esse throno?
— Filho de Deus! Chama teu pai, vê se teu pai te vem salvar! rouquejava a meu lado um magro velho, que tremia e sacudia a barba, apoiado ao seu bordão.
Alguns vendilhões bestiaes apanhavam torrões seccos a que misturavam cuspo, para arremessar ao Rabbi: uma pedra por fim passou, resoou cavamente no madeiro. Então o Centurião correu, indignado; a folha da sua larga espada lampejou no ar; e o bando recuou blasphemando — emquanto alguns embrulhavam na ponta do saião os dedos que escorriam sangue.
Nós acercámo-nos de José de Ramatha. Mas o sombrio homem abalou bruscamente, esquivando a importunidade do sabio Topsius. E, magoados com a sua rudeza alli ficámos junto d’um tronco de oliveira secca, defronte das outras cruzes.
Os dois condemnados tinham acordado do primeiro desmaio, sob a frescura da aragem da tarde. Um, grosso, pelludo, com os olhos esbugalhados, o peito atirado para diante e as costellas a estalar, como se n’um esforço desesperado quizesse arrancar-se do madeiro — urrava sem descontinuar, medonhamente: o sangue pingava-lhe em gottas lentas dos pés negros, das mãos esgaçadas: e abandonado, sem affeição ou piedade que o assistissem, era como um lobo ferido que uiva e morre n’um brejo. O outro, delgado e louro, pendia sem um gemido, como uma haste de planta meio quebrada. Defronte d’elle uma mulher macilenta e em farrapos, passando a cada instante o joelho sobre a corda, estendia-lhe nos braços uma criancinha núa, e gritava, já rouca: «Olha ainda, olha ainda!» As palpebras lividas não se moviam: um negro, que entrouxava as ferramentas da crucificação, ia empurral-a com brandura: ella emmudecia, apertava desesperadamente o filho para que lh’o não levassem tambem, batendo os dentes, tremendo toda: e a criancinha entre os farrapos procurava o seio magro.
Soldados, sentados no chão, desdobravam as tunicas dos suppliciados: outros, com o elmo enfiado no braço, limpavam o suor — ou por uma malga de ferro, a goles lentos, bebiam a posca. E em baixo, na poeira da estrada, sob o sol mais dôce, passava gente recolhendo pacificamente dos campos e dos hortos. Um velho picava as suas vaccas para o lado da porta de Genath: mulheres, cantando, carregavam lenha: um cavalleiro trotava, embrulhado n’um manto branco. Ás vezes os que atravessavam o caminho ou voltavam dos pomares de Gareb avistavam as tres cruzes erguidas: arregaçavam a tunica, subiam a collina devagar através das urzes. O rotulo da cruz do Rabbi, escripto em grego e em latim, causava logo assombro. «Rei dos Judeus»! Quem era esse? Dois moços, patricios e sadduceus, com brincos de perolas nas orelhas e bordaduras d’ouro nos borzeguins, interpellaram o Centurião, escandalisados. Porque escrevera o Pretor — «Rei dos Judeus»? Era aquelle, alli pregado na cruz, Caio Tiberio? Só Tiberio era rei da Judêa! O Pretor quizera offender Israel! Mas em verdade só ultrajava Cesar!...
Impassivel, o Centurião fallava a dois Legionarios que remexiam no chão em grossas barras de ferro. E a mulher que acompanhava os sadduceus, uma romana miudinha e morena, com fitas de purpura nos cabellos empoados d’azul, contemplava suavemente o Rabbi e aspirava o seu frasco de essencias — lamentando decerto aquelle moço, rei vencido, rei barbaro, que morria no poste dos escravos.
Cansado, fui sentar-me com Topsius n’uma pedra. Era perto da oitava hora judaica: o sol, sereno como um heroe que envelhece, descia para o mar por sobre as palmeiras de Bethania. Diante de nós o Gareb verdejava, coberto de jardins. Junto ás muralhas, no bairro novo de Bezetha, grandes panos vermelhos e azues seccavam em cordas ás portas das tinturarias; um lume vermelhejava no fundo d’uma forja; crianças corriam, brincando sobre a borda d’uma piscina. Adiante, no alto da torre Hippica, que estendia já a sua sombra sobre o valle de Hinom, soldados de pé na amurada apontavam a setta aos abutres voando no azul. E para além, entre arvoredos, surgiam, frescos e rosados pela tarde, os eirados do palacio de Herodes.
Triste, com o espirito disperso, eu pensava no Egypto, nas nossas tendas, na vela que lá me esquecera ardendo, fumarenta e vermelha — quando avistei, subindo a collina devagar, apoiado ao hombro da criança que o conduzia, o velho que já cruzáramos na estrada de Joppé, com uma lyra presa á cintura. Os seus passos arrastavam-se mais incertos, na fadiga d’uma jornada penosa; uma tristeza abatia-lhe sobre o peito a clara barba ondeante; e debaixo do manto côr de vinho, que lhe cobria a cabeça, as folhas da corôa de louro pendiam raras e murchas.
Topsius gritou-lhe: «Eh, Rapsodo!» E quando elle, tenteando as urzes do caminho, se acercou — o douto Historiador perguntou-lhe se das dôces Ilhas do mar trazia algum canto novo. O velho ergueu a face entristecida; e muito nobremente murmurou que uma mocidade imperecivel sorri nos mais antigos cantos da Hellenia. Depois, tendo assentado a sandalia sobre uma pedra, tomou a lyra entre as mãos vagarosas; a criança, direita, com as pestanas baixas, pôz á bôca uma flauta de cana; e, no resplandor da tarde que envolvia e dourava Sião, o Rapsodo soltou um canto já tremulo, mas glorioso e repassado de adoração, como ante a ara d’um templo, n’uma praia da Ionia... E eu percebi que elle cantava os Deuses, a sua belleza, a sua actividade heroica. Dizia o Delphico, imberbe e côr d’ouro, afinando os pensamentos humanos pelo rythmo da sua cythara; Atheneia, armada e industriosa, guiando as mãos dos homens sobre os teares; Zeus, ancestral e sereno, dando a belleza ás raças, a ordem ás cidades; e acima de todos, sem fórma e esparso, o Fado, mais forte que todos!
Mas subitamente um grito varou o céo no alto da collina, supremo e arrebatado como o de uma libertação! Os dedos frouxos do velho emmudeceram entre as cordas de metal: com a cabeça descabida, a corôa do louro épico meio desfolhada, parecia chorar sobre a lyra hellenica, d’ora em diante e para longas idades silenciosa e inutil. E ao lado a criança, tirando a flauta dos labios, erguia para as cruzes negras os olhos claros — onde subia a curiosidade e a paixão d’um mundo novo.
Topsius pediu ao velho a sua historia. Elle contou-a, com amargura. Viera de Samnos a Cesarêa, e tocava o konnor junto ao Templo d’Hercules. Mas a gente abandonava o puro culto dos heroes; e só havia festas e offrendas para a Boa Deusa da Syria! Acompanhára depois uns mercadores a Tiberiade: os homens ahi não respeitavam a velhice, e tinham corações interesseiros como escravos. Seguira então pelas longas estradas, parando nos postos romanos onde os soldados o escutavam; nas aldeias de Samaria batia ás portas dos lagares; e para ganhar o pão duro tocára a cythara grega nos funeraes dos barbaros. Agora errava alli, n’essa cidade onde havia um grande Templo, e um Deus feroz e sem fórma que detestava as gentes. E o seu desejo era voltar a Mileto, sua patria, sentir o fino murmurio das aguas do Meandro, poder palpar os marmores santos do templo de Phebo Dydimeo — onde elle em criança levára n’um cesto e cantando os primeiros anneis dos seus cabellos...
As lagrimas rolavam pela sua face, tristes como a chuva por um muro em ruinas. E a minha piedade foi grande por aquelle Rapsodo das ilhas da Grecia, perdido tambem na dura cidade dos judeus, envolto pela influencia sinistra d’um Deus alheio! Dei-lhe a minha derradeira moeda de prata. Elle desceu a collina, apoiado ao hombro da criança, lento e curvado, com a orla esfarrapada do manto trapejando nas pernas núas, e muda e mal segura do cinto a lyra heroica de cinco cordas.
No emtanto, em torno ás cruzes, no alto, crescera um rumor de revolta. E fômos encontrar a gente do Templo, com as mãos no ar, mostrando o sol que descia como um escudo d’ouro para o lado do mar de Tyro, intimando o Centurião a que baixasse os condemnados da cruz antes de soar a hora santa da Paschoa! Os mais devotos reclamavam que se applicasse aos crucificados, se ainda viviam, o crurifragio romano, quebrandolhes os ossos com barras de ferro, arrojando-os ao despenhadeiro de Hinom. E a indifferença do Centurião exasperava o zelo piedoso. Ousaria elle macular o Sabbath, deixando um corpo morto no ar? Alguns enrolavam a ponta do manto para correr, e ir a Acra avisar o Pretor.
— O sol declina! O sol vai deixar o Hebron! gritou de cima d’uma pedra um levita, aterrado.
— Acabai-os, acabai-os!
E ao nosso lado, um formoso moço exclamava, requebrando os olhos languidos, movendo os braços cheios de manilhas d’ouro:
— Atirai o Rabbi aos corvos! Dai ás aves de rapina a sua Paschoa!
O Centurião, que espreitava o alto da torre Marianna onde os escudos suspensos luziam batidos pelo sol derradeiro — acenou devagar com a espada. Dois Legionarios, lançando pesadamente ao hombro as barras de ferro, marcharam com elle para as cruzes. Eu, arripiado, agarrei o braço de Topsius. Mas diante do madeiro de Jesus o Centurião parou, erguendo a mão...
O corpo branco e forte do Rabbi tinha a serenidade d’um adormecimento: os pés empoeirados, que ha pouco a dôr torcia dentro das cordas, pendiam agora direitos para o chão como se o fossem em breve pisar: e a face não se via, tombada para traz mollemente por sobre um dos braços da cruz, toda voltada para o céo onde elle puzera o seu desejo e o seu reino... Eu olhei tambem o céo: rebrilhava, sem uma sombra, sem uma nuvem, liso, claro, mudo, muito alto, e cheio de impassibilidade...
— Quem reclamou o corpo d’este homem? gritou, procurando para os lados, o Centurião.
— Eu, que o amei em vida! acudiu Joseph de Ramatha, estendendo por cima da corda o seu pergaminho.
O escravo que esperava junto d’elle depoz logo no chão a trouxa de linho e correu para as ruinas do casebre onde as mulheres choravam entre as amendoeiras.
E por traz de nós, Phariseus e Sadduceus que se tinham juntado estranhavam com azedume que José de Ramatha, um membro do Sanhedrin, assim solicitasse o corpo do Rabbi para o perfumar e lhe fazer soar em torno as flautas e os prantos d’um funeral... Um d’elles, corcovado, com esfiadas melenas luzidias d’oleo, affirmava que sempre conhecera José de Ramatha inclinado para todos os innovadores, todos os sediciosos... Mais d’uma vez o vira fallar com esse Rabbi junto ao campo dos Tintureiros... E com elles estava Nicodemus, homem rico que tem gados, que tem vinhas, e todas as casas que estão d’ambos os lados da Synagoga de Cyrenaica...
Outro, rubicundo e molle, gemeu:
— Que será da nação, se os mais considerados se juntam aos que adulam o pobre, e lhe ensinam que os fructos da terra devem ser igualmente para todos!...
— Raça de Messias! bradou o mais moço com furor, atirando o bastão contra as urzes. Raça de Messias, perdição d’Israel!
Mas o Sadduceu de melenas oleosas ergueu devagar a mão, ligada em tiras sagradas:
— Socegai: Jehovah é grande: e tudo em verdade determina para melhor... No Templo e no Conselho não faltarão jámais homens fortes que mantenham a velha Ordem; e em cima dos calvarios, felizmente, hão de sempre erguer-se as cruzes!...
E todos susurraram:
— Amen!
No emtanto o Centurião, com os soldados atraz levando ao hombro as barras de ferro, marchava para os outros madeiros onde os condemnados, vivos e cheios d’agonia pediam agua — um pendido e gemendo, outro torcido, com as mãos rasgadas, rugindo terrivelmente. Topsius, que sorria friamente, murmurou: «É tempo, vamos.»
Com os olhos alagados d’agua amarga, tropeçando nas pedras, desci ao lado do fecundo critico a collina de Immolação. E sentia uma densa melancolia entenebrecer a minha alma pensando n’essas cruzes vindouras, annunciadas pelo conservador de guedelha oleosa... Assim seria, oh dura miseria! Sim! d’ora ávante, por todos os seculos a vir, iria sempre recomeçando em torno á lenha das fogueiras, sob a frialdade das masmorras, junto ás escadas das forcas — este affrontoso escandalo de se juntarem Sacerdotes, Patricios, Magistrados, Soldados, Doutores e Mercadores para matarem ferozmente no alto d’um morro o justo que penetrado do esplendor de Deus ensine a Adoração em Espirito, ou cheio do amor dos homens proclame o Reino da Igualdade!
Com estes pensamentos recolhi a Jerusalem — emquanto as aves, mais felizes que os homens, cantavam nos cedros do Gareb...
Escurecera e era a hora da Ceia Paschal, quando chegámos a casa de Gamaliel: no pateo, preso a uma argola, estava o burro, albardado de panos pretos, que trouxera o amavel physico Eliezer de Silo.
Na sala azul, de tecto de cedro, perfumada de malobrathro, o austero Doutor já nos aguardava estendido no divan de correias brancas, com os pés nús, as largas mangas arregaçadas e pregadas no hombro — e ao lado um bordão de viagem, uma cabaça d’agua e uma trouxa, emblemas rituaes da sahida do Egypto. Defronte d’elle, n’uma mesa incrustada de madreperola, entre vasos de barro com flôres pintadas, açafates de filigrana de prata transbordando de fruta e pedaços scintillantes de gelo, erguia-se um candelabro em fórma de arbusto, tendo na ponta de cada galho uma pallida chamma azul: e, com os olhos perdidos no seu brilho tremulo, as mãos cruzadas no ventre, Eliezer, o benigno «Doutor da Tripa», sorria beatificamente encostado a almofadas de couro vermelho. Junto d’elle dois escabellos, recobertos com tapetes da Assyria, esperavam por mim e pelo sagaz Historiador.
— Sêde bem vindos, rosnou Gamaliel. Grandes são as maravilhas de Sião, deveis vir esfomeados...
Bateu de leve as palmas. Os escravos, caminhando sem ruido nas sandalias de feltro, e precedidos majestosamente pelo homem obeso de tunica amarella, entraram, erguendo muito alto largos pratos de cobre que fumegavam.
A um lado tinhamos, para limpar os dedos, um bôlo de farinha branco, fino e molle como um pano de linho; do outro um prato largo, com cercadura de perolas, onde negrejava entre ramos de salsa um montão de cigarras fritas; no chão jarros com agua de rosa. Cumprimos as abluções: e Gamaliel, tendo purificado a bocca com um pedaço de gêlo, murmurou a oração ritual sobre a vasta travessa de prata, onde o cabrito assado fazia transbordar o môlho d’açafrão e saumura.
Topsius, bom sabedor das maneiras orientaes, arrotou fortemente, por cortezia, demonstrando fartura e deleite: depois, com uma febra de anho entre os dedos, affirmou sorrindo aos Doutores que Jerusalem lhe parecera magnifica, formosa de claridade, e bemdita entre as cidades...
Eliezer de Silo acudiu, com os olhos cerrados de gozo, como se o acariciassem:
— Ella é uma joia melhor que o diamante, e o Senhor engastou-a no centro da Terra para que irradiasse igualmente o seu brilho em redor...
— No centro da Terra!... murmurou o Historiador, com douto espanto.
Sim! E, ensopando um pedaço de bôlo no môlho d’açafrão, o profundo Physico explicou a Terra. Ella é chata e mais redonda que um disco; no meio está Jerusalem a santa, como um coração cheio do amor do Altissimo; em redor a Judêa, rica em balsamos e palmeiras, cerca-a de sombra e de aromas; para além ficam os pagãos, em regiões duras onde nem o mel nem o leite abundam; depois são os mares tenebrosos... E por cima o céo, sonoro e solido.
— Solido!... balbuciou o meu sapiente amigo, esgazeado.
Os escravos serviam em taças de prata cerveja amarella da Media. Com solicitude Gamaliel aconselhou-me que, para lhe avivar o sabôr, trincasse uma cigarra frita. E Rabbi Eliezer, sabio entre todos nas coisas da Natureza, revelava a Topsius a divina construcção do céo.
Elle é feito de sete duras, maravilhosas, rutilantes camadas de crystal; por cima d’ellas constantemente rolam as grandes aguas; sobre as aguas fluctua n’um fulgôr o espirito de Jehovah... Estas laminas de crystal, furadas como um crivo, resvalam umas sobre as outras com uma musica dôce e lenta que os prophetas mais queridos por vezes ouviam... Elle mesmo, uma noite que orava no eirado da sua casa em Silo, sentira por um raro favor do Altissimo essa harmonia, tão penetrante e suave que as lagrimas uma a uma lhe cahiam nas mãos abertas... Ora nos mezes de Kisleu e de Tebeth os furos das laminas coincidem, e por elles cahem sobre a Terra as gotas das aguas eternas que fazem crescer as searas!
— A chuva? perguntou Topsius, com acatamento.
— A chuva! respondeu Eliezer, com serenidade.
Topsius, mordendo um sorriso, ergueu para Gamaliel os seus oculos d’ouro que faiscavam de sabia ironia: mas o piedoso filho de Simeon conservava sobre a face, emmagrecida no estudo da Lei, uma seriedade impenetravel. Então o Historiador, remexendo as azeitonas, desejou saber do esclarecido Physico por que tinham os crystaes do céo essa côr azul que enleva a alma...
Eliezer de Silo elucidou-o:
— Uma grande montanha azul, invisivel até hoje aos homens, ergue-se a occidente: ora, quando o sol a bate, a sua reverberação banha o crystal do céo e anila-o.
É talvez n’essa montanha que vivem as almas dos justos!...
Gamaliel tossiu brandamente e murmurou: «Bebamos, louvando o Senhor!».
Ergueu uma taça cheia de vinho de Sichem, pronunciou sobre ella uma benção — passou-m’a, chamando a paz sobre o meu coração. Eu rosnei: «Á sua, muitos e felizes!» E Topsius, recebendo a taça com veneração, bebeu — «á prosperidade d’Israel, á sua força, ao seu saber!»
Depois os servos, precedidos pelo homem obeso de tunica amarella, que fazia resoar sobre as lages com pompa a sua vara de marfim, trouxeram a mais devota comida paschal — as hervas amargas.
Era uma travessa repleta de alface, agriões, chicorea, macella, com vinagre e grossas pedras de sal. Gamaliel mastigava-as solemnemente, como cumprindo um rito. Ellas representavam as amarguras de Israel no captiveiro do Egypto. E Eliezer, chupando os dedos, declarou-as deliciosas, fortificadoras e repassadas de alta lição espiritual.
Mas Topsius lembrou, fundado nos auctores gregos, que todos os legumes amollecem no homem a virilidade, lhe descoram a eloquencia, lhe enervam o heroismo: e com torrencial erudição citou logo Theophrasto, Eubulo, Nicandro na segunda parte do seu Diccionario, Phenias no seu Tratado das Plantas, Dephilo e Epicharmo!...
Gamaliel, seccamente, condemnou a inanidade d’essa sciencia — porque Hecateus de Mileto, só no primeiro livro da sua Descripção da Asia, encerra cincoenta e tres erros, quatorze blasphemias e cento e nove omissões... Assim dizia o leviano grego que a tamara, maravilhoso dom do Altissimo, enfraquece o intellecto!...
— Mas, exclamou Topsius com ardor, a mesma doutrina estabelece Xenophonte no livro segundo do Anabasis! E Xenophonte...
Gamaliel rejeitou a auctoridade de Xenophonte. Então Topsius, vermelho, batendo com uma colhér de ouro na borda da mesa, exaltou a eloquencia de Xenophonte, a forte nobreza do seu sentimento, a sua terna reverencia por Socrates!... E emquanto eu partia um empadão de Commagenia, os dois facundos doutores, asperamente, romperam debatendo Socrates. Gamaliel affirmava que as vozes secretas ouvidas por Socrates, e que tão divina e puramente o governavam, eram murmurios distantes que lhe chegavam da Judêa, repercussões miraculosas da voz do Senhor... Topsius pulava, encolhia os hombros, com desesperado sarcasmo. Socrates inspirado por Jehovah! Ora lérias!
No emtanto era certo (insistia Gamaliel, já livido) que os gentilicos iam emergindo da sua treva, attrahidos pela luz forte e pura que derramava Jerusalem: — porque a reverencia pelos Deuses apparecia em Eschylo profunda e cheia de terror; em Sophocles, amavel e cheia de serenidade; em Euripides, superficial e cheia de duvida... E cada um dos Tragicos dava assim, largamente, um passo para o Deus verdadeiro!
— Oh Gamaliel, filho de Simeon, murmurou Eliezer de Silo, tu, que possues a verdade, para que dás accesso no teu espirito aos pagãos?
Gamaliel respondeu:
— Para os desprezar melhor dentro em mim!
Farto de tão classica controversia, acheguei a Eliezer um covilhete de mel do Hebron — e contei-lhe quanto me agradára o caminho do Gareb entre jardins. Elle concordou que Jerusalem, cercada de vergeis, era dôce á vista como a fronte da noiva toucada d’anemonas. Depois estranhou que eu escolhesse, para me recrear, esses arredores de Gihon, cheios d’açougues, junto ao môrro escalvado onde se erguem as cruzes. Mais suave me teria sido a fragrancia de Siloeh...
— Fui vêr Jesus, atalhei severamente. Fui vêr Jesus, crucificado esta tarde por mandado do Sanhedrin...
Eliezer, com oriental cortezia, bateu no peito demonstrando mágua. E quiz saber se pertencia ao meu sangue, ou partilhára commigo o pão de alliança, esse Jesus que eu fôra assistir na sua morte d’escravo.
Eu considerei-o, assombrado:
— É o Messias!
E elle considerou-me mais assombrado ainda, com um fio de mel a escorrer-lhe na barba.
Oh raridade! Eliezer, doutor do Templo, Physico do Sanhedrin, não conhecia Jesus de Galilêa! Atarefado com os enfermos que pela Paschoa atulham Jerusalem (confessou elle) não fôra ao Xistus, nem á loja do perfumista Cleos, nem aos eirados de Hannan, onde as novas voam mais numerosas que as pombas: por isso nada ouvira da apparição d’um Messias...
De resto, acrescentou, não podia ser o Messias! Esse deveria chamar-se Manahem «o consolador», porque traria a consolação a Israel. E haveria dois Messias: o primeiro, da tribu de José, seria vencido por Gog; o segundo, filho de David e cheio de força, venceria Magog. Antes d’elle nascer começariam sete annos de maravilhas: haveria mares evaporados, estrellas despregadas do céo, fomes e taes farturas que até as rochas dariam fructo: no ultimo anno correria sangue entre as nações: emfim resoaria uma voz portentosa: e, sobre o Hebron, com uma espada de fogo, surgiria o Messias!...
Dizia estas coisas peregrinas fendendo a casca d’um figo. Depois com um suspiro:
— Ora ainda nenhuma d’essas maravilhas, meu filho, annunciou a consolação!...
E atolou os dentes no figo.
Então fui eu, Theodorico, Ibero, d’um remoto municipio romano, que contei a um Physico de Jerusalem, creado entre os marmores do Templo, a vida do Senhor! Disse as coisas dôces e as coisas fortes: as tres claras estrellas sobre o seu berço; a sua palavra amansando as aguas de Galilêa; o coração dos simples palpitando por elle; o Reino do Céo que promettia; e a sua face augusta brilhando diante do Pretor de Roma...
— Depois os Padres, os Patricios e os Ricos crucificaram-no!
Doutor Eliezer, volvendo a remexer o açafate de figos, murmurou pensativamente:
— Triste, triste!... Todavia, meu filho, o Sanhedrin é misericordioso. Em sete annos, desde que o sirvo, apenas tem lançado tres sentenças de morte... Sim, decerto o mundo necessita bem escutar uma palavra de amor e de justiça: mas Israel tem soffrido tanto com innovadores, com prophetas!... Emfim, nunca se deveria derramar o sangue do homem... E a verdade é que estes figos de Bephtagé não valem os meus de Silo!
Calado, enrolei um cigarro. E n’esse instante o douto Topsius, debatendo ainda com Gamaliel o Hellenismo e as escólas Socraticas, empinado, d’oculos na ponta do bico, soltava este resumo forte:
— Socrates é a semente; Platão a flôr; Aristoteles o fructo... E d’esta arvore, assim completa, se tem nutrido o espirito humano!
Mas Gamaliel subitamente ergueu-se: Doutor Eliezer tambem, arrotando com effusão. Ambos tomaram os cajados, ambos gritaram:
— Alleluia! Louvai o Senhor que nos tirou da terra do Egypto!
Findára a ceia Paschal. O esclarecido Historiador, que limpava o suor da controversia, olhou logo vivamente o relogio e rogou a Gamaliel permissão de subir ao terraço, a refrescar a sua emoção no ar macio d’Ophel... O Doutor da Lei conduziu-nos á varanda alumiada pallidamente por lampadas de mica, mostrou-nos a ingreme escada de ebano que levava aos eirados; e chamando sobre nós a graça do Senhor, penetrou com Eliezer n’um aposento cerrado por cortinas de Mesopotamia — d’onde sahiu um aroma, um fino rumor de risos e sons lentos de lyra.
Que dôce ar no terraço! E que alegre essa noite de Paschoa em Jerusalem! No céo, mudo e fechado como um palacio onde ha luto, nenhum astro brilhava: mas o burgo de David e a collina d’Acra, com as suas illuminações rituaes, pareciam salpicadas d’ouro. Em cada eirado, vasos com estopa ardendo em oleo lançavam uma chamma ondeante e vermelha. Aqui e além, n’alguma casa mais alta os fios de luzes, na parede escura, reluziam como um collar de joias no pescoço d’uma negra. O ar estava dôcemente cortado dos gemidos de flauta, da dolente vibração das cordas do konnor: e em ruas alumiadas por grandes fogueiras de lenha, viamos esvoaçar, claras e curtas, as tunicas de gregos dançando a callabida. Só as torres, mais vastas na noite, a Hippica, a Marianna, a Pharsala se conservavam escuras: e o mugido das suas bozinas passava por vezes, rouco e rude, como uma ameaça, sobre a santa cidade em festa.
Mas para além das muralhas recomeçava a alegria da noite paschal. Havia luzes em Siloeh. Nos acampamentos, sobre o monte das Oliveiras, ardiam fogos claros: e como as portas ficavam abertas, filas de tochas fumegavam pelos caminhos, por entre um rumor de cantares.
Só uma collina, além do Gareb, permanecera em treva. N’essa hora, por baixo d’ella, n’uma ravina entre rochas, alvejavam dois corpos despedaçados, onde os bicos dos abutres com um ruido secco de ferros entrechocados faziam a sua ceia Paschal. Ao menos outro corpo, precioso envolucro d’um espirito perfeito, jazia resguardado n’um tumulo novo, envolto em linho fino, ungido, perfumado de canella e de nardo. Assim o tinham deixado n’essa noite, a mais santa d’Israel, aquelles que o amavam — e que desde então para todo o sempre mais entranhadamente o amariam... Assim o tinham deixado com uma pedra lisa por cima: e agora entre as casas de Jerusalem, cheias de luzes e cheias de cantos — alguma havia, escura e fechada, onde corriam lagrimas sem consolação. Ahi o lar esfriára, apagado: a lampada triste esmorecia sobre o alqueire: na bilha não havia agua, porque ninguem fôra á fonte; e sentadas na esteira, com os cabellos cahidos, aquellas que o tinham seguido de Galilêa fallavam d’elle, das primeiras esperanças, das parabolas contadas por entre os trigaes, dos tempos suaves á beira do lago...
Assim eu pensava, debruçado sobre o muro, olhando Jerusalem — quando no terraço surgiu, sem rumor, uma fórma envolta em linhos brancos, espalhando um aroma de canella e de nardo. Pareceu-me que d’ella irradiava um clarão, que os seus pés não pisavam as lages — e o meu coração tremeu! Mas d’entre os pallidos panos uma benção sahiu, grave e familiar:
— Que a paz seja comvosco!
Ah! que allivio! Era Gad.
— Que a paz seja comtigo!
O Essenio parou diante de nós, calado; e eu sentia os seus olhos procurarem o fundo da minha alma, para lhe sondar bem a grandeza e a força. Por fim murmurou, immovel como uma imagem tumular nas suas grandes vestes brancas:
— A lua vai nascer... Todas as coisas esperadas se estão cumprindo... Agora, dizei! Sentis o coração forte para acompanhar Jesus, e guardal-o até ao oasis d’Engaddi?
Ergui-me, atirando os braços ao ar, n’um terror!... Acompanhar o Rabbi! Elle não jazia pois morto, ligado e perfumado, sob uma pedra, n’uma horta do Qareb?... Vivia! Ao nascer da lua, entre os seus amigos, ia partir para Engaddi! Agarrei anciosamente o hombro de Topsius, amparando-me ao seu saber forte e á sua auctoridade...
O meu douto amigo parecia enleado n’uma pesada incerteza:
— Sim, talvez... O nosso coração é forte, mas... Além d’isso não temos armas!
— Vinde commigo! acudiu Gad, ardentemente. Passaremos por casa d’alguem que nos dirá as coisas que convém saber, e que vos dará armas!...
Ainda trémulo, sem me desamparar do sapiente Historiador, ousei balbuciar:
— E Jesus?... Onde está?
— Em casa de José de Ramatha, segredou o Essenio espreitando em roda como o avaro que falla d’um thesouro. Para que nada suspeitasse a gente do Templo, mesmo na presença d’elles depositámos o Rabbi no tumulo novo que está no horto de José. Tres vezes as mulheres choraram sobre a pedra que segundo os ritos, como sabeis, não fechava inteiramente o tumulo, deixando uma larga fenda por onde se via o rosto do Rabbi. Alguns serventes do Templo olharam, e disseram: «Está bem.» Cada um recolheu á sua morada... Eu entrei pela porta de Genath, nada mais vi. Mas, apenas anoitecesse, José e outro, fiel inteiramente, deviam ir buscar o corpo de Jesus, e com as receitas que vem no livro de Salomão fazel-o reviver do desmaio em que o deixou o vinho narcotisado e o soffrimento... Vinde pois, vós que o amaes tambem e crêdes n’elle!...
Impressionado, decidido, Topsius traçou a sua farta capa: e descemos, n’um cauto silencio, pela escada que do terraço levava um caminho de pedra miuda collado á muralha nova d’Herodes.
Longo tempo marchámos na escuridão, guiados pelas roupagens brancas do Essenio. D’entre casebres em ruinas, por vezes um cão saltava uivando. Sobre as altas ameias passavam mortiças lanternas de ronda. Depois uma sombra que tossia ergueu-se de sob uma arvore, triste e molle como se sahisse da sua sepultura; e roçando o meu braço, puxando a capa de Topsius, rogava-nos através de gemidos e baforadas d’alho que fôssemos dormir ao seu leito que ella perfumára de nardo.
Parámos finalmente diante d’um muro, a que uma esteira grossa d’esparto cerrava a entrada. Um corredor que ressumbrava agua levou-nos a um pateo rodeado por uma varanda, assente sobre rudes vigas de madeira: o chão molle como lodo abafava o rumor das nossas solas.
Gad, tres vezes espaçadas, soltou o grito dos chacaes. Nós esperavamos no meio do pateo, á borda d’um poço, coberto com tábuas: o céo, por cima, guardava a escuridão dura e impenetravel d’um bronze. A um canto, emfim, sob a varanda, um clarão vivo de lampada surgiu — alumiando a barba negra do homem que a trazia e que lançára sobre a cabeça a ponta d’um albornoz pardo de galileu. Mas a luz morreu sob um sôpro forte. E o homem, lentamente, na treva, caminhou para nós.
Gad cortou a desolada mudez:
— Que a paz seja comtigo, irmão! Estamos promptos.
O homem pousou devagar a lampada sobre a tampa do poço, e disse:
— Tudo está consummado.
Gad, estremecendo, gritou:
— O Rabbi?
O homem atirou a mão para abafar o grito do Essenio. Depois, tendo sondado a sombra em redor com olhos inquietos que reluziam como os d’um animal do deserto:
— São coisas mais altas do que podemos entender. Tudo parecia certo. O vinho narcotisado fôra bem preparado pela mulher de Rosmophim, que é habil e conhece os simples... Eu tinha fallado ao Centurião, um camarada a quem salvei a vida na Germania, na campanha de Publius. E, quando rolámos a pedra sobre o tumulo de José de Ramatha, o corpo do Rabbi estava quente!
Mas calou-se: e, como se o pateo fechado sob o céo negro não fosse bastante secreto e seguro, tocou no hombro de Gad, e sem um rumor dos pés nús recolheu á escuridão mais densa sob a varanda, até ás pedras do muro. Nós, rente a elle e mudos, tremiamos de anciedade: — e eu senti que uma revelação ia passar, suprema e prodigiosa, alumiando os Mysterios.
— Ao anoitecer, segredou o homem por fim com um murmurio triste d’agua correndo na sombra, voltámos ao tumulo. Olhámos pela fenda: a face do Rabbi estava serena e cheia de magestade. Levantámos a pedra, tirámos o corpo. Parecia adormecido, tão bello, como divino, nos panos que o envolviam... José tinha uma lanterna: e levámol-o pelo Gareb, correndo através do arvoredo. Ao pé da fonte encontrámos uma ronda da Cohorte auxiliar. Dissemos: «é um homem de Joppé que adoeceu, e que nós levamos á sua synagoga.» A ronda disse: «passai». Em casa de José estava Simeon o Essenio, que viveu em Alexandria e sabe a natureza das plantas: e tudo fôra preparado, até a raiz do baraz... Estendemos Jesus na esteira. Démos-lhe a beber os cordiaes, chamámol-o, esperámos, orámos... Mas ai! sentiamos, sob as nossas mãos, arrefecer-lhe o corpo!... Um instante abriu lentamente os olhos, uma palavra sahiu-lhe dos labios. Era vaga, não a comprehendemos... Parecia que invocava seu pai, e que se queixava de um abandono... Depois estremeceu: um pouco de sangue appareceu-lhe ao canto da bocca... E, com a cabeça sobre o peito de Nicodemus, o Rabbi ficou morto!
Gad cahiu pesadamente de joelhos, soluçando: e o homem, como se todas as coisas tivessem sido ditas, deu um passo para buscar a sua lampada ao poço. Topsius deteve-o, com avidez:
— Escuta! Preciso toda a verdade. Que fizestes depois?
O homem parou junto a um dos pilares de madeira. Depois, alargando os braços na escuridão, e tão perto das nossas faces que eu sentia o seu bafo quente:
— Era necessario, para bem da terra, que se cumprissem as prophecias! Durante duas horas José de Ramatha orou, prostrado. Não sei se o Senhor lhe fallou em segredo; mas, quando se ergueu, resplandecia todo e gritou: «Elias veio! Elias veio! Os tempos chegaram!» Depois, por sua ordem, enterrámos o Rabbi n’uma caverna que elle tem, talhada na rocha, por traz do moinho...
Atravessou o pateo, tomou a sua lampada. E recolhia lentamente, sem um rumor, quando Gad, erguendo a face, o chamou através dos seus soluços:
— Escuta ainda! Grande é o Senhor, na verdade!... E o outro tumulo, onde as mulheres de Galilêa o deixaram, ligado e envolto em panos, com aloes e com nardo?
O homem, sem parar, murmurou, já sumido na treva:
— Lá ficou aberto, lá ficou vazio!...
Então Topsius arrastou-me pelo braço tão arrebatadamente que tropeçavamos no escuro contra os pilares da varanda. Uma porta ao fundo abriu-se, com um brusco estrondo de ferros cahidos... E vi uma praça, rodeada de pallidos arcos, triste e fria, com herva entre as fendas das lages dessoldadas, como n’uma cidade abandonada. Topsius estacou, os seus oculos faiscavam:
— Theodorico, a noite termina, vamos partir de Jerusalem!... A nossa jornada ao Passado acabou... A lenda inicial do christianismo está feita, vai findar o mundo antigo!
Eu considerei, assombrado e arripiado, o douto Historiador. Os seus cabellos ondeavam agitados por um vento de inspiração. E o que levemente sahia dos seus finos labios retumbava, terrivel e enorme, cahindo sobre o meu coração:
— Depois d’ámanhã, quando acabar o Sabbath, as mulheres de Galilêa voltarão ao sepulchro de José de Ramatha onde deixaram Jesus sepultado... E encontram-no aberto, encontram-no vazio!... «Desappareceu, não está aqui!...» Então Maria de Magdala, crente e apaixonada, irá gritar por Jerusalém — «resuscitou, resuscitou!» E assim o amor d’uma mulher muda a face do mundo, e dá uma religião mais á humanidade!
E, atirando os braços ao ar, correu através da praça — onde os pilares de marmore começavam a tombar, sem ruido e mollemente. Arquejando, parámos no portão de Gamaliel. Um escravo, tendo ainda nos pulsos pedaços de cadêas partidas, segurava os nossos cavallos. Montámos. Com um fragor de pedras levadas n’uma torrente, varámos a Porta d’Ouro: e galopámos para Jerichó, pela estrada romana de Sichem, tão vertiginosamente que não sentiamos as ferraduras ferir as lages negras de basalto. Adiante, a capa branca de Topsius torcia-se açoutada por uma rajada furiosa. Os montes corriam aos lados, como fardos sobre dorsos de camêlos na debandada d’um povo. As ventas da minha egoa dardejavam jactos de fumo avermelhado: — e eu agarrava-me ás clinas, tonto, como se rolasse entre nuvens...
De repente avistámos, alargada, cavada até ás serras de Moab, a planicie de Canaan. O nosso acampamento alvejava junto ás bragas dormentes da fogueira. Os cavallos estacaram, tremendo. Corremos ás tendas: sobre a mesa, a vela que Topsius accendera para se vestir, havia mil e oitocentos annos, morria n’um fogacho livido... E derreado da infinita jornada atirei-me para o catre, sem mesmo descalçar as botas brancas de pó...
Immediatamente me pareceu que uma tocha fumegante penetrára na tenda, esparzindo um brilho d’ouro... Ergui-me, assustado. N’um largo raio de sol, vindo dos montes de Moab, o jocundo Potte entrava, em mangas de camisa, com as minhas botas na mão!
Arrojei a manta, arredei os cabellos, para verificar melhor a mudança terrivel que desde a vespera se fizera no Universo! Sobre a mesa jaziam as garrafas do champagne com que brindaramos á Sciencia e á Religião. O embrulho da Corôa d’Espinhos pousava á minha cabeceira. Topsius, no seu catre, em camisola e com um lenço amarrado na testa, bocejava, pondo os oculos de ouro no bico. E o risonho Potte, censurando a nossa preguiça, queria saber se appeteciamos n’essa manhã — «tapioca ou café».
Deixei sahir deliciosamente do peito um ruidoso, consolado suspiro. E no jubilo triumphal de me sentir reentrado na minha individualidade e no meu seculo pulei sobre o colxão, com a fralda ao vento, bradei:
— Tapioca, meu Potte! Uma tapioca bem docinha e mollesinha, que saiba bem ao meu Portugal!...
IV
Ao outro dia, que fôra um radioso domingo, levantámos de Jerichó as nossas tendas; e caminhando com o sol para occidente; pelo valle de Cherith, começámos a romagem de Galilêa.
Mas ou fosse que a consoladora fonte da admiração houvesse seccado dentro em mim, ou que a minha alma, arrebatada um momento aos cimos da Historia e batida ahi por asperas rajadas de emoção, não se pudesse já aprazer n’estes quietos e êrmos caminhos da Syria — senti sempre indifferença e cansaço, do paiz de Ephraim ao paiz de Zebelon.
Quando n’essa noite acampámos em Bethel, vinha a lua cheia sahindo por traz dos montes negros de Gilead... O festivo Potte mostrou-me logo o chão sagrado em que Jacob, pastor de Bersabé, tendo adormecido sobre uma rocha, vira uma escada que faiscava, fincada a seus pés e arrimada ás estrellas, por onde ascendiam e baixavam, entre terra e céo, anjos calados, com as azas fechadas... Eu bocejei formidavelmente e rosnei: — «Tem seu chic!...»
E assim rosnando e bocejando, atravessei a terra dos prodigios. A graça dos valles foi-me tão fastidiosa como a santidade das ruinas. No poço de Jacob, sentado nas mesmas pedras em que Jesus, cansado como eu da calma d’estas estradas e como eu bebendo do cantaro d’uma Samaritana, ensinára a nova e pura maneira de adorar; nas encostas do Carmello, n’uma cella de mosteiro, ouvindo de noite ramalhar os cedros que abrigaram Elias, e gemerem em baixo as ondas, vassallas de Hyram rei de Tyro; galopando com o albornoz ao vento pela planicie de Esdrelon; remando dôcemente no lago de Grenesareth, coberto de silencio e de luz — sempre o Tedio marchou a meu lado como companheiro fiel, que a cada passo me apertava ao seu peito molle, debaixo do seu manto pardo...
Ás vezes, porém, uma saudade fina e gostosa, vinda do remoto Passado, levantava de leve a minha alma, como uma aragem lenta faz a uma cortina muito pesada... E então, fumando diante das tendas, trotando pelo leito sêcco das torrentes, eu revia, com deleite, pedaços soltos d’essa Antiguidade que me apaixonára: — a Therma romana onde uma creatura maravilhosa de mitra amarella se offertava, lasciva e pontifical; o formoso Manassés levando a mão á espada cheia de pedrarias; mercadores, no Templo, desdobrando os brocados de Babylonia; a sentença do Rabbi com um traço vermelho, n’um pilar de pedra, á porta Judiciaria; ruas illuminadas, gregos dançando a callabida... E era logo um desejo angustioso de remergulhar n’esse mundo irrecuperavel. Coisa risivel! eu, Raposo e bacharel, no farto gozo de todos os confortos da Civilisação — tinha saudade d’essa barbara Jerusalem que habitára n’um dia do mez de Nizam, sendo Poncius Pilatus procurador da Judêa!
Depois estas memorias esmoreciam como fogos a que falta a lenha. Na minha alma só restavam cinzas — e, diante das ruinas do monte Ebal ou sob os pomares que perfumam Sichem a Levitica, recomeçava a bocejar.
Quando chegámos a Nazareth, que apparece na desolação da Palestina como um ramalhete pousado na pedra d’uma sepultura — nem me interessaram as lindas judias por quem se banhou de ternura o coração de Santo Antonino. Com a sua cantara vermelha ao hombro, ellas subiam por entre os sycomoros á fonte onde Maria, mãi de Jesus, ia todas as tardes, cantando como estas e como estas vestida de branco... O jocundo Potte, torcendo os bigodes, murmurava-lhes madrigaes; ellas sorriam, baixando as pestanas pesadas e meigas. Era diante d’esta suave modestia que Santo Antonino, apoiado ao seu bordão, sacudindo a sua longa barba, suspirava: «Oh virtudes claras, herdadas de Maria cheia de graça!» Eu, por mim, rosnava seccamente: «lambisgoias»!
Através de viellas onde a vinha e a figueira abrigam casas humildes, como convém á dôce aldeia d’aquelle que ensinou a humildade, trepámos ao cimo de Nazareth, batido sempre do largo vento que sopra das Idumeias. Ahi Topsius tirou o barrete saudando essas planicies, esses longes, que decerto Jesus vinha contemplar, concebendo diante da sua luz e da sua graça as incomparaveis bellezas do reino de Deus... O dedo do douto Historiador ia-me apontando todos os lugares religiosos — cujos nomes sonoros cahem na alma com uma solemnidade de prophecia ou com um fragor de batalha: Esdrelon, Endor, Sulem, Thabor... Eu olhava, enrolando um cigarro. Sobre o Carmello sorria uma brancura de neve; as planicies da Perea fulguravam, rolando uma poeira de ouro; o golfo de Kaipha era todo azul; uma tristeza cobria ao longe as montanhas de Samaria; grandes aguias torneavam sobre os valles... Bocejando, rosnei:
— Vistasinha catita!
Uma madrugada, emfim, recomeçámos a descer para Jerusalem. Desde Samaria a Ramah fomos alagados por esses vastos e negros chuveiros da Syria que armam logo torrentes rugindo entre as rochas, sob os aloendros em flôr: depois, junto á collina de Gibeah onde outr’ora no seu jardim, entre o loiro e o cypreste, David tangia harpa olhando Sião — tudo se vestiu, de serenidade e de azul. E uma inquietação engolfou-se em minha alma como um vento triste n’uma ruina... Eu ia avistar Jerusalem! Mas — qual? Seria a mesma que vira um dia, resplandecendo sumptuosamente ao sol de Nizam, com as torres formidaveis, o Templo côr de ouro e côr de neve, Acra cheia de palacios, Bezetha regada pelas aguas d’Enrogel?...
— El-Kurds! El-Kurds! gritou o velho beduino, com a lança no ar, annunciando pela sua alcunha musulmana a cidade do Senhor.
Galopei, a tremer... E logo a vi, lá em baixo, junto á ravina do Cedron, sombria, atulhada de conventos e agachada nas suas muralhas caducas — como uma pobre, coberta de piolhos, que para morrer se embrulha a um canto nos farrapos do seu mantéo.
Bem depressa, transpassada a Porta de Damasco, as patas dos nossos cavallos atroaram o lagedo da rua Christã: rente ao muro um frade gordo, com o breviario e o guardasol de paninho entalados sob o braço, ia sorvendo uma pitada estrondosa. Apeámos no Hotel do Mediterraneo: no esguio pateo, sob um annuncio das «Pilulas Holloway» um inglez, com um quadrado de vidro collado ao olho claro, os sapatões atirados para cima do divan de chita, lia o Times; por traz d’uma varanda aberta, onde seccavam ceroulas brancas com nodoas de café, uma goela roufenha vozeava: C’est le beau Nicolas, holà!... Ah! era esta, era esta, a Jerusalém Catholica!... Depois ao penetrar no nosso quarto, claro e alegrado pelo tabique de ramagens azues, ainda um instante me rebrilhou na memoria certa sala, com candelabros d’ouro e uma estatua d’Augusto, onde um homem togado estendia o braço e dizia: «Cesar conhece-me bem!»
Corri logo á janella a sorver o ar vivo da moderna Sião. Lá estava o convento com as suas persianas verdes fechadas, e as gotteiras agora mudas n’esta tarde de sol e doçura... Entre socalcos de jardins, lá se torciam as escadinhas, cruzadas por Franciscanos d’alpercatas, por judeus magros de sujas melenas... E que repouso na frescura d’estas paredes de cella depois das estradas abrazadas de Samaria! Fui apalpar a cama fofa. Abri o guarda-roupa de mogno. Fiz uma caricia leve ao embrulhinho da camisa da Mary, redondo e gracioso com o seu nastro vermelho, aninhado entre piugas.
N’esse instante o jocundo Potte entrou a trazer-me o precioso embrulho da Corôa d’Espinhos, redondo e nitido com o seu nastro vermelho; e alegremente deu-me as novas de Jerusalem. Colhera-as do barbeiro da Via-Dolorosa e eram consideraveis. De Constantinopla viera um firman exilando o Patriarcha grego, pobre velho evangelico, com uma doença de figado, que soccorria os pobres. O snr. consul Damiani affirmára na loja de reliquias da rua Armenia, batendo o pé, que antes do dia de Reis, por causa da birra do murro entre os Franscicanos e a Missão Protestante, a Italia tomaria armas contra a Allemanha. Em Bethlem, na egreja da Natividade, um padre latino n’uma bulha, ao benzer hostias, rachára a cabeça d’um padre copta com uma tocha de cera... E enfim, novidade mais jubilosa, abrira-se para alegria de Sião, ao pé da porta de Herodes, deitando sobre o valle de Josaphat, um café com bilhares, chamado o Retiro do Sinai!
Subitamente, saudades dolentes do passado, cinzas que me cobriam a alma foram varridas por um fresco vento de mocidade e de modernidade... Pulei sobre o ladrilho sonoro:
— Viva o bello Retiro! A elle! ás iscas! á carambola! Irra! que estava morto por me refestellar! E depois ás mulherinhas!... Põe ahi o embrulho da Corôa, bello Potte... Isso significa muito bago! Jesus, o que ahi a titi se vai babar!... Planta-o em cima da commoda, entre os castiçaes... E logo, depois da comidinha, Pottesinho, para o Retiro do Sinai!
Justamente o sabio Topsius entrava esbaforido, com uma formosa nova historica! Durante a nossa romagem a Galilêa, a Commissão de Excavações Biblicas encontrára, sob lixos seculares, uma das lapides de marmore que, segundo Josepho e Philon e os Talmuds, se erguiam no Templo, junto á Porta Bella, com uma inscripção prohibindo a entrada aos Gentilicos... E elle instava que marchassemos, engolida a sopa, a pasmar para essa maravilha... Um momento ainda me rebrilhou na memoria uma Porta, bella em verdade, preciosa e triumphal, sobre os seus quatorze degraus de marmore verde de Numidia...
Mas sacudi desabridamente os braços, n’uma revolta:
— Não quero! gritei. Estou farto!... Irra! E aqui lh’o declaro, Topsius, solemnemente: de hoje em diante não torno a vêr nem mais um pedregulho, nem mais um sitio de Religião... Irra! Tenho a minha dóse: e forte, muito forte, doutor!
O sabio, enfiado, abalou com a rabona collada ás nádegas.
N’essa semana occupei-me em documentar e empacotar as Reliquias Menores que destinava á tia Patrocinio. Copiosas e bem preciosas eram ellas — e com devotissimo lustre brilhariam no thesouro da mais orgulhosa Sé! Além das que Sião importa de Marselha em caixotes — rosarios, bentinhos, medalhas, escapularios; além das que fornecem no Santo Sepulcho os vendilhões — frascos d’agua do Jordão, pedrinhas da Via Dolorosa, azeitonas do Monte Olivete, conchas do lago de Genesareth — eu levava-lhe outras raras, peregrinas, ineditas... Era uma taboinha aplainada por S. José; duas palhinhas do curral onde nasceu o Senhor; um bocadinho do cantaro com que a Virgem ia á fonte; uma ferradura do burrinho em que fugiu a Santa Familia para a terra do Egypto; e um prégo torto e ferrugento...
Estas preciosidades, embrulhadas em papeis de côr, atadas com fitinhas de sêda, guarnecidas de tocantes disticos — foram acondicionadas n’um forte caixote, que a minha prudencia fez revestir de chapas de ferro. Depois cuidei da Reliquia Maior, a Corôa de Espinhos, fonte de celestiaes mercês para a titi — e de sonora pecunia para mim, seu cavalleiro e seu romeiro.
Para a encaixotar, ambicionei uma madeira preclara e santa. Topsius aconselhava o cedro do Libano — tão bello que por elle Salomão fez alliança com Hyram rei de Tyro. O jocundo Potte porém, menos archeologico, lembrou o honesto pinho de Flandres benzido pelo Patriarcha de Jerusalem. Eu diria á titi que os prégos para o pregar tinham pertencido á Arca de Noé: que um Ermitão os achára miraculosamente no monte Ararat; que a ferragem que n’elles deixára o lodo primitivo, dissolvida em agua benta, curava catarrhos... Tramámos estas coisas consideraveis, cervejando no Sinai.
Durante esta atarefada semana, o embrulho da Corôa d’Espinhos permanecera na commoda entre os dois castiçaes de vidro: foi só na vespera de deixarmos Jerusalem que o encaixotei com carinho. Forrei a madeira de chita azul, comprada na Via Dolorosa; fiz fôfo e dôce o fundo do caixote com uma camada d’algodão mais branco que a neve do Carmello; e colloquei dentro o adoravel embrulho, sem o remexer, como Topsius o arranjára, no seu papel pardo e no seu nastro vermelho — porque estas mesmas dobras do papel vincadas em Jerichó, este mesmo nó do nastro atado junto ao Jordão, teriam para a snr.ª D. Patrocinio um insubstituivel sabor de devoção... O esguio Topsius considerava estes piedosos aprestes, fumando o seu cachimbo de louça.
— Oh Topsius, que chelpa isto me vai render! E diga lá, amiguinho, diga lá! Então acha que eu posso affirmar á titi que esta Corôa d’Espinhos foi a mesma que...
O doutissimo homem, por entre o fumo leve, soltou uma solidissima maxima:
— As reliquias, D. Raposo, não valem pela authenticidade que possuem, mas pela fé que inspiram. Póde dizer á titi que foi a mesma!
— Bemdito sejas, doutor!
N’essa tarde, o erudito homem acompanhára aos Tumulos dos Reis a Commissão de Excavações. Eu parti, só, para o Horto das Oliveiras — porque não havia, em torno a Jerusalem, lugar de sombra onde mais gratamente em tardes serenas gozasse um pachorrento cachimbo.
Sahi pela porta de Santo Estevão; trotei pela ponte do Cedron; galguei o atalho entre piteiras até ao murosinho, caiado e aldeão, que cerra o jardim de Gethsemani. Empurrei a portinha verde, pintada de fresco, com a sua aldraba de cobre: e penetrei no pomar onde Jesus ajoelhou e gemeu sob a folhagem das Oliveiras. Alli vivem ainda, essas arvores santas que ramalharam embaladoramente sobre a sua cabeça fatigada do mundo! São oito, negras, carcomidas pela decrepitude, escoradas com estacas de madeira, amodorradas, já esquecidas d’essa noite de Nizam em que os anjos, voando sem rumor, espreitavam através dos seus ramos as desconsolações humanas do filho de Deus... Nos buracos dos seus troncos estão guardados enxós e podões: nas pontas dos galhos raras e tenues folhinhas, d’um verde sem seiva, tremem e mal vivem como os sorrisos d’um moribundo.
E em redor que hortasinha caridosamente regada, estrumada com devoção! Em canteiros, com sebes de alfena, verdejam frescas alfaces: as ruasinhas areadas não têm uma folha murcha que lhes macule o aceio de capella: rente aos muros, onde rebrilham em nichos doze Apostolos de louça, correm alfobres de cebolinho e cenoura fechados por cheirosa alfazema... Porque não floria aqui, em tempos de Jesus, tão suave quintal? Talvez a placida ordem d’estes uteis legumes calmasse a tormenta do seu coração!
Sentei-me debaixo da mais velha oliveira. O frade guardião, risonho santo de barbas sem fim, regava com o habito arregaçado os seus vasos de rainunculos. A tarde cahia com melancolico esplendor.
E, enchendo o cachimbo, eu sorria aos meus pensamentos. Sim! Ao outro dia deixaria essa cinzenta cidade, que lá em baixo se agachava entre os seus muros funebres como viuva que não quer ser consolada... Depois uma manhã, cortando a vaga azul, avistaria a serra fresca de Cintra: as gaivotas da patria vinham dar-me o grito de boa acolhida, esvoaçando em torno aos mastros; Lisboa pouco a pouco surgia, com as suas brancas caliças, a herva nos seus telhados, indolente e dôce aos meus olhos... Berrando «oh titi, oh titi!», eu trepava as escadas de pedra da nossa casa em Sant’Anna: e a titi, com fios de baba no queixo, punha-se a tremer diante da Grande Reliquia que eu lhe offerecia, modesto. Então, na presença de testemunhas celestes, de S. Pedro, de Nossa Senhora do Patrocinio, de S. Casimiro e de S. José, ella chamava-me «seu filho, seu herdeiro!» E ao outro dia começava a amarellecer, a definhar, a gemer... Oh delicia!
De leve, sobre o muro, entre as madresilvas um passaro cantou: e mais alegre que elle cantou uma esperança no meu coração! Era a titi na cama, com o lenço negro amarrado na cabeça, apalpando angustiosamente as dobras do lençol suado, arquejando com terror do Diabo... Era a titi a espichar, retesando as canellas. N’um dia macio de Maio mettiam-n’a já fria e cheirando mal, dentro d’um caixão bem pregado e bem seguro. Com tipoias atraz, lá marchava D. Patrocinio para a sua cova, para os bichos. Depois quebrava-se o lacre do testamento na sala dos damascos, onde eu preparára para o tabellião Justino pasteis e vinho do Porto: carregado de luto, amparado ao marmore da mesa, eu afogava n’um lenço amarfanhado o escandaloso brilho da minha face: e d’entre as folhas de papel sellado sentia, rolando com um tinir d’ouro, rolando com um susurro de searas, rolando, rolando para mim os contos de G. Godinho!... Oh extasi!
O santo frade pousára o regador, e passeava com o Breviario aberto n’uma ruasinha de murta. Que faria eu, na minha casa em Sant’Anna, apenas levassem a fetida velha, amortalhada n’um habito de Nossa Senhora? Uma alta justiça: correr ao oratorio, apagar as luzes, desfolhar os ramos, abandonar os santos á escuridão e ao bolor! Sim, todo eu, Raposo e liberal, necessitava a desforra de me ter prostrado diante das suas figuras pintadas como um sordido sacrista, de me ter recommendado á sua influencia de calendario como um escravo credulo! Eu servira os santos para servir a titi. Mas agora, ineffavel deleite, ella na sua cova apodrecia: n’aquelles olhos, onde nunca escorrera uma lagrima caridosa, fervilhavam gulosamente os vermes: sob aquelles beiços, desfeitos em lôdo, surgiam emfim sorrindo os seus velhos dentes furados que jámais tinham sorrido... Os contos de G. Godinho eram meus; e libertado da ascorosa senhora, eu já não devia aos seus santos nem rezas nem rosas! Depois, cumprida esta obra de justiça philosophica, corria a Paris, ás mulherinhas!
O bom frade, risonho na sua barba de neve, bateu-me no hombro, chamou-me seu filho, lembrou-me que se fechava o Santo Horto e que lhe seria grata a minha esmola... Dei-lhe uma placa: e recolhi regalado a Jerusalem, devagar, pelo valle de Josaphat, cantarolando um fado meigo.
Ao outro dia de tarde, tocava o sino a Novena na egreja da Flagellação quando a nossa caravana se formou á porta do Hotel do Mediterraneo, para partirmos de Jerusalem. Os caixões das reliquias iam sobre o macho, entre os fardos. O beduino, mais encatarrhoado, abafára-se n’um ignobil cachenez de sacristão. Topsius montava outra egoa, séria e pachorrenta. E eu, que por alegria puzera uma rosa vermelha ao peito, resmunguei, ao pisarmos pela vez derradeira a Via Dolorosa: — «Fica-te, possilga de Sião!»
Já chegávamos á porta de Damasco quando um grito esbaforido resoou, no alto da rua, á esquina do convento dos Abyssinios:
— Amigo Potte, doutor, cavalheiros!... Um embrulho! Esqueceu um embrulho...
Era o negro do Hotel, em cabello, agitando um embrulho que logo reconheci pelo papel pardo e pelo nastro vermelho. A camisinha de dormir da Mary! E recordei que com effeito, ao emmalar, eu não o vira no guarda-roupa, no seu ninho de piugas.
Esfalfado, o servo contou que depois de partirmos, varrendo o quarto, descobrira o embrulhinho entre pó e aranhas, detraz da commoda; limpára-o carinhosamente; e como fôra sempre seu afan servir o fidalgo lusitano, abalára, mesmo sem a jaleca...
— Basta! rosnei eu, sêcco e carrancudo.
Dei-lhe as moedas de cobre que me atulhavam as algibeiras. E pensava: «Como rolou elle para traz da commoda?» Talvez o negro atabalhoado que, arrumando, o tirára do seu ninho de piugas... Pois antes lá permanecesse para sempre, entre o pó e as aranhas! Porque em verdade este pacote era agora audazmente impertinente.
Decerto! eu amava a Mary. A esperança que em breve na terra do Egypto seria apertado pelos seus braços gordinhos ainda me fazia espreguiçar com langor. Mas guardando fielmente a sua imagem no coração, não necessitava trazer perennemente á garupa a sua camisinha de dormir. Com que direito pois corria esta bretanha atraz de mim, pelas ruas de Jerusalem, querendo installar-se violentamente nas minhas malas e acompanhar-me á minha patria?
E era essa idéa de patria que me torturava, emquanto nos afastavamos das muralhas da Cidade Santa... Como poderia eu jámais penetrar com este pacote lubrico na casa ecclesiastica da tia Patrocinio? Constantemente a titi se encafuava no meu quarto, munida de chaves falsas, aspera e avida, rebuscando pelos cantos, nas minhas cartas e nas minhas ceroulas... Que cólera a esverdearia se n’uma noite de pesquizas ella encontrasse estas rendas babujadas pelos meus labios, fedendo a peccado, com a offerta em letra cursiva «Ao meu portuguezinho valente!»
«Se soubesse que n’esta santa viagem te tinhas mettido com saias, escorraçava-te como um cão!» Assim o dissera a titi, em vesperas da minha romagem, diante da Magistratura e da Egreja. E iria eu, pelo luxo sentimental de conservar a reliquia d’uma luveira, perder a amizade da velha que tão caramente conquistára com terços, pingos d’agua benta e humilhações da razão liberal? Jámais!... E, se não afoguei logo o embrulho funesto na agua d’um charco, ao atravessarmos as choças de Kolonieh, foi para não revelar ao penetrante Topsius as covardias do meu coração. Mas decidi que mal penetrassemos com a noite nas montanhas de Judá, retardaria o passo á egoa, e longe dos oculos do Historiador, longe das solicitudes de Potte, arrojaria a um barranco a terrivel camisa da Mary, evidencia do meu peccado e damno da minha fortuna. E que bem depressa os dentes dos chacaes a rasgassem! Bem depressa os chuveiros do Senhor a apodrecessem!
Já passáramos o tumulo de Samuel por traz dos rochedos d’Emmaus, já para sempre Jerusalem desapparecera aos meus olhos, quando a egoa de Topsius, avistando uma fonte, n’um valle cavado junto á estrada, deixou a caravana, deixou o dever — e trotou para a agua, com impudencia e com alacridade. Estaquei, indignado:
— Puxe-lhe a redea, doutor! Olha que descaro d’egoa! Ainda agora bebeu... Não lhe ceda! Puxe mais! Não lhe toque, homem!
Mas debalde o philosopho, com os cotovêlos sahidos, as pernas esticadas, lhe repuxava bridões e clinas. A cavalgadura abalou com o philosopho.
Corri tambem á fonte, para não abandonar n’aquelle ermo o precioso homem. Era um fio d’agua turva, escorrendo d’uma quelha, sobre um tanque escavado na rocha. Ao pé branquejava, já partida, a grande carcassa d’um dromedario. Os ramos d’uma mimosa, alli solitaria, tinham sido queimados por um fogo de caravana. Longe, na espinha escarnada d’uma collina, um pastor, negro no céo opalino, ia caminhando devagar entre as suas ovelhas com a lança pousada ao hombro. E na sombria mudez de tudo a fonte chorava.
Aquella quebrada era tão deserta que me lembrou deixar alli a desfazer-se, como a ossada do dromedario, o embrulhinho da Mary... A egoa do Historiador beberava com pachorra. E eu procurava aqui, além, um barranco ou um charco — quando me pareceu que junto da fonte, e misturado ao pranto d’ella, corria tambem um pranto humano.
Torneei um penedo que avançava soberbamente como a prôa d’uma galera — e descobri, agachada e refugiada entre as pedras e os cardos, uma mulher que chorava, com uma criancinha no regaço: os seus cabellos crespos espalhavam-se pelos hombros e pelos braços, que os trapos negros mal cobriam: e sobre o filho, que dormia no calor do collo, o seu chôro corria, mais contínuo, mais triste que o da fonte, e como se não devesse findar jámais.
Gritei pelo jocundo Potte. Quando elle trotou para nós, agarrando a coronha prateada da sua pistola, suppliquei que perguntasse á mulher a causa d’essas longas lagrimas. Mas ella parecia entontecida pela miseria: fallou surdamente d’um casebre queimado, de cavalleiros turcos que tinham passado, do leite que lhe seccava... Depois apertou a criança contra a face — e suffocada, sob os cabellos esguedelhados, recomeçou a chorar.
O festivo Potte deitou-lhe uma moeda de prata; Topsius tomou, para a sua severa conferencia sobre a Judêa Musulmana, um apontamento d’aquelle infortunio. E eu, commovido, procurava na algibeira o meu cobre — quando me recordei que o dera n’um punhado ao negro do Hotel do Mediterraneo. Mas tive uma util inspiração. Atirei-lhe o perigoso embrulho da camisinha da Mary; e a meu pedido o risonho Potte explicou á desventurada que qualquer das peccadoras que habitam junto á torre de David, a gorda Fatmé ou Palmira a Samaritana, lhe daria duas piastras d’ouro por esse vestido de luxo, de amor e de civilisação.
Trotámos para a estrada. Atraz de nós a mulher lançava-nos, por entre soluços e beijos ao filho, todas as bençãos do seu coração: e a nossa caravana retomou a marcha — emquanto o arrieiro adiante, escarranchado sobre as bagagens, cantava á estrella de Venus que se erguera esse canto da Syria, aspero, alongado e dolente, em que se falla d’amor, de Allah, d’uma batalha com lanças, e dos rosaes de Damasco...
Ao apearmos de manhã no Hotel de Josaphat, na vetusta Jaffa — prodigiosa foi a minha surpreza vendo, pensativamente sentado no pateo, com um bojudo turbante branco, o mofino Alpedrinha!... Fiz-lhe ranger os ossos n’um abraço voraz. E quando Topsius e o jocundo Potte partiram, debaixo do guardasol de paninho, a colher novas do paquete que nos devia levar á terra do Egypto — Alpedrinha contou-me a sua historia, escovando o meu albornoz.
Fôra por tristeza que deixára a «Alexandriasinha». O Hotel das Pyramides, as maletas carregadas, tinham já saturado a sua alma d’um tedio insondavel: e o nosso embarque no Caimão para Jerusalem dera-lhe a saudade dos mares, das cidades cheias d’historia, das multidões desconhecidas... Um judeu de Keshan, que ia fundar uma estalagem em Bagdad com bilhar, alliciára-o para «marcador». E elle, mettendo n’um sacco as piastras juntas nas amarguras do Egypto, ia tentar essa aventura do Progresso junto ás aguas lentas do Euphrates, na terra de Babylonia. Mas, cansado de acarretar fardos alheios, buscava primeiro Jerusalem, insensivelmente, levado talvez pelo Espirito como o Apostolo, para descansar com as mãos quietas a uma esquina da Via Dolorosa...
— E o cavalheiro recebeu alguns jornaes da nossa Lisboa? Gostava de saber como vai por lá a rapaziada...
Emquanto elle assim balbuciava, triste e com o turbante á banda, eu revia risonhamente a terra quente do Egypto, a rua clara das Duas Irmãs, a capellinha entre platanos, as papoilas do chapéo da Mary... E mais agudo me picava outra vez o desejo da minha loira luveira. Que dôce grito de paixão nos seus beiços gordinhos, quando uma tarde, queimado pelo sol da Syria e mais forte, eu surgisse diante do seu balcão espantando o gato branco! E a camisinha?... Bem! contaria que uma noite, junto d’uma fonte, m’a tinham roubado cavalleiros turcos com lanças.
— Dize lá, Alpedrinha! Tenl-a visto, a Maricoquinhas? Que tal está? hein? Rechonchudinha?
Elle baixou o rosto murcho, onde um estranho rubor lhe avivára duas rosas.
— Já não está... Foi para Thebas!
— Para Thebas? Onde ha umas ruinas?... Mas isso é no alto Egypto! Isso é em cascos de Nubia! Ora essa!... Que foi ella lá fazer?
— Alindar as vistas, murmurou Alpedrinha com desolação.
Alindar as vistas! Só comprehendi quando o patricio me contou que a ingrata rosa d’York, adorno d’Alexandria, fôra levada por um italiano de cabellos compridos, que ia a Thebas photographar as ruinas d’esses palacios onde viviam face a face Rameses, rei dos homens, e Amnon, rei dos Deuses... E Maricoquinhas ia amenisar «as vistas», apparecendo n’ellas, á sombra austera dos granitos sacerdotaes, com a graça moderna do seu guardasolinho fechado e do seu chapéo de papoilas...
— Que descarada! gritei eu, varado. Então com um italiano? E gostando d’elle? Ou só negocio?... Hein, gostando?
— Babadinha, balbuciou Alpedrinha.
E, com um suspiro, atroou o Hotel de Josaphat. Perante este ai, repassado de tormento e de paixão, relampejou-me n’alma uma suspeita abominavel.
— Alpedrinha, tu suspiraste! Aqui ha perfidia, Alpedrinha!
Elle baixou a fronte tão contritamente que o turbante lasso rolou nos ladrilhos. E antes que elle o levantasse já eu lhe empolgára com sanha o braço molle.
— Alpedrinha, escarra a verdade! A Maricoquinhas, hein? Tambem petiscaste?
A minha face barbuda chammejava... Mas Alpedrinha era meridional, das nossas terras palreiras da vangloria e do vinho. O medo cedeu á vaidade, — e revirando para mim o bugalho branco do olho:
— Tambem petisquei!
Sacudi-lhe o braço para longe, cheio de furor e de nojo. Tambem aquella — com aquelle! Oh, a Terra! a Terra! que é ella senão um montão de coisas pôdres, rolando pelos céos com basofias d’astro?
— E dize lá, Alpedrinha, dize lá, tambem te deu uma camisa?
— A mim um chambresinho...
Tambem a elle — roupa branca! Ri, acerbamente, com as mãos nas ilhargas.
— E ouve lá... Tambem te chamava «seu portuguezinho valente?»
— Como eu servia com turcos, chamava-me seu «moirosinho catita».
Ia rebolar-me no divan, rasgal-o com as unhas, rir sempre, n’um desesperado desprezo de tudo... Mas Topsius e o risonho Potte appareceram alvoroçados.
— Então?...
Sim, chegára de Smyrna um paquete que levantava n’essa tarde ferro para o Egypto, e que era o nosso dilecto Caimão!
— Ainda bem! gritei, atirando patadas ao ladrilho. Ainda bem, que estava farto do Oriente!... Irra! que não apanhei aqui senão soalheiras, traições, sonhos medonhos e botas pelos quadris! Estava farto!
Assim eu bramava, sanhudo. Mas n’essa tarde, na praia, diante da barcaça negra que nos devia levar ao Caimão, entrou-me n’alma uma longa saudade da Palestina, e das nossas tendas erguidas sob o esplendor das estrellas, e da caravana marchando e cantando por entre as ruinas de nomes sonoros.
O labio tremeu-me, quando Potte commovido me estendeu a sua bolsa de tabaco d’Alepo:
— D. Raposo, é o ultimo cigarro que lhe dá o alegre Potte.
E a lagrima rolou por fim quando Alpedrinha, em silencio, me estendeu os braços magros.
Da barcaça, acocorado sobre os caixões das Reliquias, ainda o vi na praia, sacudindo para mim um lenço triste de quadrados — ao lado de Potte que nos atirava beijos, com as grossas botas mettidas n’agua. E já no Caimão, debruçado na amurada, ainda o avistei immovel sobre as pedras do molhe, segurando com as mãos, contra a brisa salgada, o seu vasto turbante branco.
Desventuroso Alpedrinha! Só eu, em verdade, comprehendi a tua grandeza! Tu eras o derradeiro Lusiada, da raça dos Albuquerques, dos Castros, dos varões fortes que iam nas armadas á India! A mesma sêde divina do desconhecido te levára, como elles, para essa terra de Oriente, d’onde sobem ao céo os astros que espalham a luz e os deuses que ensinam a lei. Sómente não tendo já, como os velhos Lusiadas, crenças heroicas concebendo empresas heroicas, tu não vaes como elles, com um grande rosario e com uma grande espada, impôr ás gentes estranhas o teu rei e o teu Deus. Já não tens Deus por quem se combata, Alpedrinha! nem rei por quem se navegue, Alpedrinha!... Por isso, entre os povos do Oriente, te gastas nas occupações unicas que comportam a fé, o ideal, o valor dos modernos Lusiadas — descansar encostado ás esquinas, ou tristemente carregar fardos alheios...
As rodas do Caimão bateram a agua. Topsius ergueu o seu boné de sêda — e gravemente gritou para o lado de Jaffa, que escurecia na pallidez da tarde, sobre os seus tristes rochedos, entre os seus pomares verde-negros:
— Adeus, adeus para sempre, terra da Palestina!
Eu acenei tambem com o capacete:
— Adeusinho, adeusinho, coisas de Religião!
Afastava-me devagar da amurada quando roçou por mim a longa capa de lustrina d’uma Religiosa; e d’entre a sombra pudica do capuz, que se voltou de leve, um fulgor de olhos negros procurou as minhas barbas potentes. Oh maravilha! Era a mesma santa irmã que levára nos seus castos joelhos, através d’estas aguas da Escriptura, a camisa immunda da Mary!
Era a mesma! Porque collocava novamente o destino junto a mim, no estreito tombadilho do Caimão, este lirio de capella ainda fechado e já murcho? Quem sabe! Talvez para que ao calor do meu desejo elle reverdecesse, désse flôr, e não ficasse para sempre esteril e inutil, tombado aos pés do cadaver de um Deus!... E não vinha agora guardada pela outra Religiosa, rechonchuda e de luneta! A sorte abandonava-m’a indefesa, como a pombinha no êrmo.
Rompeu-me então n’alma a fulgurante esperança d’um amor de monja mais forte que o medo de Deus, d’um seio magoado pela estamenha de penitencia cahindo, todo a tremer e vencido, entre os meus braços valentes!... Decidi segredar-lhe logo alli: «Oh minha irmãsinha, estou todo lamecha por si!» E inflammado, torcendo os bigodes, caminhei para a dôce Religiosa, que se refugiára n’um banco, passando os dedos pallidos pelas contas do seu rosario...
Mas, bruscamente, o taboado do Caimão fugiu sob meus pés ovantes. Estaquei, enfiado. Oh miseria! humilhação! Era a vaga enjoadora... Corri á borda; sujei immundamente o azul do mar de Tyro; depois rolei para o beliche — e só ergui do travesseiro a face mortal quando senti as correntes do Caimão mergulharem nas calmas aguas onde outr’ora, fugindo d’Accio, cahiram á pressa as ancoras douradas das galeras de Cleopatra!
E outra vez, estremunhado e esguedelhado, te avistei, terra baixa do Egypto, quente e da côr d’um leão! Em torno aos finos minaretes voavam as pombas serenas. O languido palacio dormia á beira da agua entre palmeiras. Topsius sobraçava a minha chapeleira, serrazinando coisas doutissimas sobre o antigo Pharol. E a pallida Religiosa já deixára o Caimão, pomba do êrmo escapada ao milhafre — porque o milhafre no seu vôo fechára a aza, sordidamente enjoado!
N’essa mesma tarde, no Hotel das Pyramides, soube com jubilo que um vapor de gado, El Cid Campeador, partia de madrugada para as terras bemditas de Portugal! Na caleche de riscadinho, só com o douto Topsius, dei o derradeiro passeio nas sombras olorosas do Mamoudieh. E passei a curta noite n’uma rua deleitosa. Oh meus concidadãos, ide lá, se appeteceis conhecer os deleites asperos do Oriente... Os bicos de gaz sem globo assobiam largamente, torcidos ao vento: as casas baixas, de pau, são apenas fechadas por uma cortina branca, atravessada de claridade: tudo cheira a sandalo e alho: e mulheres sentadas sobre esteiras, em camisa, com flôres nas tranças, murmuram suavemente: — Eh môssiu! Eh milord!... Recolhi tarde, exhausto. Ao passar na rua das Duas Irmãs avistei sobre a porta d’uma loja cerrada a mão de pau, pintada de rôxo, que empolgára o meu coração. Atirei-lhe uma bengalada. Este foi o ultimo feito das minhas longas jornadas.
De manhã, o fiel e douto Topsius veio, de galochas, acompanhar-me ao barracão da alfandega. Enlacei-o longamente nos braços tremulos:
— Adeus, companheiro, adeus! Escreva... Campo de Sant’Anna, 47...
Elle murmurou, estreitado commigo:
— Aquelles trinta mil reis, lá mandarei...
Apertei-o generosamente, para abafar essa explicação de pecunia. Depois, já com a bota na prôa do bote que me ia levar ao Cid Campeador:
— Então, posso dizer á titi que a corôasinha d’espinhos é a mesma...
Elle ergueu as mãos, solemne como um pontifice do saber:
— Póde dizer-lhe em meu nome que foi a mesmissima, espinho por espinho...
Baixou o bico de cegonha ornado d’oculos — e beijámo-nos na face como dois irmãos.
Os negros remaram. Eu levava, pousado sobre os joelhos, o caixote da suprema Reliquia. Mas quando o meu bote, á vela, fendia a agua azul — passou rente d’outro bote lento, levado a remos para o lado do palacio que dormia entre palmeiras. E n’um relance vi o habito negro, o capuz descido... Um largo, sequioso olhar, pela vez derradeira, procurou as minhas barbas. De pé, ainda gritei: «Oh filhinha, oh magana!» Mas já o vento me levára. Ella, no seu bote, sumia a face contrita — e sobre o delicado peito que ousára arfar decerto a cruz pesou mais forte, ciumenta e de ferro!
Fiquei môno... Quem sabe? Era aquelle talvez em toda a vasta terra o unico coração em que o meu poderia repousar, como n’um asylo seguro... Mas quê! Ella era só monja, eu só sobrinho. Ella ia para o seu Deus, eu ia para a minha tia. E quando n’estas aguas os nossos peitos se cruzavam, e sentindo a sua concordancia batiam mudamente um para o outro — o meu barco corria com vela alegre para Occidente, e o barco que a levava, lento e negro, ia a remos para Oriente... Desencontro contínuo das almas congeneres — n’este mundo de eterno esforço e de eterna imperfeição!
V
Duas semanas depois, rolando na tipoia do Pingalho pelo campo de Sant’Anna, com a portinhola entreaberta e a bota estendida para o estribo, avistei entre as arvores sem folhas o portão negro da casa da titi! E, dentro d’esse duro calhambeque, eu resplandecia mais que um gordo Cesar, coroado de folhagens d’ouro, sobre o seu vasto carro, voltando de domar povos e deuses.
Era decerto em mim o deleite de revêr, sob aquelle céo de janeiro tão azul e tão fino, a minha Lisboa, com as suas quietas ruas côr de caliça suja, e aqui e além as taboinhas verdes descidas nas janellas como palpebras pesadas de langor e de somno. Mas era sobretudo a certeza da gloriosa mudança que se fizera na minha fortuna domestica e na minha influencia social.
Até ahi, que fôra eu em casa da snr.ª D. Patrocinio? O menino Theodorico que, apesar da sua carta de Doutor e das suas barbas de Raposão, não podia mandar sellar a egoa para ir espontar o cabello á Baixa, sem implorar licença á titi... E agora? O nosso dr. Theodorico, que ganhára no contacto santo com os lugares do Evangelho uma auctoridade quasi pontifical! Que fôra eu até ahi, no Chiado, entre os meus concidadãos? O Raposito, que tinha um cavallo. E agora? O grande Raposo, que peregrinára poeticamente na Terra Santa, como Chateaubriand, e que pelas remotas estalagens em que pousára, pelas roliças Circassianas que beijocára, podia parolar com superioridade na Sociedade de Geographia ou em casa da Benta Bexigosa...
O Pingalho estacou as pilecas. Saltei, com o caixote da Reliquia estreitado ao coração... E, ao fundo do pateo triste, lageado de pedrinha, vi a snr.ª D. Patrocinio das Neves, vestida de sêdas negras, toucada de rendas negras, arreganhando no carão livido, sob os oculos defumados, as dentuças risonhas para mim!
— Oh, titi!
— Oh, menino!
Larguei o caixote santo, cahi no seu peito sêcco; e o cheirinho que vinha d’ella a rapé, a capella e a formiga, era como a alma esparsa das coisas domesticas que me envolvia, para me fazer reentrar na piedosa rotina do lar.
— Ai filho, que queimadinho que vens!...
— Titi, trago-lhe muitas saudades do Senhor...
— Da-m’as todas, dá-m’as todas!...
E retendo-me, cingido á dura táboa do seu peito, roçou os beiços frios pelas minhas barbas — tão respeitosamente como se fossem as barbas de pau da imagem de S. Theodorico.
Ao lado, a Vicencia limpava o olho com a ponta do avental novo. O Pingalho descarregára a minha mala de couro. Então, erguendo o precioso caixote de pinho de Flandres benzido, murmurei, com uma modestia cheia de unção:
— Aqui está ella, titi, aqui está ella! Aqui a tem, ahi lh’a dou, a sua divina Reliquia, que pertenceu ao Senhor!
As emaciadas, lividas mãos da hedionda senhora tremeram ao tocar aquellas táboas que continham o principio miraculoso da sua saude e o amparo das suas afflicções. Muda, têsa, estreitando sôfregamente o caixote, galgou os degraus de pedra, atravessou a sala de Nossa Senhora das Sete-Dôres, enfiou para o oratorio. Eu atraz, magnifico, de capacete, ia rosnando: «ora vivam! ora vivam!» — á cozinheira, á desdentada Eusebia, que se curvavam no corredor como á passagem do Santissimo.
Depois, no oratorio, diante do altar juncado de camelias brancas, fui perfeito. Não ajoelhei, não me persignei: de longe, com dois dedos, fiz ao Jesus d’ouro, pregado na sua cruz, um aceno familiar — e atirei-lhe um olhar, muito risonho e muito fino, como a um velho amigo com quem se têm velhos segredos. A titi surprehendeu esta intimidade com o Senhor: — e quando se rojou sobre o tapete (deixando-me a almofada de velludo verde) foi tanto para o seu Salvador como para o seu sobrinho que levantou as mãos adorabundas.
Findos os Padre-nossos de graças pelo meu regresso, ella, ainda prostrada, lembrou com humildade:
— Filho, seria bom que eu soubesse que reliquia é, para as velas, para o respeito...
Acudi, sacudindo os joelhos:
— Logo se verá. Á noite é que se desencaixotam as reliquias... Foi o que me recommendou o patriarcha de Jerusalem... Em todo o caso accenda a titi mais quatro luzes, que até a madeirinha é santa!
Accendeu-as, submissa: collocou, com beato cuidado, o caixote sobre o altar: depôz-lhe um beijo chilreado e longo: estendeu-lhe por cima uma esplendida toalha de rendas... Eu então, episcopalmente, tracei sobre a toalha com dois dedos uma benção em cruz.
Ella esperava, com os oculos negros postos em mim, embaciados de ternura:
— E agora, filho, agora?
— Agora o jantarinho, titi, que tenho a tripa a tinir...
A snr.ª D. Patrocinio logo, apanhando as saias, correu a apressar a Vicencia. Eu fui desafivelar a maleta para o meu quarto — que a titi esteirára de novo: as cortinas de cassa tufavam, têsas de gomma; um ramo de violetas perfumava a commoda.
Longas horas nos detivemos á mesa — onde a travessa d’arroz dôce ostentava as minhas iniciaes, debaixo d’um coração e d’uma cruz, desenhadas a canella pela titi. E, inesgotavelmente, narrei a minha santa jornada. Disse os devotos dias do Egypto, passados a beijar uma por uma as pégadas que lá deixára a Santa Familia na sua fuga; disse o desembarque em Jaffa com o meu amigo Topsius, um sabio allemão, doutor em theologia, e a deliciosa missa que lá saboreáramos; disse as collinas de Judá cobertas de Presepes onde eu, com a minha egoa pela redea, ia ajoelhar, transmittindo ás Imagens e ás Custodias os recados da tia Patrocinio... Disse Jerusalem, pedra a pedra! E a titi, sem comer, apertando as mãos, suspirava com devotissimo pasmo:
— Ai que santo! ai que santo ouvir estas coisas! Jesus! até dá uns gostinhos por dentro!...
Eu sorria, humilde. E cada vez que a considerava de soslaio, ella me parecia outra Patrocinio das Neves. Os seus fundos oculos negros, que outr’ora reluziam tão asperamente, conservavam um contínuo embaciamento de ternura humida. Na voz, que perdera a rispidez silvante, errava, amollecendo-a, um suspiro acariciador e fanhoso. Emmagrecera: mas nos seus sêccos ossos parecia correr emfim um calor de medulla humana! Eu pensava — «Ainda a hei de pôr como um velludo.»
E, sem moderação, prodigalisava as provas da minha intimidade com o Céo.
Dizia: — «Uma tarde, no Monte das Oliveiras, Oliveiras, estando a rezar, passou de repente um anjo...» Dizia: — «Tirei-me dos meus cuidados, fui ao tumulo de Nosso Senhor, abri a tampa, gritei para dentro...»
Ella pendia a cabeça, esmagada, ante estes privilegios prodigiosos, só comparaveis aos de Santo Antão ou de S. Braz.
Depois enumerava as minhas tremendas rezas, os meus terrificos jejuns. Em Nazareth, ao pé da fonte onde Nossa Senhora enchia o cantaro, rezára mil Ave-Marias, de joelhos á chuva... No deserto, onde vivera S. João, sustentára-me como elle de gafanhotos...
E a titi, com baba no queixo:
— Ai que ternura, ai que ternura, os gafanhotinhos!... E que gosto para o nosso rico S. João!... Como elle havia de ficar! E olha, filho, não te fizeram mal?
— Se até engordei, titi! Nada, era o que eu dizia ao, meu amigo allemão: «Já que a gente veio a uma pechincha d’estas, é aproveitar, e salvar a nossa alminha...»
Ella virava-se para a Vicencia — que sorria, pasmada, no seu pouso tradicional entre as duas janellas, sob o retrato de Pio IX e o velho oculo do commendador G. Godinho:
— Ai Vicencia, que elle vem cheiinho de virtude! Ai que vem mesmo atochadinho d’ella!
— Parece-me que Nosso Senhor Jesus Christo não ficou descontente commigo! murmurava eu, estendendo a colhér para o dôce de marmelo.
E todos os meus movimentos (até o lamber da calda) os contemplava a odiosa senhora, venerandamente, como preciosas acções de santidade.
Depois, com um suspiro:
— E outra coisa, filho... Trazes de lá algumas orações, das boas, das que te ensinassem por lá os patriarchas, os fradesinhos?...
— Trago-as de chupeta, titi!
E numerosas, copiadas das carteiras dos santos, efficazes para todos os achaques! Tinha-as para tosses, para quando os gavetões das commodas emperram, para vesperas de loteria...
— E terás alguma para caimbras? Que eu ás vezes, de noite, filho...
— Trago uma que não falha em caimbras. Deu-m’a um monge meu amigo a quem costuma apparecer o Menino Jesus...
Disse — e accendi um cigarro.
Nunca eu ousára fumar diante da titi! Ella detestára sempre o tabaco, mais que nenhuma outra emanação do peccado. Mas agora arrastou gulosamente a sua cadeira para mim — como para um milagroso cofre, repleto d’essas rezas que dominam a hostilidade das coisas, vencem toda a enfermidade, eternisam as velhas sobre a terra.
— Has de m’a dar, filho... É uma caridade que fazes!
— Oh, titi, ora essa! Todas! E diga, diga lá... Como vai a titi dos seus padecimentos?
Ella deu um ai, d’infinito desalento. Ia mal, ia mal... Cada dia se sentia mais fraca, como se se fosse a desfazer... Emfim já não morria sem aquelle gostinho de me ter mandado a Jerusalem visitar o Senhor; e esperava que elle lh’o levasse em conta, e as despezas que fizera, e o que lhe custára a separação... Mas ia mal, ia mal!
Eu desviára a face, a esconder o vivo e escandaloso lampejo de jubilo que a illuminára. Depois animei-a, com generosidade. Que podia a titi recear? Não tinha ella agora, «para se apegar», vencer as leis da decomposição natural, aquella reliquia de Nosso Senhor?...
— E outra coisa, titi... Os amiguinhos, como vão?
Ella annunciou-me a desconsoladora nova. O melhor e mais grato, o delicioso Casimiro, recolhera á cama no domingo com as «perninhas inchadas...» Os doutores affirmavam que era uma anasarca... Ella desconfiava d’uma praga que lhe rogára um gallego...
— Seja como fôr, o santinho lá está! Tem-me feito uma falta, uma falta... Ai filho, nem tu imaginas!... O que me tem valido é o sobrinho, o padre Negrão...
— O Negrão? murmurei, estranho ao nome.
Ah! eu não conhecia... Padre Negrão vivia ao pé de Torres. Nunca vinha a Lisboa, que lhe fazia nojo, com tanta relaxação... Só por ella, e para a ajudar nos seus negocios, é que o santinho condescendera em deixar a sua aldeia. E tão delicado, tão serviçal... Ai! era uma perfeição!
— Tem-me feito uma virtude que nem calculas, filho... Só o que elle tem rezado por ti, para que Deus te protegesse n’essas terras de turcos... E a companhia que me faz! Que todos os dias o tenho cá a jantar... Hoje não quiz elle vir. Até me disse uma coisa muito linda: «não quero, minha senhora, atalhar expansões.» Que lá isso, fallar bem, e assim coisas que tocam... Ai, não ha outro... Nem imaginas, até regala... É de appetite!
Sacudi o cigarro, seccado. Porque vinha aquelle padre de Torres, contra os costumes domesticos, comer todos os dias o cozido da titi? Resmunguei com auctoridade:
— Lá em Jerusalem os padres e os patriarchas só vêm jantar aos domingos... Faz mais virtude.
Escurecera. A Vicencia accendeu o gaz no corredor: e como breve chegariam os dilectos amigos, avisados pela titi para saudar o Peregrino, recolhi ao meu quarto a enfiar a sobrecasaca preta.
Ahi, considerando ao espelho a face requeimada, sorri gloriosamente e pensei: — «Ah Theodorico, venceste!»
Sim, vencera! Como a titi me tinha acolhido! com que veneração! com que devoção!... — E ia mal, ia mal!... Bem depressa eu sentiria, com o coração suffocado de gozo, as martelladas sobre o seu caixão. E nada podia desalojar-me do testamento da snr.ª D. Patrocinio! Eu tornára-me para ella S. Theodorico! A hedionda velha estava emfim convencida que deixar-me o seu ouro — era como doal-o a Jesus e aos Apostolos e a toda a Santa Madre Egreja!
Mas a porta rangeu — a titi entrou, com o seu antigo chale de Tonkin pelos hombros. E, caso estranho, pareceu-me ser a D. Patrocinio das Neves d’outro tempo, hirta, agreste, esverdeada, odiando o amor como coisa suja, e sacudindo de si para sempre os homens que se tinham mettido com saias! Com effeito! Os seus oculos, outra vez sêccos, reluziam, cravavam-se desconfiadamente na minha mala... Justos céos! Era a antiga D. Patrocinio. Lá vinham, as suas lividas, aduncas mãos, cruzadas sobre o chale, arrepanhando-lhe as franjas, sôfregas de esquadrinhar a minha roupa branca! Lá se cavava, aos cantos dos seus labios sumidos, um rigido sulco d’azedume!... Tremi: mas visitou-me logo uma inspiração do Senhor. Diante da mala, abri os braços, com candura:
— Pois é verdade!... Aqui tem a titi a maleta que lá andou por Jerusalem... Aqui está, bem aberta, para todo o mundo vêr que é a mala d’um homem de religião! Que é o que dizia o meu amigo allemão, pessoa que sabia tudo: «Lá isso, Raposo, meu santinho, quando n’uma viagem se peccou, e se fizeram relaxações, e se andou atraz de saias, trazem-se sempre provas na mala. Por mais que se escondam, que se deitem fóra, sempre lá esquece coisa que cheire a peccado!...» Assim m’o disse muitas vezes, até uma occasião diante d’um Patriarcha... E o Patriarcha approvou. Por isso, eu cá, é malinha aberta, sem receio... Póde-se esquadrinhar, póde-se cheirar... A que cheira é a religião! Olhe, titi, olhe... Aqui estão as ceroulinhas e as piuguinhas. Isso não póde deixar de ser, porque é peccado andar nú... Mas o resto, tudo santo! O meu rosario, o livrinho de missa, os bentinhos, tudo do melhor, tudo do Santo Sepulchro...
— Tens alli uns embrulhos! rosnou a asquerosa senhora, estendendo um grande dedo descarnado.
Abri-os logo, com alacridade. Eram dois frascos lacrados d’agua do Jordão! E muito sério, muito digno, fiquei diante da snr.ª D. Patrocinio com uma garrafinha do liquido divino na palma de cada mão... Então ella, com os oculos de novo embaciados, beijou penitentemente os frascos: uma pouca da baba do beijo escorreu nas minhas unhas. Depois, á porta, suspirando, já rendida:
— Olha, filho, até estou a tremer... E é d’estes gostinhos todos!
Sahiu. Eu fiquei coçando o queixo. Sim, ainda havia uma circumstancia que me escorraçaria do testamento da titi! Seria apparecer diante d’ella, material e tangivel, uma evidencia das minhas relaxações... Mas como surgiria ella jámais n’este logico Universo? Todas as passadas fragilidades da minha carne eram como os fumos esparsos d’uma fogueira apagada que nenhum esforço póde novamente condensar. E o meu derradeiro peccado — saboreado tão longe, no velho Egypto, como chegaria jámais á noticia da titi? Nenhuma combinação humana lograria trazer ao campo de Sant’Anna as duas unicas testemunhas d’elle — uma luveira occupada agora a encostar as papoilas do seu chapéo aos granitos de Raméses em Thebas, e um Doutor encafuado n’uma rua escolastica, á sombra d’uma vetusta Universidade da Allemanha, escarafunchando o cisco historico dos Herodes... E, a não ser essa flôr de deboche e essa columna de sciencia, ninguem mais na terra conhecia os meus culpados delirios na cidade amorosa dos Lagidas.
Demais, o terrvel documento da minha juncção com a sordida Mary, a camisa de dormir aromatisada de violeta, lá cobria agora em Sião uma languida cinta de circassiana ou os seios côr de bronze d’uma nubia de Koskoro: a compromettedora offerta «ao meu portuguezinho valente» fôra despregada, queimada no brazeiro: já as rendas se iriam esgaçando no serviço forte do amor; e rôta, suja, gasta, ella bem depressa seria arremessada ao lixo secular de Jerusalem! Sim, nada se poderia interpôr entre a minha justa sofreguidão e a bolsa verde da titi. Nada, a não ser a carne mesma da velha, a sua carcassa rangente, habitada por uma teimosa chamma vital, que se não quizesse extinguir!... Oh fado horrivel! Se a titi, obstinada, renitente, vivesse ainda quando abrissem os cravos do outro anno! E então não me contive. Atirei a alma para as alturas, gritei desesperadamente, em toda a ancia do meu desejo:
— Oh Santa Virgem Maria, faze que ella rebente depressa!
N’esse momento soou a grossa sineta do pateo. E foi-me grato reconhecer, depois da longa separação, as duas badaladas curtas e timidas do nosso modesto Justino: mais grato ainda sentir, logo após, o repique magestoso do dr. Margaride. Immediatamente a titi escancarou a porta do meu quarto, n’uma penosa atarantação:
— Theodorico, filho, ouve! Tem-me estado a lembrar... Parece-me que para destapar a reliquia é melhor esperar até que se vão logo embora o Justino e o Margaride! Ai, eu sou muito amiga d’elles, são pessoas de muita virtude... Mas acho que para uma ceremonia d’estas é melhor que estejam só pessoas d’egreja...
Ella, pela sua devoção, considerava-se pessoa d’egreja. Eu, pela minha jornada, era quasi pessoa do céo.
— Não, titi... O Patriarcha de Jerusalem recommendou-me que fosse diante de todos os amigos da casa, na capella, com velas... É mais efficaz... E olhe, diga á Vicencia que me venha buscar as botas para limpar.
— Ai eu lh’as dou!... São estas? Estão sujinhas, estão! Já cá te vêm, filho, já cá te vêm!
E a snr.ª D. Patrocinio das Neves agarrou as botas! E a snr.ª D. Patrocinio das Neves levou as botas!
Ah, estava mudada, estava bem mudada!... E ao espelho, cravando no setim da gravata uma cruz de coral de Malta, eu pensava que desde esse dia ia reinar alli, no campo de Sant’Anna, de cima da minha santidade, e que para apressar a obra lenta da morte — talvez viesse a espancar aquella velha.
Foi-me dôce, ao penetrar na sala, encontrar os dilectos amigos, com casacos sérios, de pé, alargando para mim os braços extremosos. A titi pousava no sofá, têsa, desvanecida, com setins de festa e com joias. E ao lado, um padre muito magro vergava a espinha com os dedos enclavinhados no peito — mostrando n’uma face chupada dentes afiados e famintos. Era o Negrão. Dei-lhe dois dedos, sêccamente:
— Estimo vê-lo por cá...
— Grandissima honra para este seu servo! ciciou elle, puxando os meus dedos para o coração.
E, mais vergado o dorso servil, correu a erguer o abat-jour do candieiro — para que a luz me banhasse, e se pudesse vêr na madureza do meu semblante a efficacia da minha peregrinação.
Padre Pinheiro decidiu, com um sorriso de doente:
— Mais magro!
Justino hesitou, fez estalar os dedos:
— Mais queimado!
E o Margaride, carinhosamente:
— Mais homem!
O onduloso padre Negrão revirou-se, arqueado para a titi como para um Sacramento entre os seus mólhos de luzes:
— E com um todo d’inspirar respeito! Inteiramente digno de ser o sobrinho da virtuosissima D. Patrocinio!...
No emtanto em torno tumultuavam as curiosidades amigas: «E a saudinha?» «Então, Jerusalem?» «Que tal, as comidas?...»
Mas a titi bateu com o leque no joelho, n’um receio que tão familiar alvoroço importunasse S. Theodorico. E o Negrão acudiu, com um zelo mellifluo:
— Methodo, meus senhores, methodo!... Assim todos á uma não se goza... É melhor deixarmos fallar o nosso interessante Theodorico!...
Detestei aquelle nosso, odiei aquelle padre. Porque corria tanto mel no seu fallar? Porque se privilegiava elle no sofá, roçando a sordida joelheira da calça pelos castos setins da titi?
Mas o dr. Margaride, abrindo a caixa de rapé, concordou que o methodo seria mais proficuo...
— Aqui nos sentamos todos, fazemos roda, e o nosso Theodorico conta por ordem todas as maravilhas que viu!
O esgalgado Negrão, com uma escandalosa privança, correu dentro a colhêr um copo d’agua e assacar para me lubrificar as vias. Estendi o lenço sobre o joelho. Tossi — e comecei a esboçar a soberba jornada. Disse o luxo do Malaga; Gibraltar e o seu môrro encarapuçado de nuvens; a abundancia das «mesas redondas» com puddings e aguas-gazosas...
— Tudo á grande, á franceza! suspirou padre Pinheiro, com um brilho de gula no olho amortecido. Mas naturalmente, tudo muito indigesto...
— Eu lhe digo, padre Pinheiro... Sim, tudo á grande, tudo á franceza: mas coisas saudaveis, que não esquentavam os intestinos... Bello rosbeef, bello carneiro...
— Que não valiam decerto o seu franguinho de cabidella, excellentissima senhora! atalhou unctuosamente o Negrão, junto do hombro agudo da titi.
Execrei aquelle padre! E, remexendo a agua com assucar, decidi em meu espirito que, mal eu começasse a governar ferreamente o campo de Sant’Anna — não mais a cabidella da minha familia escorregaria na guela aduladora d’aquelle servo de Deus.
No emtanto o bom Justino, repuxando o collarinho, sorria para mim, embevecido. E como passava eu as noites em Alexandria? Havia uma assembléa, onde espairecesse? Conhecia eu alguma familia considerada, com quem tomasse uma chavena de chá?...
— Eu lhe digo, Justino... Conhecia. Mas, a fallar verdade, tinha repugnancia em frequentar casas de turcos... Sempre é gente que não acredita senão em Mafoma!... Olhe, sabe o que fazia á noite? Depois de jantar ia a uma egrejinha cá da nossa bella religião, sem estrangeirices, onde havia sempre um Santissimo d’appetite... Fazia as minhas devoções: depois ia-me encontrar com o allemão, o meu amigo, o lente, n’uma grande praça que dizem lá os de Alexandria que é muito melhor que o Rocio... Maior e mais abrutada talvez seja. Mas não é esta lindeza do nosso Rocio, o ladrilhinho, as arvores, a estatua, o theatro... Emfim, para meu gosto, e para um regalinho de verão prefiro o Rocio... E lá o disse aos turcos!
— E fica-lhe bem ter levantado assim as coisas portuguezas! observou o dr. Margaride, contente e rufando na tabaqueira. Direi mais... É acto de patriota... Nem d’outra maneira procediam os Gamas e os Albuquerques!
— Pois é verdade... Ia-me encontrar com o allemão; e então para espairecer um bocado, porque emfim uma distracção sempre é necessaria quando se anda a viajar, iamos tomar um café... Que lá isso, sim! Lá café fazem-n’o os turcos que é uma perfeição!
— Bom cafésinho, hein? acudiu padre Pinheiro, chegando a cadeira para mim com interesse sôfrego. E forte, forte? Bom aroma?
— Sim, padre Pinheiro, de consolar!... Pois tomavamos o nosso cafésinho, depois vinhamos para o hotel, e ahi no quarto, com os santos Evangelhos, punhamo-nos a estudar todos aquelles divinos lugares na Judêa onde tinhamos d’ir rezar... E como o allemão era lente e sabia tudo, eu era instruir-me, instruir-me!... Até elle ás vezes dizia: «Vossê, Raposo, com estas noitadas, vai d’aqui um chavão...» E lá isso, o que é de coisas santas e de Christo, sei tudo... Pois, senhores, assim passavamos á luz do candieiro até às dez, onze horas... Depois chásinho, terço, e cama.
— Sim senhor, noites muito bem gozadas, noites muito fructuosas! declarou, sorrindo para a titi, o estimavel dr. Margaride.
— Ai, isso fez-lhe muita virtude! suspirava a horrenda senhora. Foi como se subisse um bocadinho ao céo... Até o que elle diz cheira bem... Cheira a santo.
Modestissimamente, baixei a palpebra lenta.
Mas Negrão, com sinuosa perfidia, notou que mais proveitoso seria, e de maior unção repassaria as almas — escutar coisas de festas, de milagres, de penitencias...
— Estou seguindo o meu itinerario, snr. padre Negrão, repliquei asperamente.
— Como fez Chateaubriand, como fazem todos os famosos auctores! confirmou Margaride, approvando.
E foi com os olhos n’elle, como no mais douto, que eu disse a partida de Alexandria n’uma tarde de tormenta: o tocante momento em que uma santa irmã da Caridade (que estivera já em Lisboa e que ouvira fallar da virtude da titi) me salvára das aguas salgadas um embrulho em que eu trazia terra do Egypto, da que pisára a Santa Familia: a nossa chegada a Jaffa, que, por um prodigio, apenas eu subira ao tombadilho, de chapéo alto e pensando na titi, se coroára de raios de sol...
— Magnifico! exclamou o dr. Margaride. E diga, meu Theodorico... Não tinham comsigo um sabio guia, que lhes fosse apontando as ruinas, lhes fosse commentando...
— Ora essa, dr. Margaride! Tinhamos um grande latinista, o padre Potte!
Remolhei o labio. E disse as emoções da gloriosa noite em que acampáramos junto a Ramleh, com a lua no céo alumiando coisas da religião, beduinos velando de lança ao hombro, e em redor leões a rugir...
— Que scena! bradou o dr. Margaride, erguendo-se arrebatadamente. Que enorme scena! Não estar eu lá! Parece uma d’estas coisas grandiosas da Biblia, do Eurico! É d’inspirar! Eu por mim, se tal visse, não me continha!... Não me continha, fazia uma ode sublime!
O Negrão puxou a aba do casaco ao facundo magistrado:
— É melhor deixar fallar o nosso Theodorico, para podermos todos saborear...
Margaride, abespinhado, franziu as sobrancelhas temerosas e mais negras que o ebano:
— Ninguem n’esta sala, melhor que eu, snr. padre Negrão, saboreia o grandioso!
E a titi, insaciavel, batendo com o leque:
— Está bem, está bem... Conta, filho, não te fartes! Olha, conta assim uma coisa que te acontecesse com Nosso Senhor, que nos faça ternura...
Todos emmudeceram, reverentes. Eu então disse a marcha para Jerusalem com duas estrellas na frente a guiar-nos, como acontece sempre aos peregrinos mais finos e de boa familia: as lagrimas que derramára, ao avistar, n’uma manhã de chuva, as muralhas de Jerusalem: e na minha visita ao Santo Sepulchro, de casaca, com padre Potte, as palavras que balbuciára diante do Tumulo, por entre soluços e no meio d’acolytos — «Oh meu Jesus, oh meu Senhor, aqui estou, aqui venho da parte da titi!...»
E a medonha senhora, suffocada:
— Que ternura que faz!... Diante do tumulosinho!...
Então passei o lenço pela face excitada, e disse:
— N’essa noite recolhi ao hotel para rezar... E agora, meus senhores, ha aqui um pontosinho desagradavel...
E contritamente confessei que, forçado pela Religião, pelo nome honrado de Raposo, e pela dignidade de Portugal — tivera um conflicto no hotel com um grande inglez de barbas.
— Uma bulha! acudiu com perversidade o vil Negrão, ancioso por empanar o brilho de santidade com que eu deslumbrava a titi. Uma bulha, na cidade de Jesus Christo! Ora essa! Que desacato!
Com os dentes cerrados encarei o torpissimo padre:
— Sim senhor! um chinfrim!... Mas fique v. s.ª sabendo que o snr. patriarcha de Jerusalem me deu toda a razão, até me bateu no hombro e me disse: «Pois Theodorico, parabens, vossê portou-se como um pimpão!» Que tem agora v. s.ª a piar?
Negrão curvou a cabeça, onde a corôa punha uma lividez azulada de lua em tempo de peste:
— Se Sua Eminencia approvou...
— Sim senhor! E aqui tem a titi porque foi a bulha!... No quarto ao lado do meu havia uma ingleza, uma hereje, que mal eu me punha a rezar, ahi começava ella a tocar piano, e a cantar fados e tolices e coisas immoraes do Barba-Azul, dos theatros... Ora imagine a titi, estar uma pessoa a dizer com todo o fervor e de joelhos: «Oh Santa Maria do Patrocinio, faze que a minha boa titi tenha muitos annos de vida» — e vir lá de traz do tabique uma voz d’excommungada a ganir: «Sou o Barba-Azul, olê! ser viuvo é o meu filé!...» É d’encavacar!... De modo que uma noite, desesperado, não me tenho em mim, sáio do corredor, atiro-lhe um murro á porta, e grito-lhe para dentro: «Faz favor d’estar calada, que está aqui um christão que quer rezar!...»
— E com todo o direito, affirmou o dr. Margaride. Vossê tinha por si a lei!
— Assim, me disse o Patriarcha! Pois senhores, como ia contando, grito isto para dentro á mulher, e ia recolher muito sério ao meu quarto, quando me sae de lá o pai, um grande barbaças, de bengalorio na mão... Eu fui muito prudente: cruzei os braços e, com bons modos, disse-lhe que não queria alli escandalos ao pé do tumulo de Nosso Senhor, e o que desejava era rezar em socego... E vai que me ha de elle responder? Que se estava a... Emfim, nem eu posso repetir! Uma coisa indecente contra o tumulo de Nosso Senhor... E eu, titi, passa-me uma oura pela cabeça, agarro-o pelo cachaço...
— E magoaste-o, filho?
— Escavaquei-o, titi!
Todos acclamaram a minha ferocidade. Padre Pinheiro citou leis canonicas auctorisando a Fé a desancar a Impiedade. Justino, aos pulos, celebrou esse John Bull desmantelado a sólida murraça lusitana. E eu, excitado pelos louvores como por clarins d’ataque, bradava de pé, medonho:
— Lá impiedades diante de mim, não! Arrombo tudo, esborracho tudo... Em coisas de religião sou uma fera!
E aproveitei esta santa cólera para brandir, como um aviso, diante do queixo sumido do Negrão, o meu punho cabelludo e pavoroso. O macilento e esgrouviado servo de Deus encolheu. Mas n’esse instante a Vicencia entrava com o chá, nas pratas ricas de G. Godinho.
Então os dilectos amigos, com a torrada na mão, romperam em ardentes encomios:
— Que instructiva viagem! É como ter um curso!
— E que bello bocadinho de noite aqui se tem passado!... Qual S. Carlos! Isto é que é gozar!
— E como elle conta! Que fervor! que memoria!...
Lentamente o bom Justino, com a sua chavena fornecida de bolos, acercára-se da janella, como a espreitar o céo estrellado: e d’entre as franjas das cortinas os seus olhinhos luzidios e gulosos chamavam-me confidencialmente. Fui, trauteando o Bem-dito; ambos mergulhámos na sombra dos damascos; e o virtuoso tabellião, roçando o labio pelas minhas barbas:
— Oh amiguinho, e de mulheres?
Eu confiava no Justino. Segredei para dentro do seu collarinho:
— De se deixarem lá os miolos, Justininho!
As suas pupillas faiscaram como as de um gato em janeiro; a chicara ficou-lhe tremelicando na mão.
E eu, pensativo, repenetrando na luz:
— Sim, bonita noite... Mas não são aquellas estrellinhas santinhas que nós viamos lá no Jordão!...
Então padre Pinheiro, tomando aos goles cautelosos a sua chalada, veio timidamente bater-me no hombro... Lembrára-me eu, n’essas Santas Terras, com tantas distracções, do seu frasquinho d’agua do Jordão?...
— Oh padre Pinheiro, pois está claro!... Trago tudo! E o raminho do Monte Olivete para o nosso Justino... E a photographia para o nosso Margaride... Tudo!
Corri ao quarto, a buscar essas dôces «lembrancinhas» da Palestina. E ao regressar sustentando pelas pontas um lenço repleto de devotas preciosidades, estaquei por traz do reposteiro ao sentir dentro o meu nome... Suave gozo! Era o inestimavel dr. Margaride que afiançava á titi, com a sua tremenda auctoridade:
— D. Patrocinio, eu não lh’o quiz dizer diante d’elle... Mas isto agora é mais do que ter um sobrinho e um cavalheiro! Isto é ter, de casa e pucarinho, um amigo intimo de Nosso Senhor Jesus Christo!...
Tossi, entrei. Mas a snr.ª D. Patrocinio ruminava um escrupulo ciumento. Não lhe parecia delicado para Nosso Senhor (nem para ella) que se repartissem estas Reliquias minimas antes de lhe ser entregue a ella, como senhora e como tia, na capella, a Grande Reliquia...
— Porque saibam os meus amigos, annunciou ella com o seu chatissimo peito impando de satisfação, que o meu Theodorico trouxe-me uma Santa Reliquia, com que eu me vou apegar nas minhas afflicções, e que me vai curar dos meus males!
— Bravissimo! gritou o impetuoso dr. Margaride. Com quê, Theodorico, seguiu-se o meu conselho? Esgaravataram-se esses sepulchros?... Bravissimo! É de generoso romeiro!
— É de sobrinho, como já o não ha no nosso Portugal! acudiu padre Pinheiro junto ao espelho, onde estudava a lingua saburrenta...
— É de filho, é de filho! proclamava o Justino, alçado na ponta dos botins.
Então o Negrão, mostrando os dentes famintos, babujou esta coisa vilissima:
— Resta saber, cavalheiros, de que Reliquia se trata.
Tive sêde, ardente sêde do sangue d’aquelle padre! Trespassei-o com dois olhares mais agudos e faiscantes do que espetos em braza:
— Talvez v. s.^a, se é um verdadeiro sacerdote, se atire de focinho para baixo a rezar, quando apparecer aquella maravilha!...
E voltei-me para a snr.ª D. Patrocinio, com a impaciencia de uma nobre alma offendida que carece de reparação:
— É já, titi! Vamos ao Oratorio! Quero que fique tudo aqui assombrado! Foi o que disse o meu amigo allemão: «Essa reliquia, ao destapar-se, é de ficar uma familia inteira azabumbada!...»
Deslumbrada, a titi ergueu-se de mãos postas. Eu corri a prover-me d’um martello. Quando voltei, o dr. Margaride, grave, calçava as suas luvas pretas... E atraz da snr.ª D. Patrocinio, cujos setins faziam no sobrado um ruge-ruge de vestes de prelado, penetrámos no corredor onde o grande bico de gaz silvava dentro do seu vidro fôsco. Ao fundo a Vicencia e a cozinheira espreitavam com os seus rosarios na mão.
O Oratorio resplandecia. As velhas salvas de prata, batidas pelas chammas das velas de cera, punham no fundo do altar um brilho branco de Gloria. Sobre a candidez das rendas lavadas, entre a neve fresca das camelias — as tunicas dos Santos, azues e vermelhas, com o seu lustre de sêda, pareciam novas, especialmente talhadas nos guarda-roupas do céo para aquella rara noite de festa... Por vezes o raio d’uma aureola tremia, despedia um fulgor, como se na madeira das imagens corressem estremecimentos de jubilo. E na sua cruz de pau preto, o Christo, riquissimo, macisso, todo d’ouro, suando ouro, sangrando ouro, reluzia preciosamente.
— Tudo com muito gosto! Que divina scena! murmurou o dr. Margaride, deliciado na sua paixão de grandioso.
Com piedosos cuidados colloquei o caixote na almofada de velludo: vergado, rosnei sobre elle uma Ave; depois, ergui a toalha que o cobria, e com ella no braço, tendo escarrado solemnemente, fallei:
— Titi, meus senhores... Eu não quiz revelar ainda a Reliquia que vem aqui no caixotinho, porque assim m’o recommendou o snr. Patriarcha de Jerusalem... Agora é que vou dizer... Mas antes de tudo, parece-me bem a pêllo explicar que tudo cá n’esta Reliquia, papel, nastro, caixotinho, prégos, tudo é santo! Assim por exemplo os préguinhos... são da Arca de Noé... Póde vêr, snr. padre Negrão, póde apalpar! são os da Arca, até ainda enferrujados... É tudo do melhor, tudo a escorrer virtude! Além d’isso quero declarar diante de todos que esta Reliquia pertence aqui á titi, e que lh’a trago para lhe provar que em Jerusalem não pensei senão n’ella, e no que Nosso Senhor padeceu, e em lhe arranjar esta pechincha...
— Commigo te has de vêr sempre, filho! tartamudeou a horrenda senhora, enlevada.
Beijei-lhe a mão, sellando este pacto de que a Magistratura e a Egreja eram veridicas testemunhas. Depois, retomando o martello:
— E agora, para que cada um esteja prevenido e possa fazer as orações que mais lhe calharem, devo dizer o que é a Reliquia...
Tossi, cerrei os olhos:
— É a Corôa d’Espinhos!
Esmagada, com um rouco gemido, a titi aluiu sobre o caixote, enlaçando-o nos braços tremulos... Mas o Margaride coçava pensativamente o queixo austero; Justino sumira-se na profundidade dos seus collarinhos; e o ladino Negrão escancarava para mim uma bocaça negra, d’onde sahia assombro e indignação! Justos céos! Magistrados e Sacerdotes evidenciavam uma incredulidade — terrivel para a minha fortuna!
Eu tremia, com suores — quando padre Pinheiro, muito sério, convicto, se debruçou, apertou a mão da titi a felicital-a pela posição religiosa a que a elevava a posse d’aquella Reliquia. Então, cedendo á forte auctoridade liturgica de padre Pinheiro, todos, em fila, n’uma muda congratulação, estreitaram os dedos da babosa senhora.
Estava salvo! Rapidamente, ajoelhei á beira do caixote, cravei o formão na fenda da tampa, alcei o martello em triumpho...
— Theodorico! Filho! berrou a titi, arripiada, como se eu fosse martellar a carne viva do Senhor.
— Não ha receio, titi! Aprendi em Jerusalem, a manejar estas coisinhas de Deus!...
Despregada a táboa fina, alvejou a camada d’algodão. Ergui-a com terna reverencia: e ante os olhos extaticos surgiu o sacratissimo embrulho de papel pardo, com o seu nastrinho vermelho.
— Ai que perfume! Ai! ai, que eu morro! suspirou a titi a esvaír-se de gosto beato, com o branco do olho apparecendo por sobre o negro dos oculos.
Ergui-me, rubro de orgulho:
— É á minha querida titi, só a ella, que compete, pela sua muita virtude, desembrulhar o pacotinho!...
Acordando do seu langor, trémula e pallida, mas com a gravidade d’um pontifice, a titi tomou o embrulho, fez mesura aos santos, collocou-o sobre o altar; devotamente desatou o nó do nastro vermelho; depois, com o cuidado de quem teme magoar um corpo divino, foi desfazendo uma a uma as dobras do papel pardo... Uma brancura de linho appareceu... A titi segurou-a nas pontas dos dedos, repuxou-a bruscamente — e sobre a ara, por entre os santos, em cima das camelias, aos pés da Cruz — espalhou-se, com laços e rendas, a camisa de dormir da Mary!
A camisa de dormir da Mary! Em todo o seu luxo, todo o seu impudor, enxovalhada pelos meus abraços, com cada préga fedendo a peccado! A camisa de dormir da Mary! E pregado n’ella por um alfinete, bem evidente ao clarão das velas, o cartão com a offerta em letra encorpada: — «Ao meu Theodorico, meu portuguezinho possante, em lembrança do muito que gozámos!» Assignado, M. M.... A camisa de dormir da Mary!
Mal sei o que occorreu no florido Oratorio! Achei-me á porta, enrodilhado na cortina verde, com as pernas a vergar, n’um desmaio. Estalando, como achas atiradas a uma fogueira, eu sentia as accusações do Negrão bradadas contra mim junto á touca da titi: — «Deboche! escarneo! camisa de prostituta! achincalho á snr.ª D. Patrocinio! profanação do Oratorio!» Distingui a sua bota arrojando furiosamente para o corredor o trapo branco. Um a um, entrevi os amigos perpassarem, como longas sombras levadas por um vento de terror. As luzes das velas arquejavam, afflictas. E, ensopado em suor, entre as prégas da cortina, percebi a titi caminhando para mim, lenta, livida, hirta, medonha... Estacou. Os seus frios e ferozes oculos trespassaram-me. E através dos dentes cerrados cuspiu esta palavra:
— Porcalhão!
E sahiu.
Rolei para o quarto, tombei no leito, esbarrondado. Um rumor d’escandalo acordára o casarão severo. E a Vicencia surgiu diante de mim, enfiada, com o seu avental branco na mão:
— Menino! Menino! A senhora manda dizer que sáia immediatamente para o meio da rua, que o não quer nem mais um instante em casa... E diz que póde levar a sua roupa branca e todas as suas porcarias!
Despedido!
Ergui a face molle da travesseira de rendas. E a Vicencia, atontada, torcendo o avental:
— Ai, menino! Ai, menino! se não sae já para a rua, a senhora diz que manda chamar um policia!
Escorraçado!
Atirei os pés incertos para o soalho. Mergulhei na algibeira uma escova de dentes: topando nos moveis, procurei as chinelas que embrulhei n’um numero da Nação. Sem reparo, agarrei d’entre as malas um caixote com bandas de ferro: — e em ponta de botins desci a escada da titi, encolhido e rasteiro, como um cão tinhoso vexado da sua tinha.
Mal transpuz o pateo, a Vicencia, cumprindo as ordens sanhudas da titi, bateu-me nas costas com o portão chapeado de ferro — desprezivelmente e para sempre!
Estava só na rua e na vida! Á luz dos frios astros contei na palma o meu dinheiro. Tinha duas libras, dezoito tostões, um duro hespanhol e cobres... E então descobri que a caixa, apanhada tontamente entre as malas, era a das Reliquias menores. Complicado sarcasmo do Destino! Para cobrir meu corpo desabrigado — nada mais tinha que taboinhas aplainadas por S. José, e cacos de barro do cantaro da Virgem! Metti no bolso o embrulho das chinelas; e, sem voltar os olhos turvos á casa de minha tia, marchei a pé, com o caixote ás costas, na noite cheia de silencio e d’estrellas, para a Baixa, para o Hotel da Pomba d’Ouro.
Ao outro dia, descórado e miserrimo á mesa da Pomba, remexia uma sombria sôpa de grão e nabo — quando um cavalheiro, de collete de velludo negro, veio occupar o talher fronteiro, junto d’uma garrafa d’agua de Vidago, d’uma caixa de pilulas e d’um numero da Nação. Na sua testa, immensa e arqueada como um frontão de capella, torciam-se duas veias grossas: e sob as ventas largas, ennegrecidas de rapé, o bigode era um tufo curto de pêllos grisalhos, duros como cêrdas d’escova. O gallego, ao servir-lhe o nabo e grão, rosnou com estima: «Ora seja bem apparecidinho o snr. Lino!»
Ao cozido este cavalheiro, abandonando a Nação onde percorrêra miudamente os annuncios, pousou em mim os olhos amarellentos de bilis e baços, e observou que estavamos gozando desde os Reis um tempinho d’appetite...
— De rosas, murmurei com reserva.
O snr. Lino entalou mais o guardanapo para dentro do collarinho lasso:
— E v. s.^a, se não é curiosidade, vem das provincias do Norte?
Passei vagarosamente a mão pelos cabellos:
— Não, senhor... Venho de Jerusalem!
D’assombrado o snr. Lino perdeu a garfada de arroz. E, depois de ter ruminado mudamente a sua emoção, confessou que lhe interessavam muito todos esses lugares santos porque tinha religião, graças a Deus! E tinha um emprego, graças tambem a Deus, na Camara Patriarchal...
— Ah, na Camara Patriarchal! acudi eu. Sim, muito respeitavel... Eu conheci muito um Patriarcha... Conheci muito o snr. Patriarcha de Jerusalem. Cavalheiro muito santo, muito catita... Até nos ficamos tratando de tu!
O snr. Lino offereceu-me da sua agua de Vidago — e conversámos das terras da Escriptura.
— Que tal Jerusalem, como lojas?...
— Como lojas?... Lojas de modas?
— Não, não! atalhou o snr. Lino. Quero dizer lojas de santidade, de reliquiarias, de coisinhas divinas...
— Sim... Menos mau. Ha o Damiani na Via Dolorosa que tem tudo, até ossos de Martyres... Mas o melhor é cada um esquadrinhar, escavar... Eu n’essas coisas trouxe maravilhas!
Uma chamma de singular cubiça avivou as pupillas amarelladas do snr. Lino, da Camara Patriarchal. E de repente, com uma decisão d’inspirado:
— Andrésinho, a pinguinha de Porto... Hoje é brodio!
Quando o gallego pousou a garrafa, com a sua data traçada á mão n’um velho rotulo de papel almasso — o snr. Lino offertou-me um calice cheio.
— Á sua!
— Com a ajuda do Senhor!... Á sua!
Por cortezia, rilhado o queijo, convidei aquelle homem que graças a Deus tinha religião, a entrar no meu quarto e admirar as photographias de Jerusalem. Elle aceitou, com alvoroço: mas, apenas transpôz a porta, correu sem etiqueta e gulosamente ao meu leito — onde jaziam espalhadas algumas das Reliquias que eu desencaixotára essa manhã.
— O cavalheiro aprecia? indaguei, desenrolando uma vista do monte Olivete, e pensando em lhe offertar um rosario.
Elle revirava em silencio, nas mãos gordas e de unhas roidas, um frasco d’agua do Jordão. Cheirou-o, pesou-o, chocalhou-o. Depois, muito sério, com as veias entumecidas na vastissima fronte:
— Tem attestado?
Estendi-lhe a certidão do frade Franciscano, garantindo como authentica e sem mistura a agua do rio baptismal. Elle saboreou o venerando papel. E enthusiasmado:
— Dou quinze tostões pelo frasquinho!
Foi, no meu intellecto de Bacharel, como se uma janella se abrisse e por ella entrasse o sol! Vi inesperadamente, ao seu clarão forte, a natureza real d’essas medalhas, bentinhos, aguas, lascas, pedrinhas, palhas, que eu considerára até então um lixo ecclesiastico esquecido pela vassoura da Philosophia! As Reliquias eram valores! Tinham a qualidade omnipotente de valores! Dava-se um caco de barro — e recebia-se uma rodella d’ouro!... E, illuminado, comecei insensivelmente a sorrir, com as mãos encostadas á mesa como a um balcão de armazem:
— Quinze tostões por agua pura do Jordão! Boa! Em pouca conta tem v. s.ª o nosso S. João Baptista... Quinze tostões! Chega a ser impiedade!... V. s.ª imagina que a agua do Jordão é como agua do Arsenal? Ora essa!... Tres mil reis recusei eu a um padre de Santa Justa, esta manhã, ahi, ao pé d’essa cama...
Elle fez saltar o frasco na palma gorda, considerou, calculou:
— Dou quatro mil reis.
— Vá lá, por sermos companheiros na Pomba!
E quando o snr. Lino sahiu do meu quarto, com o frasco do Jordão embrulhado na Nação, eu, Theodorico Raposo, achava-me fatalmente, providencialmente, estabelecido vendilhão de reliquias!
D’ellas comi, d’ellas fumei, d’ellas amei, durante dois mezes, quieto e aprazido na Pomba d’Ouro. Quasi sempre o snr. Lino surdia de manhã no meu quarto, de chinelos, escolhia um caco do cantaro da Virgem ou uma palhinha do Presepio, empacotava na Nação, largava a pecunia e abalava assobiando o De Profundis. E evidentemente o digno homem revendia as minhas preciosidades com gordo provento — porque bem depressa, sobre o seu collete de velludo preto, rebrilhou uma corrente d’ouro.
No emtanto, muito habil e fino, eu não tentára (nem com supplicas, nem com explicações, nem com patrocinios) amansar as beatas iras da titi e repenetrar na sua estima. Contentava-me em ir á egreja de Sant’Anna, todo de negro, com um ripanço. Não encontrava a titi, que tinha agora de manhã no Oratorio missa do torpissimo Negrão. Mas lá me prostrava, batendo contritamente no peito, suspirando para o Sacrario — certo que, pelo Melchior sacristão, as novas da minha devoção inalteravel chegariam á hedionda senhora.
Muito manhoso, tambem não procurára os amigos da titi — que deviam prudentemente partilhar as paixões da sua alma para lograrem os favores do seu testamento: assim poupava embaraços angustiosos a esses benemeritos da Magistratura e da Egreja. Sempre que encontrava padre Pinheiro ou dr. Margaride, cruzava as mãos dentro das mangas, baixava os olhos, evidenciando humildade e compunção. E este retrahimento era decerto grato aos amigos, porque uma noite, topando o Justino perto da casa da Benta Bexigosa, o digno homem segredou junto da minha barba, depois de se ter assegurado da solidão da rua:
— Ande-me assim, amiguinho!... Tudo se ha de arranjar... Que ella por ora está uma fera... Oh diabo, ahi vem gente!
E abalou.
No emtanto, por intermédio do Lino, eu vendilhava reliquias. Bem depressa porém recordado dos compendios de Economia Politica, reflecti que os meus proventos engordariam se, eliminando o Lino, eu mesmo me dirigisse ousadamente ao consumidor pio.
Escrevi então a fidalgas, servas do Senhor dos Passos da Graça, cartas com listas e preços de Reliquias. Mandei propostas d’ossos de Martyres a egrejas de provincia. Paguei copinhos d’aguardente a sacristães para que elles segredassem a velhas com achaques — «P’ra coisas de Santidade não ha como o snr. dr. Raposo, que vem fresquinho de Jerusalem!...» E bafejou-me a sorte. A minha especialidade foi a agua do Jordão, em frascos de zinco, lacrados e carimbados com um coração em chammas: vendi d’esta agua para baptisados, para comidas, para banhos: e durante um momento houve um outro Jordão, mais caudaloso e limpido que o da Palestina, correndo por Lisboa, com a sua nascente n’um quarto da Pomba d’Ouro. Imaginativo, introduzi novidades rendosas e poeticas: lancei no commercio com efficacia «o pedacinho da bilha com que Nossa Senhora ia á fonte»: fui eu que acreditei na piedade nacional «uma das ferraduras do burrinho em que fugira a Santa Familia.» Agora quando o Lino de chinelos batia á porta do meu quarto, onde as medas de palhinhas do Presepio alternavam com as pilhas de taboinhas de S. José, eu entreabria uma fenda avara e ciciava:
— Foi-se... Esgotadinho!... Só para a semana... Vem-me ahi um caixotinho da Terra Santa...
As veias frontaes do capacissimo homem inchavam n’uma indignação de intermediario espoliado.
Todas as minhas Reliquias eram acolhidas com o mais forte fervor — porque provinham «do Raposo, fresquinho de Jerusalem.» Os outros Reliquistas não tinham esta esplendida garantia d’uma jornada á Terra Santa. Só eu, Raposo, percorrêra esse vastissimo deposito de santidade. Só eu de resto sabia lançar na folha sebacea de papel que authenticava a reliquia — a firma floreada do snr. Patriarcha de Jerusalem.
Mas bem cedo reconheci que esta profusão de Reliquilharia saturára a devoção do meu paiz! Atochado, empanturrado de Reliquias, este catholico Portugal já não tinha capacidade — nem para receber um d’esses raminhos seccos de flôres de Nazareth, que eu cedia a cinco tostões!
Inquieto, baixei melancolicamente os preços. Prodigalisei, no Diario de Noticias, annuncios tentadores — «Preciosidades da Terra Santa, em conta, na tabacaria Rego, se diz...» Muitas manhãs, com um casacão ecclesiatico e um cache-nez de sêda disfarçando a minha barba, assaltei á porta das egrejas velhas beatas: offerecia pedaços da tunica da Virgem Maria, cordeis das sandalias de S. Pedro: e rosnava com ancia, roçandome pelos manteletes e pelas toucas: «Baratinhos, minha senhora, baratinhos... Excellentes para catarrhos!...»
Já devia uma carregada conta na Pomba d’Ouro; descia as escadas sorrateiramente, para não encontrar o patrão; chamava com sabujice ao gallego — «meu André, meu catitinha...»
E punha toda a minha esperança n’um renovamento da Fé! A menor noticia de festa de egreja me regosijava como um acrescimo de devoção no povo. Odiava ferozmente os republicanos e os philosophos que abalam o Catholicismo — e portanto diminuem o valor das reliquias que elle instituiu. Escrevi artigos para a Nação, em que bradava: «Se vos não apegaes aos ossos dos Martyres, como quereis que prospere este paiz?» No café do Montanha dava murros sobre as mesas: «É necessario Religião, caramba! Sem Religião nem o bifezinho sabe!» Em casa da Benta Bexigosa ameaçava as raparigas, se ellas não usassem os seus bentinhos e os seus escapularios, de não voltar alli, de ir a casa da D. Adelaide!... A minha inquietação pelo «pão de cada dia» foi mesmo tão aspera que de novo solicitei a intervenção do Lino — homem de vastas relações ecclesiasticas, parente de capellães de convento. Outra vez lhe mostrei o meu leito juncado de reliquias. Outra vez lhe disse, esfregando as mãos: «Vamos a mais negocio, amiguinho! Aqui tenho sortimento fresco, chegadinho de Sião!»
Mas, do digno homem da Camara Patriarcal, só colhi recriminações acerbas...
— Essa léria não péga, senhor! gritou elle, com as veias a estalar de cólera na fronte esbrazeada. Foi v. s.ª que estragou o commercio!... Está o mercado abarrotado, já não ha maneira de vender nem um cueirinho do menino Jesus, uma reliquia que se vendia tão bem! O seu negocio com as ferraduras é perfeitamente indecente... Perfeitamente indecente! É o que me dizia n’outro dia um capellão, primo meu: «São ferraduras de mais para um paiz tão pequeno!...» Quatorze ferraduras, senhor! É abusar! Sabe v. s.ª quantos prégos, dos que pregaram Christo na cruz, v. s.ª tem impingido, todos com documentos? Setenta e cinco, senhor!... Não lhe digo mais nada... Setenta e cinco!
E sahiu, atirando a porta com furor, deixando-me aniquilado.
Venturosamente, n’essa noite, encontrei o Rinchão em casa da Benta Bexigosa, e recebi d’elle uma consideravel encommenda de reliquias. O Rinchão ia desposar uma menina Nogueira, filha da snr.ª Nogueira, rica beata de Beja e rica proprietaria de porcos: e elle «queria dar um presente catita á carola da velha, tudo coisinhas da Cartilha e do Santo Sepulchro.» Arranjei-lhe um lindo cofre de reliquias (ahi colloquei o meu septuagesimo sexto prégo) ornado das minhas graciosas flôres seccas de Galilêa. Com a generosa pecunia que me deu o Rinchão paguei á Pomba d’Ouro; e tomei prudentemente um quarto na casa d’hospedes do Pitta, á travessa da Palha.
Assim, diminuia a minha prosperidade. O meu quarto agora era nos altos, no quinto andar, com um catre de ferro, e uma poltrona vetusta cujo miôlo de estopa fetida rompia entre a chita esgaçada. Como unico ornato pendia sobre a commoda, n’um caixilho enfeitado de borlas, uma lithographia de Christo crucificado, a côres; nuvens negras de tormenta rolavam-lhe aos pés; e os seus olhos claros, arregalados, seguiam e miravam todos os meus actos, os mais intimos, mesmo o delicado aparar dos callos.
Havia uma semana que, assim installado, farejava Lisboa á busca do pão incerto, com botas a que se começava a romper a sola, quando uma manhã o André da Pomba d’ Ouro me trouxe uma carta que lá fôra deixada na vespera, com a marca «urgente». O papel tinha tarja preta: o sinete era de lacre negro. Abri, tremendo. E vi a assignatura do Justino.
«Meu querido amigo. É meu penoso dever, que cumpro com lagrimas, participar-lhe que sua respeitavel tia e minha senhora inesperadamente succumbiu...»
Caramba! A velha rebentára!
Anciosamente saltei através das linhas tropeçando sobre os detalhes — «congestão dos pulmões... Sacramentos recebidos... Todos a chorar... O nosso Negrão!...» E empallidecendo, n’um suor que me alagava, avistei, ao fim da lauda, a nova medonha: — «do testamento da virtuosa senhora, consta que deixa a seu sobrinho Theodorico o oculo que se acha pendurado na sala de jantar...»
Desherdado!
Agarrei o chapéo, corri aos encontrões pelas ruas até ao cartorio do Justino, a S. Paulo. Achei-o á banca, com uma gravata de lucto e a penna atraz da orelha, comendo fatias de vitella sobre um velho Diario de Noticias.
— Com que, o oculo...? — balbuciei, esfalfado, arrimado á esquina d’uma estante.
— É verdade. O oculo! — murmurou elle, com a bôca atulhada.
Fui tombar, quasi desmaiado, sobre o canapé de couro. Elle offereceu-me vinho de Bucellas. Bebi um calice. E passando a mão tremula sobre a face livida:
— Então dize lá, conta lá tudo, Justininho...
O Justino suspirou. A santa senhora, coitadinha, deixára-lhe duas inscripções de conto... E de resto dispersára no seu testamento as riquezas de G. Godinho do modo mais incoherente e mais perverso. O predio do campo de Sant’Anna e quarenta contos de inscripções para o Senhor dos Passos da Graça. As acções da Companhia do Gaz, as melhores pratas, a casa de Linda-a-Pastora para o Casimiro, que já se não mexia, moribundo. Padre Pinheiro recebia um predio na rua do Arsenal. A deliciosa quinta do Mosteiro, com o seu pittoresco portão d’entrada onde se viam ainda as armas dos condes de Landoso, as inscripções de Credito Publico, a mobilia do campo de Sant’Anna, o Christo d’ouro — para o padre Negrão. Tres contos de reis e o relogio para o Margaride. A Vicencia tivera as roupas de cama. Eu — o oculo!
— Para vêr o resto de longe! considerou philosophicamente o Justino, dando estalinhos nos dedos.
Recolhi á travessa da Palha. E durante horas, em chinelas, com os olhos chammejantes, revolvi o desejo desesperado de ultrajar o cadaver da titi — cuspindo-lhe sobre o carão livido, esfuracando com uma bengala a podridão do seu ventre. Chamei contra ella todas as cóleras da Natureza. Pedi ás arvores que recusassem sombra á sua sepultura! Pedi aos ventos que sobre ella soprassem todos os lixos da terra! Invoquei o Demonio: «Dou-te a minha alma se torturares incansavelmente a velha!» Gritei com os braços para as alturas: «Deus, se tens um céo, escorraça-a de lá!» Planeei quebrar a pedradas o mausoleu que lhe erguessem... E decidi escrever communicados nos jornaes contando que ella se prostituia a um gallego, todas as tardes, no sótão, d’oculos negros e em fralda!
Esfalfado de a odiar — adormeci densamente.
Foi o Pitta que me acordou, ao anoitecer, entrando com um longo embrulho. Era o oculo. Mandava-m’o o Justino, com estas palavras amigas: «Ahi vai a modesta herança!»
Accendi uma vela. Com aspera amargura tomei o oculo, abri a vidraça — e olhei por elle, como da borda d’uma nau que vai perdida nas aguas. Sim, muito sagazmente o affirmára Justino, a asquerosa Patrocinio deixava-me o oculo com rancoroso sarcasmo — para eu vêr através d’elle o resto da herança! E eu via, apesar da escura noite, nitidamente via o Senhor dos Passos sumindo os maços de inscripções dentro da sua tunica rôxa; o Casimiro tocando com as mãos moribundas os lavores das pratas, espalhadas sobre o seu leito; e o vilissimo Negrão, de casaco de cotim e galochas, passeando regalado á beira d’agua, sob os olmos do Mosteiro! E eu alli, com o oculo!
Eu alli para sempre, na travessa da Palha, possuindo na algibeira d’umas calças com fundilhos setecentos e vinte — para me debater através da cidade e da vida! Com um urro atirei o oculo, que foi rolando até junto da chapeleira onde eu guardava o capacete de cortiça da minha jornada em Terra Santa. Alli estavam, esse capacete e esse oculo, emblemas das minhas duas existencias — a de esplendor e a de penuria! Havia mezes, com aquelle capacete na nuca, eu era o triumphante Raposo, herdeiro da snr.ª D. Patrocinio das Neves, remexendo ouro nas algibeiras, e sentindo em torno, perfumadas e á espera de que eu as colhesse, todas as flôres da Civilisação! E agora, com o oculo, eu era o pelintrissimo Raposo de botas cambadas, sentindo em roda, negros e promptos a ferirem-me, todos os cardos da Vida... E tudo isto, porque? Porque um dia, na estalagem d’uma cidade da Asia, se tinham trocado dois embrulhos de papel pardo!
Não houvera jámais zombaria igual da Sorte! A uma tia beata, que odiava o amor como coisa suja e só esperava, para me deixar predios e pratas, que eu, desdenhando saias, lhe rebuscasse em Jerusalem uma reliquia — trazia a camisa de dormir d’uma luveira! E n’um impulso de caridade, destinado a captivar o céo, atirava como pingue esmola a uma pobre em farrapos, com o filho faminto chorando ao collo — um galho cheio d’espinhos!... Oh Deus, dize-me tu! Dize-me tu, oh Demonio! como se fez, como se fez esta troca de embrulhos — que é a tragedia da minha vida?
Elles eram semelhantes no papel, no formato, no nastro!... O da camisa jazia no fundo escuro do guarda-fato; o da reliquia campeava sobre a commoda, glorioso, entre dois castiçaes. E ninguem lhes tocára: nem o jocundo Potte; nem o erudito Topsius; nem eu! Ninguém com mãos humanas, mãos mortaes, ousára mover os dois embrulhos. Quem os movera então? Só alguem, com mãos invisiveis!
Sim, havia alguem, incorporeo, todo poderoso — que por odio trocára miraculosamente os espinhos em rendas, para que a titi me desherdasse e eu fosse precipitado para sempre nas Profundas Sociaes!
E quando assim esbravejava, esguedelhado — encontrei frigidamente cravados em mim e mais abertos, como gozando a derrota da minha vida, os olhos claros do Christo crucificado, dentro do seu caixilho com borlas...
— Foste tu! gritei, de repente illuminado e comprehendendo o prodigio. Foste tu! Foste tu!
E, com os punhos fechados para elle, desafoguei fartamente os queixumes, os aggravos do meu coração:
— Sim, foste tu, que transformaste ante os olhos devotos da titi a corôa de dôr da tua Lenda — na camisa suja da Mary!... E porque? Que te fiz eu? Deus ingrato e variavel! Onde, quando, gozaste tu devoção mais perfeita? Não acudia eu todos os domingos, vestido de preto, a ouvir as missas melhores que te offerta Lisboa? Não me atochava eu todas as sextas-feiras, para te agradar, de bacalhau e de azeite? Não gastava eu dias, no oratorio da titi, com os joelhos doridos, rosnando os terços da tua predilecção? Em que cartilhas houve rezas que eu não decorasse para ti? Em que jardins desabrocharam flôres com que eu não enfeitasse os teus altares?
E arrebatado, arrepiando os cabellos, repuxando as barbas, eu clamava ainda, tão perto da imagem que as baforadas da minha cólera lhe embaciavam o vidro:
— Olha bem para mim!... Não te recordas de ter visto este rosto, estes pêllos, ha seculos, n’um atrio de marmore, sob um velario, onde julgava um Pretor de Roma? Talvez te não lembres! Tanto dista d’um Deus victorioso sobre o seu andor a um Rabbi de provincia amarrado com cordas!... Pois bem! N’esse dia de Nizam, em que não tinhas ainda confortaveis lugares no céo e na bemaventurança a distribuir aos teus fieis; n’esse dia, em que ainda te não tornáras para ninguem fonte de riqueza e esteio de poder; n’esse dia, em que a titi, e todos os que hoje se prostram a teus pés, te teriam apupado como os vendilhões do Templo, os Phariseus e a populaça d’Acra; n’esse dia, em que os Soldados que hoje te escoltam com charangas, os Magistrados que hoje encarceram quem te desacate ou te renegue, os Proprietarios que hoje te prodigalisam ouro e festas d’egreja — se teriam juntado com as suas armas e os seus codigos e as suas bolsas, para obterem a tua morte como revolucionario, inimigo da Ordem, terror da Propriedade: n’esse dia, em que tu eras apenas uma Intelligencia creadora e uma Bondade activa, e portanto considerado pelos homens sérios como um perigo social — houve em Jerusalem um coração que espontaneamente, sem engodo no céo, nem terror do inferno, estremeceu por ti. Foi o meu!... E agora persegues-me. Porque?...
Subitamente, oh maravilha! do tosco caixilho com borlas irradiaram tremulos raios, côr de neve e côr d’ouro. O vidro abriu-se ao meio com o fragor faiscante de uma porta do céo. E de dentro o Christo no seu madeiro, sem despregar os braços, deslisou para mim serenamente, crescendo até ao estuque do tecto, mais bello em magestade e brilho que o sol ao sahir dos montes.
Com um berro cahi sobre os joelhos; bati a fronte apavorada no soalho. E então senti esparsamente pelo quarto, com um rumor manso de brisa entre jasmins, uma Voz repousada e suave:
— Quando tu ias ao alto da Graça beijar no pé uma imagem — era para contar servilmente á titi a piedade com que deras o beijo: porque jámais houve oração nos teus labios, humildade no teu olhar — que não fosse para que a titi ficasse agradada no seu fervor de beata. O Deus a que te prostravas era o dinheiro de G. Godinho; e o céo para que teus braços trementes se erguiam — o testamento da titi... Para lograres n’elle o lugar melhor fingiste-te devoto sendo incredulo; casto sendo devasso; caridoso sendo mesquinho; e simulaste a ternura de filho tendo só a rapacidade de herdeiro... Tu foste illimitadamente o Hypocrita! Tinhas duas existencias: uma ostentada diante dos olhos da titi, toda de rosarios, de jejuns, de novenas; e longe da titi, sorrateiramente, outra, toda de gula, cheia da Adelia e da Benta... Mentiste sempre: — e só eras verdadeiro para o céo, verdadeiro para o mundo, quando rogavas a Jesus e á Virgem que rebentassem depressa a titi. Depois resumiste esse laborioso dolo d’uma vida inteira n’um embrulho — onde accommodáras um galho, tão falso como o teu coração; e com elle contavas empolgar definitivamente as pratas e predios de D. Patrocinio! Mas n’outro embrulho parecido trazias pela Palestina, com rendas e laços, a irrecusavel evidencia do teu fingimento... Ora justiceiramente aconteceu que o embrulho que offertaste á titi e que a titi abriu — foi aquelle que lhe revelava a tua perversidade! E isto prova-te, Theodorico, a inutilidade da hypocrisia.
Eu gemia sobre as táboas. A Voz susurrou, mais larga, como o vento da tarde entre as ramas:
— Eu não sei quem fez essa troca dos teus embrulhos, picaresca e terrivel; talvez ninguem; talvez tu mesmo! Os teus tedios de desherdado não provêm d’essa mudança de espinhos em rendas: — mas de vivêres duas vidas, uma verdadeira e de iniquidade, outra fingida e de santidade. Desde que contradictoriamente eras do lado direito o devoto Raposo e do lado esquerdo o obsceno Raposo — não poderias seguir muito tempo, junto da titi, mostrando só o lado, vestido de casimiras de domingo, onde resplandecia a virtude; um dia fatalmente chegaria em que ella, espantada, visse o lado despido e natural onde negrejavam as maculas do vicio... E ahi está porque eu alludo, Theodorico, á inutilidade da hypocrisia.
De rojo eu estendia abjectamente os labios para os pés do Christo, transparentes, suspensos no ar, com prégos que despediam tremulas radiancias de joia. E a Voz passou sobre mim, cheia e rumorosa, como a rajada que curva os cyprestes:
— Tu dizes que eu te persigo! Não. O oculo, isso a que chamas Profundas Sociaes, são obra das tuas mãos — não obra minha. Eu não construo os episodios da tua vida; assisto a elles e julgo-os placidamente... Sem que eu me mova, nem intervenha influencia sobrenatural — tu pódes ainda descer a miserias mais torvas, ou elevar-te aos rendosos paraisos da terra e ser director d’um Banco... Isso depende meramente de ti, e do teu esforço d’homem... Escuta ainda! Perguntavas-me, ha pouco, se eu me não lembrava do teu rosto... Eu pergunto-te agora se não te lembras da minha voz... Eu não sou Jesus de Nazareth, nem outro Deus creado pelos homens... Sou anterior aos deuses transitorios: elles dentro em mim nascem; dentro em mim duram; dentro em mim se transformam; dentro em mim se dissolvem: e eternamente permaneço em torno d’elles e superior a elles, concebendo-os e desfazendo-os, no perpetuo esforço de realisar fóra de mim o Deus absoluto que em mim sinto. Chamo-me a Consciencia; sou n’este instante a tua propria Consciencia reflectida fóra de ti, no ar e na luz, e tomando ante teus olhos a fórma familiar, sob a qual, tu mal educado e pouco philosophico, estás habituado a comprehender-me... Mas basta que te ergas e me fites, para que esta imagem resplandecente de todo se desvaneça.
E ainda eu não levantára os olhos — já tudo desapparecera!
Então, transportado como perante uma evidencia do Sobrenatural, atirei as mãos ao céo e bradei:
— Oh meu Senhor Jesus, Deus e filho de Deus, que te encarnaste e padeceste por nós...
Mas emmudeci... Aquella ineffavel Voz resoava ainda em minha alma, mostrando-me a inutilidade da hypocrisia. Consultei a minha consciencia, que reentrára dentro de mim — e bem certo de não acreditar que Jesus fosse filho de Deus e d’uma mulher casada de Galilêa (como Hercules era filho de Jupiter e d’uma mulher casada da Argolida) — cuspi dos meus labios, tornados para sempre verdadeiros, o resto inutil da oração.
Ao outro dia, casualmente, entrei no jardim de S. Pedro d’Alcantara — sitio que não pizára desde os meus annos de latim. E mal dera alguns passos, entre os canteiros, encontrei o meu antigo Chrispim, filho de Telles Chrispim & C.^a, com fabrica de fiação á Pampulha — camarada que não avistára desde o meu grau de bacharel. Era este o louro Chrispim, que outr’ora no collegio dos Isidoros me dava beijos vorazes no corredor, e me escrevia á noite bilhetinhos promettendo-me caixas com pennas d’aço. Chrispim velho morrera: Telles, rico e obeso, passára a Visconde de S. Telles: e este meu Chrispim agora era a Firma.
Trocado um ruidoso abraço, Chrispim & C.ª notou pensativamente que eu estava «muitissimo feio.» Depois invejou a minha jornada á Terra Santa (que elle soubera pelo Jornal das Novidades) e alludiu, com amigavel regosijo, á «grossa maquia que me devia ter deixado a snr.ª D. Patrocinio das Neves...»
Amargamente mostrei-lhe as minhas botas cambadas. Parámos n’um banco, junto d’uma trepadeira de rosas; e ahi, no silencio e no perfume, narrei a camisa funesta da Mary, a Reliquia no seu embrulho, o desastre no Oratorio, o oculo, o meu quarto miseravel na travessa da Palha...
— De modo, Chrispimzinho da minh’alma, que aqui me encontro sem pão!
Chrispim & C.^a, impressionado, torcendo os bigodes louros, murmurou que em Portugal, graças á Carta e á Religião, todo o mundo tinha uma fatia de pão: o que a alguns faltava era o queijo.
— Ora o queijo dou-t’o eu, meu velho! ajuntou alegremente a Firma, atirando-me uma palmada ao joelho. Um dos empregados do escriptorio lá na Pampulha começou a fazer versos, a metter-se com actrizes... E muito republicano, achincalhando as coisas santas... Emfim, um horror, desembaracei-me d’elle! Ora tu tinhas boa letra. Uma conta de sommar sempre saberás fazer... Lá está a carteira do homem, vai lá, são vinte e cinco mil reis, sempre é o queijo!...
Com duas lagrimas a tremerem-me nas pestanas abracei a Firma. Chrispim e C.ª murmurou outra vez, com uma careta de quem, sente um gosto azêdo:
— Irra! que estás muitissimo feio!
Comecei então a servir com desvelo a fabrica de fiação á Pampulha: e todos os dias á carteira, com mangas de lustrina, copiava cartas na minha letra de bellas curvas e alinhava algarismos n’um vasto Livro de Caixa... A Firma ensinára-me a «regra de tres», e outras habilidades. E, como de sementes trazidas por um vento casual a um torrão desaproveitado, rompem inesperadamente plantas uteis que prosperam — das lições da Firma brotaram, na minha inculta natureza de bacharel em leis, aptidões consideraveis para o negocio da fiação. Já a Firma dizia, compenetrada, na Assembléa do Carmo:
— Lá o meu Raposo, apesar de Coimbra e dos compendios que lhe metteram no caco, tem dedo para as coisas sérias!
Ora n’um sabbado d’agosto, á tarde, quando eu ia fechar o Livro de Caixa, Chrispim & C.ª parou diante da minha carteira, risonho e accendendo o charuto:
— Ouve lá, ó Raposão, tu a que missa costumas ir?
Silenciosamente, tirei a minha manga de lustrina.
— Eu pergunto isto, ajuntou logo a Firma, porque ámanhã vou com minha irmã á Outra Banda, a uma quinta nossa, á Ribeira. Ora se tu não estás muito apegado a outra missa, vinhas á de Santos, ás nove, iamos almoçar ao Hotel Central, e embarcavamos de lá para Cacilhas. Estou com vontade que conheças minha irmã!...
Chrispim & C.ª era um cavalheiro religioso que considerava a Religião indispensavel á sua saude, á sua prosperidade commercial, e á boa ordem do paiz. Visitava com sinceridade o Senhor dos Passos da Graça, e pertencia á Irmandade de S. José. O empregado, cuja carteira eu occupava, tornára-se-lhe sobretudo intoleravel por escrever no Futuro, gazeta republicana, folhetins louvando Renan e ultrajando a Eucharistia. Eu ia dizer a Chrispim & C.ª que estava tão apegado á missa da Conceição Nova, que outra não me podia saber bem... Mas lembrei a Voz austera e salutar da travessa da Palha! Recalquei a mentira beata que já me sujava os labios — e disse, muito pallido e muito firme:
— Olha, Chrispim, eu nunca vou á missa... Tudo isso são patranhas... Eu não posso acreditar que o corpo de Deus esteja todos os domingos n’um pedaço d’hostia feita de farinha. Deus não tem corpo, nunca teve... Tudo isso são idolatrias, são carolices... Digo-te isto rasgadamente... Pódes fazer agora commigo o que quizeres. Paciencia!
A Firma considerou-me um momento mordendo o beiço:
— Pois olha, Raposo, calha-me essa franqueza!... Eu gósto de gente lisa... O outro velhaco, que estava ahi a essa carteira, diante de mim dizia: «Grande homem, o Papa!» E depois ia para os botequins e punha o Santo Padre de rastos... Pois acabou-se! Não tens religião, mas tens cavalheirismo... Em todo o caso, ás dez no Central para o almocinho, e á vela depois para a Ribeira!
Assim eu conheci a irmã da Firma. Chamava-se D. Jesuina, tinha trinta e dois annos e era zarôlha. Mas, desde esse domingo de rio e de campo, a riqueza dos seus cabellos ruivos como os d’Eva, o seu peito solido e succulento, a sua pelle côr de maçã madura, o riso são dos seus dentes claros — tornavam-me pensativo, quando á tardinha, com o meu charuto, eu recolhia á Baixa pelo Aterro, olhando os mastros das falúas...
Fôra educada nas Selesias: sabia Geographia e todos os rios da China, sabia Historia e todos os reis de França; e chamava-me Theodorico-Coração-de-Leão, por eu ter ido á Palestina. Aos domingos agora eu jantava na Pampulha: D. Jesuina fazia um prato d’ovos queimados: e o seu olho vesgo pousava, com incessante agrado, na minha face potente e barbuda de Raposão. Uma tarde ao café, Chrispim & C.ª louvou a Familia Real, a sua moderação constitucional, a graça caridosa da Rainha. Depois descemos ao jardim: e andando D. Jesuina a regar, e eu ao lado enrolando um cigarro, suspirei e murmurei junto ao seu hombro: — «V. exc.^a, D. Jesuina, é que estava a calhar para Rainha, se cá o Raposinho fosse Rei!» Ella, córando, deu-me a ultima rosa do verão.
Em vesperas de Natal, Chrispim & C.ª chegou á minha carteira, pousou galhofeiramente o chapéo sobre a pagina do Livro de Caixa que eu ennegrecia de cifras, e cruzando os braços, com um riso de lealdade e estima:
— Então com que, Rainha, se o Raposinho fosse Rei...? Ora diga lá o snr. Raposo. Ha ahi dentro d’esse peito amor verdadeiro á mana Jesuina?
Chrispim & C.ª admirava a paixão e o ideal. Eu ia já dizer que adorava a snr.ª D. Jesuina como a uma estrella remota... Mas recordei a Voz altiva e pura da travessa da Palha! Recalquei a mentira sentimental que já me enlanguecia o labio — e disse corajosamente:
— Amor, amor, não... Mas acho-a um bello mulherão: gosto-lhe muito do dote; e havia de ser um bom marido.
— Dá cá essa mão honrada! gritou a Firma.
Casei. Sou pai. Tenho carruagem, a consideração do meu bairro, a commenda de Christo. E o Dr. Margaride, que janta commigo todos os domingos de casaca, affirma que o Estado, pela minha illustração, as minhas consideraveis viagens e o meu patriotismo — me deve o titulo de Barão do Mosteiro. Porque eu comprei o Mosteiro. O digno Magistrado uma tarde, á mesa, annunciou que o horrendo Negrão, desejando arredondar as suas propriedades em Torres, decidira vender o velho solar dos condes de Landoso.
— Ora aquellas arvores, Theodorico — lembrou o benemerito homem — deram sombra á senhora sua mamã. Direi mais: as mesmas sombras cobriram seu respeitabilissimo pai, Theodorico!... Eu por mim, se tivesse a honra de ser um Raposo, não me continha, comprava o Mosteiro, erguia lá um torreão com ameias!
Chrispim & C.ª disse, pousando o copo:
— Compra, é coisa de familia, fica-te bem.
E, n’uma vespera de Paschoa, assignei no cartorio do Justino, com o procurador do Negrão, a escriptura que me tornava emfim, depois de tantas esperanças e de tantos desalentos, o senhor do Mosteiro!
— Que faz agora esse maroto d’esse Negrão? indaguei eu do bom Justino, apenas sahiu o agente do sordido sacerdote.
O dilecto e fiel amigo deu estalinhos nos dedos. O Negrão pechinchava! Herdára tudo do padre Casimiro, que lá tinha o seu corpo no alto de S. João e a sua alma no seio de Deus. E agora era o intimo do padre Pinheiro que não tinha herdeiros, e que elle levára para Torres, «para o curar». O pobre Pinheiro lá andava, mais chupado, empanturrando-se com os tremendos jantares do Negrão, deitando a lingua de fóra diante de cada espelho. E não durava, coitado! De sorte que o Negrão vinha a reunir (com excepção do que fôra para o Senhor dos Passos, que não podia tornar a morrer, esse!) o melhor da fortuna de G. Godinho.
Eu rosnei, pallido:
— Que besta!
— Chame-lhe besta, amiguinho!... Tem carruagem, tem casa em Lisboa, tomou a Adelia por conta...
— Que Adelia?
— Uma de boas carnes, que esteve com o Eleuterio... Depois esteve muito era segredo com um basbaque, um bacharel, não sei quem...
— Sei eu.
— Pois essa! Tem-n’a por conta o Negrão, com luxo, tapete na escada, cortinas de damasco, tudo... E está mais gordo. Vi-o hontem, vinha de prégar... Pelo menos disse-me que «sahia de S. Roque esfalfado de dizer amabilidades a um diabo d’um Santo!» Que o Negrão ás vezes é engraçado. E tem bons amigos, lábia, influencia em Torres... Ainda o vemos Bispo!
Recolhi á minha familia, pensativo. Tudo o que eu esperára e amára (até á Adelia!) o possuia agora legitimamente o horrendo Negrão!... Perda pavorosa! E que não proviera da troca dos meus embrulhos, nem dos erros da minha hyprocrisia.
Agora, pai, commendador, proprietario, eu tinha uma comprehensão mais positiva da vida: e sentia bem que fôra esbulhado dos contos de G. Godinho simplesmente por me ter faltado no Oratorio da titi — a coragem d’affirmar!
Sim! quando em vez d’uma Corôa de Martyrio apparecera, sobre o altar da titi, uma camisa de peccado — eu deveria ter gritado, com segurança: «Eis ahi a Reliquia! Quiz fazer a surpreza... Não é a Corôa de Espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Magdalena!... Deu-m’a ella no Deserto!...»
E logo o provava com esse papel, escripto em letra perfeita: Ao meu portuguezinho valente, pelo muito que gozámos... Era essa a carta em que a Santa me offertava a sua camisa. Lá brilhavam as suas iniciaes — M. M.! Lá destacava essa clara, evidente confissão — «o muito que gozámos»: o muito que eu gozára em mandar á Santa as minhas orações para o céo, o muito que a Santa gozára no céo em receber as minhas orações!
E quem o duvidaria? Não mostram os santos Missionarios de Braga, nos seus sermões, bilhetes remettidos do céo pela Virgem Maria, sem sêllo? E não garante a Nação a divina authenticidade d’essas missivas, que têm nas dobras a fragrancia do paraiso? Os dois sacerdotes, Negrão e Pinheiro, conscios do seu dever, e na sua natural sofreguidão de procurar esteios para a Fé oscillante — acclamariam logo na camisa, na carta e nas iniciaes, um miraculoso triumpho da Egreja! A tia Patrocinio cahiria sobre o meu peito, chamando-me «seu filho e seu herdeiro.» E eis-me rico! Eis-me beatificado! O meu retrato seria pendurado na sacristia da Sé. O Papa enviar-me-hia uma Benção Apostolica, pelos fios do telegrapho.
Assim ficavam saciadas as minhas ambições sociaes. E quem sabe? Bem poderiam ficar tambem satisfeitas as ambições intellectuaes que me pegára o douto Topsius. Porque talvez a Sciencia, invejosa do triumpho da Fé, reclamasse para si esta camisa de Maria de Magdala como documento archeologico... Ella poderia alumiar escuros pontos na Historia dos Costumes contemporaneos do Novo Testamento — o feitio das camisas na Judêa no primeiro seculo, o estado industrial das rendas da Syria sob a administração Romana, a maneira de abainhar entre as raças semiticas... Eu surgiria, na consideração da Europa, igual aos Champollions, aos Topsius, aos Lepsius, e outros sagazes resuscitadores de Passado. A Academia logo gritaria — «A mim, o Raposo!» Renan, esse heresiarcha sentimental, murmuraria — «Que suave collega, o Raposo!» Sem demora se escreveriam sobre a camisa da Mary sabios, ponderosos livros em allemão, com mappas da minha romagem em Galilêa... E eis-me ahi bemquisto pela Egreja, celebrado pelas Universidades, com o meu cantinho certo na Bemaventurança, a minha pagina retida na Historia, começando a engordar pacificamente dentro dos contos de G. Godinho!
E tudo isto perdera! Porquê? Porque houve um momento em que me faltou esse descarado heroismo d’affirmar, que, batendo na Terra com pé forte, ou pallidamente elevando os olhos ao Céo — cria através da universal illusão, Sciencias e Religiões.