Ao longo de uma ribeira

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Ao longo da ribeira
que vai polo pé da serra,
onde me a mim fez a guerra
grande tempo grande amor,
me levou a minha dor.
Já era a tarde do dia,
e a água dela corria
por antre um alto arvoredo
onde, às vezes, ia quedo
o rio, e às vezes, não.
Entrada era do verão,
quando começam as aves
com seus cantares suaves
fazer tudo gracioso.
Ao rugido saudoso
das águas cantavam elas:
todalas minhas querelas
se me puseram diante.
Ali morrer quisera ante
que vir por onde passei.
Mas, como digo eu “passei”?
Antes nunca hei de passar
enquanto i houver pesar,
que sempre o i há de haver.
As águas, que de correr
não cessavam um só momento,
me trouxeram ao pensamento
que assi eram minhas mágoas,
donde sempre correm águas
por estes olhos mesquinhos
que têm abertos caminhos
polo meio do meu rosto.
E já não tenho outro gosto
na grande desdita minha.
O qu’eu cuidava que tinha
foi-se-me assi, não sei como,
donde eu certa crença tomo
que pera me deixar veio.
Mas tendo-me assi alheio
de mim o que ali cuidava,
da banda donde a água estava
vi um homem todo cão,
que lhe dava polo chão
a barba e o cabelo.
Ficando eu pasmado em vê-lo,
olhando ele pera mim,
falou-me, e disse assim:
“Também vai esta água ao Tejo”.
Nisto olhei, vi o meu desejo
estar detrás, triste, só,
todo coberto de dó,
chorando sem dizer nada,
a cara em sangue lavada,
na boca posta ũa mão,
como que a grande paixão
força em calar-se fazia.
O velho, que tudo via,
vendo-me também chorar,
começou assi a falar:
“Eu mesmo são teu cuidado
que noutra terra criado
nesta primeiro nasci,
e estoutro que está aqui
por ti soubeste o que é.
Por teu mal viste-o, porque
nunca te ele esquecerá:
a terra ao mar passará
primeiro qu’a mágoa em ti
Quando lhe eu aquisto ouve
soltei suspiros ao choro.
Ali caramente o foro
meus olhos tristes pagaram
do bem só que eles olharam
que outro nunca mais tiver
nem no tive, nem mo deram
nem no espero tão-somente
De só ver fui tão contente
que pera mais esperar
nunca me deram lugar
olhos com que vos olhei,
vivos, como desejei,
como nunca vos vi ora.
Mas nisto, acompanhando
meus olhos tristes, olhando
daquelas bandas d’além,
olhei e não vi ninguém.
Dei então a caminhar
io abaixo, até o lugar
onde cerca o monte mor
que todos os derredor
da banda do meio-dia.
Ali minha fantasia,
d’antre uns medonhos penedos
donde aves que fazem medos
de noite os dias vão ter,
me saiu a receber
com ũa mulher polo braço,
que ao parecer, de cansaço,
não se tinha já em si,
dizendo-me: “Vês aqui
a triste lembrança tua.”
Minha vista então na sua
pus, e dela toda a enchi:
a prima cousa que vi
e a derradeira também
neste mundo e no que vem.
Seus verdes olhos rasgados,
de lágrimas carregados,
ogo, em vendo-os, pareciam
que algũas delas corriam
contino polas suas faces
que foram grão tempo pazes
antre mim e meus cuidados.
Louros cabelos ondados
que um negro manto cobria,
na tristeza parecia
que lhe convinha morrer.
Os seus olhos, de me ver,
como furtados tirou;
depois em cheio me olhou
seus alvos peitos rasgando
e, a fala espedaçando,
em voz disse alta e dorida
“Pois houve morte na vida
pera que houve aí viver?”
Calou-se, sem mais dizer.
E, de mim, gemidos dando
fui-me pera ela chorando
pera [a] haver de consolar
Nisto pôs-se o sol e o ar,
e cerrou-se a noite escura.
E disse “Mal à ventura
e à vida, que não morri.”
E muito longe dali
ouvi, como d’alto outeiro,
chamar “Bernardim Ribeiro
e dizer “Olha onde estás!”
Olhei diante e detrás
e vi tudo escuridão.
Cerrei meus olhos então
e nunca os mais abri,
e, depois que o ver perdi,
nunca vi tamanho bem.
Porém, inda mal, porém.