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Antonica da Silva/I

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Sala na casa de Peres: portas ao fundo, e uma, a de entrada, à esquer­da; janelas à esquerda e à direita; mobília antiga.

CENA primeira

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Peres, Mendes, Benjamim, vestido de mulher e de mantilha; alguns homens idosos;

Joana, Inês, Brites, e algumas senhoras. Sinais de festim;

Peres lê uma carta que traz outra inclusa.


CORO meio abafado


A esta hora

Uma senhora!

Que será?


Trouxe carta

Longa e farta:

Que será?


Há mistério...

O caso é sério

Que será?...


PERES (A Mendes.) – Compadre, vem ler esta carta. (Mendes vai.).

INÊS e BRITES (Curiosas.) – Será bonita ou feia?...


CORO

A carta é de segredo,

Ali anda mexida...


JOANA – Receio algum enredo.


CORO

Há mistério...

O caso é sério

Que será?...


MENDES (Entregando a carta a Peres.) – E tu?...

PERES (A Mendes.) – Dou-lhe asilo. Então?...

MENDES (A Peres.) – E que o diabo leve o vice-rei.

PERES – Joana, esta senhora é filha de um velho amigo meu, e vem passar alguns dias em nossa casa.

JOANA – É uma fortuna! (Vai abraçar Benjamim).

PERES (A todos) – Questão de casamento que o pai não aprova: a menina há de mostrar-se razoável. O dever das filhas é aceitar os noivos da escolha dos pais. (Vai conversar com Mendes).

BRITES (A Inês) – Inês, isto é conosco. Ouviste?

INÊS (A Brites) – Que me importa?... coitadinha da moça... que barbaridade!...

JOANA (A Benjamim) – Porque não tira a sua mantilha?...

BENJAMIM – Tenho muita vergonha, sim senhora...

JOANA – Mas é preciso descansar... (Curiosidade das senhoras).

BENJAMIM – Então eu tiro a mantilha, sim senhora (Joana ajuda-a).

BRITES (A Inês) – Que cintura grossa... (BENJAMIM muito vexado)

INÊS (A Brites) – Olha o buço que ela tem!

JOANA – A sua idade, menina?...

BENJAMIM – Minha mãe que é quem sabe, diz que tenho dezoito anos.

JOANA – Como se chama?

BENJAMIM – Antonica da Silva, para servir a vosmencê.

MENDES – Toca para a cidade! Minha afilhada, teu pai deu-nos excelente jantar; mas é tempo... recebe minha bênção e dá-me um abraço. (Despedidas: as senhoras vão tomar suas mantilhas em quarto vizinho).

INÊS (A Brites) – Jantar excelente!... meia dúzia de velhos, e nem um único moço para a gente entreter os olhos! (Despedidas).

BENJAMIM (À parte) – Que peixão de afilhada tem aquele velho! dessa fazenda eu nunca vi nem por amostra em Macacu!


CORO

Agora até mais ver!

Saúde e felicidade

E quem tiver saudade

Que saiba aparecer.

E adeus!

Até outra folgança!

E adeus!...

Até outra festança!

E adeus! adeus!... adeus!


Quem sabe querer bem

O longe torna perto,

E quer mais bem por certo

Quem menos tarde vem

E adeus!...

Até outra folgança!


PERES – Joana, acompanha os nossos amigos!... vão também, meninas. (Vão-se).

CENA II

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Peres e Benjamim.


PERES – Complete a carta de seu pai; que houve?

BENJAMIM – Eu era sacristão da igreja do convento dos franciscanos de Macacu: aprendi o latim e a música e queria chegar a ser frade.

PERES – Deixemos isso... vamos ao essencial...

BENJAMIM – Caí no ódio do capitão-mor, e... foi-se o frade...

PERES – Seu pai fala-me em honra da família...

BENJAMIM – Meu pai é pobre, e o capitão-mor tentou debalde seduzir minha irmã... uma noite, por sinal que eu saía do convento, o capi­tão-mor vem a mim, e me oferece três moedas de ouro para que eu lhe entregasse minha irmã...

PERES—E que fez?...

BENJAMIM – Confessar, confesso: eu dei uma bofetada no capi­tão-mor.

PERES – Depois?

BENJAMIM – No outro dia ordem de me prenderem para soldado e eu duas semanas no mato como negro fugido! depois minha mãe foi lá vestir-me assim, meu pai deu-me a carta para vossa mercê, meteram-me num barco e eis o aspirante a frade metido em saias de mulher.

PERES – Quero abraçá-lo pela bofetada que deu. (Abraça-o.)

CENA III

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Peres, Benjamim, Joana, Inês, Brites e Mendes.


JOANA (À parte) – E esta?... o meu homem manda-nos acom­panhar os convidados, deixa-se ficar aqui, e venho encontrá-lo abraçando a Antonica da Silva!...

PERES (A Mendes) – Espera, compadre (A Benjamim) Escute. (A um lado) Minha mulher e minhas filhas devem absolutamente ignorar o seu verdadeiro sexo. Não posso responder por línguas de mulheres: o vice-rei é cruel e nós ambos estamos expostos a grandes castigos.

BENJAMIM (A Peres) – Juro pelos frades franciscanos que nenhuma das três senhoras terá conhecimento do meu disfarce sexual.

JOANA (À parte) – Agora segredinhos... mesmo na minha cara!...

PERES – Joana, o lugar está bonito: vai com as meninas e com a senhora Antonica dar duas voltas pelo jardim: tenho um particular com o compadre... (Fala a este).

BENJAMIM (À parte) – Que encanto e que precipício! caso de heroicidade original em que um homem deve mostrar que não é homem! com a velha não há perigo; mas as meninas!... é mais fácil estar escondido no mato!

PERES – Vai, Joana!

JOANA (À parte) – Ele a quer bem fresquinha com o sereno da noite... e eu criada da Dulcinéia!...(Alto.) Vamos, meninas.

CENA IV

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Peres e Mendes.


PERES – Pedi que ficasses para te consultar. Compadre, começa a preocupar-me a inconveniência de guardar em minha casa este rapaz vestido de mulher.

MENDES— Quê!... o vice-rei já te faz medo?...

PERES – Tenho duas filhas moças e solteiras: entendes agora?...

MENDES – Mãos à palmatória!... tens razão: mas sem ofensa da amizade não podes livrar-te do hóspede...

PERES – Posso: ele tem asilo seguro no convento dos franciscanos... não te lembra a carta do guardião ao provincial?...

MENDES – E verdade; ótimo recurso: amanhã já...

PERES – E que pensará Jerônimo? pobre, mas meu amigo de quase meio século! ele podia ter mandado o filho diretamente para o convento da cidade; teve, porém, confiança em mim!...

MENDES – Não conheço o grau da amizade que tens com esse Jerônimo: o caso é melindroso: dá cá tabaco. (Tomam)

PERES – Olha: eu deixo a Antonica em casa oito dias...

MENDES – Oito dias a mecha ao pé do paiol da pólvora!...

PERES – É isso! toma tabaco (Tomam) reduzo os oito dias a cinco.

MENDES – Em cinco noites uma gambá acaba com um galinheiro.

PERES – Pois bem: ao menos três dias...

MENDES – Dá-me mais tabaco...

PERES – Não dou: Jerônimo merece algum sacrifício, O pior é que não me animo a confiar o segredo...

MENDES – À comadre?.,, é santa criatura; mas logo contaria tudo às filhas... e estas.

PERES – Tal e ....... e então a sua afilhada? apesar da educação severa que lhe dou, é cabeça de fogo, toda exaltada... por tua culpa! ensinaste-lhe ler contra a minha vontade... trazes-lhe novelas...

MENDES – E hei de trazer-lhas,,, não te dou satisfações. (À janela) Venha, comadre! o sereno pode fazer-lhe mal.

CENA V

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Peres, Mendes, Joana, Inês, Brites e Benjamim.


PERES – Joana, o compadre não volta a estas horas do Saco do Alferes para a cidade; dormiremos no meu quarto cá do andar de baixo... temos aí duas camas: não te ocupes com ele. É verdade!... a senhora Antonica talvez tenha fome: jantou?

BENJAMIM – Não, senhor; mas gosto de jejuar (À parte) Rebentando de fome!... seria capaz de comer o próprio capitão-mor, se mo dessem reduzido a bifes!...

PERES – Brites, manda pôr à mesa alguns assados, doces e vinho... (Brites sai).

JOANA (À parte) – Que cuidados!... como está cheio de ternuras o diabo do velho!... E mesmo na minha cara.

PERES (A Joana) – Manda preparar nesta mesma sala um leito para a senhora Antonica... amanhã lhe daremos melhor cômodo... (Fala a Men­des).

JOANA (À parte.) – É demais!... quer que eu lhe faça a cama e aqui!... perto do quarto, onde vai dormir!...

PERES – Escuta, mulher! (A Joana) deixa em completa liberdade esta menina... em toda liberdade aqui!...

JOANA (À parte.) —Claríssimo!... em completa liberdade!... e ele cá embaixo! mas eu não passo a noite lá em cima.

BENJAMIM (À parte) – A velha está me olhando raivosa! seria engra­çado se tem ciúmes de mim com o marido!... não pode ser outra coisa; mas eu protesto!...

JOANA – Sr. Peres, e ouça também, compadre! a menina, coitada, pode ter medo de dormir aqui sozinha; acho melhor levá-la para o sobrado; dormiria perto de nós...

MENDES (A Peres) – Dá cá tabaco, compadre!... (Toma ele só).

PERES – Não: ela prefere dormir aqui... em liberdade... ela já mo disse.

JOANA (À parte) – O demônio até já perdeu a vergonha!... (Alto) Mulher, como nós, não teria vexame da nossa companhia... é por isso que eu lembrava...

INÊS – Mesmo, se meu pai consentisse, a Sra Antonica podia bem dormir comigo.

BENJAMIM (À parte) – Que choque nervoso!... estremeceu-me o corpo todo...

MENDES (A Peres) – Dá cá tabaco!

PERES (Severo a Joana) – A Sra Antonica dormirá aqui!

BRITES (Entrando) – A mesa está servida: meu pai quer que levemos a Sra. Antonica?...

PERES – Esperem. (À janela) Martinho, o meu cavalo russo e o do compadre selados, e já dou pajens com archotes!...

MENDES (A Peres) – Que extravagância é esta?

PERES (A Mendes) – Vou ao convento dos franciscanos levar a carta

do guardião de Macacu... hão de abrir-me a portaria por força...

MENDES (A Peres) – Perdeste a cabeça, compadre!...

PERES (A Mendes) – Se a tua boa afilhada já quer dormir com ele!

MENDES (A Peres) – Com ela, caluniador! Inês se propunha a dormir com uma menina da sua idade.

PERES (A Joana) – Não quero nem um momento de intimidade de nossas filhas com esta moça: logo que eu sair, manda as meninas para o sobrado. A Antonica dorme aqui: arranja-lhe a cama, e recolhe-te também. O compradre vai, mas volta comigo.

JOANA (À parte) – Et coetera, et coetera... é positivo.

PERES – Vamos, compadre; os cavalos devem estar prontos.

MENDES – Vamos; mas dá cá tabaco (Tomam tabaco e saem; Joana, Inês e Brites os acompanham).

BENJAMIM (Só) – A menina Inês com o inocente desejo de dormir comigo fez revolução na casa! Ora eis como são as coisas! a velha arde em ciúmes por causa da saia que eu trago por cima dos calções, e o velho partiu desatinado por causa dos calções que eu trago por baixo da saia!... mas a menina Inês, se queria dormir comigo, bem poderia fazê-lo sem prevenir o pai; deitou tudo a perder!

CENA VI

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Benjamim, Joana, Inês e Brites.


JOANA – Meninas, tenho ordem de mandá-las já para o sobrado; mas

acho melhor que vão para a mesa com a senhora Antonica. Eu fico para arranjar-lhe a cama (Com intenção).

INÊS – Mamãe tem mais juízo do que meu pai. (A Benjamim) Vamos!

BENJAMIM (À parte) – Valha-me Santo Antônio!... que ten­tação!...

BRITES – Venha... está trêmula!.

BENJAMIM – E nervoso: sou muito vexada... e tenho as vezes como­ções em que não sei o que faço, nem o que digo. Ai!... e tanto medo de dormir sozinha!... (Vão-se).

CENA VII

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Joana e logo escravas, que entram e saem.


JOANA (No fundo) – Benta! Marta! (À frente) É preciso arranjar a cama! que desaforo! (Entram as escravas) Tragam o catre que está no quarto do corredor, e aprontem a cama... ali... (As escravas vão e voltam, obedecendo; Joana passeia à frente) Um velho que já não presta para nada! como pôs a calva à mostra! Ele dormirá lá dentro... pertinho; ela aqui sozinha; e eu... no sobrado! (As escravas) Andem com isso! (A frente) Tenho medo do gênio do Peres: mais hei de pôr esta mulher na rua! (As escravas que saem) Acabaram? vão fechar a casa. A cama está pronta!... oh! haja o que houver, eu hei de passar a noite embaixo desta cama!... Tenho o meu plano... (No fundo) Brites! vem cá.

Cena VIII

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Joana e Brites.


BRITES – A Antonica da Silva, come que parece um pato, e bebe, que para mulher é boa esponja!

JOANA – Já sei o que ela é... uma inimiga nossa! (Admiração de Brites) Eu te explicarei. Olha: teu pai voltará muito tarde... o demônio de saia diz que tem medo de dormir sozinha... Vamos divertir-nos esta noite? mas, acabada a função, vocês duas vão dormir e não se importem comigo. Tenho que fazer cá embaixo. Entendes?

BRITES – Eu julgava a Antonica tão boa! Inês está doida por ela...

JOANA – Inês vai ficar como uma cobrinha assanhada. Apaguemos estas luzes; basta deixar uma, (Apagam) É verdade! a roupa que serviu a teu irmão naquela dança que houve no ano em que ele foi para Coimbra, estava no baú grande...

BRITES – E está.

JOANA – Vai ver se a harpia acaba enfim de comer, (Brites sai) Pois

não, senhora Antonica da Silva!... já lhe aprontei a cama, veremos se a acha macia.

Cena IX

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Joana, Inês, Brites e Benjamim.


BENJAMIM – Donzela infeliz; mas aqui tratada como filha, peço licença para beijar a mão protetora da senhora e as mãozinhas destas duas angélicas meninas,

JOANA – Oh, não! a senhora merece mais; agora faça as suas orações e durma,

BENJAMIM – Eu sozinha nesta sala tão grande!... ah!... acaso já morreu alguma pessoa aqui?

JOANA – Tem medo de almas do outro mundo?... esta casa perten­ce-nos há vinte anos, e ainda ninguém nos morreu nela.

BENJAMIM— Valha-me esta consolação.

JOANA – E verdade que o seu primeiro proprietário, que era muito avarento, e o filho dele que foi juiz almotacel, homem mau, que fez a infelicidade de muitas moças, morreram aqui; mas... ora... foi há tanto tempo!

BENJAMIM – Ai! ai! tenho tanto medo de dormir sozinha!...

JOANA – Fique sossegada: Boa noite! andem meninas!

BRITES – Boa noite! (Seguindo adiante).

INÊS – Eu queria que a senhora dormisse comigo, mas meu pai não quis, Boa noite!

BENJAMIM (Suspirando) – Boa noite. (Joana segue as filhas).

Cena X

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Benjamim.


BENJAMIM – Afotunado bofetão dei no capitão-mor! mas que peri­gos para a minha inocência aqui! sem a menor duvida sou bonito rapaz, se o não fosse o meu disfarce já teria sido descoberto e a gralha ficaria sem estas penas de pavão (Mostrando os vestidos). Que será de mim amanhã?... que ladrões de olhos tem a Inês!... qual! o velho não me entrega preso! e a mãozinha de cetim... e que rosto! ora, eu não quero mais ser frade (Sen­ta-se na cama) E agora?... a coisa não está em despir-me; mas ama­nhã?... camisa... anágua... seios postiços... o lencinho.. . nada: vou dormir vestido. (Deita-se) Ainda tenho no nariz o cheiro suave... (Levanta-se) E que durma um pobre pecador com um cheiro assim no nariz!... é preciso distrair-me... (Canta)


— Lá em Macacu eu era sacristão,

Tocava o sino din-delin-din-din...

É tal qual!

O capitão-mor por simples bofetão

Em fuga pôs-me, como malandrim

E eis-me afinal

Fingindo moça; mas rapaz no intento

Amando Inês, e pelo pensamento

Em pecado mortal.

Velas de cera, o resto da galheta,

Espórtulas, caídas tinha eu:

É tal e qual!

Fechada a igreja e ao toque da sineta

Súcia me fecit, todo dia meu,

E eis-me afinal

Fingindo moça; mas rapaz no intento,

Amando Inês, e pelo pensamento

Em pecado mortal.


Valha-me Santo Antônio! se eu pudesse dormir (Senta na cama).

Cena XI

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Benjamim e Joana que envolvida em imensa mortal/ia negra, vem a passas vagarosos.


JOANA (Dentro) – Meu dinheiro! meu dinheiro!...

BENJAMIM – Que é lá?... eu não creio em almas do outro mun­do... (Em pé: Joana entra) Oh!... oi... (na cama e cobre-se).

JOANA (Canto lúgubre.) –

O catre é meu;

Nele morri:

No travesseiro

(Benjamim treme aterrado e fala durante o canto)

Ouro escondi:

BENJAMIM – Vade retro, retro, vade retro! abrenuntio! uh!... uh!... uh!... (A tremer)

JOANA – Quero o meu ouro...

Eu voltarei.

Se não m’o deres

(Empurra a cama e depois mete-se em baixo)

Te matarei


BENJAMIM – Cre... do... credo... vade retro... per signum... libera nos... per signum... (Ao empurrar Joana a cama) Santo Antônio... me valha! (Silêncio) Libera nos (Silêncio) Creio... que estou livre... (Le­vanta o lençol aos poucos) Oh! (Em pé e espantado) Nunca vi almas do outro mundo no cemitério de Macacu... não acreditava... mas esta é a do avarento!... se me deitei sem fazer oração... (Ajoelha-se e reza).

Cena XII

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Benjamim e Brites, envolvida em mortalha branca.


BRITES (Dentro) – Ai!...

BENJAMIM (Corre para a cama a tremer) – Outra!... Misericórdia!

BRITES (Canto pungente) – O almotacé defunto...

Aqui de noite vaga...
E a vítima que apanha...
Em frio abraço esmaga!


BENJAMIM (Fingindo medo) – Ah! ah!... credo... vade retro... (Levantando a ponta do lençol) ah! esta alma padecente conheço eu... a voz não engana. (A tremer) uh!... uh!...uh!... (Finge medo).

BRITES – Por ela seduzida

E em seus braços morrendo...

Sou alma condenada..

E vago padecendo!

(Passa a mão

pelo rosto coberto
de Benjamim e vai-se)

Ai!


BENJAMIM (Treme) – Uh! uh! uh! (Ao passar da mão) Ai! mi... mi... misericórdia! (Silêncio.) Foi-se... (Descobre-se) A outra alma que deveras me aterrou era portanto a velha enciumada!... divertem-se comigo: pois divirtam-se... a menina Brites saiu sem levar uma oração minha; por­que (Em pé e rindo) eu bem sei porque..

Cena XIII

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Benjamim e Inês, com o rosto muito apolvilhado, vestido ricamente de almotacel e com imenso véu transparente.


INÊS (Dentro.) – Minha noiva! minha noiva!

BENJAMIM (Fingindo medo) – Ai!... é a alma do almotacel!... estou perdido!... (À parte) E a mezinha! que belo, belo, belo!...

INÊS – Finado sou; mas amo-te! (Indo a Benjamim que recua)

Adivinhei-te e vim:

Por minha noiva quero-te:

Hás de ser minha, sim!

Sim! sim!... (Persegue Benjamim)

BENJAMIM (Recuando) – Oh, trance cruel! alma de sedutor, fu­gi-te!... onze mil virgens, salvai-me!

INÊS (Perseguindo)— Hás de ser minha, sim! (Aceleram os passos) Sim! sim!...

BENJAMIM – Alma condenada, vade retro! ai, que angústia!...

INÊS (Recuando) – Serás minha noiva!...

BENJAMIM (Recuando menos vivo) – Já me faltam as forças, ai de mim!... (À parte) quero ver só o que o demoninho da moça vai fazer comigo. (Alto) Não posso mais! (Inês toma-o pelo braço) Ai que frio de morte! (À parte) E uma febre de fogo...

INÊS – Amo-te!

BENJAMIM – Mas não ofenda o meu pudor! tomara eu que ela queira ofendê-lo).

INÊS – És minha noiva.. dá-me um abraço!...

BENJAMIM – Oh... não! poupe a mísera donzela!...

INÊS – Um abraço! um abraço!...

BENJAMIM – Ai de mim! pois bem, senhor almotacel... eu lhe dou um abraço... mas um abraço só... depois o senhor me deixa... vai-se embora... me deixa...

INÊS – Oh! vem! (Abraça-o, e separa-se e foge).

BENJAMIM – Agora me deixe... me deixe...

INÊS (À parte) – E que abraço apertado me deu! como está nervosa!.

(A Benjamim) E minha noiva, há de acompanhar-me para o cemitério...

BENJAMIM – Para o cemitério! não... isso não...

INÊS – E dormirá na minha sepultura...

BENJAMIM (Fingindo terror) – Senhor almotacel, tudo quanto quiser, mas não me leve para o cemitério! sou sua noiva, sim!... amo-o... mas tenho medo do cemitério... não me leve... amo-o! quer que lhe dê um beijo?... (Beija a face de Inês) por quem é não me leve! quer outro beijo? (Beija-a) outro? (Beija-a) amo-o! (De joelhos e beijando-lhe as mãos) ado­ro-o! sou seu escravo... seu escravo!... quero dizer, sua escrava.

JOANA (Saindo de baixo da cama, e pondo a cabeça de fora) – Inês, ela é homem!...

INÊS (Afastando-se confundida) – Oh!...

Cena XIV

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Benjamim, Inês, Joana e Brites, que entra.


JOANA – O senhor não é capaz de negar que é varão do sexo masculino.

BENJAMIM (À parte) – Como hei de negá-lo depois que ela fez o descobrimento da América (A Joana) sim senhora, confesso que sou ho­mem... mas inofensivo.

INÊS (À parte) – Agora não posso mais olhar para ele...

JOANA – Mas o senhor abusou... devia ter-nos dito!

BENJAMIM – Foi o Sr. Peres que me ordenou segredo absoluto...

BRITES (À parte) – De que escapei!...

JOANA (À parte) – Coitado do meu Peres!... que aleive lhe levan­tei... (Alto) Pois bem: como foi ordem do meu homem, conserve o segredo seu e dele; mas guarde também o nosso: o das loucuras desta noite; o senhor não é do sexo masculino... para nós.

BENJAMIM – Não sou, não; eu sou Antonica da Silva para as se­nhoras... podemos viver santamente na comunidade do nosso sexo (Batem à porta)

JOANA – É Peres que chega. Ele deve ficar pensando que já estamos todas dormindo. Não se esqueça de apagar a luz... venham, meninas (Ba­tem).

BENJAMIM – Sou muito esquecida... é melhor já (Apaga a luz).

JOANA – Andem... Andem...

BENJAMIM (De joelhos beija a mão de Inês, quando ela passa, vão-se

Joana, Inês e Brites) – Juro pelos frades franciscanos que não quero mais ser

frade (Ergue-se e vai às apalpadelas para a cama).


FIM DO PRIMEIRO ATO