Anjos rebelados

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Trindade de tristes e de trêmulos, sombrio terceto do Dante, todas as tardes, pela violácea bruma poente, aquelas velhas obscuras apareciam, solitárias, soturnas, e tomavam diretamente o nebuloso caminho do Campo Santo.

As suas três altas e graves figuras de impressão violenta, talhadas em relevo forte, evocavam mesmo, juntas, um titânico terceto dantesco, pela expressão funda e singular, pela majestade sagrada que ressaltava dos seus semblantes pálidos e macerados.

Mas, quem olhasse bem para elas, quem lhes penetrasse as psicologias profundas, sentiria que através de toda essa austera e estranha fisionomia pairava uma candura diáfana, a meiga e terna suavidade de Grandes Anjos brancos e piedosos.

O encanto de um sonho, o sentimento de uma infinita nostalgia, dessa nostalgia de seres emigrados de regiões longínquas e misteriosas, nimbavam os seus perfis assinalados de uma unção celeste.

Era como se elas tivessem realmente descido dos céus, brancas e arcangélicas, as grandes asas excelsas palpitando, o grande resplendor das Onipotências e das Graças nas frontes intemeratas, para purificar e tornar perfeitas as pobres almas na Terra.

Toda a intensa e nobre vida afetiva, toda a resignação, todos os abnegados sacrifícios, todo o imenso martirológio humano cantavam elegias, melancólicas sonatas nos seus olhos misteriosamente nublados pela névoa das desesperanças...

Percebia-se que eram Mães, pelo acentuado das solenes figuras, pela linha das cabeças sublimadas, grandíloquas, que uma larga auréola de estoicismo circundava, santificando.

Mas, porque a Dor transforma as almas mais belas, faz blasfemar as consciências mais firmes e crentes, faz poluir de deprecações e anátemas as bocas mais castas, mais impolutas e santas, as três Dolorosas se transfiguravam, os seus corações traspassados das espadas dilacerantes da agonia infinita, enchiam-se de um torturante fel, de um mal secreto, de uma terrível cólera sacrílega contra o Vago, o Desconhecido, o Incerto.

E, então, os Grandes Anjos brancos e piedosos eram agora os Anjos Rebelados, iluminados pela luz das Vinganças absolutas, de joelhos junto aos túmulos amados dos filhos, com os braços abertos em êxtase, na ansiedade e palpitação de asas que desejam abrir vôo para além, para além das recordações.

A angústia que lhes agitava os espíritos, a atmosfera circundante: —campas, contemplativos ciprestes, chorões suspirantes, eucalíptus nervosos e contorcidos, a doentia vegetação de todo o Campo Santo, aquele ambiente carregado de impressionismos lúgubres, de silêncios penetrantes, de solenidades panteístas, davam às três velhas e aflitivas figuras uma eloqüência suprema de Videntes.

A rudeza, as asperezas, os volteios chãos e simples da sua linguagem, vestiam-se, pelo efeito mágico das intuitivas inspirações, de suntuosos veludos; pompas augustas de frase davam deslumbramentos inauditos às suas queixas, iluminavam as suas blasfêmias, imponderalizavam os seus sacrilégios, que vinham mais radicais, mais irrefutáveis que Dogmas!

E as imprecações lhes jorravam vivas e violentas das fundas bocas amargas e murchas...

Uma lividez de desesperos contidos, mais forte lhes avivava a máscara trágica dos rostos engelhados, cujas peles ressequidas tinham, por vezes, com a febre interior do sangue, leve brilho fugace.

Ventos desencontrados e duros, soprando rijos no crepusculamento da tarde, agitavam como frouxas e flébeis cordas de harpa os fios sonoros e cetinosos dos seus cabelos alvos, através dos quais passava uma ligeira música convulsiva, que os desgrenhava...

Eram três pesadelos deblaterantes, hirtos, — cabeças brancas elevadas ao céu, braços espectrais abertos, abertos, abertos na ânsia das inconsoláveis saudades, abertos em busca dos bens amados que lhes fugiram, como vazias cruzes de estradas ermas esperando em vão os Cristos místicos e ensangüentados que imprevistamente as desampararam levados por transluzentes Arcanjos invisíveis.

E, das suas fundas bocas amargas e murchas, a linguagem blasfematória, assim épica e transcendentemente, em monólogos, clamava:

— Aqui estou, meu Deus, Senhor! nesta penitência de angústia, batendo o peito, junto à sepultura querida do meu filho, murmurando as rezas, as orações da minha Fé.

Tanto que te pedi, tanto que te supliquei que me deixasses morrer primeiro que o meu Luís, ou que me deixasses acabar ao menos perto dele, para que pudesse cobrir de ardentes beijos os seus olhos azuis que eu adorava, as suas mãos que batalharam por mim, sentir o último clarão da sua doce inteligência e alma pura que só, só para mim viviam, só por mim eram felizes e carinhosas! O meu primeiro filho, que tanta luta me custou, tantos perigos, tantos e tão grandes me fez sofrer! O que eu te pedia, só, Senhor! é que me deixasses meu filho, tão rico de mocidade, tão rico de esperança, tão protegido do meu amor e que lá se foi morrer longe de mim, náufrago, nessa cova medonha do Mar, por uma noite de tempestade, talvez já sem velas o barco e sem ao menos, ah!, quem sabe!, sem ao menos estrelas no céu, Senhor, sem estrelas no céu, Senhor!

Apenas um consolo tive e esse bem amargo, bem amargo consolo foi.

Quando encontraram o seu cadáver e que mo vieram piedosamente trazer para que eu o enterrasse, para que eu sentisse a comoção derradeira de vê-lo e enfim dar-lhe a sepultura, a última despedida do meu olhar, o desesperado adeus final; quando mo vieram trazer, quando vi aquele cadáver amado perto de mim, ah! como estremeci de horror e de agonia... Como estava tão mudado, tão desfigurado, tão monstruosamente feio, de tal modo inchado e esverdeado pela asfixia do Mar, que não parecia mais ser ele, o meu filho, o meu Luís adorado que eu trouxera outrora com extremos tamanhos dentro de meu ventre.

Tu, Senhor, apesar de estares em toda a parte, de tudo saberes e adivinhares, nunca soubeste o que era o meu filho, coração simples, religioso e suave como as humildes ermidas brancas, bondade mansa, evangélica como a dos bois que ele pastoreava alegre, cantando...

E como eu me orgulhava quando o via, forte, generoso, franco, leal como a árvore que dá sombra, como a fonte clara e fresca que mata a sede, como o céu estrelado que dá encanto aos olhos. Oh! como ele percorria aqueles campos íntimos da sua mocidade, onde a sua infância desabrochou como as rosas, onde a sua adolescência viu e sentiu ir embranquecendo os meus cabelos, aprofundando a melancolia das minhas rugas.

Vê tu, pois, que viuvez agora no meu peito, que desconforto na minha alma, que vazio imenso em torno a mim sem o amparo, a bondade do meu filho, esse bordão seguro a que eu me arrimava na cegueira da minha velhice, o meu filho, a única, a melhor e maior claridade que iluminou sempre a minha pobre cabeça branca.

Ó Deus sem piedade, ó Deus sem religião e compaixão, maldito sejas! Que Satanás, o Vencido por ti, vingue todas as Mães, vencendo-te, conquistando todo o teu poder, triunfando eternamente de ti nas masmorras negras do Inferno!

E a outra boca, amarga e murcha, blasfemou então:

— Jesus dos Amargurados, Jesus dos Tristes, Jesus dos Desamparados! A mim roubaste a filha, a minha idolatrada filha; e, tão sem piedade o fizeste, que não foi até mesmo um castigo que mandaste pelos meus pecados, foi um crime que cometeste. E tão sem misericórdia, com tamanha crueldade, que tu não pareces, Jesus, filho dessa angélica Maria que alucinada gemeu e se desolou por teus martírios!

Roubaste a minha filha quando ela era noiva, quando estava a cingir a grinalda branca e virgem, quando estava a galgar, tímida, com os pudores da puberdade, o altar sagrado, sob o véu resplandecente como um pedaço de nuvem do teu céu estrelado!

Como hei de viver sem o seu encanto, sem a candidez da sua alma, como me hei de tranqüilizar neste deserto onde vivo sem ela, onde existo, solitária, sozinha por este Mundo, inteiramente sozinha, como perdida numa escura floresta, num lodaçal sinistro, ouvindo uivar lobos?

Pois não te bastava tanta vida que ceifas dia a dia, tanta lágrima que fazes correr em silêncio? Não te saciaram já tantas e tão preciosas existências que levaste, era preciso ainda roubares minha filha, formosa e já noiva, radiante da alegria de ser depois também mãe como eu?

Ah! se tu soubesses, quando ela adoeceu, que cuidados, que sacrificios, que vigílias, quanto doloroso esforço para dar-lhe logo a saúde!

Eu te pedi tanto, te supliquei tantas vezes de joelhos, roguei tanto à tua Onipotência, tanto que afligi e cansei pedindo o teu socorro para ela e, no entanto, foi tudo inútil, o teu desdém me feriu, o teu desprezo me apunhalou e tu de repente a levaste, ela, afinal, morreu...

Depois, quando a vi completamente morta nos meus braços, como sofri, quantos padecimentos horríveis, que choro perdido e convulso me sufocou a garganta, que delírio me acometeu!

Ah! foram estas mãos magras, esqueléticas, estes dedos ressequidos que lhe colocaram, trêmulos de comoção, dolorosamente enternecidos, a grinalda e o véu de noiva de que ela foi vestida. Foram estas mãos cadavéricas que ornaram aquela cabeça loura, linda; que ajeitaram com delicadeza entre aqueles admiráveis cabelos os níveos botões das flores de laranjeira; que colocaram entre aquelas mãos gentis e enregeladas o ramo branco simbólico, o crucifixo de marfim e o pequeno missal azul de fechos de prata.

Depois, depois, já deitada no caixão, num sono sereno de Querubim, quando uns homens vestidos de negro, indiferentes, decerto, estranhos à minha dor, vieram arrancá-la, arrebatá-la de junto a mim, estremeci tanto, tantos abalos me atravessaram, tantos e tamanhos horrores, tal luz alucinante me cegou os olhos, que eu pensei enlouquecer de tormentos, caída de bruços, soluçando, chorando, gemendo sobre o caixão medonhamente fechado que para sempre a levava...

Ah! nunca pensei que aquele corpo adorado que vi crescer e florescer aos poucos, ganhando graça e beleza, descesse tão cedo ao irremediável apodrecimento; que o branco enxoval perfumado, feito com carinho, com alegria feliz, com todo o enternecimento, servisse apenas para tão depressa amortalhá-la!...

Jesus das supremas bênçãos, dos infinitos perdões, dos infinitos consolos, das infinitas misericórdias! Do fundo do meu coração despedaçado de saudades, de desesperanças, de aflições, eu te lanço todas as blasfêmias, todos os anátemas, todo o fel à tua Inclemência!

E a última, amarga e murcha boca, ainda deprecou assim, mais convulsa e violentamente que as outras:

— Ó Santa Virgem das Dores, Mãe de todos os desamparados, de todos os sós, de todos os famintos, de todos os cegos, de todos os nus, de todos os Jós, de todos os desiludidos! Como tu foste desnaturada para mim! Que angústias me reservaste! Que tormentos! Que dilacerações! Que prantos! Que dores! Ó Santa Virgem dos Martírios! Mãe vã, que concebeste por obra e graça do Espírito Santo! Mãe sem Maternidade verdadeira, sem o parto brutal e ensangüentado do teu Filho, sem os olhos desvairados no humano transe de dar à luz, sem as entranhas rasgadas, despedaçadas, sem os gritos horríveis, sem os espasmos catalépticos, sem os letargos febris! Ó Mãe sem nervos e sem sangue, sem estremecimentos, sem sensibilidades, sem êxtases, sem frêmitos, sem convulsões da carne na hora augusta de gerar, ah! como tu dilaceraste entre os teus dedos sagrados, como entre garras ferozes, o meu humilde e frágil coração materno! Num só dia, por um seco simoun de peste, levaste todos os meus três filhos, negros e apodrecidos ainda quentes pelo atroz fantasma da morte.

Pequeninos, anjos que eram, dizem, talvez para me consolar agora, que eles foram para o Céu. Mas, no Céu, no Mar, na Terra, mortos como estão, tudo são covas, Virgem das Dores, tudo são covas e eu bem sei que eles jazem enterrados, medonhamente enterrados!

No entanto, quando as chuvas são torrenciais, à noite, e o vento ruge com violência, arrepiando as árvores, vento gemente e gelado de tempestade, ah! como parece à minha pobre cabeça dolorida e tresloucada de Mãe sem consolo, tristemente horrível o frio que eles hão de sentir lá, lá embaixo desses buracos negros! Como parece aos meus extremos alucinados, à minha aflição de demente que eles hão de tiritar sem remédio dentro dessas covas, sozinhos, lá, tão fundo, tão fundo nas sepulturas!

Eu bem sei e bem sinto ainda agora com os meus brancos cabelos arrepiados de pavor até à raiz, que línguas e dentes glaciais de vermes os devorarão sem se saciarem; que nunca mais os beijarei como outrora; que não terei, palpitando mais, aquecendo-se ao meu seio protetor, aqueles corpos tenros, delicados; que tudo, afinal, acabou, Santa Virgem das Dores, Maria! Mãe! Mãe desnaturada que eu daqui amaldiçôo, numa imprecação selvagem, atirando pragas profundas, como facadas contra a sementeira improdutiva da tu'alma...

Não é só em nosso nome mas em nome de todas as mães que te falamos nós três, que pela grandeza do Amor que nos liga e sublimiza descendemos diretamente do Cristianismo e somos três apenas, representando juntas o sentimento uno da Maternidade.

É em nome de todas as mães que vêm sofrendo desde o princípio do mundo que nos dirigimos a ti: das mães que viram seus filhos morrer na guilhotina; que os perderam nas guerras, rasgados os ventres por baionetas e por metralhas; que os viram devorados pelos incêndios; que os souberam naufragados, na agonia horrível das ondas, ou mortos nas minas, operários míseros, ou loucos, andando como fantasmas, ou cegos, caminhando como sombras.

Ah! é por tudo isso, por todo esse infinito de dores que eu me rebelo contra ti, que eu te amaldiçôo, que eu te amaldiçôo, que eu te amaldiçôo! Três vezes! Em nome do Diabo Todo-Poderoso, Criador do Inferno e do Mal! Eu te amaldiçôo! Eu te amaldiçôo! Eu te amaldiçôo! Que tu te transformes na serpente negra que tens aos pés sobre a esfera estrelada e azul e que uma peste bárbara, infernal, peste de fome e fogo, desole, extermine esse teu Céu fatal, gangrene esse teu Paraíso falso, cujas bem-aventuranças são mentiras, cuja piedade e consolação só trazem cruéis e aterradoras torturas!

E, a cada monólogo, os braços esqueléticos dessas três piedosas figuras, assim tão profundamente transfiguradas pela Dor, agitavam-se, debatiam-se no ar aflitivamente, aflitivamente, abertos às inexprimíveis majestades da solidão do Campo Santo.

Os eucalíptus, ciprestes e chorões, como que impressionados, tocados da emoção que se derramava em fluidos magnéticos desse tremendo terceto dantesco, espiritualizavam-se de segredos sonâmbulos, gemendo baixo nas nervosidades e retorcidos movimentos convulsos, epilépticos, das melancólicas ramagens.

Mas, de repente, nas copas mais densas e altas das grandes árvores corpulentas, os ventos, corno titãs despenhados, sopraram torvos, atroantes trovejamentos; enquanto grasnos corvejantes de bruxas iam sarcasticamente crocitando ríspidas, rápidas risadas, através das finas e sensibilizadas casuarinas siflantes e dos ciprestes vetustos...

A noite, desabrochada na amplidão com estranho esplendor tenebroso, florira de estrelas claras ao alto.

Em torno, dentre os montes longínquos, uma cintilante neblina fria vinha então harmonicamente emergindo, emergindo, e, súbito, o plenilúnio cidrento, de marfinal claridade mortificada, ondulou e fulgiu sereno sobre a paisagem da Morte.

E as trêmulas Velhas simbólicas, arrebatadas numa mesma febre, levadas por igual alucinação de dor, já de pé sobre a terra úmida e revolta das últimas covas, clamavam ainda em coro:

— Maldição! Maldição! Maldição! desaparecendo depois silenciosas, como almas esquecidas num abandono de ruínas antigas, por entre as sombras esparsas — Grandes Anjos Rebelados, de asas impotentes, vencidas, com os dolorosos vultos funestos agora parecendo mais altos, quase gigantescos, mais velhos, mais brancos, mais misteriosamente alvejados e findos sob a volúpia triste, a mágoa muda do luar elegíaco e macerado...