Arras por Foro de Espanha/IV

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Mal Fernão Vasques travára do braço do conde de Barcellos, e a grita popular começára a atroar a praça, Fr. Roy, escoando-se ao longo da parede do mosteiro, dobrára a quina que voltava para a Corredoura, [1] e seguindo seu caminho por viellas torcidas e desertas, chegára á porta do ferro, d’onde, atravessando o contiguo e malassombrado terreirinho, em que os raios do sol apenas rapidamente passavam, embargados ao nascer pelos agigantados campanarios da cathedral, e ao declinar pelos pannos e torres da muralha mourisca, chegára esbaforido a S. Martinho. A porta do paço estava fechada; mas a da igreja estava aberta. Entrou. Ao lado direito uma escada de caracol descia da tribuna real para a capella-mór, e a tribuna communicava com o palacio por um passadiço que atravessava a rua. O beguino olhou ao redor de si, e escutou um momento: ninguém estava na igreja. Subindo rapidamente a escada, Fr. Roy atravessou o passadiço e encaminhou-se, sem hesitar no meio dos corredores e escadas interiores, para uma passagem escura. No fim della havia uma porta fechada. O monge vagabundo parou, e escutou de novo. Dentro altercavam tres pessoas: Fr. Roy bateu devagarinho tres vezes, e pôz-se outra vez a escutar.

Ouviram-se uns passos lentos que se aproximavam da porta; e uma voz esganiçada e colerica perguntou;—­Quem está ahi?”

“Eu:—­respondeu o beguino.

“Quem é eu?—­replicou a voz.

“Honrado D. Judas, é Fr. Roy Zambrana, indigno servo de Deus, que pretende falar a elrei ou á mui excellente senhora D. Leonor, para negocio de vulto.”

“Abre, D. Judas, abre!”—­disse outra voz, que pelo metal parecia feminina, e que soou do lado opposto do aposento.

A porta rodou nos gonzos, e o ichacorvos entrou.

Era o logar em que Fr. Roy se achava uma quadra pequena, allumiada escaçamente por uma fresta esguia e engradada de grossos varões de ferro, a qual dava para uma especie de saguão, ainda mais acanhado que o aposento. A abobada deste era de pedra; de pedra as paredes e o pavimento: ao redor viam-se por unico adereço muitas arcas chapeadas de ferro. O monge entrára na casa das arcas da corôa—­do recabedo do regno. As duas personagens que ahi estavam, afóra a que abríra a porta, eram D. Fernando e D. Leonor. Elrei, de pé, curvado sobre uma das arcas, com a fronte firmada sobre o braço esquerdo, folheava um desconforme volume de folhas de pergaminho, cujas guardas eram duas alentadas taboas de castanho, forradas exteriormente de couro cru de boi, ainda com pello. [2]

D. Leonor, tambem em pé por detraz d’elrei, olhava attentamente para as paginas do livro. O que abrira a porta era o thesoureiro-mór D. Judas, grande affeiçoado de D. Leonor e valido d’elrei. O judeu apenas voltára a ponderosa chave, sem volver sequer os olhos para o recem-chegado, tornára immediatamente para ao pé da arca a que elrei estava encostado, e proseguíra a vehemente conversação, cujos ultimos ecchos Fr. Roy ouvíra ao aproximar-se...

“Mil dobras pé-terra e trezentas barbudas são todo o dinheiro que o vosso fiel thesoureiro vos póde apurar neste momento, respigando como a pobre Ruth no campo do vosso thesouro, ceifado, e bem ceifado (aqui o judeu suspirou) por aquelles que talvez menos leaes vos sejam. Jurar-vos-hei sobre a toura, se o quereis, que não fica em meu poder uma pogeia.”

Elrei não o escutava. Apenas Fr. Roy entrára, D. Leonor se havia encaminhado para o ichacorvos, e, lançando-lhe um olhar escrutador, lhe perguntára com visível anciedade:

“Beguino, a que voltaste aqui?”

“A cumprir com minha obrigação, apesar de vós me terdes dado hontem por quite e livre. Vim a dizer-vos que a estas horas talvez tenha já corrido sangue no rocío de Lisboa, e que é espantoso o tumulto dos populares contra os do conselho, e contra os senhores e fidalgos da casa e valia d’elrei.”

Fôra á palavra sangue que D. Fernando havia cessado de attender á voz esganiçada do thesoureiro-mór, que continuava em tom de lamentação:

“Bem sabeis, senhor, que tenho empobrecido em vosso serviço, e que hoje sou um dos mais mesquinhos e miseráveis entre os filhos d’Israel. Aonde irei eu buscar dous mil maravedis velhos d’Alemdouro, que são em moeda vossa trezentos e noventa mil soldos?” [3]

“Sangue, dizes tu, beguino?—­exclamou elrei—­Oh, que é muito! A quem se atreveram assim esses populares maldictos?”

“Eu proprio vi o nobre conde de Barcellos travar-se com Fernão Vasques; mui grande numero de bésteiros, e peões armados de ascumas rodeavam já o alpendre de S. Domingos, e os clamores de morram os traidores atroavam a praça.”

“Que me dêem o meu arnez brunido, a minha capelina de camal, e o meu estoque francez:—­gritou D. Fernando escumando de colera.—­Eu irei a S. Domingos, e salvarei os ricos-homens de Portugal, ou acabarei ao pé delles. Pagens! onde está o meu donzel d’armas?”

“O teu donzel d’armas, rei D. Fernando,—­interrompeu com voz pausada e firme D. Leonor—­segue com os outros pagens caminho de Santarem, montado no teu cavallo de batalha. Aqui só tens a mula de teu corpo [4] para seguires jornada.”

“Mas o conde de Barcellos! O meu leal conselheiro, deixa-lo-hei despedaçar pelos peões desta cidade abominavel? Lembra-te de que é teu tio; que foi o teu protector, quando o braço de D. Fernando ainda se não erguêra para te coroar rainha.”

“Rei de Portugal, és tu que deves lembrar-te delle, quando o dia da vingança chegar. Então cumprirá que os traidores e vis te vejam montado no teu ginete de guerra. Hoje não podes senão deixar entregue á sua sorte o nobre D. João Affonso e os senhores que são com elle; mas não te esqueça que se o seu sangue correr, todo o sangue que derramares para o vingar será pouco, como serão poucas todas as lagrymas que eu verterei sem consolação sobre os seus veneraveis restos. Combateres? Ajudado por quem, n’uma cidade revolta? Os homens d’armas do teu castello quebraram seu preito, e tumultuam na praça: muitos de teus ricos homens estão conjurados contra ti: teu proprio irmão o está. Partir! partir! Ha quantas horas sabes tu que a ultima esperança está no partir breve? Porque, depois de tantas hesitações, ainda hesitar uma vez? Asseguremos ao menos a vingança, se não podermos salvar aquelles que, leaes a seu senhor, se foram expôr á furia de homens refeces e crús, para esconder nossa fuga... fuga; que é o seu nome!”

O furor e o despeito revelavam-se nas faces e labios esbranquiçados da adultera, e a afflicção e o temor comprimidos n’uma lagryma que lhe rolou insensivelmente dos olhos. Era uma das rarissimas que derramára na sua vida.

Elrei tinha escutado immovel. Desacostumado a ter vontade propria, desde que (como dizia o povo) esta mulher o enfeitiçára, ainda mais uma vez cedeu da sua resolução, se não de homem cordato, ao menos de valoroso, e respondeu em voz sumida:

“Partamos. E seja feita a vontade de Deus!”

“Amen—­murmurou o ichacorvos.

“Beguino,—­interrompeu D. Leonor, voltando-se para Fr. Roy—­corre já ao rocío, e dize em voz bem alta aos populares amotinados, que me viste partir com elrei caminho de Santarem. Talvez assim o conde seja salvo, porque a furia desses vis sandeus se voltará contra mim. Dize-o, que dirás a verdade: quando lá houveres chegado, o meu palafrem terá já transposto as portas da cruz. Guardae-vos, mesquinhos, que elle a torne a passar com sua dona. Ichacorvos! esse dia será aquelle em que a adultera pague todas as suas dividas!”

Fr. Roy sentiu pela medula dorsal o mesmo calafrio que sentíra na noite antecedente; porque o olhar que Leonor Telles cravou nelle era diabolico, e a palavra—­adultera—­proferida por ella, soava como um dobrar de campa, e vinha como involta n’um halito de sepulchro: o beguino arrependeu-se desta vez mui seriamente de ter sido tão miudo e exacto na parte official que apresentára na vespera. Calou-se, todavia, e saíu com o seu ademan do costume, cabeça baixa e mãos cruzadas no peito.

Os tres ficaram outra vez sós.

“D. Judas, meu bom D. Judas:—­disse elrei com um gesto de afflicção—­eu não entendo estas embrulhadas letras mouriscas da tua arithmetica. Estou certo de que não deves ao thesouro real uma unica mealha, e de que nas arcas do haver não existe senão o que tu dizes: mas de certo não queres que um rei de Portugal caminhe por seu reino como um romeiro mendigo. Ao menos os dois mil maravedis de ouro...”

“Ai!—­suspirou o thesoureiro-mór—­juro a vossa real senhoria que me é impossivel achar agora outra quantia maior que a de mil dobras pé-terra e trezentas barbudas.”

“Fernando—­atalhou Leonor Telles—­ordena aos moços do monte que ahi ficaram que enfreiem as mulas: devemos partir já. É tão meu affeiçoado D. Judas, que com duas palavras eu obterei o que tu não podeste obter com tantas rogativas.”

Ella sorriu alternativamente com um sorriso angelico para elrei e para o thesoureiro-mór. D. Fernando obedeceu, e, alevantando o reposteiro que encobria uma porta fronteira áquella por onde entrára o beguino, desappareceu. O thesoureiro ía a falar; mas ficou com a bôca semi-aberta, o rosto pallido, e como petrificado, vendo-se a sós com D. Leonor. Era que já a conhecia havia largos tempos.

“D. Judas,—­disse esta em tom mavioso—­tu has-de fazer serviço a elrei para esta jornada. Darás os dous mil maravedis velhos.”

“Não posso!—­respondeu D. Judas com voz trémula e afogada.

“Judeu!—­replicou D. Leonor, apontando para um cofre pequeno, que estava no canto mais escuro do aposento, coberto de tres altos de pó—­o que está naquella arca?”

O thesoureiro-mór hesitou um momento, e depois balbuciou estas palavras:

“Nada ... ou para falar verdade... quasi nada. Bem sabeis que d’antes eu alli guardava algumas mealhas que me sobejavam da minha quantia, mas ha muito que nem essas poucas mealhas me restam.”

“Vejamos, todavia:—­tornou D. Leonor, cujo aspecto se carregava.

“Misericordia!—­bradou D. Judas com indizivel agonia. Mas reportando-se, por um destes arrojos que inspiram os grandes perigos, procurou disfarçar o seu susto, continuando com um riso contrafeito:

“Misericordia, digo; porque fôra mais facil achar entre os amotinados do rocío um homem leal a seu rei, do que eu lembrar-me agora do logar onde terei a chave de uma arca ha tanto tempo inutil e vazia.”

“Perro infiel! eu te vou recordar quem póde dizer onde as havemos de achar.”

“Estaes hoje, mui excellente senhora, merencoria e irosa:—­replicou o thesoureiro-mór, trabalhando por dar ás suas palavras o tom da galantaria, mas visivelmente cada vez mais enfiado e trémulo,—­Assim chamaes perro infiel ao vosso leal servidor, por causa d’uma chave inutil que se perdeu? Todavia, dizei quem sabe della, e eu a irei procurar.”

“Generoso e leal thesoureiro!—­interrompeu D. Leonor, imitando o tom das palavras do judeu, como quem gracejava—­não te dês a esse trabalho, por tua vida. Quem póde faze-la apparecer é um velho cão descrido, que mora na communa de Santarem. Eu sei de um remedio que lhe restituirá á lingua a presteza d’uma lingua de mancebo de vinte annos. O seu nome e Issachar. Conhéce-lo?”

“Alta e poderosa senhora, vós falaes de meu pobre pae!—­respondeu o thesoureiro-mór, redobrando-lbe a pallidez.—­Mas tractemos agora do que importa. Com mil e quinhentas dobras pé-terra e trezentas barbudas, que eu disse a meu senhor el-rei estarem prestes...”

D. Leonor lançou para o judeu um olhar d’escarneo, e proseguiu:

“Do que importa é que eu tracto. Sabes tu, meu querido D. Judas, que sejam as tuas dobras mil, ou mil e quinhentas, ámanhan a estas horas eu D. Leonor Telles, a rainha de Portugal, estarei em Santarem? Ouviste já dizer que, em não sei qual das torres do alcacer, ha um excellente potro capaz de desconjuntar n’um instante os membros do mais robusto villão? Veiu-me agora a idéa que o velho Issachar amarrado a elle deve ser gracioso, porque tendo vivido muito, constrangido a falar, ha-de contar cousas incriveis, quanto mais dizer onde está uma chave, cujo paradouro elle não póde ignorar. Não achas tu tambem que é folgança e desporto digno de qualquer rainha o vêr como estouram os ossos carunchosos de um perro de noventa annos?”

Um suor frio manou da fronte de D. Judas, cujas pernas vacillantes se recusavam a suste-lo. Quando D. Leonor acabou de fazer as suas atrozes perguntas, o judeu tinha cahido de joelhos aos pés della.

“Por mercê, senhora,—­exclamou elle n’um trance horroroso de angustia—­mandae-me açoutar como o mais vil servo mouro: mandae-me rasgar as carnes com os mais atrozes tormentos; mas perdoae a meu velho pae, que não tem culpa da pobreza de seu filho. Se eu tivera ou podéra alcançar mais que as duas mil dobras e as quinhentas barbudas que offereci a meu senhor elrei...”

“Judeu!—­atalhou D. Leonor—­tu deves saber tres cousas: a primeira é que os tractos do potro são intoleraveis; a segunda é que eu costumo cumprir as minhas promessas; a terceira é que se neste momento de aperto eu te podesse applicar o remedio, não o guardaria para a ossada bolorenta de um lebréu desdentado.”

“Vendido cem vezes,—­proseguiu o thesoureiro-mór lavado em lagrymas, e procurando abraça-la pelos joelhos—­eu não poderia apresentar neste momento mais que a somma já dicta de duas mil e quinhentas dobras, e quinhentas barbudas, ainda que vossa mercê me mandasse assar vivo.”

“És um louco, D. Judas!—­interrompeu Leonor, affastando de si o judeu com um gesto de brandura.—­Por uma miseria de pouco mais de quinhentas pé-terra consentirás que Issachar, que teu pae, honrado velho! pragueje nas ancias do potro contra o Deus de Abraham, de Jacob e de Moysés?”

O thesoureiro-mór conservou-se por alguns momentos calado, e na postura em que estava. Depois, passando o braço de revés pelos olhos, enxugou as lagrymas e ergueu-se. A resolução que tomára era a de um desesperado que vae suicidar-se.

“Aqui estarão, senhora,—­murmurou elle—­os dous mil maravedis quando os quizerdes. Procurarei obte-los; mas ficarei perdido. Agora podeis dar ordem á vossa partida.”

“Adeus, meu mui honrado D. Judas:—­ disse D. Leonor sorrindo.—­Não perderás nada em ter cedido aos meus rogos.”

Dicto isto, saíu pela mesma porta por onde saíra elrei.

O judeu estendeu os braços com os punhos cerrados para o reposteiro que ainda ondeava, levou-os depois á cabeça, d’onde trouxe uma boa porção de melenas grisalhas. Feito isto, tirou da aljubeta uma chave, abriu o cofre pequeno e pulverulento, sacou para fóra um saquitel pesado, sellado e numerado, e os dous mil maravedis rolaram sobre o grande livro, que ainda estava aberto sobre uma das arcas. Contou-os quatro vezes, empilhou-os aos centos, e como se as forças se lhe tivessem exhaurido no espantoso combate que se passava na sua alma, atirou-se de bruços sobre a pequena arca, e abraçado com ella desatou a chorar.

“Meu pobre thesouro, juncto com tanto trabalho!—­exclamou por fim entre soluços.—­Guardei-te neste cofre com medo de te vêr roubado, e os salteadores vim encontra-los aqui! Mas que se livrem de eu tornar a receber os direitos reaes das mãos dos mordomos. Meus ricos dous mil maravedis de bom ouro, não voltareis sósinhos quando vos tornardes a ajunctar com os vossos abandonados companheiros!”

Esta idéa pareceu consolar de algum modo D. Judas. Levantou-se, tornou a contar os dois mil maravedis: desconfiou de que havia engano, e que eram dois mil e um: tornou-os a contar, e quando elrei entrou no aposento, já prestes para cavalgar, tinha o bom do judeu obtido a certeza de que não dava uma pogeia de mais da somma que lhe fôra requerida em nome do potro da torre de Santarem. [5]

“Oh,—­exclamou elrei, lançando os olhos para cima do desalmado folio, sobre cujas paginas amarelladas estava empilhado o dinheiro —­temos os dous mil maravedis?!”

“Saiba vossa real senhoria que felizmente tinha em meu poder uma somma pertencente a Jeroboão Abarbanel, o mercador da porta do mar, e de que não me lembrava: ao basculhar as arcas dei com ella: a quantia está completa, e o honrado mercador não levará por certo mais de cinco por cento ao mez, emquanto os ovençaes de vossa senhoria não vierem entregar no thesouro o producto dos direitos reaes vencidos. Então pagar-lhe-hei, até á ultima mealha, a quantia e seus lucros, se vossa senhoria não ordena o contrario.”

“Faze o que entenderes, D. Judas:—­respondeu elrei, que não o ouvira, attento a metter n’uma ampla bolça de argempel, que trazia pendente do cincto, os dous mil maravedis.—­Tudo fio de ti, honrado e Seal servidor.”

E recolhidos os maravedis, saíu. O judeu ficou só.

“No inferno ardas tu com Dathan, Coré e Abiron, maldicto nazareno!...—­murmurou elle.—­Porém não antes de eu haver colhido os dous...quero dizer, os tres mil e duzentos maravedis, que me tiraste com lanta consciencia quanta póde ter a alma tisnada de um christão.”

Feita esta jaculatoria ao Deus de Israel, D. Judas aferrolhou interiormente a porta do reposteiro, atravessou o aposento, saíu pela porta fronteira, que tambem aferrolhou, e a bulha de seus passos, que se alongavam, soou através dos corredores por onde passára Fr. Roy, até que por aquella parte do palacio tudo caíu em completo silencio.


  1. A Corredoura era uma rua, que, passando ao sopé do monte do Castello, e por detraz de S. Domingos, dava passagem do centro da cidade para Valverde, (hoje passeio publico e Salitre).
  2. Para não enfadarmos os leitores com um sem numero de notas declarâmos por uma vez que todos os costumes e objectos que descrevemos são exactos e da epocha, porque para taes descripções nos fundámos sempre em documentos ou monumentos.
  3. O maravedi velho de ouro ou de Alem Douro (chamado assim para o distinguir do maravedi de 15 soldos, que era aquelle pelo qual se regulavam as quantias dos que vingavam soldo ou maravedis, a que se chamava da Estremadura) valia 27 soldos, isto é, menos de libra e meia das antigas, cada uma das quaes era igual a 20 soldos. A dobra de ouro conhecida pelo nome vulgar de pé-terra, mandada lavrar por D. Fernando, tinha o valor legal de 6 libras, e, portanto, era mui superior nominalmente ao antigo maravedi, excedendo em preço mais de quatro vezes. Todavia, bem pelo contrario, o valor real d’uma dobra pé-terra era inferior ao maravedi velho na razão de 20 para 32 1/2. A alteração da moeda feita por D. Fernando no principio do seu reinado confundiu e transtornou completamente o antigo systema monetario: as barbudas, das quaes havia 53 em cada marco da lei de 3 dinheiros, vinham a ser iguaes ás libras novas deste rei, porque, produzindo até ahi um marco da lei de 11 dinheiros 27 libras, ficou em a nova moedagem produzindo 165, o que dada a differença do toque entre o marco de lei e o marco das barbudas, tornava cada uma destas a mesma cousa que a libra. Por outra parte, equivalendo cada libra a 20 soldos, moeda sem valor intrinseco, vinha o marco de lei a ser representado por 3.900 soldos, e assim o antigo maravedi d’ouro correspondente á vigesima parte de um marco de prata, correspondia realmente a 195 soldos, ao passo que cada pé-terra, sendo o mesmo que 6 libras, não valia mais de 120 soldos, isto é, ficava para aquella moeda na razão de 20 para 32 1/2.
  4. Os cavalleiros quando se punham a caminho costumavam cavalgar em mulas, como animaes mais rijos e possantes que os cavallos; nestes montava um pagem ou donzel. Veja-se principalmente a lei de D. Afonso III sobre os que vão a cas de elrei.
  5. Aquelles que não conhecerem as opiniões, estado de civilisação, e costumes da idade média, medirão o thesoureiro-mór D. Judas por um ministro de fazenda moderno, como, se não nos engana a memoria, lhe chama com uma ignorancia deliciosa o marquez de Pombal em uma lei sobre os christãos-novos, e acharão inverosimil a scena antecedente, posto que esteja bem longe d’isso. A falta de christãos habilitados para tractarem materias de fazenda publica, obrigou os reis portuguezes a despresarem a lei das côrtes de 1211, que os inhibia de empregarem judeus no seu serviço. Mas esta necessidade não podia destruir o profundo desprezo em que se tinha esta raça, olhada como abominavel em consequencia das convicções politicas e religiosas daquelles tempos, despreso que em grande parte assentava em bons fundamentos. A idéa que se fazia de um judeu na idade média acha-se expressa na lei 23.ª daquellas côrtes, e pinta melhor o pensar dessas eras a similhante respeito do que tudo quanto podessemos aqui escrever. “Os quaes judeus (diz o legislador) assy como testemunho da morte de Jesu-Christo devem a seer defesus, solamente porque som homeês.” Juncte-se a isto o caracter cruel, hypocrita e cubiçoso de D. Leonor Telles, tão excellentemente pintado pelo grande poeta chronista Fernão Lopes, e poder-se-ha então avaliar devidamente a verosimilhança desta scena de imaginação no meio de outras scenas da vida real desses tempos.