Arras por Foro de Espanha/V

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Fr. Roy, saíndo da casa das arcas, atravessára os corredores vizinhos; mas, em vez de seguir o que dava para o passadiço de S. Martinho, tomára por uma escadinha escura aberta no topo da estreita passagem anterior a elle. Esta escadinha descia para o atrio do paço. O beguino, habituado pelo seu ministerio a entrar na morada real ás horas mortas, e a saír nas menos frequentadas, sabia por diuturna experiencia que a porta principal devia estar aberta, mas ainda erma, ao mesmo tempo que a igreja, por onde entrára, já começaria a povoar-se de fiéis, porque, como é facil de suppôr, as igrejas eram naquella epocha mais frequenfadas que hoje. Desceu, pois, com passo firme, resolvido a encaminhar-se ao rocío, e a espalhar entre os amotinados a noticia da partida d’elrei.

Mas uma difficuldade imprevista lhe embargou os passos. Ou fosse que os acontecimentos da vespera obrigassem a maiores cautelas, não havendo ainda então exercito permanente, nem guardas pagas para defensão da pessoa real, cuja melhor protecção estava na propria espada, ou fosse por qualquer outro motivo, a porta ainda se não abríra! O beguino hesitou se devia retroceder para sair pela igreja, se esperar. As considerações que o tinham movido a seguir este caminho o obrigaram a ficar. Mettido no estreito e escuro vão da escada, o ichacorvos assemelhava-se, involto nas suas roupas de burel, e reluzindo-lhe os olhos á meia luz que dava o pateo interior, a um moderno funccionario, que hoje, nesses mesmos paços, e n’um desvão igual, talvez no mesmo sitio, mostra aos que entram o rosto banhado na hediondez da sua alma, esperando que a vindicta publica o convide a algum banquete de carne humana, e no esperar atroz rodêa com as garras os ferros do seu covil, como um tigre captivo. O espia era alli, por assim dizer, uma preexistencia, uma harmonia pre-estabelecida do algoz.

Passára obra de meia hora, e o beguino começava a impacientar-se mui seriamente quando sentiu pés de cavalgadura no pateo interior do edificio. D’ahi a pouco um donzel, trazendo na mão uma desconforme chave, e as rédeas de uma valente mula enfiadas no braço, chegou á porta e começou a abri-la. Era um dos donzeis d’elrei. Costumado a disfarçar a sua frequente entrada no paço sob a capa da mendicidade, e habituado a estender a mão á espera de alguns soldos que devotamente lhe atiravam senhores, cavalleiros e escudeiros, ao que elle retribuia com a longa lenda das suas orações em aleijado latim, Fr. Roy era acceito a quasi todos os moradores da casa d’elrei, que respeitavam a sua apparente sanctidade. Por isso, saindo do seu desvão, encaminhou-se para a porta.

“A madre Sancta Maria vos guarde de máu olhado, de feitiços e de ligamentos:—­disse elle, chegando-se ao donzel, e fazendo sobresair esta ultima palavra.

“Vós aqui, Fr. Roy. por estas horas?—­replicou o donzel, voltando-se admirado.

“Que quereis!—­tornou o beguino.-Quando hontem os maldictos burguezes accommetteram os paços reaes com sua grita e revolta, estava eu aqui. Ai que medo tive! Escondi-me naquelle desvão, e quando se fecharam as portas achei-me encurralado cá dentro como um emparedado em seu nicho. A minha profissão de paz e de religião não me consentia passar por meio de homens possuídos do espirito de colera, e inspirados por Belzebuth, nem o susto me deixava animo desaffogado para ir roçar o burel do meu santo habito pelos trajos empestados dos filhos de Belial. Tambem a humildade e mortificação christan se oppunham a que eu subisse a pedir gasalhado a algum de vós outros os moradores da casa de nosso senhor elrei. Assim, louvando a Deus por me conceder uma noite de padecimento, alli me deixei ficar sohre as lageas humidas, sobre as duras e agudas arestas dos degráus daquella escada. Agora, que a revolta é finda, consolado com as dores que me traspassam os ossos, e confiado na providencia de Jesu-Christo, vou-me ao meu gyro diario para vêr se obtenho da caridade dos devotos a pitança usual com que possa matar a fome de vinte e quatro horas, pela qual dou mil louvores ao justo juiz, que reina eternalmente nos altos céus.”

O beguino revirou beatificamente os olhos, e fez uma visagem entre afllicta e resignada, levando ao mesmo tempo a mão ao joelho, como se alli sentisse uma dor agudissima.

“Veneravel Fr. Roy!—­atalhou o donzel com as lagrymas nos olhos—­se tivesseis procurado o aposento dos donzeís, nós vos dariamos ao menos um almadraque para repousar, e repartiriamos comvosco da nossa cêa. Mas o mal esta feito, e o peior é que para hoje não vos posso offerecer abrigo. Vós crêdes, sancto homem, que a revolta é finda, e nunca ella esteve mais accesa. Sua senhoria vae partir já da cidade ...”

“Sancta Maria val! Sancto nome de Jesus! Accorrei-nos, virgem bemdicta!—­interrompeu Fr. Roy.—­Pois os populares teimam em sua assuada, e elrei deixa-nos aos coitados de nós, humildes religiosos e cidadãos pacificos, entregues ao furor dos peões?”

“E que remedio, bom Fr. Roy?!—­replicou tristemente o donzel.—­Sem cavalleiros, escudeiros e bésteiros não se faz guerra, nem se desfazem assuadas, e nada d’isto tem elrei. Agora vou eu ao rocío avisar os senhores do conselho, os privados e fidalgos que lá estão, que sigam caminho de Santarem, sob pena de incorrerem em caso de traição se ficarem em Lisboa, por signal que elrei me recommendou procurasse avisar primeiro que ninguém sua mercê o infante D. Diniz.”

“No rocío, dizeis vós?—­tornou o beguino arregalando os olhos.—­Confesso que vos não entendo.”

Durante este dialogo o donzel tinha acabado de destrancar a porta do paço, cavalgado na mula que trazia de rédea, e saído ao terreiro seguido de Fr. Roy, que coxeava, estorcia-se, e suspirava dolorosamente de quando em quando. Passo a passo, e sofreando a mula, caminho da sé, o pagem narrou ao beguino todas as particularidades succedidas aquella manhan, as quaes Fr. Roy sabia melhor do que elle. Chegados defronte dos paços do concelho, o pagem tomou pelo sopé da alcaçova e Fr. Roy pela porta do ferro, não sem terem primeiro saído da bolça do donzel para a manga do beguino alguns pilartes, [1] e da bôca deste para os ouvidos daquelle alguns latinorios pios devidamente escorchados.

Apenas passára o largo da sé e transpozera a velha e soturna porta do ferro, Fr. Roy se achára perfeitamente sarado do seu tão agudo rheumatismo. Ligeiro como um galgo, desceu por entre as antigas terecenas reaes, e em menos de tres credos estava no pelourinho [2] Ahi viu cousa que o fez parar. Um homem vestido de valencina, e coberta a cabeça com um grande feltro, arengava a um troco de bésteiros e peões armados de lanças ou ascumas, de almarcovas ou cutellos: tinha nas mos um desconforme montante, e na cincta uma espada curta: a turba ora o escutava attentamente, ora prorompia em gritos confusos e estrondosos. Fr. Roy chegou-se. O homem do feltro amplo era o mestre tanoeiro Bartholomeu Chambão, que enthusiasmado proseguia o seu vehemente discurso sem reparar no beguino:

“Já vo-lo disse: d’aqui ninguém bóle pé antes d’elrei nosso senhor saír para S. Domingos. Nada de bulha fóra de sazão, que lá estão os esculcas. Daremos mostra ao paço quando ahi fôr só a adultera. Se, como hontem, nos fecharem as portas, isso é outro caso. É preciso que isto se desfaça. A cobra peçonhenta deve saír da toca. Não digo que então não seja possivel esmagar-se-lhe a cabeça... N’um brandir de ascuma... Mas cautela, não haja sangue!... Pelo menos de innocentes... Leaes e esforçados cidadãos desta mui leal cidá... Sáfa, bruto!”

Esta peroração inesperada com que mestre Bartholomeu interrompêra o seu discurso, que se ía elevar ao ápice da eloquencia, procedêra de lhe ter descido a grossa e espaçosa mão do ichacorvos sobre o hombro, que lhe vergára como se houvessem descarregado em cima delle uma aduella de cuba. A Fr. Roy occorrêra uma idéa abençoada, a de communicar a mestre Bartholomeu a nova que D. Leonor lhe recommendára espalhasse entre os amotinados; a nova da sua partida de Lisboa com elrei. O mendicante sabía que o tanoeiro era homem de bofes lavados, e que dentro de meia hora a noticia teria corrido toda a cidade. Assim se esquivava não só a ser visto no rocío pelo donzel, de quem naquelle instante se apartára, mas tambem a achar-se involvido em qualquer desordem que semelhante noticia poderia produzir, attenta a irritação dos animos. Além d’isto a lembrança do arripio dorsal, que as ultimas palavras de D. Leonor lhe tinham causado, lhe fazia quasi desejar que o tanoeiro, encarregado (segundo percebêra do fim da sua arenga) da commissão, que, na taberna de Folco Taca, Diogo Lopes incumbíra a Fernão Vasques, podesse ainda desempenha-la, atalhando a fuga de D. Leonor. Estas considerações que lhe haviam passado rapidamente pelo espirito, e o vêr que mestre Bartholomeu não levava geito de acabar, o moveram a falar ao tanoeiro, que só o sentíra quando elle lhe descarregára sobre o hombro a ponderosa mas amigavel palmada.

“Com mil e quinhentos satanazes!—­exclamou mestre Bartholomeu, voltando-se e vendo ao pé de si o beguino.—­Sabia que a mão da sancta madre igreja era pesada; mas não pensava que o fosse tanto! Que me quereis, Fr. Roy?”

“Dizer-vos que podeis mandar saír vossos esculcas de sua atalaia; porque poderiam chegar a curtir o inverno ahi antes de verem elrei chegar e passar para S. Domingos.”

“Fr. Roy,—­replicou o tanoeiro, fazendo-se vermelho de colera—­para interromper-me com uma de vossas bufonerias não valia a pena de me aleijardes este hombro!”

“Tomae como quizerdes as minhas palavras; chamae-me o que vos aprouver, bufão ou mentiroso, mas a verdade é que não será hoje que os populares falarão com elrei.”

“Pois quê, morreu dos feitiços da adultera, ou lornou-o invisivel algum encantador seu amigo?”

“Nem uma cousa nem outra: mas com estes olhos de grande peccador (aqui o ichacorvos fez o gesto habitual de cruzar as mãos sobre o peito) eu o vi sair para a banda da portada cruz...”

“Fr. Roy, olhae que estes honrados cidadãos vos escutam, e que o auto é mui grave para gastar truanices.”

“Já disse, mestre Bartholotmeu, que falo verdade. Pelo bento cercilho do sancto-padre vos juro que hoje elrei não dormirá em Lisboa, segundo o geito que lhe vejo. Elle cavalgava uma possante mula de caminbo; n’outra ia uma dona coberta com um longo véu: seguiam-no donzeis, falcoeiros e moços de monte. Ao passar ainda lhe ouvi estas palavras:—­olhae aquelles villãos traidores como se junctavam: certamente prender-me quizeram, se lá fora [3] !—­Não pude perceber mais nada. Que mais, porém, é preciso? Deixastes fugir a prêa: agora catae-lhe o rasto.”

“Traidor é elle, que nos ha mentido como um pagão!—­bradou o tanoeiro sopesando o montante.—­Mas que se guarde de outra vez trazer a Lisboa a adultera! Rainha ou barregan, arrancar-lhe-hemos os olhos. A arraya-miuda foi escarnida; mas não o será em vão. Que dizeis vós outros, honrados burguezes?”

“Escarnidos, escarnidos!—­respondeu com grande grila o tropel.—­Mas à fé que nunca a adultera será rainha de Portugal. Morra a comborça!”

E no meio da alarida, as pontas das lanças e os largos ferros das almarcovas agitadas nos ares scintillavam aos raios do sol oriental como um vasto brazido.

“Ao rocío! ao rocío!—­gritou mestre Bartholomeu.—­Vamos, rapazes: já que não fazemos aqui nada, ao menos que o povo não seja por mais tempo burlado!”

E pondo o montante ás costas, mestre Bartholoraeu tomou por uma das ruas que davam para a banda de Valverde, seguido da turbamulta, e sem fazer caso de Fr. Roy, que procurava rete-lo, ponderando que ainda poderia alcançar elrei e fazê-lo retroceder. O tanoeiro, porém, não tinha valor para affrontar-se face a face com D. Fernando, e por isso fingiu não ouvir o beguino, que dentro de alguns minutos se achou só no meio do terreiro calado e deserto.

Entretanto juncto a S. Domingos, se bem que a rixa começada entre os nobres partidários de Leonor e Fernão Vasques se houvesse desvanecido, a agitação dos populares, cujo numero crescia continuamente, não tinha diminuido. Encostado a um dos pilares do alpendre, o alfaiate ora lançava os olhos de revés para os senhores da côrte e conselho, que, esperando por elrei, passeiavam de um para outro lado, ora os espraiava por aquelle mar de vultos humanos, que elle sabía poder agitar ou tornar immoveis com uma palavra ou com um simples aceno. Semelhante á hora que precede a procella, em que apenas se vêem correr na atmosphera abalada os castellos encontrados de nuvens densas e negras, e se ouve o estourar dos trovões roufenhos e prolongados, aquella hora que então passava era espantosa e ameaçadora de estragos, sobretudo quando, após um rugido terrivel do tigre popular, se fazia na praça apinhada de gente um silencio ainda mais temeroso e tetrico.

Foi n’uma destas interrupções do motim que um pagem, saíndo ao galope do lado da corredoura, veio apear-se juncto do alpendre, e tirando da cincta um pergaminho aberto o entregou ao infante D. Diniz.

Este fitou os olhos na escriptura, descórou subitamente, e entregou o pergaminho a Diogo Lopes, dizendo-lhe ao mesmo tempo em voz baixa:

“Estamos perdidos!”

Diogo Lopes leu o conteúdo naquelle escripto fatal, e no mesmo tom respondeu ao infante:

“O caminho de salvação que nos resta é o de Santarem. Obediencia e circumspecção!”

O pergaminho passou rapidamente de mão em mão: os fidalgos, letrados, e cavalheiros fizeram um circulo no meio do alpendre: e, depois de o haverem lido, fitaram uns nos outros olhos desassocegados. Todos receiavam falar. O manhoso Pacheco foi o primeiro que se atreveu a isso, aproveitando habilmente a hesitação dos outros fidalgos e conselheiros.

“Vistes a ordem d’elrei. Como um dos mais velhos entre nós, direi meu parecer. Embora o risco seja grande achando-nos cercados de povo armado e furioso, o nosso dever é pôr a vida por obedecer a nosso senhor elrei.”

“Mas,”—­atalhou o doutor Gil d’Ocem, que por mui letrado e prudente era ouvido como oraculo pelos cortezãos—­“o caso é grave: o povo se nos vir retirar enviar-se-ha a nós: se lhes dizemos o motivo da nossa partida é capaz de desconcertos maiores que os já commettidos.”

“Sua senhoria não devêra ter-nos emprasado para este auto, se a sua intenção era não dar resposta aos populares.”

Visivelmente o doutor em leis e degredos estava tomado de medo, no que não levava vantagem á maior parte dos outros membros do conselho real.

O conde de Barcellos guardava silencio. Não podia conceber como D. Leonor o não avisára a tempo, e por isso preoccupava-o a indignação, ignorando que a resolução da fuga fôra tomada mui tarde. Na vespera elle aconselhara a elrei que cedesse a tudo quanto o povo quizesse; porque dissolvido o tumulto, facil era chamar á côrte os senhores e cavalleiros de mais confiança, acompanhados de gente do guerra, com que seria sopitado qualquer motim, se os populares ousassem oppôr-se de novo á vontade de seu rei e senhor. D. Fernando aceitára o conselho, que, se não era o mais leal, era ao menos o mais seguro; mas as revelações do ichacorvos, que o conde ignorava, tinham mudado, como o leitor viu, a situação do negocio.

A reflexão de Gil d’Ocem estava em todas as cabeças, e por isso os cortezãos ficaram outra vez em silencio, como buscando um expediente para sair daquelle difficultoso passo: a incerteza, o despeito, o receio pintava-se nos rostos demudados de muitos.

E as vagas do oceano, que ameaçava traga-los, encapellavam-se aos pés deites: o povo, vendo os fidalgos erguidos e mudos n’um circulo, apinhava-se cada vez mais basto ao redor da alpendrada. Isto fazia crescer o temor, e o temor perturbava demais os animos para não poderem achar um expediente acertado.

Era por isso que esperava o astuto Pacheco.

“De um lado a colera do povo: do outro os mandados delrei—­disse, apertando com a mão a fronte, o velho conselheiro de Affonso ÍV.—­Resta-nos só um arbitrio.”

“Dizei, dizei!—­clamaram a um tempo todos, á excepcão do conde de Barcellos, que fitou nelle os olhos desconfiados.

“É necessário que annunciemos a nova da partida d’elrei, e que sejamos os primeiros a affeíar este procedimento: é necessário que vamos adiante da indignação dos peòes. Depois dir-lhes-hemos que, burlados como elles, nada fazemos aqui. Então apartar-nos-hemos sem susto, e sairemos da cidade como podérmos, na certeza de que não serei eu o ultimo, apesar de velho, que cruze as portas da alcaçova de Santarem.”

“Mas quem ha-de falar em nosso nome?—­perguntou Gil d’Ocem.

“No vosso, mestre Gil das Leis!—­interrompeu o conde de Barcellos.—­Nem o receio das affrontas do alguns milhares de sandeus, nem o da propria morte me obrigaria a cuspir maldicções sobre o nome daquelle a quem uma vez jurei preito e leal menagem.”

“Viram impendere vero nemo tenetur”—­replicou Gil d’Ocem—­“ou, como quem o dissesse por linguagem, ninguém é obrigado a deixar-se matar por amor da verdade ou de seu preito. Vós fazei o que vos aprouver.”

Á auctoridade de um texto latino trazido assim a ponto por um tão insigne doutor, não havia resistir. Os fidalgos e conselheiros approvaram quasi unanimente o alvitre de Diogo Lopes.

“Mas quem ha-de falar ao povo?—­insistiu o mestre em leis, que não parecia excessivamente inclinado a incumbir-se dessa gloriosa tarefa.

“Eu, se assim o quizerdes”—­replicou immediatamente Diogo Lopes.

O manhoso cortesão vira claramente que a partida d’elrei transtornava todos os seus desenhos: todavia calculára n’um momento como, sem suscitar a indignação de Fernão Vasques, e por consequencia alguma revelação perigosa, podia salvar-se e ao infante. Logo que elrei se esquivára á influencia do povo, de cuja ousadia o velho esperava tudo, o casamento de D. Leonor era inevitavel, e ainda suppondo, o que não era de esperar, que o tumulto fosse avante, que Lisboa se rebellasse claramente contra D. Fernando, o resultado da guerra civil tinha muito maior probabilidade de ser favoravel a elrei, senhor do resto de Portugal, que ao povo, desprovido naquella conjunctura dos principaes meios com que poderia sustentar uma lucta intestina. Assim, o alvitre que offerecêra para a salvação dos cortezãos era só para se haver de salvar a si, conservando ao mesmo tempo a affeição dos cabeças da revolta, sem que o meio que para isso devia empregar o fizesse decahir da graça de D. Fernando.

Para os calculos de Diogo Lopes faltáro, porém, um elemento: era a delação do beguino; e era justamente, esta falta que os destruia todos. Assim é a politica.

O sacrifício de Diogo Lopes foi geralmente recebido com approvação e agradecimento. Então elle, saíndo do circulo, aproximou-se a Fernão Vasques, que de quando em quando volvia os olhos inquietos para a pinha dos fidalgos e cavalleiros.

“Falhou a traça:—­disse o velho cortezão em voz sumida ao alfaiate.—­Elrei acaba de saír da cidade.”

Fernão Vasques recuou, e poz-se a olhar espantado para Diogo Lopes, como quem não acreditava o que ouvia.

“O que vos digo é a verdade,—­continuou Pacheco.—­Mas não affrouxar! Elrei de Castella é por nós, e bom numero de fidalgos portuguezes o são tambem. Mais; são por nós a maior parte dos que ora aqui vêdes presentes. Conservae o bom animo do povo, e fiae o resto de mim e ... de quem vós sabeis.”

Ao pronunciar estas palavras, Diogo Lopes lançou de relance os olhos para D. Diniz.

“Mas elrei tomará por mulher D. Leonor—­acudiu o alfaiate aterrado:—­voltará a Lisboa com seus cavalleiros e homens d’armas, e então coitados de nós!”

“Não temaes: o matrimonio adultero será condemnado pelo papa. Vós já tereis ouvido contar o que succedeu a elrei D. Sancho: a D. Fernando póde succeder o mesmo. Tambem os fidalgos de Portugal têem homens d’armas. Podeis estar certo de que não vos abandonaremos. Agora resta uma cousa. Coube-me a mim dar esta triste nova aos bons e leaes burguezes, que tão ousadamente se oppozeram á deshonra da sua terra e de seu rei, e eu devo ser ouvido por elles. Mandae-lhes que façam silencio.”

Fernão Vasques obedeceu: o ruído dos populares, que não descontinuára durante esta scena, acalmou a um aceno do alfaiate.

Diogo Lopes fez então um largo discurso, com o qual não cansaremos os leitores, que pouco mais ou menos terão previsto como seria. Misturando amargas reprehensões contra D. Fernando com lisonjas aos populares, procurou persuadi-los, posto que indirectamente, de que toda a fidalguia estava cheia de indignação. Alludiu á resistencia por armas que elrei podia encontrar entre os ricos-homens de Portugal contra o seu casamento, e no caso de vir este a cabo, a probabilidade de ser annullado pelas censuras da igreja. Emfim, sem nunca lhes dizer claramente que insistissem na revolta, e tractassem, se fosse preciso, de defender a cidade contra o poder real, suscitou todas as idéas que podiam levar os populares a este excesso. Faltava o ponto difficultoso; o da partida dos fidalgos. Pacheco soube com a mesma ambiguidade dar esperanças aos peões de que elles se encaminhavam para suas alcaidarias e honras com o louvavel intento de se aperceberem em soccorro dos burguezes de Lisboa, e com tal arte o fez, que os senhores e cavalleiros que se achavam em S. Domingos, sem exceptuar o proprio conde de Barcellos, não viram nas suas palavras senão uma feliz inspiração para os salvar da colera da arraya-miuda.

Durante aquella larga arenga esta guardára silencio, interrompido a espaços por um desses borborinhos, que são como os annuncios das erupções do volcão popular. Pacheco, emfim, concluiu: mas o espectaculo que tinha diante de si o fez ficar immovel por alguns momentos; e estes foram terriveis. Aquelles centenares de olhos avermelhados, scintillantes de furor, eravados nelle e nos outros fidalgos; aquellas bôcas semi-abertas prestes a proromper em brados de morte, eram como um pesadello diabolico, como uma vertigem de loucura. Os populares pareciam ainda escuta-lo, e não poderem acreditar a deslealdade de D. Fernando de Portugal.

Os fidalgos aproveitaram este instante de torpor moral que precedia a procella. Desceram da alpendrada, e montando nas suas possantes mulas, encaminharam-se vagarosamente para a banda da corredoura. No meio da cavalgada, e rodeado dos cavalleiros mais bemquistos do povo ía o conde de Barcellos, e Diogo Lopes com os seus pagens fechava o sequito. Se houvessem atravessado a praça, o conde teria corrido grande risco; porque, ao dobrar o angulo do mesteiro, ja os doestos grosseiros e violentos voavam contra elle do meio do povo apinhado, e até dois virotes de bésta pareceu sibilarem por cima da sua cabeça. Mas apertando os acicates, os cavalleiros seguiram ao longo da corredoura, em quanto Diogo Lopes, victoriado pelas turbas, a quem com sorrisos retribuia aquellas mostras de affécto, obstava a que as ondas populares rodeassem o diminuto numero de cortezãos, alguns dos quaes tinham fundados motivos para receiar a irritação desses animos ferozes, exaltados pela fuga d’elrei.

A cavalgada linha desapparecido, quando um troço de bésteiros e peões desembocou do lado da rua nova. Eram mestre Bartholomeu e a sua gente, que vinham confirmar a nova dada por Diogo Lopes Pacheco.

Mas as palavras que Fr. Roy dissera ter ouvido proferir a elrei, lançadas entre os amotinados como um facho sobre montão de lenha por onde lavra ha muito fogo occulto, levaram o tumulto a um ponto medonho. As affrontas, que até ahi quasi só se encaminhavam contra Leonor Telles e seus parciaes, voltaram-se contra D. Fernando. As maldieçòes, as pragas, os nomes de traidor e covarde se ajunctavam ás mais violentas ameaças. Uns juravam que nunca mais elle entraria em Lisboa; outros propunham que se lançasse fogo aos paços reaes. Debalde Fernão Vasques trabalhava por aquieta-los; nem já escutavam o seu idolo. Furiosos espalhavam-se pelas ruas, que atroavam com gritos, brandindo as armas; e por certo que se neste momento D. Fernando lhes tivesse apparecido, não teriam talvez respeitado a vida do filho do seu tão querido D. Pedro I, o mais popular de todos os nossos reis, chamados da primeira dynastia.

Este motim sem objecto, sem resistencia, e sem resultado, acalmou nesse mesmo dia. Ao anoitecer, a cidade tinha cahido no seu habitual silencio, e pouco a pouco os fidalgos e cavalleiros, atravessando as portas da cruz, seguiam caminho de Santarem. O systema militar dos antigos parthos dera a victoria a elrei: elle vencêra fugindo!

O povo adormeceu: os cabeças da revolta estavam irremediavelmente perdidos.


  1. Moeda de prata de cinco soldos.
  2. As terecenas ou taracenas reaes, isto é o deposito dos aprestos das galés, de guerra, eram juncto ao sitio em que hoje vemos a igreja da Magdalena: o pelourinho velho ou Açougues era um terreiro que ficava pouco mais ou menos no fim da rua da Praia.
  3. Nom quis alla hir e partiose da çidade com D. Lionor, ho mais escusamente que pode, e hi a dizendo pello caminho; “Oulhaae, &c.”—­Fernão Lopes, chr. de D. Fernando c. 61.